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“Os factos para apadrinhar a arte”: Thomas Georg Driendl e as pinturas da Matriz Basílica de Aparecida

“The facts to patronize art”: Thomas Georg Driendl and the paintings of the Basilica of Aparecida

Resumo:

Este artigo tem como escopo as pinturas de milagres do forro da Matriz Basílica de Aparecida, mais conhecida atualmente como “Basílica Velha”. Esse templo foi edificado na segunda metade do século XIX para atender ao elevado número de romeiros que visitavam a localidade com o intuito de venerar a Virgem da Conceição Aparecida. A execução das obras dos elementos artísticos foi realizada pelo artista alemão Thomas Georg Driendl entre 1884 e 1888. Nesse sentido, buscamos analisar os usos do passado por meio da compreensão das pinturas do forro do templo como instrumento de apropriação litúrgica das narrativas populares acerca dos milagres no final do século XIX.

Palavras-chave:
pintura; Thomas Georg Driendl; Aparecida; usos do passado

Abstract:

This article has as scope the paintings of miracles of the lining of the Matrix Basilica of Aparecida, in Aparecida City, Brazil, better known today as “Old Basilica”. This temple was built in the second half of the 19th century, to meet the high number of pilgrims who visited the locality in order to venerate the Virgin of the Conception Aparecida. The work of the artistic elements was carried out by the German artist Thomas Georg Driendl between 1884 and 1888. In this sense, we sought to analyze the uses of the past by understanding the paintings of the temple lining as an instrument of liturgical appropriation of popular narratives about miracles At the end of the 19th century.

Keywords:
painting; Thomas Georg Driendl; Aparecida; uses of the past

Seis de novembro de 1884. Após uma longa viagem pelas províncias do Rio de Janeiro e de São Paulo, o conde e a condessa d’Eu adentravam a vila de Guaratinguetá, no vale do Rio Paraíba do Sul. A passagem do casal imperial pela localidade atendia aos interesses da política imperial de promover a difusão da popularidade do casal, bem como revelava as preocupações particulares da princesa Isabel, que desejava visitar a Capela de Aparecida1 1 Na década de 1880, a antiga povoação do morro dos Coqueiros (atual Aparecida) era designada nos jornais pelo termo Capela de Aparecida. com o intuito de realizar a desobriga de votos realizados em sua primeira visita ao templo nos idos de 1868: “parada em Guaratinguetá, para subir à Capela de Nossa Senhora Aparecida, fazer oração” (Daunt, 1957DAUNT, Ricardo Gumbleton. Diário da princesa Isabel. São Paulo: Anhembi, 1957., p. 26).

A herdeira do trono brasileiro teria aproveitado a oportunidade de sua viagem oficial pelas províncias do sul do império do Brasil (Schwarcs, 2008SCHWARCS, Lília Moritz. Nas barbas do imperador: dom Pedro II, um monarca nos trópicos. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.) para passar pelo templo de Aparecida com uma finalidade religiosa, com o pagamento de uma promessa. Para Barman, a princesa teria varrido a igreja e jogado parte do pó no corpete de seu vestido como pagamento de uma promessa por ter gerado filhos (Barman, 2012BARMAN, Roderick J. Entre o trono e o altar. Revista História, Rio de Janeiro, n. 80, 2012., p. 20). Guardar nas vestes parte da terra do templo era entendido pela população da região como uma ação de preservação das relíquias sagradas, do chão onde estava edificado o altar com a imagem milagrosa (Souza, 2001SOUZA, Juliana Beatriz Almeida de. Virgem mestiça: devoção à Nossa Senhora na colonização do Novo Mundo. Tempo, Niterói, v. 6, n. 11, p. 77-92, 2001.ercival/, p. 77-92).

A passagem dos membros da família imperial brasileira por Aparecida revelava frestas que extrapolavam as inquietações da política monarquista e das práticas devocionais da princesa Isabel.2 2 Sobre as viagens do conde d’Eu pelas províncias do Norte do Brasil, ver Santos (2017, p. 1-30). Ao adentrar o templo, o casal imperial encontrou-se com um artista alemão recém-chegado ao Brasil e que já circulava nas principais instituições artísticas e exposições da Corte, com a apresentação de pinturas elogiadas no cenário artístico nacional. O artista em questão era Thomas Georg Driendl, que se tornaria um dos mais premiados pintores dos últimos anos do império. Nos idos de 1884, ele estava na província de São Paulo como responsável pelas obras de ornamentação da nova igreja3 3 Para Tirapeli, a Basílica Velha “é o exemplar mais tardio do barroco no Estado de São Paulo”. O templo passou por intervenções em 1780, 1845-1852, 1878-1880 e 1882-1888 (Tirapeli, 2003, p. 292-295). do centro de romarias.

Thomas Driendl pintou o forro da Matriz Basílica de Aparecida entre 1884 e 1888.4 4 As obras de construção da nova Matriz de Aparecida foram inauguradas no dia 24 de junho de 1888 pelo bispo diocesano de São Paulo, d. Lino de Carvalho. No dia 28 de novembro de 1893, o mesmo bispo elevou a referida igreja à condição de Santuário Diocesano. Durante o levantamento documental, não possível localizar o programa iconográfico das pinturas, o que propiciaria uma interpretação pautada pelo cotejamento entre as propostas de reforma devocional e de execução das pinturas. Todavia, é possível afirmar o predomínio das intervenções do clero diocesano nas obras, pois nesse momento a diocese estava tentando assumir o controle da romaria de Aparecida, apesar da relutância dos irmãos leigos em permanecer como responsáveis pela construção e administração do templo até 1o de janeiro de 1890 com o fim do padroado régio. No momento das celebrações da coroação da imagem de Nossa Senhora Aparecida, em 1904, realizaram-se pequenas alterações na pintura original, com o revestimento das paredes com a cor verde, remetendo à pátria. Com a restauração, entre 2005 e 2012, essa pintura foi retirada. Em 1908, ao receber o título de basílica menor, o santuário passou novamente por pequenas modificações nas pinturas, com a inserção de elementos iconográficos que remetiam ao título, nos pontos da pintura da cruz na nave central. Como esses elementos não foram pintados por Driendl e também não interferem nas pinturas sobre as cenas de milagres, neste artigo não nos deteremos nessas inserções empreendidas ao longo do século XX. Nessas pinturas, destacam-se as cenas que reproduzem as narrativas dos milagres atribuídos a Nossa Senhora Aparecida, como se se constituísse um itinerário de salvação ou um recurso pedagógico para narrar experiências devocionais das camadas populares. Diante disso, neste artigo nos propomos analisar os usos do passado por meio da compreensão das pinturas do forro do referido templo como instrumento de apropriação litúrgica das narrativas populares acerca dos milagres no final do século XIX. Nesse sentido, as referidas pinturas foram discutidas como um instrumento de tradução das práticas devocionais das camadas populares sob a ótica do clero reformador, mostrando-se como um caminho de redenção atrelado à piedade cristã.

O texto foi dividido em três momentos. No primeiro, discutimos a formação do artista Driendl em Munique. Essa discussão foi realizada a partir de registros dos livros de matrículas da Academia de Belas Artes de Munique e dos dados apresentados por biógrafos. O segundo tem como foco a discussão acerca da trajetória do artista no Brasil a partir de 1881. É uma leitura a partir das informações apresentadas nos estudos sobre a arte no Brasil oitocentista e nas notícias publicadas na imprensa brasileira no final do século XIX. No terceiro momento, analisamos as pinturas do forro da Matriz Basílica e como as narrativas do passado miraculoso da devoção mariana popular foram apropriadas pelo artista e adaptadas à liturgia.

“Scenas das Montanhas da Baviera”: Driendl e a formação em Munique

O período oitocentista é marcado pela iniciativa do Estado brasileiro na criação de instituições culturais e científicas que norteariam a realização de estudos voltados para a edificação de uma memória nacional. Esse processo de invenção de uma identidade brasileira, por vezes desvinculada do passado português, ora como continuidade desse mesmo, teve como cenário os espaços culturais multifacetados e designados com atribuições distintas, como a produção historiográfica no âmbito do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB), o ensino de história pátria no Colégio Pedro II e a edificação de uma memória dos “feitos” nacionais por meio da pintura histórica produzida na Academia Imperial de Belas Artes. Para Jorge Coli (2002COLI, Jorge. O sentido da batalha: Avahy, de Pedro Américo. Projeto História, São Paulo, n. 22, 2002., p. 114), os pintores românticos da Academia conferiram “a dimensão de uma epopeia que fortalecesse a história recente do país. Com essas imagens, o Brasil afirmava a sua proeminência na América Latina”.

Essa tríade institucional tornou-se o locus de produção de narrativas históricas em diferentes suportes, nas quais elucidavam a busca de um passado nacional coeso e tido como civilizado. No processo de invenção da identidade nacional brasileira, a coesão entre os “brasileiros” tornou-se um elemento relevante para revelar a ideia de unidade nacional, bem como a superação da barbárie pela civilização (Reis, 1999REIS, José Carlos. As identidades do Brasil: de Varnhagen a FHC. Rio de Janeiro: FGV, 1999.).

As pinturas históricas produzidas no âmbito da Academia Imperial de Belas Artes corroboravam os propósitos estabelecidos pelo Estado nacional em edificar uma memória nacional capaz de fortalecer os elementos identitários e forjar uma nação. Para Valéria Salgueiro e Lucas Travassos Leite, a instituição produziu uma mitologia brasileira (Salgueiro e Telles, 2003SALGUEIRO, Valéria; TELLES, Lucas Travassos. Entre a tradição acadêmica e o modernismo: a crítica de arte de Antônio Parreiras na Academia Fluminense de Letras. Tempo, Niterói, n. 16, 2003., p. 115).

O processo de invenção de um imaginário nacional com os usos do passado no âmbito da pintura e da escrita da história já foi consideravelmente debatido. Contudo, a compreensão sobre a atuação de artistas que não tiveram uma atuação diretamente vinculada à Academia Imperial de Belas Artes ainda mostra-se como um campo fértil para o entendimento das polissemias acerca dos usos do passado para a invenção de uma memória tida como nacional. Desse modo, a discussão sobre a trajetória de artistas como Thomas Driendl pode revelar frestas relevantes sobre o universo das artes no último decênio da monarquia brasileira.

Driendl é um artista relativamente citado nos estudos de arte no Brasil. Todavia, contraditoriamente, a maior parte de tais estudos não apresenta dados originais acerca da trajetória do artista, tornando-se, muitas vezes, a reunião de informações repetidas e, não raramente, contraditórias e incoerentes. A atuação profissional de Driendl é analisada apenas no âmbito de suas contribuições para as instituições culturais do Rio de Janeiro, com o predomínio de um silêncio sobre suas pinturas na província de São Paulo.

A família de Driendl vivia em Munique e estava atrelada ao campo das artes, por meio do ofício da litografia. De acordo com Maria Elisabete Santos Peixoto (1989PEIXOTO, Maria Elisabete Santos. Pintores alemães no Brasil durante o século XIX. Rio de Janeiro: Pinakhoteke, 1989., p. 187), “nascido em Munique, a 2 de abril de 1849, Thomas Georg Driendl era filho do litógrafo Thomas Driendl (1805-1859), natural da cidade de Pfrönten, nos Alpes do Allgäu, e de Maria Anna Driendl”. Desse modo, a influência inicial no processo de formação artística teria sido oriunda da observação dos fazeres profissionais do pai.

Contudo, um episódio relevante e que promoveu uma mudança significativa na trajetória de Driendl ocorreu nos idos de 1870. Trata-se da Guerra Franco-Prussiana, na qual participou como combatente e conheceu o também artista Johann Georg Grimm (1846-1847), formado pela Academia de Belas Artes de Munique em 1878. Possivelmente, nos campos de batalhas teria nascido uma amizade entre os dois pintores, que posteriormente viajariam para o Brasil.

Após o final do conflito e a vitória prussiana, Driendl, em 1873, passou a trilhar os passos seguidos anteriormente por seu amigo de batalhas. Matriculou-se na renomada Academia de Belas Artes de Munique (Akademie der Bildenden Künste München). De acordo com os registros do livro de matrícula da instituição, Driendl foi matriculado no dia 1o de maio de 1873, na classe de Arte Antiga, com o número 02875 (Figura 1).5 5 Disponível em: <http://daten.digitale-sammlungen.de/~db/bsb00004661/images/index.html?id=00004661&fip= 217.237.113.238&no=&seite=290>. Acesso em: 23 abr. 2017.

Figura 1
Imagem do livro de matrícula da Academia de Belas Artes de Munique, 1873.

Em maio de 1873, a Academia de Belas Artes de Munique tinha ofertado as disciplinas Pintura, Escultura, Arte Antiga e Pintura de Paisagem (Natural). A turma de Arte Antiga, além de Thomas Driendl, tinha como alunos Demeter K. Andrejevic, Louis Asp, Hermann Berger, Reginald Bathurst Birch, Arnold Böcklin, Christian Burckhardt, Friedrich Franz Burmeister, Egbert Leroy Crall, Stanislaus Czachorski, Johann Eichner, Max Gaiber, Franz Gerstner, Gustav Goldberg, Louis Krämer, Constantin Nuländer, Wenzel Pokorny, Adolph Rogge, Paul Seltmann e Joseph Strong.6 6 Dados dos livros de matrícula da Academia de Belas Artes de Munique do período entre 1808 e 2016. Disponível em: <http://matrikel.adbk.de/matrikel/mb_1841-1884/jahr_1873>. Acesso em: 20 abr. 2017. Nesse período, a Academia de Munique passava por um processo de renovação estética com a emergência do movimento pautado pelo realismo acadêmico, sob a influência do artista grego, radicado em Munique, Nikolaos Gysis. Esse movimento artístico da Alemanha pós-unificação ficou conhecido como Escola de Munique e exerceu forte influência no processo de formação de Driendl, com a valorização do realismo em detrimento da pintura romântica, escola artística predominante na Alemanha unificada.

Percebe-se como o processo de formação de Driendl ocorreu em um momento marcado pelos questionamentos e pela defesa de ruptura dos cânones artísticos. Como ele estudou no principal centro de ebulição das artes na Alemanha, torna-se plausível afirmar que, possivelmente, tenha convivido com alguns dos principais expoentes da Escola de Munique, incluindo o próprio Gysis e Lawrence Alma-Tadena. Todavia, essa convivência com o movimento estético realista não se restringiu aos salões e exposições nas galerias da cidade. Ela perpassou pelas disciplinas cursadas na Academia de Munique, onde as habilidades do artista eram delineadas. Diante disso, a constituição do corpo docente que atuou na instituição no período entre 1873 e 1877 pode ser vista como um indício relevante para a compreensão da formação de Driendl. No período no qual ele estudou na Academia de Munique, o quadro docente da instituição era constituído pelos artistas apresentados no Quadro 1.

Quadro 1
Lista de professores da Academia de Belas Artes de Munique (1873-1878).

Os dados do Quadro 1 apresentam informações relevantes acerca da formação artística de Driendl na Academia de Belas Artes de Munique, ao elucidar uma formação que atendia a diferentes âmbitos das artes no período oitocentista. Essas informações se tornam mais relevantes quando observamos o vasto campo de atuação do artista ao longo de sua trajetória no Brasil, como pintura, escultura, decoração e restauração. Possivelmente, o elo entre esses diferentes campos de atuação era a arte sacra. Católico, Thomas Georg Driendl tornou-se especialista na produção e restauração de obras sacras.

Nesse sentido, torna-se plausível afirmar que artistas como Josef Knabl (professor de Escultura Religiosa), Andreas Müller (Pintura Religiosa), Sándor Wagner (Composição do Passado) e Gottfried von Neureuther (Ornamentação) foram os docentes de maior influência na formação de Driendl. Para Laudelino Freire (1916FREIRE, Laudelino. Um século de pintura: apontamentos para a história da pintura no Brasil de 1816-1916. Rio de Janeiro: Typographia Röhe, 1916., p. 295), “Thomaz Driendl, nascido em 1846, em Munich, Baviera, foi alumno da Academia de Bellas Artes em sua terra natal e discípulo do notável artista Detz”. Ainda vivendo na Alemanha, produziu algumas de suas principais telas, destacando-se como pintor promissor no cenário europeu. Um exemplo disso foi “‘Cena de família nas Montanhas da Baviera’, tela produzida em 1878, em sua terra natal” (Peixoto, 1989PEIXOTO, Maria Elisabete Santos. Pintores alemães no Brasil durante o século XIX. Rio de Janeiro: Pinakhoteke, 1989., p. 188).

“A bella expressão da verdade”: Thomas Driendl e a pintura no Brasil oitocentista

Os biógrafos não informaram sobre as motivações da viagem de Thomas Driendl para o Brasil. Possivelmente, isso tenha ocorrido por meio de um convite de seu amigo dos campos de batalha, Johann Georg Grimm, que logo após o conflito deixou a Alemanha e viajou “pelos países do Mediterrâneo e Oriente Próximo. De Lisboa, provavelmente no ano de 1878, embarcou para o Rio de Janeiro” (Peixoto, 1989PEIXOTO, Maria Elisabete Santos. Pintores alemães no Brasil durante o século XIX. Rio de Janeiro: Pinakhoteke, 1989., p. 170). A plausibilidade dessa hipótese é reforçada pelo fato de que, enquanto os dois artistas viveram no Brasil, sempre moraram na mesma residência e compartilharam o ateliê.

No país, Driendl se tornou representante de artistas alemães e propagador do realismo na arte sacra. De acordo com Maria Elisabete Santos Peixoto (1989PEIXOTO, Maria Elisabete Santos. Pintores alemães no Brasil durante o século XIX. Rio de Janeiro: Pinakhoteke, 1989., p. 187), “Driendl chegou ao Brasil em junho de 1881, pelo paquete francês Équateur, viajando em outubro do mesmo para Santos, em São Paulo, a fim de cumprir atividades de representação profissional”. Passou a viver entre a província de São Paulo e a Corte, onde morava com seu amigo Grimm no bairro de Santa Teresa.

Durante sua primeira estada na província paulista, Driendl morou no sobrado da rua Direita, número 1, onde atuou como o “único represente para a América do Sul” do Instituto de Pintura Religiosa de Munique do escultor Franz Xaver Rietzler. Tratava-se de uma novidade no âmbito do comércio de objetos de cultos divinos no império do Brasil. Esse aspecto de inovação foi utilizado pelo artista nas propagandas difundidas na imprensa paulista ainda em 1881 (Figura 2).

Figura 2
Propaganda do Instituto Artístico de Munique no Correio Paulistano, de 23 de dezembro de 1881, p. 4.

A Figura 2 elucida uma simbiose entre a inovação e a tradição simbólica. O Instituto Artístico era representado imageticamente pela figura de um anjo alado, caminhando sobre os emblemas da Paixão e carregando os instrumentos das artes modernas. A arte sacra era apresentada como um fazer científico, permeado pela razão (esquadro na mão esquerda) e pela emoção (palheta na mão direita sobre um emblema de uma criança com vestes religiosas). A arte sacra alemã emergia no cenário paulista como um ícone da modernidade, unindo ciência e emoção. Além disso, a matéria publicada também elucidava um recurso pedagógico, na qual o próprio diretor do Instituto Artístico explicitava as características basilares sobre a escultura, pintura e arquitetura. Rietzler assim definiu as três especialidades de sua instituição que tinha como represente sul-americano Thomas Georg Driendl:

Prospecto

O nosso instituto recomenda-se ao respeitável público em três especialidades encarregando-se de fornecer obras de Escultura, pintura e architetura.

  1. . A escultura abrange estátuas e relevos em madeiras, mármore ou qualquer pedra, em bronze, zinco e outros metaes, chamando se attenção sobre a famosa e acreditada massa de pedra, a qual tão durável como a madeira tem menor peso, admittindo fórmas mais brandas e vistosas.

  2. . A pintura estende se a todos os objectos do Culto Divino, tanto na parte histórica como na de decoração e polychromia ornamental. Pinta-se e doura-se todos os objectos com a maior perfeição, observando-se rigorosamente as prescripções litúrgicas e a diversidade de estylos, incluindo a pintura do interior de igrejas. A pintura sobre vidros entra igualmente em nosso programma em toda a sua extensão.

  3. . A architetura abrange todos os artigos concernentes ao uso litúrgico das igrejas, como sejão: plantas e desenhos de igrejas novas e em reconstrucção, cálices, cibórios, custódias, thuríbulos, castiçais, lâmpadas, etc., etc., bem como todos os ornamentos e alfaias dos templos, a saber: altares, confessionários, púlpitos, mezas sagradas, pias batismaes, cadeiras de côro, armação de órgão, capella do Senhor Morto e das Almas Finadas, presépios, andores com baldaquins gothicos para carregarem imagens, vias sacras, calvários, etc., etc.

Dispondo o nosso instituto de cooperação dos mais habilitados artistas, achamo-nos nas condições de satisfazer todas as encommendas garantindo trabalhos que não tem iguaes pelo primor artístico e pela caprichosa observância das regras litúrgicas.

O diretor, Francisco Xavier Rietzler, esculptor.

Thomaz Driendl, Único Representante da Firma para a AMÉRICA DO SUL.

Rio de Janeiro, Rua Senador Cassiano, n. 39 (Santa Tereza).

Achando-se o abaixo assignado muitas vezes fora da cidade do Rio de Janeiro, será grande mandar os recados por escripto com indicação exacta da moradia à rua Senador Cassiano, n. 39, ou em São Paulo, na Exposição Permanente, Rua Direita, n. 1, sobrado. Immediatamente depois de sua chegada irá visitál-os.

Thomas Driendl. (Instituto Artístico, 1881INSTITUTO Artístico. Correio Paulistano, São Paulo, N. 7516, p. 4, 23 dez. 1881., p. 4).

O anúncio das obras comercializadas na Exposição Permanente de São Paulo explicita um recurso pedagógico, no qual cada especialidade das artes foi explicada com a elucidação da qualidade artística e da inovação em relação ao que era ofertado no mercado brasileiro. Como foi apresentado no texto, eram peças que não tinham iguais “pelo primor artístico”. Certamente, essa assertiva mostra-se com exagero, expressando mais um viés propagandístico do que uma superioridade artística. Mesmo assim, o argumento apresentado torna-se relevante para a compreensão de como Thomas Driendl, na condição de representante do Instituto Artístico alemão no Brasil, buscou construir uma imagem de renovação nas artes.

A imagem de renovação artística não pode ser entendida apenas como uma mudança estética, nem tampouco de apreciação pelos críticos de arte. A especialidade do Instituto Artístico era de objetos de culto divino, fato elucidativo para o entendimento das dimensões do mercado consumidor de arte sacra no império do Brasil na década de 80 do período oitocentista. Ao descrever as especialidades, como “vestimenteiro e paramenteiro” (Almanack Administrativo, 1881ALMANACK Administrativo. Almanack de 1881. Rio de Janeiro, 1881.), percebe-se uma preocupação em atender às demandas do mundo católico brasileiro de fim de século, como irmandades, confrarias e ordens terceiras. Isso ocorria por meio da oferta de objetos, como as alfaias para a celebração de procissões e ornamentos para os templos e capelas das referidas associações de leigos, ou até mesmo com a atuação no ofício de armador para a organização de andores e altares para as festas religiosas. No Almanack de 1884, Thomas Driendl foi apresentado como um dos nove “armadores para procissões e Festas de Igreja” da cidade (Almanack Administrativo, 1884ALMANACK Administrativo. Almanack de 1884. Rio de Janeiro, 1884.). O elevado número desse tipo de organização religiosa coordenada por leigos tornava o Instituto Artístico promissor no mercado de obras de arte no país.

Contudo, a propaganda da instituição não era voltada exclusivamente para os leigos integrantes de irmandades e confrarias. Era também destinada ao clero. Ao explicitar as características basilares da pintura, escultura e arquitetura, o impresso também fornecia dados sobre as qualificações do acervo da instituição na Exposição Permanente de São Paulo por designações que atendiam às demandas do clero reformador no país,7 7 Trata-se do clero engajado nos conflitos em relação aos leigos pela posse dos grandes santuários brasileiros que, até o final do período imperial, se encontravam sob o comando de irmandades. Esse movimento é discutido no âmbito da historiografia como romanização ou ultramontanismo. Todavia, neste artigo foi abordado como reforma devocional para aglutinar uma dimensão internacional do movimento, sem desconsiderar as especificidades nacionais e regionais. que, paulatinamente, passava a exercer o controle dos grandes santuários de devoção popular e reduzia consideravelmente o poderio das antigas associações de leigos.

As obras de arte para o culto divino produzidas e vendidas no Instituto Artístico eram apresentadas como peças, “observando-se rigorosamente as prescripções litúrgicas” ou “primor artístico e pela caprichosa observância das regras litúrgicas”. Habilmente, a renovação artística era apresentada como uma pretensa extensão da reformulação das práticas devocionais do catolicismo no Brasil. A construção da autoimagem de artista inovador passava também pelo crivo de atender a uma necessidade de ruptura discursiva em relação à tradição religiosa do país, em tornar a arte uma extensão das ações do clero no processo de reforma católica devocional (Santos, 2015SANTOS, Magno Francisco de Jesus. “O prefácio dos tempos”: caminhos da romaria do Senhor dos Passos em Sergipe (séculos XIX e XX). Tese (Doutorado em História), Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2015.).Essas informações se tornam mais significativas a partir do cotejo com as propagandas publicadas na imprensa carioca, na qual Driendl elencava um vasto campo de especialidades nas artes. No Almanack de 1883, dois anos após sua chegada ao Brasil, ele foi divulgado entre os pintores cenográficos e de decoração, apresentado como “único representante do Instituto artístico de Munich, de escultura, pintura e architetura, r. Senador Cassiano, 39, Santa Tereza. Especialidades de pinturas para oratórios e igrejas” (Almanack Administrativo, 1883ALMANACK Administrativo. Almanack de 1883. Rio de Janeiro, 1883., p. 741). Nessa nova propaganda, Driendl, designado como armador perito em cenografia e decoração, já era apresentado como um especialista em arte sacra, com pinturas para oratórios e igrejas. Ao longo de sua trajetória no Brasil, a pintura tornou-se o principal campo de atuação, especialmente com as reformas, reconstruções e restaurações de igrejas no Rio de Janeiro e na província de São Paulo.

A partir de 1882, ele foi contratado para a realização de pinturas em algumas das mais importantes instituições culturais da Corte. A primeira delas foi executada em parceira com seu amigo alemão Grimm, na decoração do salão de honra do Liceu Literário Português (Peixoto, 1989PEIXOTO, Maria Elisabete Santos. Pintores alemães no Brasil durante o século XIX. Rio de Janeiro: Pinakhoteke, 1989., p. 188). No ano seguinte, “realizou três pinturas sobre vidro, com motivos sacros, para a Igreja São Francisco de Paula, no Rio de Janeiro” (Peixoto, 1989PEIXOTO, Maria Elisabete Santos. Pintores alemães no Brasil durante o século XIX. Rio de Janeiro: Pinakhoteke, 1989., p. 188-189). Esses trabalhos demonstram o reconhecimento de Driendl como um importante artista sacro do final do período oitocentista e a eficácia da construção de uma leitura de si como artista engajado na modernização das artes em consonância com a renovação litúrgica.

Contudo, a guinada de Thomas Driendl como artista renomado ocorreu nos idos de 1884, ano de mudanças significativas na trajetória do pintor em solo brasileiro. Primeiramente, ele teve a oportunidade de participar de uma exposição coletiva organizada pela Academia Imperial de Belas Artes, na qual estiveram presentes integrantes da família imperial. O impresso Correio Paulistano, no dia 23 de agosto de 1884, apresentou a seguinte notícia:

Academia de Bellas Artes

Deve hoje realizar-se, na corte, a abertura da exposição geral da Academia das Bellas Artes.

A Folha Nova refere-se à este successo nos seguintes termos:

A exposição será inaugurada com a presença de Suas Magestades e Altesas Imperiaes, sendo distribuído nessa ocasião um catálogo mencionando os trabalhos dos artistas e amadores que figuram na exposição.

Este trabalho foi organizado sob a direcção do sr. Da Vilde.

Esta exposição, segundo nos consta, será uma das mais brilhantes que se tem realizado nestes últimos tempos na Academia.

Entre os artistas figuram os srs. Pedro Américo, Victor Meirelles, Aurélio de Figueiredo, Pedro Peres, Medeiros Jorge, Grimm, Driendl, Almeida e Belmiro, e, entre os amadores, o sr. França Júnior, a exma. Sra. Abigail de Andrade, discípula de Ângelo Agostin, o que pelo seu talento bem pode ser contada no número dos nossos artistas.

Nessa exposição figuram trabalhos vindos da Europa, que vão constituir uma verdadeira novidade para o público.

Segundo o plano organizado pelo director da escola e approvado pelo governo, a entrada no edifício da referida escola, durante a exposição, se realizará por meio de bilhetes numerados extrahidos do talão.

Cada bilhete dará entrada a uma única pessoa, e só servirá para o dia em que for vendido. O seo custo será :500 reis nas segundas, terças, quartas, sextas-feiras e sábados. 1$ nas quintas e 2$ nos domingos.

As redacções dos jornaes que se publicam na corte e a cada expositor se expedirão cartões especiaes de convite, também gratuitos e intransferíveis, que lhes darão entrada em todo e qualquer dia, enquanto durar a exposição.

Os alumnos que estiverem matriculados e effectivamente frequentarem a Academia, terão igualmente cartões especiaes gratuitos, que lhes darão entrada às quintas-feiras de cada semana.

Tanto os cartões dos expositores, como os dos alumnos, serão nominados e terão no reverso a assinatura do seu possuidor, afim de verificar-se, por meio delle, a identidade da pessoa, em caso de dúvida.

O catálogo das obras expostas será vendido por diminuto preço, apenas suficiente para salvar o custo.

O produto das entradas e da venda do catálogo deduzidas as despesas com os ditos empregados e com a impressão do mesmo catálogo, bilhetes, cartões e cartas de convite, será destinado à acquisição daquelas dentre as obras expostas, que, a juízo da Academia, forem consideradas mais dignas desta distincção, ou pelo seu merecimento, ou como incentivo. (Academia de Bellas Artes, 1884ACADEMIA de Bellas Artes. Correio Paulistano, São Paulo, n. 8404, p. 1, 23 ago. 1884., p. 1).

A notícia da exposição na Academia Imperial de Belas Artes reverberava a realização de um evento grandioso, com a reunião dos principais nomes da pintura nacional, bem como a expectativa de recepção de um público numeroso, o que levou à iniciativa de prevenção de falsificação dos bilhetes de entrada. As exposições certamente constituíam o momento de maior visibilidade para os artistas, com a reunião de grande parte da elite que vivia na Corte visitando as obras. Ressalta-se o fato de dois pintores alemães, vindos ao Brasil no final do oitocentos, em menos de uma década, já estarem entre os destaques anunciados para a exposição. Aliás, a presença de obras pintadas por europeus foi tida como “a verdadeira novidade para público”. Eram os artistas da renovação das artes no Brasil.

Essa perspectiva de arte modelar ajusta-se de forma mais pertinente à trajetória de Johann Georg Grimm, que, entre 1882 e 1884, foi convidado para ser professor interino da cadeira de Paisagem, Flores e Animais da Academia de Belas Artes. Teve como alunos Hipólito Caron, Domingo García y Vazquez, Giovanni Battista Castagnetto, Joaquim José da França Júnior, Francisco Joaquim Gomes e Antônio Parreiras (Peixoto, 1989PEIXOTO, Maria Elisabete Santos. Pintores alemães no Brasil durante o século XIX. Rio de Janeiro: Pinakhoteke, 1989., p. 172). De acordo com Maria Peixoto, a principal inovação metodológica de Grimm no ensino na Academia de Belas Artes era em decorrência de sua relação com a natureza,8 8 Para Machado, na mesma época, Zeferino da Costa também já ministrava aulas ao ar livre. Ver Machado (1991, p. 49). pois, “apaixonado pela natureza, o mestre estimulava seus alunos a compreenderem o paisagismo como pintura exclusivamente ao ar livre, o que frontalmente contrariava o estilo de ensino clássico e formal” (Peixoto, 1989PEIXOTO, Maria Elisabete Santos. Pintores alemães no Brasil durante o século XIX. Rio de Janeiro: Pinakhoteke, 1989., p. 173).Ao contrário de seu amigo, Thomas Driendl nunca chegou a ser professor da Academia de Belas Artes. Todavia, Peixoto (1989PEIXOTO, Maria Elisabete Santos. Pintores alemães no Brasil durante o século XIX. Rio de Janeiro: Pinakhoteke, 1989., p. 189) afirma que ele “eventualmente, substituía Grimm nas aulas que, em caráter particular, o mestre alemão ministrava aos antigos alunos da Academia Imperial”. Essa alternância dos pintores nas aulas particulares para os alunos da Academia de Belas Artes reforça o aspecto de unidade do chamado grupo Grimm. A valorização das pinturas executadas ao ar livre levou os dois pintores a realizarem uma mudança, passando a morar na outra margem da baía de Guanabara, em Niterói. Passaram a morar na rua da Boa Viagem, 11. De acordo com Arthur Valle, a residência de Niterói reunia três pintores alemães, pois:

Driendl chegou a dividir residência com Grimm - velho conhecido seu dos fronts da Guerra Franco-Prussiana - e com outro artista bávaro, Miguel Allgaier, antes de se naturalizar brasileiro e estabelecer uma elogiada carreira, não só como pintor de cenas religiosas e de gênero, mas também como arquiteto e decorador. (Valle, 2007VALLE, Arthur. “A maneira especial que define a minha arte”: pensionistas da Escola Nacional de Belas Artes e a cena artística de Munique em fins do Oitocentos. Revista de História da Arte e Arqueologia, Campinas, n. 13, p. 113-114, 2007. , p. 113-114).

Essa mudança ocorreu em momento no qual Driendl e Grimm passaram a ser propagados por meio dos textos publicados por críticos de arte. Quirino Campofiorito (1983CAMPOFIORITO, Quirino. História da pintura brasileira no século XIX. Rio de Janeiro: Pinakotheke, 1983.) afirma que Driendl teria sido responsável, junto com o amigo e os colegas, por dar importância à Marinha na arte brasileira. Eles eram apresentados pelo crítico de arte como renovadores. Um exemplo disso foi o texto “De Palanque”, publicado por Arthur Azevedo, sob o pseudônimo de “Eloy, o Heroe”, no Diário de Notícias, no dia 18 de junho de 1885, no qual apresentou elogios à produção de Thomas Driendl e Johann Grimm. Sobre o primeiro, afirmou:

De vez em quando o Sr. De Wilde convida-nos para assistirmos a uma exposição artística, em casa, na rua Sete de Setembro.

Ultimamente ahi, se fizeram algumas exposições interessantes, como fossem a dos trabalhos de Firmino Monteiro, dos quadros offerecidos em benefício das victimas dos terremotos da Hespanha, e, finalmente, do magniffico retrato do Sr. Ferreira Vianna, magistralmente pintado por Thomaz Driendl.

Actualmente acham-se expostos no salão Da Wilde nada menos que vinte e uma telas do conhecido e reputado paysagista Grimm. (Azevedo, 1885AZEVEDO, Arthur de. De palanque. Diário de Notícias, Rio de Janeiro, n. 1030, 18 jun. 1885., p. 1).

Tanto Driendl quanto Grimm foram apresentados pelo crítico de arte como artistas reputados, conhecidos e de talento magnífico. Além disso, ele destacava a relevância de um quadro que foi tido como a obra-prima de Driendl: o retrato do conselheiro Antônio Ferreira Vianna, autor da Lei Áurea (Figura 3).9 9 Disponível em: <https://www.ernanileiloeiro.com.br/peca.asp?ID=26352>. Acesso em: 27 abr. 2017.

Figura 3
Thomas Driendl (1849-1916). Retrato do conselheiro Antonio Ferreira Vianna, redator da Lei Áurea. Óleo sobre tela. 168×95 cm.

O referido retrato do conselheiro Ferreira Vianna tornou-se o centro da atenção de diferentes críticos de arte do Rio de Janeiro. Era a obra de apresentação do pintor de Munique. Um dos discípulos do grupo Grimm, formado pela Academia Imperial de Belas Artes do Rio de Janeiro e ex-aluno de Johan Georg Grimm, nos idos de 1888, atravessou a baía de Guanabara para visitar o ateliê de Thomas Driendl. A visita foi descrita em um texto de tom elogioso na coluna “Echos fluminenses” do jornal O Paiz. Era o também pintor e crítico de arte Joaquim José da França Júnior:

Thomaz Driendl

Em um dos dias da semana passada fui dar com os ossos no aprazível arrabalde que se estende do outro lado da nossa bahia, com as suas praias de límpidas areias cobertas de luxuriante vegetação e onde o sr. Leonel de Alencar, hoje chrismado, foi beber a poética lenda da companheira.

Já eu só quero fallar daquelle prolongamento de Nitheroy, que é para os nossos paysagistias o que é Capri para os pintores italianos, e que chama-se prosaicamente S. Domingos… Domingos, o triste nome por que são conhecidos em geral os pretos velhos!

O fim que me levou ali foi ver um quadro de Thomaz Driendl.

Driendl mora na Boa Viagem, em uma modesta casinha cercada de flores.

A viagem de Grimm, o meu bom mestre, com a sua longa barba loura e os seus olhos azuis cheios de bondade, povoava aquelles sítios.

Grimm morava com Driendl.

Naquella casinha travei relações com os dous artistas, que viviam sempre brigando e sempre amigos, em companhia de um feroz buldog e de um macaco, que era a alegria do lar.

Afastemos, porém, do espírito triste das lembranças, e digamos ao leitor o que é o último trabalho de Thomaz Driendl.

É uma tela que deixaria perpetuado aqui o nome do pintor, se não tivéssemos já delle nas nossas galerias a Scena da Bavieira, o famoso retrato do Sr. Dr. Ferreira Vianna, e aquella bella cabeça de menino, que pertence a S. Alteza, o príncipe D. Pedro, e que orna hoje uma das salas do palácio do duque de Saxe. (França Jr., 1888FRANÇA J JÚNIOR , Joaquim José da. Echos fluminenses: Thomas Driendl. O Paiz, Rio de Janeiro, n. 1246, p. 2, 5 mar. 1888., p. 2).

A crítica de arte, apresentada por um discípulo de Grimm, é permeada por uma escrita sentimental, de forte carga mnemônica, na qual a viagem de travessia pela baía da Guanabara era apresentada com um passeio pelo tempo, com a rememoração de suas viagens para as aulas particulares com Johan Grimm e com o próprio Driendl. Essa saudade tinha como esteio a tristeza em decorrência do falecimento de Grimm dois anos antes. Nesse caso, o elogio não pode ser visto como uma questão individual, mas como uma ação extensiva a todo o grupo Grimm. França Júnior, o discípulo letrado do referido grupo, tornou-se seu principal divulgador por meio da atuação como crítico de arte.

O crítico de arte, apresentado por Gonzaga Duque Estrada (1888ESTRADA, Luiz Gonzaga Duque. Arte brasileira. Rio de Janeiro: {S.n.}, 1888., p. 123) como o “typo brasileiro e bem educado, homem de sociedade e de talento perfeitamente culto”, elogiava a pintura do alemão por seu teor filosófico, pois nela havia “quanta elevação, quanta philosophia nesta simples ideia. Que tesouros d’arte em cada uma daquelas figuras”. Além disso, Driendl era tido como renovador por romper com o modelo romântico, apresentando-se como porta-voz da pintura realista. O artista era exibido pelos pares como um dos responsáveis pela renovação da arte nacional. Para ele, “o quadro é contristador. Estou bem convencido de que não agradará a certa ordem de pessoas, para as quaes o bello é aquillo vos falla aos sentidos, e não a expressiva da verdade” (França Jr., 1888FRANÇA J JÚNIOR , Joaquim José da. Echos fluminenses: Thomas Driendl. O Paiz, Rio de Janeiro, n. 1246, p. 2, 5 mar. 1888., p. 2).Diante da descrição, o artista era compreendido como um tradutor da realidade, em que “os factos serviriam para apadrinhar a escolha do assumpto da última producção de Thomaz Driendl, se porventura a arte moderna” (França Jr., 1888FRANÇA J JÚNIOR , Joaquim José da. Echos fluminenses: Thomas Driendl. O Paiz, Rio de Janeiro, n. 1246, p. 2, 5 mar. 1888., p. 2). A pintura não era compreendida como uma poesia, um canto romântico acerca do passado, mas como uma narrativa tida como fiel aos episódios, com a realidade desnuda e incômoda para os olhares mais tradicionais. Ao tomar posse como sócio do IHGB, em 1932, Celso Conde de Afonso ressaltou os elementos do realismo na pintura de Driendl:

Essas duas télas são de alto valor artistico e sugestivo. Nelas, Driendl, que tinha em Ferreira Viana uma imaixonada admiração, pós todo seu talento, e talvez se possa dizer que nelas esgotou seu talento, pois que do artista bávaro, nada mais ficou que chegue á altura dessas obras magníficas que o amigo lhe inspirara; com elas póde-se, perfeitamente, fazer a ressurreição da figura do grande modelo; suave, transpirando infinita bondade, todo consolação e doçura, na téla dos Lázaros; irradiante de espiritualidade, eloquente, na téla do advogado, inspirando-se para aquilo que a pena lhe deve dar, para defesa dos direitos alheios, nas sugestões que da doutrina cristã lhe alimentavam o espirito. Essas, sem dúvida, eram as duas expressões que frequentemente se traduziam na fisionomia de Ferreira Viana. Na Intimidade, na conversa despreocupada, no convivio social, jamais os traços do seu rosto fugiam daquela translucidez de quietude e de bondade. (Afonso, 1932AFONSO, Celso Conde de. Discurso de posse no Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Diário Oficial da União, Rio de Janeiro, 1o jun. 1932., p. 33).

Os retratos produzidos sobre o conselheiro Ferreira Viana, bem como o quadro sobre a família na Bavária, sua terra natal, são unanimemente considerados pelos críticos e historiadores da arte como o ápice da carreira de pintor de Thomas Driendl. O realismo de suas figuras impressionava os observadores, mas sua atuação em diferentes ramos da arte parece ter sido um entrave. Talvez por esse motivo, os críticos de arte elucidaram uma possível situação de não reconhecimento do artista. Para Arthur Azevedo, isso ocorreu em decorrência dos múltiplos campos de atuação de Driendl:

Como pintor, deixa De Wilde, que eu saiba, a decoração do teto do teatro de São Pedro, trabalho feito de colaboração com Thomaz Driendl, pintor de muito mérito, que infelizmente abandonou a sua arte para se fazer empreiteiro das obras da Catedral. Não creio que esse teto leve nenhum dos artistas à posteridade. (Azevedo, 2015AZEVEDO, Arthur de. N. 41, 7 de outubro de 1893. In: Melhores crônicas de Arthur Azevedo. Campinas: Global, 2015., p. 63).

No período posterior a 1884, após ser premiado com a medalha de ouro na Exposição Geral organizada pela Academia Imperial de Belas Artes, Driendl passou a ter uma atuação mais voltada para as obras de arquitetura, especialmente com a restauração de alguns dos principais templos da corte. O Jornal do Commercio do dia 25 de março de 1898 destacou o trabalho do artista:

O Sr. Thomaz Driendl é um artista que poucas vezes faz fallar de si, apezar de exercer a sua atividade em múltiplos ramos da arte. Como pintor, a sua produção entre nós não tem sido muito numerosa; mas pela qualidade dos trabalhos que tem exhibido, affirmou-se desde logo um proeminente, que pode medir-se com os que entre nós gozão de melhor fama, sem nada lhes ficar devendo. A restauração do tecto da igreja de São Francisco da Penitência no Morro de Santo Antônio, trabalho dificílimo de reconstrucção histórica e artística, que o illustre artista dependeu grande cabedal de paciência de trabalhos téchnicos, de trabalho apurado e minucioso. (Notas sobre arte, 1898NOTAS sobre arte. Jornal do Commercio, Rio de Janeiro, n. 84, p. 3, 25 mar. 1898., p. 3).

Driendl era comparado aos principais artistas do país e marcado pela versatilidade. Todavia, os trabalhos mais destacados eram no campo da restauração, com a contratação por meio de irmandades e ordens religiosas para a execução de trabalhos como o da Ordem Terceira de São Francisco e da igreja de Nossa Senhora da Imaculada Conceição das Irmãs da Caridade nas Laranjeiras, Rio de Janeiro. Nesta, “o altar era todo feito em cedro do paiz, bem como todo o material, com excepção das tintas. Foi todo feito pelo próprio Driendl, auxiliado por alguns officiaes marceneiros, entalhadores e douradores” (Notas sobre arte, 1898NOTAS sobre arte. Jornal do Commercio, Rio de Janeiro, n. 84, p. 3, 25 mar. 1898., p. 3). Além disso, o impresso destacava essas contratações como um ato consolador, diante do “meio do isolamento em que se tem visto um artista na eminencia do Sr. Driendl, sendo constantemente preterido e perseguido mesmo” (Notas sobre arte, 1898NOTAS sobre arte. Jornal do Commercio, Rio de Janeiro, n. 84, p. 3, 25 mar. 1898., p. 3).

Essa hipótese do isolamento não parece ser muito procedente, pois, ao longo da década de 1880, Driendl foi um artista com considerável proximidade da família imperial. Além do encontro com o casal d’Eu em Aparecida e de ter vendido um quadro para o príncipe Pedro, Driendl foi contratado para a restauração da Capela Imperial com financiamento da Coroa brasileira. No dia 5 de abril de 1888, a herdeira do trono visitou o referido templo. O Diário de Notícias informou que, “conforme noticiamos, hontem à 1 hora da tarde Sua Alteza a Princesa Imperial Regente foi à capela imperial examinar as obras de que necessita o edifício” (Capela Imperial, 1888CAPELA Imperial. Diário de Notícias, Rio de Janeiro, n. 1030, p. 1, 6 abr. 1888., p. 1). No mesmo dia, o impresso também elucidou a visitação do conde d’Eu a uma exposição individual de Driendl:

Sua Alteza Imperial, acompanhada do Sr. Conde d’Eu, do seu camarista general Miranda Reis e do Sr. Ministro do Império, foi hontem, as 8 horas, às obras da nova Praça do Commercio, para ver a tela que o distincto pintor Thomaz Driendl pintou, representando o Sr. Ministro da Justiça distribuindo esmolas aos lázaros. (Capela Imperial, 1888CAPELA Imperial. Diário de Notícias, Rio de Janeiro, n. 1030, p. 1, 6 abr. 1888., p. 1).

Esses dois episódios reforçam a tese acerca da proximidade do pintor alemão com o casal d’Eu. No mesmo ano, o pintor conseguiu a naturalidade brasileira. A Gazeta de Notícias, no dia 17 de outubro de 1888, publicou a seguinte nota: “foram naturalizados os súbditos alemães Thomaz Driendl, Paul Marleas, e os portugueses Manoel Franco, Antônio da Silva Malheiros Guedes, Antônio Ribeiro e Antônio Augusto Pinto de Siqueira” (Foram Naturalizados, 1888FORAM NATURALIZADOS. Gazeta de Notícias, N. 290. Rio de Janeiro, 17 de outubro de 1888, p. 1., p. 1). As ressalvas ao talento do artista na visão dos críticos parecem ser oriundas de sua versatilidade, por meio da atuação no âmbito da pintura de tetos de igrejas. Para Celso de Afonso (1932AFONSO, Celso Conde de. Discurso de posse no Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Diário Oficial da União, Rio de Janeiro, 1o jun. 1932., p. 33), com os retratos “esgotou seu talento, pois que do artista bávaro, nada mais ficou que chegue à altura dessas obras magníficas”. Essa assertiva corrobora o taxativo prognóstico de Arthur Azevedo (2015AZEVEDO, Arthur de. De palanque. Diário de Notícias, Rio de Janeiro, n. 1030, 18 jun. 1885., p. 63): “não creio que esse teto leve nenhum dos artistas à posteridade”. Por ironia do destino, um dos tetos pintados por Driendl se tornaria o principal palco devocional do país.

“Um primor de observação”: Driendl e as pinturas de milagres em Aparecida

Nos idos de 1884, Driendl foi contratado para a realização da última etapa de reconstrução da Igreja de Nossa Senhora Aparecida, na qual as obras tinham sido iniciadas em 1845 e perduraram por mais de 40 anos.10 10 A construção da nova igreja esteve a cargo da mesa administrativa do templo. A fachada e as duas torres foram s em 1859 pelo artista João Júlio Gustavo. O altar-mor e o retábulo foram construídos na Itália, em mármore Carrara, enquanto o púlpito foi encomendado na Bahia pelo frei Monte Carmelo. Percival Tirapeli (2006, p. 283) afirma: “o altar da basílica velha de Aparecida é raro exemplar em mármore de Carrara, com as características neoclássicas aplicadas sobre uma estrutura de barroco tardio a julgar pelo entablamento duplo entre os capitéis compósitos e as bases para as alegorias das virtudes”. Essa letargia na reconstrução do templo de maior devoção do vale do Paraíba do Sul gerou inúmeras tensões em decorrência de o clero ter acusado os membros das irmandades de desviarem recursos.

O conflito intensificou-se a partir de 1880, quando a então Capela de Aparecida foi elevada à condição de freguesia e ocorreu a nomeação de um, que deveria controlar o templo. Essa situação levou os leigos integrantes da mesa administrativa a rebelar-se. O Correio Paulistano do dia 25 de fevereiro de 1880 noticiou o episódio descrito como “Assuada em Aparecida”:

Guaratinguetá - Do Parahyba de 22 do corrente, tiramos a seguinte notícia:

Assuada na Capella da Apparecida - Em a noite de 16 deste mez um grupo numeroso de indivíduos foi fazer assuadas em frente à casa do tesoureiro, o Sr. Antônio Theodósio de Faria Couto.

Consta-nos que este senhor foi muito desacatado pelo grupo, e que, em consequência desse tumulto, retirou-se imediatamente com sua família para esta cidade.

Segundo informações que nos ministraram deu lugar a tão grave acinte o facto de ser o tesoureiro infenso ao projecto de elevação da capella à freguezia.

Lamentamos factos desta ordem. Não é desta arte que se hade provar a conveniência de elevar-se à freguezia a capella da Apparecida. (Assuada na Capella da Apparecida, 1880ASSUADA na Capella da Apparecida. Correio Paulistano, São Paulo, n. 6975, p. 2, 25 fev. 1880., p. 2).

A elevação do templo à condição de matriz paroquial pode ser vista como o marco inicial de um processo de apropriação da devoção popular à Senhora Aparecida pelo clero diocesano paulista. Em 1893, o bispo d. Joaquim Arcoverde Cavalcante elevou o templo à condição de santuário diocesano e, em 1908, o papa Pio X o elevou à condição de basílica, tornando-se esse, assim, a primeira basílica brasileira. Além disso, em 1904, a imagem foi coroada como rainha e padroeira. Nesse sentido, enquanto os leigos perdiam espaço no âmbito do controle das romarias, o clero diocesano aumentava sua presença tanto por meio da distribuição de títulos eclesiásticos quanto pela entrega da administração do santuário aos padres redentoristas vindos da Alemanha em 1894 (Santos, 2015SANTOS, Magno Francisco de Jesus. “O prefácio dos tempos”: caminhos da romaria do Senhor dos Passos em Sergipe (séculos XIX e XX). Tese (Doutorado em História), Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2015., p. 135-139). Diante disso, a Matriz de Aparecida tornou-se um dos templos enigmáticos do catolicismo no Brasil.11 11 A Matriz Basílica de Aparecida permaneceu como palco das romarias até 1980, ocasião na qual foi inaugurada a nova basílica. Mesmo assim, o edifício é um dos espaços de visitação obrigatória. Em 1982, a construção foi tombada como Patrimônio Histórico do Estado de São Paulo. Ver Estado de São Paulo (2015, p. 18).

Pode-se inferir que, na época da execução das pinturas, a Matriz de Aparecida ainda não era um templo de grande visibilidade no cenário nacional no tocante ao campo das artes. Todavia, a posse do espaço de devoção passava por um momento de ebulição com o ápice dos conflitos desencadeados entre leigos e religiosos pela gestão do centro de romaria. Nesse sentido, torna-se pertinente entender a produção das pinturas por Thomas Driendl como um recurso pensado a partir da leitura do clero com a apropriação das narrativas populares de milagres e a construção imagética de um discurso que reafirmava a centralidade dos dogmas católicos. A pintura do forro da matriz traduz essa concepção.

Figura 4
Driendl, Thomas (1884-1888). Pintura do forro da Matriz Basílica Nossa Senhora Aparecida. Foto do autor, 15 set. 2011.

Na Figura 4, o panorama geral do forro do templo reflete a concepção reformadora da Igreja Católica no final do século XIX, com a valorização do sentimento de piedade cristã e o papel secundário da devoção mariana diante da centralidade de Cristo. Os emblemas marianos encontram-se nos dois extremos do forro, circundando uma grande cruz com a inscrição IHJ (Iesus Homini Salvatori). Nas extremidades da cruz, aparecem quatro imagens de flor-de-lis, simbolizando as chagas da Paixão. Já o emblema mariano apresenta o coração imaculado.

Nessa perspectiva, o teto é apresentado como uma narrativa que elucida a centralidade dos dogmas da cristandade no âmbito devocional, referindo-se a Cristo e a Maria, devoções reforçadas pela reforma devocional. Essa exposição das cenas no âmbito da pintura revela a constituição imagética de uma hierarquia na qual as leituras populares da devoção populares emergem como moldura para a liturgia católica, com uma disposição marginal. A cruz, como sinal de redenção, emerge no alto circundada por seis cenas de milagres.

Figura 5
Driendl, Thomas (1884-1888). Cena do milagre das redes e do achado da imagem. Forro da Matriz Basílica Nossa Senhora Aparecida. Foto do autor, 15 set. 2011.

A Figura 5, com a primeira cena apresentada, evidencia o milagre do achado da imagem de Aparecida nas águas do rio Paraíba do Sul, com a presença de três pescadores em uma pequena embarcação. O episódio foi registrado em perspectiva naturalista, com a simbiose entre o espaço natural (com as águas e a vegetação) e a labuta dos pescadores. Os três pescadores foram apresentados em ações distintas: um, apresenta-se remando, outro, puxando as redes com os peixes, e o terceiro, ao centro, ergue a imagem da Virgem Aparecida ainda desprovida da cabeça.

A cena também é permeada por uma preocupação pedagógica, voltada para a elucidação do caminho de redenção. Abaixo da cena, destaca-se a inscrição em Latim “Qui me in venerit, in veniet vitam” (Quem me encontrar, encontrará a vida). A assertiva elucida a devoção mariana como instrumento de conversão, que levaria para a centralidade do cristianismo.

Figura 6
Driendl, Thomas (1884-1888). Cena do milagre do afogamento. Forro da Matriz Basílica Nossa Senhora Aparecida. Foto do autor, 15 set. 2011.

A Figura 6, com o milagre do salvamento de uma criança nas águas do rio Paraíba do Sul, elucida um cenário bucólico, com a exposição de três personagens em perspectiva triangular. Ao fundo, destaca-se uma figura feminina, possivelmente a mãe da criança, com os braços erguidos, como se estivesse clamando pela intervenção divina para a salvação da criança. Na cena principal, destacam-se o menino, imerso nas águas, e o pescador, remando em direção a ele. Os dois protagonistas trocam o olhar como um sinal de reciprocidade devocional. Todavia, chama a atenção que o personagem masculino da embarcação apresenta traços bem similares ao do pescador da cena do milagre do achado, com barbas e cabelo ruivos e elevada estatura.

Afinal, quem seria esse pescador? Em um primeiro momento, poderia aferir-se a ideia de ter sido o mesmo personagem envolvido nas duas cenas de milagres, na experiência social da Capela de Aparecida. Todavia, a observação das outras pinturas no forro da matriz impossibilita essa hipótese, até mesmo por caracterizar o sujeito com traços físicos bem distintos do que se via na população local. Defendo a tese de que se trata de um autorretrato, no qual o pintor se vê nos principais episódios miraculosos envolvendo a devoção mariana de Aparecida. Seria uma confluência entre a leitura de si e a experiência histórica das camadas populares católica do vale do Paraíba, mediada pela leitura clerical. A interpretação das cenas retratando Driendl se torna plausível ao observar a proximidade dos traços físicos entre a pintura e o registro fotográfico do pintor, produzido no alvorecer de 1916, ano de falecimento do artista e quase 30 anos depois da execução das obras (Figura 7).

Figura 7
Registro fotográfico de Thomas Driendl, em 1o de janeiro de 1916. Autor não identificado. Acervo: Bolsa de Arte do Rio de Janeiro.

O pintor também aparece como o personagem agraciado do prodígio na cena com o milagre da onça domada. Driendl aparece vestido como um caçador, acuado com o ataque eminente de uma onça, separados apenas por um riacho de águas límpidas. Na tela, fera e vítima, cercados por densa vegetação, recuam e também trocam o olhar. A pintura elucida os perigos da vida, quando o homem encontra-se desprovido da proteção divina, bem como se mostra-se soberano sobre a natureza, ao recorrer à Virgem, sintetizada por meio da frase em português “De tudo o que nos maltrata” (Figura 8).

Figura 8
Driendl, Thomas (1884-1888). Cena do milagre da onça. Forro da Matriz Basílica Nossa Senhora Aparecida. Foto do autor, 15 set. 2011.

As duas cenas seguintes, expostas em lados opostos da matriz, elucidam episódios que têm como pano de fundo a própria Capela de Aparecida, com suas torres imponentes nas veredas montanhosas do vale do Paraíba. São as duas pinturas nas quais o artista não se autorretratou. A Figura 9 reconstitui o milagre da cega de Jaboticabal, que teria encontrado o caminho para Aparecida, tida como o centro religioso do mundo católico popular da província de São Paulo. Já a Figura 10 mostra uma cena bucólica, com a paisagem do morro dos Coqueiros. É a única que não retrata nenhum episódio das narrativas míticas vinculadas à devoção de Aparecida, mostrando apenas o espaço procurado por numerosos grupos de romeiros. Possivelmente, trata-se de uma interpretação na qual a própria localidade já era tida como um dos milagres da Virgem Aparecida.

Figura 9
Driendl, Thomas (1884-1888). Cena do milagre da cega de Jaboticabal. Forro da Matriz Basílica Nossa Senhora Aparecida. Foto do autor, 15 set. 2011.

Figura 10
Driendl, Thomas (1884-1888). Cena do morro dos Coqueiros. Forro da Matriz Basílica Nossa Senhora Aparecida. Foto do autor, 15 set. 2011.

Por fim, destacam-se duas cenas centrais no coroamento do templo. No arco-cruzeiro, encontra-se a sexta cena de uso das narrativas míticas do passado (Figura 11), com o milagre das correntes do escravo Zacarias. Nela, Thomas Driendl aparece como o senhor proprietário do escravo, em feição perplexa pelo rompimento das correntes diante do altar da Virgem Aparecida. Driendl, com uma trajetória permeada de fortes vínculos com o movimento abolicionista, tendo realizado inúmeras pinturas de Ferreira Vianna e o monumento de celebração pela abolição da cidade de Niterói, emerge no cenário também angulado por três personagens em perspectiva triangular: o escravo Zacarias, ajoelhado e com os braços erguidos agradecendo o milagre; defronte, encontra-se o senhor, representado pelo próprio Driendl, segurando as correntes rompidas com uma mão e, na outra, o chapéu retirado da cabeça como um sinal de devoção e respeito ao espaço sagrado; ao fundo, centralizando a cena, a imagem de Aparecida, exposta no altar e cercada de seis castiçais, de acordo com as diretrizes do missal romano.

Figura 11
Driendl, Thomas (1884-1888). Cena do milagre das correntes do escravo Zacarias. Forro da Matriz Basílica Nossa Senhora Aparecida. Foto do autor, 15 set. 2011.

Figura 12
Driendl, Thomas (1884-1888). Coroamento da Virgem. Matriz Basílica de Aparecida. Foto do autor, 15 set. 2011.

A outra pintura (Figura 12) encontra-se no altar-mor, com a figura de dois anjos carregando rosas (símbolo da Virgem Maria) e uma faixa com a ave-maria no ato de coroamento da imagem. Trata-se de uma representação da narrativa católica da coroação mariana no céu, representada pelas estrelas da ornamentação.

Considerações finais

A basílica de Aparecida é um dos mais importantes espaços de devoção do catolicismo no Brasil. Seus elementos artísticos elucidam inúmeras possibilidades de pesquisas, como o processo de patrimonialização e a inserção de novos elementos artísticos por meio das restaurações realizadas ao longo do século XX. Todavia, o foco deste artigo foram as pinturas das cenas de milagres, executadas por Driendl na década de 80 do Oitocentos.

As pinturas de Driendl na Matriz de Aparecida podem ser entendidas como uma tentativa de construção imagética dos novos valores disseminados pela Igreja Católica no processo de reforma devocional, na qual as práticas religiosas populares eram apropriadas e ressignificadas dentro dos parâmetros estabelecidos pelos bispos diocesanos ou pelos religiosos vindos de países europeus. Foi nesse cenário permeado por tensões pela gestão do patrimônio religioso dos principais santuários brasileiros, envolvendo leigos e clérigos, que Driendl passou a atuar como um versátil artista nas artes do culto divino.

Nos trabalhos de ornamentação da Matriz de Aparecida, Driendl revelou, por meio da pintura, importantes aspectos de sua trajetória, como o forte apreço pelas práticas litúrgicas e respeito ao espaço sacralizado, próprios de um católico praticante. Expressou simpatia pelos ideais do movimento abolicionista, centrada na figura da Virgem, na qual “as prisões aos réus desata”. Apresentou as virtudes de um homem que enfrenta os desafios da natureza e da própria sociedade em defesa de seus valores, ou de um soldado que já havia vivenciado a experiência do front. Driendl era um homem em trânsito. Um alemão que atravessou o Atlântico e naturalizou-se brasileiro. Um homem que se tornou amigo da família imperial, mas não deixou de mostrar-se como um ator das camadas populares, ora como pescador, ora como caçador ou senhor de escravo convertido a devoto de Aparecida.

Todavia, o artista responsável pelos usos do passado na construção imagética de um santuário popular, apropriado pela elite eclesiástica, também foi marcado pelo crivo da memória. O ato de criar cenas de milagres é maculado pela dubiedade da lembrança e do esquecimento. Do mesmo modo pelo qual o artista selecionou narrativas que elucidavam a virtude como caminho de salvação, também silenciou as narrativas miraculosas destoantes dessa perspectiva, como o místico milagre das velas e o milagre do cavalo com o casco preso na pedra da calçada da matriz. Em tempos de conflitos, a desobediência que impedia o adentrar o santuário não foi vista como digno de integrar o repertório de passado a ser reinventado pelos pincéis de Thomas Driendl. Se, em suas mãos, os “factos apadrinhavam a arte”, como historiador de pincéis, tais fatos também eram construídos como uma arte de inventar o passado (Albuquerque Jr., 1999ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de. História, a arte de inventar o passado: ensaios de teoria da história. São Paulo: Cortez, 1999.).

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  • 1
    Na década de 1880, a antiga povoação do morro dos Coqueiros (atual Aparecida) era designada nos jornais pelo termo Capela de Aparecida.
  • 2
    Sobre as viagens do conde d’Eu pelas províncias do Norte do Brasil, ver Santos (2017, p. 1-30).
  • 3
    Para Tirapeli, a Basílica Velha “é o exemplar mais tardio do barroco no Estado de São Paulo”. O templo passou por intervenções em 1780, 1845-1852, 1878-1880 e 1882-1888 (Tirapeli, 2003, p. 292-295).
  • 4
    As obras de construção da nova Matriz de Aparecida foram inauguradas no dia 24 de junho de 1888 pelo bispo diocesano de São Paulo, d. Lino de Carvalho. No dia 28 de novembro de 1893, o mesmo bispo elevou a referida igreja à condição de Santuário Diocesano. Durante o levantamento documental, não possível localizar o programa iconográfico das pinturas, o que propiciaria uma interpretação pautada pelo cotejamento entre as propostas de reforma devocional e de execução das pinturas. Todavia, é possível afirmar o predomínio das intervenções do clero diocesano nas obras, pois nesse momento a diocese estava tentando assumir o controle da romaria de Aparecida, apesar da relutância dos irmãos leigos em permanecer como responsáveis pela construção e administração do templo até 1o de janeiro de 1890 com o fim do padroado régio. No momento das celebrações da coroação da imagem de Nossa Senhora Aparecida, em 1904, realizaram-se pequenas alterações na pintura original, com o revestimento das paredes com a cor verde, remetendo à pátria. Com a restauração, entre 2005 e 2012, essa pintura foi retirada. Em 1908, ao receber o título de basílica menor, o santuário passou novamente por pequenas modificações nas pinturas, com a inserção de elementos iconográficos que remetiam ao título, nos pontos da pintura da cruz na nave central. Como esses elementos não foram pintados por Driendl e também não interferem nas pinturas sobre as cenas de milagres, neste artigo não nos deteremos nessas inserções empreendidas ao longo do século XX.
  • 5
    Disponível em: <http://daten.digitale-sammlungen.de/~db/bsb00004661/images/index.html?id=00004661&fip= 217.237.113.238&no=&seite=290>. Acesso em: 23 abr. 2017.
  • 6
    Dados dos livros de matrícula da Academia de Belas Artes de Munique do período entre 1808 e 2016. Disponível em: <http://matrikel.adbk.de/matrikel/mb_1841-1884/jahr_1873>. Acesso em: 20 abr. 2017.
  • 7
    Trata-se do clero engajado nos conflitos em relação aos leigos pela posse dos grandes santuários brasileiros que, até o final do período imperial, se encontravam sob o comando de irmandades. Esse movimento é discutido no âmbito da historiografia como romanização ou ultramontanismo. Todavia, neste artigo foi abordado como reforma devocional para aglutinar uma dimensão internacional do movimento, sem desconsiderar as especificidades nacionais e regionais.
  • 8
    Para Machado, na mesma época, Zeferino da Costa também já ministrava aulas ao ar livre. Ver Machado (1991MACHADO, Arnaldo. João Zeferino da Costa e o ensino da pintura de paisagem ao ar livre. Rio de Janeiro, ABM, 1991., p. 49).
  • 9
    Disponível em: <https://www.ernanileiloeiro.com.br/peca.asp?ID=26352>. Acesso em: 27 abr. 2017.
  • 10
    A construção da nova igreja esteve a cargo da mesa administrativa do templo. A fachada e as duas torres foram s em 1859 pelo artista João Júlio Gustavo. O altar-mor e o retábulo foram construídos na Itália, em mármore Carrara, enquanto o púlpito foi encomendado na Bahia pelo frei Monte Carmelo. Percival Tirapeli (2006, p. 283) afirma: “o altar da basílica velha de Aparecida é raro exemplar em mármore de Carrara, com as características neoclássicas aplicadas sobre uma estrutura de barroco tardio a julgar pelo entablamento duplo entre os capitéis compósitos e as bases para as alegorias das virtudes”.
  • 11
    A Matriz Basílica de Aparecida permaneceu como palco das romarias até 1980, ocasião na qual foi inaugurada a nova basílica. Mesmo assim, o edifício é um dos espaços de visitação obrigatória. Em 1982, a construção foi tombada como Patrimônio Histórico do Estado de São Paulo. Ver Estado de São Paulo (2015ESTADO DE SÃO PAULO. Lista de bens tombados pelo Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico de São Paulo (CONDEPHAAT). São Paulo, 2015., p. 18).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    May-Aug 2018

Histórico

  • Recebido
    30 Abr 2017
  • Aceito
    01 Jul 2017
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