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Seguindo os caminhos de Bakhtin…

RESUMO

O artigo dedica-se a demonstrar como algumas teses do livro de Bakhtin sobre Dostoiévski permitem um autodesenvolvimento, ao darem espaço para interpretações complementares. No artigo, são analisados dois pares de oposições básicas que perpassam o romance de Dostoiévski Crime e castigo. Juntamente com o espaço “limiar”, uma descoberta brilhante de Bakhtin, observa-se no romance a oposição entre o modelo do espaço fechado e o modelo do espaço aberto. O primeiro está associado à morte, ao inferno, de onde não há saída, à consciência cega; o segundo, à ressurreição, ao arrependimento, à clarividência e à transfiguração espiritual. Em termos de sentido, essa segunda oposição corresponde à expressa pelos leitmotivs simbólicos do “calor”, do “fedor”, do “sufocamento”, em oposição aos leitmotivs do “ar”, da “água”, da “chuva”. A decifração dessas oposições leva-nos a concluir que no romance está reconstituída a história evangélica da ressurreição de Lázaro, e o próprio romance é, quanto ao gênero, uma paráfrase artística.

PALAVRAS-CHAVE:
Espaço “limiar”; Espaço fechado; Espaço aberto; Ressurreição de Lázaro; Paráfrase artística

ABSTRACT

The article is intended to demonstrate how some of the ideas of Bakhtin’s book about Dostoevsky tend to self-development, opening up space for additional interpretations. The article analyzes two pairs of basic oppositions in Dostoevsky’s novel Crime and Punishment. Along with the model of “threshold” space, brilliantly revealed by Bakhtin, the novel contains the opposition of the closed space model to the open space model. The first is associated with death, with hell, where there is no way out, with blindness of consciousness; the second - with resurrection, repentance, insight and spiritual transformation. In terms of meaning, this opposition corresponds to the second one, expressed by the symbolic leitmotifs “heat,” “stink,” “stuffiness” in contrast to the leitmotifs “air,” “water,” “rain.” Deciphering these oppositions leads the author to the conclusion that in the novel the gospel story of the resurrection of Lazarus is metaphorically recreated, and the novel itself can be attributed to a genre of an artistic paraphrase.

KEYWORDS:
Threshold space; Closed space; Open space; Resurrection of Lazarus; Artistic paraphrase

АННОТАЦИЯ

Статья призвана продемонстрировать, как некоторые положения книги Бахтина о Достоевском просятся к саморазвитию, открывая простор для дополнительных интерпретаций. В статье анализируются две пары базовых оппозиций, пронизывающих роман Достоевского “Преступление и наказание”. Наряду с “пороговым” пространством, блестяще раскрытым Бахтиным, в романе наблюдается противопоставление модели замкнутого пространства модели открытого пространства. Первое ассоциировано со смертью, с адом, откуда нет выхода, со слепотой сознания; второе - с воскресением, раскаянием, прозрением и духовным преображением. Этой оппозиции по смыслу соответствует вторая, выраженная символическими лейтмотивами “жара”, “вонь”, “духота” в противопоставлении к лейтмотивам “воздух”, “вода”, “дождь”. Дешифровка этих оппозиций приводит автора к выводу о том, что в романе метафорически воссоздана евангельская история воскрешения Лазаря, а сам роман в жанровом отношении являет собой художественный парафраз.

КЛЮЧЕВЫЕ СЛОВА:
Пороговое пространство; Замкнутое пространство; Открытое пространство; Воскрешение Лазаря; Художественный парафраз

Introdução

O livro de Bakhtin Problemas da poética de Dostoiévski de uma maneira brilhante revelou o caráter específico do pensamento criativo do grande filólogo. Eu definiria o traço principal de suas ideias da seguinte forma: seu pensamento é sempre muito preciso e, ao mesmo tempo, está aberto para ser completado e desenvolvido. É curioso notar como neste livro o caráter aberto das ideias de Bakhtin corresponde aos personagens de Dostoiévski sobre os quais o próprio Bakhtin (1979, p.58)БАХТИН, М. М. Проблемы поэтики Достоевского. [BAKHTIN, M. M. Problems of Dostoevsky’s Poetics]. Москва: “Советская Россия”, 1979. escreveu: “Todos sentem vivamente a sua imperfeição interna, sua capacidade de superar-se como que interiormente e de converter em falsidade qualquer definição que os torne exteriorizados e acabados”. Antidogmatismo é um princípio básico de Bakhtin: ele não proclama a verdade na última instância, mas aponta e abre os caminhos pelos quais é possível e é necessário continuar a explorar suas descobertas. E é por isso que ele é tão requisitado pelos pesquisadores de Letras desde que suas obras têm sido conhecidas no mundo inteiro; e é por isso que ele tem tantos seguidores, e não imitadores.

Quero mostrar como alguns apontamentos do livro de Bakhtin sobre Dostoiévski aspiram ao autodesenvolvimento, como eles podem ser desenvolvidos e levados a interpretações. O gênero de artigo obriga à limitação consciente do material, por isso vou tratar apenas de alguns aspectos da interpretação de um único romance de Dostoiévski – Crime e castigo.

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Para começar, analisaremos as particularidades do espaço e do tempo artísticos como um todo no romance Crime e castigo, que estão solidamente relacionadas com outros motivos e oposições recorrentes e constantes e “funcionam” apenas em conjunto com elas. Na segunda edição do livro Problemas da obra de Dostoiévski (1929)1 1 Na Rússia, a obra de 1963 Problemas da poética de Dostoiévski é considerada a segunda edição de Problemas da criação de Dostoiévski, de 1929. Estamos utilizando aqui, nas referências, a tradução da edição modificada de 1963, cujo título passa a ser Problemas da poética de Dostoiévski. BAKHTIN, M. Problemas da poética de Dostoiévski. Trad. de Paulo Bezerra. 5. ed. Rio de Janeiro, Editora Forense Universitária: 2010. (Nas citações subsequentes, será utilizada esta tradução para as citações diretas da obra). , Bakhtin revelou com apuro a especificidade do cronotopo na obra de Dostoiévski, determinando-a a partir das noções de “tempo de crise” e de “tempo limiar”. A partir de então, os termos “tempo limiar” e “espaço limiar” têm sido amplamente usados na teoria literária e aplicados à obra dos mais diversos escritores das mais diversas épocas.

A partir do momento em que Bakhtin elaborou a concepção mencionada, já não era mais possível passar sem a exposição e citação das reflexões expostas por ele no quarto capítulo (Peculiaridades do gênero, do enredo e da composição das obras de Dostoiévski [p.115-206]) do livro citado. Escreve o pesquisador:

Tudo nesse romance – os destinos das pessoas, suas emoções e ideias – está aproximado dos seus limites, tudo parece estar pronto para se converter no seu contrário (não no sentido dialético-abstrato, evidentemente), tudo está levado ao extremo, ao limite. No romance, não há nada que possa estabilizar-se, que possa ficar justificadamente tranquilo de si, que possa entrar na corrente normal do tempo biográfico e nele se desenvolver... Tudo exige sucessão e renascimento. Tudo é mostrado no momento da transição não-concluída (BAKHTIN, 2010, p.193).

Realmente, os personagens de Dostoiévski não levam a vida biográfica compassada habitual, da primeira infância à velhice; por isso o escritor não fornece informações sobre os anos precedentes de sua vida, ou, quando apresenta uma história prévia, isso é feito em parcos detalhes. Eles vivem num estado de transformação radical, experimentam a mais extrema tensão emocional, e, nesses estados, o tempo artístico pode ser estendido desmedidamente. Isso, nas palavras de Bakhtin (2010, p.196), é “o tempo de crise, no qual o instante se iguala aos anos, aos decênios”. E, com efeito, lendo o romance Crime e castigo, é difícil acreditar que sua ação principal, extraordinariamente plena e saturada de diversos acontecimentos, tenha lugar em alguns poucos dias.

A esse tempo “de crise”, “limitado” corresponde um espaço específico também “limitado”. Segundo Bakhtin (2010, p.195-196; grifo no original), “O alto, o baixo, a escada, o limiar, a sala de espera e o patamar assumem o significado de ponto em que se dão a crise, a mudança radical, a reviravolta inesperada do destino, onde se tomam as decisões, ultrapassa-se o limite proibido, renova-se ou morre-se”. É exatamente nesses pontos que acontece a ação nas obras de Dostoiévski, inclusive no romance Crime e Castigo. Já o espaço interno da sala de visitas, ressalta o teórico, é utilizado por Dostoiévski apenas como palco dos escândalos e destronamentos, quando esse espaço se transforma em substituto da praça.

Dostoiévski “salta” por cima do espaço interno habitável, arrumado e estável das casas, apartamentos e salas, espaço distante do limiar, porque a vida que ele retrata está fora desse espaço. O que ele foi menos foi escritor de ambientes familiares de casas senhoriais, casas, quartos e apartamentos (BAKHTIN, 2010, p.196).

E adiante Bakhtin demonstra que os nós básicos do enredo do romance estão justamente no limiar:

Antes de mais nada, Raskólnikov vive essencialmente no limiar: seu quarto apertado, “caixão” (aqui um símbolo carnavalesco) dá diretamente para o patamar da escada e ele, ao sair, nunca fecha a porta (logo, é um espaço interno não-fechado). Nesse “caixão” é impossível viver uma vida biográfica, podendo-se somente sofrer crises, tomar as últimas decisões, morrer e renascer (como nos caixões em Bobok ou em O sonho de um homem ridículo). No limiar, na ante-sala que dá diretamente para a escada, vive a família de Marmieládov (aqui, no limiar, Raskólnikov teve seu primeiro encontro com os membros dessa família quando trouxe Marmieládov embriagado). No limiar da casa da velha agiota, por ele assassinada, passa minutos terríveis, quando do outro lado da porta, no patamar da escada, visitas da velha aguardam e acionam a campainha. Ele torna a voltar a esse local e a acionar a campainha, para reviver esses instantes. No limiar, junto ao lampião do corredor, dá-se a cena de sua semiconfissão muda, apenas com um olhar a Razumíkhin. No limiar, à entrada do apartamento vizinho, ocorrem as suas conversas com Sônia (que são escutadas por Svidrigáilov do lado oposto da porta). Não há, naturalmente, necessidade de enumerar todas as “ações” que se desenvolvem no limiar, nas proximidades do limiar ou com a sensação viva do limiar nesse romance (BAKHTIN, 2010, p.196-197; grifos no original).

A delicada análise cronotópica de Bakhtin faz-nos observar com mais atenção os modelos espaciais representados no romance. E, então, verifica-se que as estruturas temporais e, principalmente, espaciais do romance, como apresentado, estão longe de se esgotar nos modelos “do limiar”.

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O espaço “limiar” é uma característica geral do espaço artístico do romance relacionada, em primeiro lugar, com a construção do enredo: nas palavras de Bakhtin, “o limiar e seus substitutos imediatos são os pontos fundamentais da ação”. Paralelamente, estão representados com precisão no romance, até em alguns tipos diferentes, os modelos artísticos do espaço fechado e do espaço aberto (para evitar citações gratuitas, não recorreremos aqui a exemplos).

Trataremos, inicialmente, da imagem de Petersburgo. Essa última foi edificada de acordo com um plano previamente elaborado, e é gloriosa, antes de tudo, por seus maravilhosos e extensivos panoramas. Mas, nessa sua qualidade arquitetônica panorâmica, a “criação de Pedro” é apresentada no romance de Dostoiévski apenas uma vez e na seguinte interpretação:

Ele apertou a moeda na mão, caminhou uns dez passos e voltou-se de frente para o Nievá, na direção do palácio. No céu não havia nem uma ínfima nuvem e a água estava azul, o que é muito raro no Nievá. A cúpula da catedral, que de nenhum ponto se destaca melhor que dali, da ponte, a menos de vinte passos da capela, brilhava tanto que em meio ao ar puro dava até para se perceber com nitidez cada ornamento seu. A dor da chicotada havia passado, e Raskólnikov esquecera o golpe; agora um pensamento inquieto e não inteiramente claro o ocupava com exclusividade. Postado, ele fitou demorada e fixamente ao longe; esse lugar lhe era especialmente conhecido. Quando frequentava a universidade, costumava parar – mais amiúde quando voltava para casa, e talvez o tivesse feito umas cem vezes –, precisamente nesse lugar, e ficar perscrutando o panorama realmente magnífico e sempre chegando quase a surpreender-se com uma impressão vaga e sem solução. Um frio inexplicável sempre lhe vinha desse panorama magnífico; para ele esse quadro esplêndido era pleno de um espírito mudo e surdo... Sempre se admirava de sua impressão soturna e enigmática, e deixava para decifrá-la no futuro por não confiar em si mesmo (DOSTOIÉVSKI, 2009, p.127-128)2 2 DOSTOIÉVSKI, F. Crime e castigo. Trad. P. Bezerra. 6. ed. São Paulo: Editora 34, 2009. (Nesta e nas citações subsequentes, será utilizada esta tradução para as citações diretas da obra). .

Pois então nós, assim como Raskólnikov, deixaremos para decifrar a impressão no futuro, e agora destacaremos apenas que essa imagem é estranha à consciência do protagonista e também à de outros personagens: essa Petersburgo é algo completamente à parte da vida real e, por isso, mostra-se fria, fantástica e quase inexistente. E até o fato de a imagem da Petersburgo panorâmica ser dada uma única vez vem sublinhar uma espécie de ausência na consciência e na vida real dos personagens do romance. Essa variante do espaço aberto apresenta-se como símbolo da ausência de relação com a vida, de alheamento.

A Petersburgo real, aquela em que acontece a ação do romance, é apresentada com uma qualificação completamente diferente. Ela é o caos, os elementos do proteísmo, aqui tudo se encontra em movimento, em constante transformação e tudo está penetrado pelo pecado e pelo sofrimento – um espaço verdadeiramente infernal. Mas qual é então o modelo personificado por esse espaço?

Não é difícil observar que a ação do romance acontece nos limites de um espaço urbano muito limitado: a praça Siénnaia e os quarteirões adjacentes. Os encontros constantes, ocasionais e imprevisíveis dos personagens e o cruzamento dos destinos sublinham o caráter limitado desse espaço: é como se os personagens vivessem numa cidade-casa semelhante a um alojamento universitário, onde não é possível circular sem ser visto, onde todos se conhecem. No seu livro, Bakhtin aponta o gênero antigo da sátira menipeia como uma das importantes fontes da criação de Dostoiévski, e um dos recorrentes enredos deste gênero é uma viagem para o mundo do além. Esse enredo destaca-se com clareza no romance Crime e castigo, no qual a cidade se apresenta como a imagem do inferno. O espaço do inferno não pode ter porta de saída; no romance, esse motivo é tratado claramente nas palavras de Marmieládov: “Já que não se tem a quem procurar, então não se tem mais aonde ir! E olhe que é preciso que qualquer um possa ir pelo menos a algum lugar. Porque há momentos em que é preciso ir sem falta pelo menos a algum lugar!” (DOSTOIÉVSKI, 2009, p.31). Também Raskólnikov mais de uma vez relembra essas palavras em relação a si próprio. Compreende-se que a ideia “não se tem mais aonde ir” expressa, antes de tudo, a falta de perspectiva espiritual, de vida, o limite da queda e do sofrimento moral; ao mesmo tempo, porém, ela também funciona, de modo latente, na dimensão espacial, criando a imagem das profundezas do inferno, de onde não há saída. Assim, a Petersburgo real, contraposta à Petersburgo “inexistente”, “fantástica”, apresenta-se como modelo de espaço fechado.

Mas também esse espaço fechado, por sua vez, como favos de uma colmeia, multiplica-se nos comodozinhos alveolares habitados pelos personagens. Por um lado, esses alvéolos apresentam-se como o espaço limiar, e nesse aspecto Bakhtin, sem dúvida, tem razão. Porém, ao mesmo tempo, esse é também o modelo do espaço fechado; de qualquer modo, justamente assim se apresenta a habitação de Raskólnikov. Embora o seu quarto tenha saída para o patamar da escada, embora Raskólnikov não feche a porta, de qualquer modo, o quarto está separado do mundo, fechado em si mesmo, o que Dostoiévski sublinha muitas vezes e com muita insistência: “Seu cubículo [...] mais parecia um armário do que um apartamento” (DOSTOIÉVSKI, 2009, p.19); “fora lá, no canto, naquele terrível armário que amadurecera tudo aquilo havia já mais de um mês” (DOSTOIÉVSKI, 2009, p.68). O apartamento de Raskólnikov é tomado como imagem do espaço fechado não apenas pelo autor, mas também pela mãe do protagonista: “Que quarto ruim este teu, Ródia, parece um caixão de defunto – disse Pulkhéria Alieksándrovna” (DOSTOIÉVSKI, 2009, p.241); o próprio Raskólnikov o considera assim: “Na ocasião eu me encafuei num canto do meu quarto como uma aranha. Tu estiveste no meu cubículo e o viste... E sabes, Sônia, que os tetos baixos e os quartos apertados oprimem a alma e a inteligência? Oh, como eu odiava aquele cubículo! Mas ainda assim não queria sair dele” (DOSTOIÉVSKI, 2009, p.425-426). “Armário”, “caixão de defunto”, “canto de aranha”, “cubículo”, todas essas imagens, de forte colorido emocional, não deixam dúvida de que o cubículo de Raskólnikov consiste em um modelo do espaço fechado, e como mostraremos mais adiante, nisso se encerra o seu sentido profundo. Por enquanto, fica evidente que esse espaço, não apenas fechado, mas extremamente comprimido, “apertado”, está associado com o fechamento e o aperto da alma e da consciência e, por isso, quando Raskólnikov diz que não quer sair do seu cubículo, suas palavras adquirem um significado especial. “Sair” significa desescerrar o espaço e as fronteiras da própria consciência. Mas ele tem de sair

Justamente em contraposição a essa gaiola e, em primeiro lugar, ao cômodo de Raskólnikov, forma-se a imagem do espaço aberto, não o de Petersburgo, impessoal e fantástico, mas outro completamente diferente. Esse modelo do espaço aberto surge no romance apenas duas vezes, o que não deprecia de modo algum a sua significação. A primeira vez, na imaginação, quando Sônia diz a Raskólnikov: “Vai agora, neste instante, para em um cruzamento, inclina-te, beija primeiro a terra, que tu profanaste, e depois faz uma reverência a todo este mundo, em todas as direções que quiseres, e diz a todos, em voz alta: ‘Eu matei!’” (DOSTOIÉVSKI, 2009, p.428). O cruzamento é o símbolo da cruz, mas é também a indicação do espaço aberto, dos quatro cantos do mundo, aos quais o assassino deve fazer uma “reverência” e, assim, abrir as fronteiras da própria consciência.

Na segunda vez, o modelo do espaço aberto surge já na realidade, no epílogo, na cena da transfiguração definitiva de Raskólnikov. Vale a pena nos aprofundarmos na leitura da cena:

Raskólnikov saiu do telheiro para a margem, sentou-se em uns troncos arrumados ao lado do telheiro e ficou a olhar o rio largo e deserto. Da alta margem descortinavam-se vastas redondezas. Da outra margem distante chegava o som de uma canção que mal se ouvia. Lá, na estepe sem fim banhada de sol, negrejavam tendas de nômades como pontinhos que mal se distinguiam. Ali havia liberdade e vivia outra gente, em nada parecida à de cá, lá era como se o próprio tempo houvesse parado, como se ainda não tivessem passado o século de Abraão e o seu rebanho. Raskólnikov estava sentado e olhando imóvel, sem desviar a vista; seu pensamento passou aos devaneios, à contemplação; ele não pensava em nada, mas alguma melancolia o inquietava e atormentava.

Eis que ao seu lado apareceu Sônia. Chegou-se de um jeito que mal se ouvia e sentou-se ao lado dele. [...]

Como isso aconteceu nem ele mesmo sabia, mas de repente alguma coisa pareceu o impelir e lançá-lo aos pés dela. Ele chorava e lhe abraçava os joelhos (DOSTOIÉVSKI, 2009, p.558-559).

Faz sentido contrapor essa paisagem àquela de Petersburgo, apresentada antes. Elas possuem certa semelhança: nos dois casos, surge a imagem do rio, cuja superfície é observada por Raskólnikov. Mas, pelo visto, essa semelhança é proposital, tem o objetivo de encobrir as profundas diferenças entre as duas paisagens. No panorama de Petersburgo, há uma imagem da arquitetura (a catedral), mas, além dela, não há nem menção à presença humana – eis porque desse panorama sopra um “espírito mudo e surdo”, “frio”, eis porque esse panorama desperta apenas o sentimento de profundo alheamento. Ao contrário dele, no panorama siberiano, no espaço da natureza pura, o personagem distingue com o olhar as pessoas que levam uma vida “livre”. Na contraposição das duas paisagens destacam-se claramente as oposições “artificial”/“natural”, “cidade”/“natureza”, “inumano”/“humano” e, finalmente, “cárcere”/“liberdade”. Além disso, os dois panoramas estão personificados em diferentes modelos temporais: enquanto o de Petersburgo encontra-se no modelo do tempo histórico objetivo, o da Sibéria está no modelo do tempo parado e também mitológico, que leva o personagem de volta ao princípio dos tempos: “como se ainda não tivessem passado o século de Abraão e o seu rebanho”. A função do panorama siberiano, desse modo, encerra-se em retirar o personagem do fluxo da história e colocá-lo de volta em um estado primitivo, natural, original; nesse estado é que acontece a sua renovação, transfiguração.

No romance Crime e castigo, a contraposição dos modelos de espaço fechado e aberto está estreitamente ligada a outro sistema de oposições e, apenas na interação com ele, revela todo o seu sentido.

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Segundo afirmação de Bakhtin (2010, p.131; grifo no original): “Uma particularidade muito importante da menipeia é a combinação orgânica do fantástico livre e do simbolismo e, às vezes, do elemento místico-religioso com o naturalismo de submundo extremado e grosseiro”. E, de fato, há um simbolismo marcante no romance Crime e castigo. Aqui, não colocamos a tarefa de investigar e decifrar os numerosos símbolos do romance (como, por exemplo, a “pedra”, a “cruz”, a “campainha”); voltaremos a nossa atenção apenas para aqueles relacionados aos modelos do espaço.

São motivos simbólicos o “calor intenso”, o “mau cheiro”, o “abafamento”, em contraposição aos motivos do “ar” e da “água”. Numerosos exemplos não deixam dúvida de que esses são não ocasionais e que o escritor os incluiu de modo bem consciente. Além disso, como será demonstrado, como um todo, em seu desenvolvimento, esses motivos organizam certo enredo interno oculto, que acompanha a série externa de acontecimentos do romance. As oposições destacadas correspondem a mais uma característica do gênero menipeia, definido por Bakhtin (2010, p.135) da seguinte maneira: “A menipeia é plena de contrastes agudos e jogos de oximoros”.

É impossível deixar de notar que a ação das primeiras quatro partes do romance desenrola-se diretamente numa atmosfera sufocante: a cidade sofre com o calor, o abafamento, os cheiros repugnantes. Essa atmosfera é reproduzida já nas primeiras páginas do romance, à semelhança de uma sinfonia, em que, nos primeiros compassos, é dado o leitmotiv: “Na rua fazia um calor terrível... O cheiro insuportável das tabernas, especialmente numerosas nesta parte da cidade, e os bêbedos, que apareciam a cada instante, apesar de ser dia útil, completavam o colorido repugnante e triste do quadro” (DOSTOIÉVSKI, 2009, p.20). E, mais adiante, os motivos assinalados repetem-se várias vezes – além disso, com o mesmo caráter agudo, de modo a chamar a atenção do leitor reiteradamente. Faz sentido apresentar uma série de exemplos para que seja possível perceber a intensidade emocional desses fragmentos. Raskólnikov sai de casa:

Na rua outra vez fazia um calor insuportável; tivesse caído pelo menos uma gota de chuva em todos esses dias. Novamente poeira, tijolo e cal, novamente o mau cheiro das vendas e dos botequins, novamente cocheiros finlandeses bêbados aparecendo a cada instante quase caindo (DOSTOIÉVSKI, 2009, p.108).

Raskólnikov passa na delegacia:

A escada era estreita, íngreme e a estavam lavando. Todas as cozinhas de todos os apartamentos em todos os quatro andares abriam suas portas para essa escada e assim ficavam o dia quase todo. Daí o terrível abafamento. [...] Ele entrou e se deteve na antessala. Ali havia uns mujiques em pé, aguardando há tempo. O abafamento também era excessivo e, além disso, a tinta fresca, à base de um óleo de linhaça fétido, ainda úmida nas paredes das salas repintadas, batia no nariz e provocava enjoo (DOSTOIÉVSKI, 2009, p.109).

Um pouco adiante: “Hum... é uma pena que aqui não tenha ar – acrescentou ele -que abafamento... A cabeça gira ainda mais... e a mente também” (DOSTOIÉVSKI, 2009, p.110). Um dia depois, Raskólnikov de novo sai de casa: “Eram oito horas, o sol estava se pondo. O abafamento continuava; mas ele sorveu com avidez o ar fétido, poeirento, contaminado pela cidade” (DOSTOIÉVSKI, 2009, p.168). Finalmente, as palavras muito significativas de Pulkhéria Alieksándrovna sobre o apartamento do filho, aquele “alvéolo” urbano: “é bom que dê uma caminhada, que ao menos tome ar... o quarto dele é um horror de abafado... mas onde tomar ar por aqui? As ruas daqui também são abafadas como um quarto sem postigos. Meu Deus, que cidade é essa!...” (DOSTOIÉVSKI, 2009, p.250-251).

Os motivos do calor, do abafamento e do mau cheiro são, obviamente, metafóricos e todos foram introduzidos em séries associativas totalmente determinadas. O calor é a paixão que abrasa o intelecto e o espírito, é o deserto sem vida; o abafamento é sinal de empobrecimento, de esgotamento espiritual; o mau cheiro é a depravação, a fedentina espiritual. Em conjunto, esses motivos destinam-se a transmitir a atmosfera humana e social da violência, do pecado, do infortúnio. Entretanto, por outro lado, eles funcionam também como imagem do espaço infernal, da cidade das profundezas. Aliás, como será demonstrado adiante, esses motivos ainda possuem outro conteúdo semântico.

Nos fragmentos citados, destaca-se ainda sem clareza aquele enredo interno que receberá potente desenvolvimento mais no final do romance. O abafamento gera a sede de ar fresco; no rasto de Pulkhéria Alieksándrovna, Porfiri Pietróvitch, no segundo encontro com Raskólnikov, também sustenta esse motivo: “É preciso deixar entrar ar fresco! Seria bom o senhor beber uma aguinha, meu caro, porque isso é um acesso!” (DOSTOIÉVSKI, 2009, p.353). Destacaremos logo que, par a par com o motivo do ar fresco, é assinalado aqui o motivo da água – esse é o segundo “participante” do enredo interno. No terceiro encontro com Raskólnikov, o mesmo Porfiri Pietróvitch diz: “O senhor, em primeiro lugar, está precisando mudar de ares há muito tempo”, e depois repete, insistente, “Agora o senhor precisa apenas de ar, de ar, de ar!” (DOSTOIÉVSKI, 2009, p.469). Essa última declaração soa como um encantamento, com a repetição, típica nesse tipo de prática mágica, de uma palavra ou expressão. Além disso, não são raros os casos em que a repetição possui o objetivo suplementar de revelar e ativar a semântica original ou associativa da palavra, oculta em seu uso habitual. Pois aqui, de repente, surge o conteúdo duplo oculto da palavra “vózdukh” [ar]. O prefixo “voz”, como se evidencia no dicionário Uchakov, possui quatro significados: movimento para cima (“vozvychiénie” [elevação], “vozneciénie” [ascensão] etc.); ação que implica algo novo (“vozrojdnie” [renascimento]); ação que consiste em resposta a algo (“voznagrajdat” [recompensar]); início, surgimento de uma ação (“vozmetchtat” [começar a sonhar]). Todos esses sentidos, nesse caso, estão combinados com a raiz “dukh” (espírito). Elevar, renascer o espírito, começar um trabalho espiritual em resposta ao que foi realizado – eis o que é necessário a Raskólnikov. E essa elevação, esse renascimento e, ao mesmo tempo, essa purificação ocorrem gradualmente, antes de tudo, graças a Sônia: “E ele pensou em Sônia. Um frescor entrou u pela janela” (DOSTOIÉVSKI, 2009, p.435). À luz do que foi dito, seria possível considerar ocasional a justaposição dessas duas frases curtas? Claro que não. E também não podemos considerar o seguinte fragmento como um detalhe destituído de significado: “Svidrigáilov acordou, levantou-se e caminhou para a janela. Pelo tato achou o ferrolho e a abriu. O vento arremeteu furiosamente contra seu cubículo apertado e como uma geada gelada grudou-se em seu rosto e em todo o peito coberto apenas pela camisa” (DOSTOIÉVSKI, 2009, p.514-515)

O motivo do vento fresco está diretamente ligado ao motivo da água. Antes de nos voltarmos ao seu exame, lembremos que a imagem da água se refere à imagem mitológica universal. Como tal, a imagem da água herdou da mitologia uma série de sentidos invariáveis; deles indicaremos apenas os mais importantes. O motivo mitológico universal da “mãe-água”, às vezes expresso exatamente nessa combinação de palavras, representa a água como princípio gerador, substância que gera a vida – nesse contexto, ela está estreitamente relacionada com as imagens da “mãe-terra” e da árvore. É evidente também a relação da imagem mitológica da água com o tema da felicidade no amor: não vale a pena introduzir aqui numerosas cenas de encontros e declarações amorosas à beira de rios ou de outras extensões de água, cenas de abluções conjuntas ou dos motivos da viagem dos apaixonados pelo mar, pelo rio etc.

No cristianismo, o símbolo da água reúne em si toda uma soma de sentidos complementares, relacionados com a cerimônia do batismo.

No romance de Dostoiévski, a água se apresenta não apenas na qualidade de símbolo, mas também é uma espécie de participante da ação. Nele, a imagem da água é apresentada em algumas hipóstases.

O desenvolvimento do motivo tem início na cena do segundo encontro de Raskólnikov com o juiz de instrução, quando este último sugere que o assassino tome um pouco d’água:

Beba, meu caro – sussurrou, precipitando-se para ele com a jarra –, pode ser que ajude... – O susto e a própria colaboração de Porfiri Pietróvitch foram tão naturais que Raskólnikov calou-se e passou a examiná-lo com uma curiosidade selvagem. Aliás não aceitou a água.

– Rodion Románovitch, meu caro! Desse jeito vai acabar enlouquecendo, posso assegurar-lhe, e-he! Ah! Beba! Beba ao menos um pouquinho.

No final das contas conseguiu que ele aceitasse o copo d’água. Ele ia levá-lo maquinalmente à boca, mas voltou a si e o pôs na mesa (DOSTOIÉVSKI, 2009, p.353).

Essa cena está repleta de profundo simbolismo. Por trás das palavras e das ações usuais, exteriores, ergue-se um conflito psicológico profundo e tenso. A água é o símbolo da pureza, do arrependimento, e acontece que, oferecendo a água, Porfiri Petróvitch propõe ao criminoso arrepender-se voluntariamente. Essa ideia ainda não havia surgido na mente de Raskólnikov – eis porque ele olha para o juiz de instrução “com uma curiosidade selvagem”. Raskólnikov ainda não estava amadurecido para o arrependimento, por isso ele recusa a água “com asco”. Na delegacia, antes da confissão de Raskólnikov, de novo lhe oferecem água e de novo ele não aceita, pois ainda não se confessara, não passara pela transfiguração.

Mas a força purificadora da água não evita o assassinato ao se personificar na imagem da chuva. Na interpretação mitológica, a principal função da chuva está relacionada à fecundidade: ela torna fecunda a terra, que gera o alimento do homem e, assim, dá a vida. Para Dostoiévski, é importante não tanto a função da fecundação da imagem mitológica universal quanto a da geração da vida, só que numa interpretação metafórica específica. A chuva pode interromper o calor tórrido (ou seja, aliviar a atmosfera social infernal) e trazer consigo ar e frescor – daí a arrebatada saudade da chuva: “tivesse caído pelo menos uma gota de chuva em todos esses dias” (DOSTOIÉVSKI, 2009, p.108). Entretanto, para Dostoiévski, a importância primordial está em outra função da chuva – a ablução, a purificação.

Acompanhemos como se desenvolve no romance o motivo da chuva. Tomada no início como tormento e sonho, ela adquire realidade apenas no final, no meio da sexta parte: “Enquanto isso, a noite estava abafada e sombria. Por volta das dez nuvens aterradoras avançaram de todos os lados; deu uma trovoada e a chuva desabou como uma cascata. A água não caía em gotas mas em autênticos jatos açoitando o chão” (DOSTOIÉVSKI, 2009, p.506). Por causa da chuva e do vento, o nível do rio sobe – outra hipóstase da imagem da água – e a água limpa a cidade por cima e por baixo.

A água está se aproximando – pensou ele – até o dia amanhecer vai arremessar-se, onde for mais baixo, contra as ruas, inundará subsolos e adegas, virão à tona as ratazanas dos subsolos, e no meio da chuva e do vento as pessoas, aos insultos, molhadas, começarão a transferir as suas desavenças para os andares de cima... (DOSTOIÉVSKI, 2009, p.515).

Não é ocasional o fato de que os dois personagens, os duplos, os assassinos, Svidrigáilov e Raskólnikov, ambos acabem pegando chuva e ficando molhados. Svidrigáilov: “Ele chegou em casa todo encharcado” (DOSTOIÉVSKI, 2009, p.506); Raskólnikov: “Ontem eu peguei chuva, mãezinha” (DOSTOIÉVSKI, 2009, p.519). Os dois personagens passam por uma purificação, cuja consequência é o seu profundo arrependimento. Um deles é levado pelo arrependimento a reconhecer a própria culpa e a renascer. O outro é levado ao suicídio. Vale observar que o próprio ato do suicídio de Svidrigáilov está relacionado com a chuva: “Ora, querendo ir embora para a América e com medo de chuva, he-he! Adeus, minha cara Sófia Semeónovna!” (DOSTOIÉVSKI, 2009, p.508). E mais adiante: “O que esperar? Saio agora mesmo, vou direto ao Parque de Pedro: lá escolho em algum lugar um grande arbusto, todo banhado pela chuva, roço-o só de leve com o ombro e milhões de respingos me banharão toda a cabeça...” (DOSTOIÉVSKI, 2009, p.515).

Ainda outra personificação da substância da água, de extraordinário significado justamente para Dostoiévski, são as lágrimas, símbolo do sofrimento, da compaixão e do arrependimento. Não vale a pena apresentar numerosos exemplos em que as personagens femininas do romance choram, isso lhes cabe por estatuto; mas se poderia pensar que Raskólnikov estivesse privado da capacidade de chorar. Pouco antes da confissão, ele visita Sônia e reconhece a si mesmo: “Não, eu precisei das lágrimas dela, eu precisei ver o susto dela, ver como o coração dela bate e se tortura” (DOSTOIÉVSKI, 2009, p.531). Mas essa necessidade de lágrimas, de sofrimento, transforma-se em um passo na direção da transfiguração, e então acontece o milagre: “Tudo nele amoleceu, e as lágrimas jorraram” (DOSTOIÉVSKI, 2009, p.534). O derradeiro renascimento espiritual de Raskólnikov acontece já na Sibéria, e de novo ele chora, abraçado aos joelhos de Sônia. Juntamente com a chuva, o rio e as lágrimas “participam” também da superação da atmosfera espiritual exaurida.

4

Сomo e em que as oposições e os motivos destacados estão relacionados com os modelos espaciais do romance?

Antes de responder a essa pergunta, voltemos a nossa atenção a alguns fatos curiosos. A velha assassinada por Raskólnikov mora no quarto andar; também no quarto andar mora a família de Marmieládov; em um prédio de quatro andares fica a delegacia de polícia; finalmente, desde o dia do assassinato até a cena-chave do romance, quando Sônia lê o Evangelho para Raskólnikov, transcorrem quatro dias; e essa cena é descrita no IV Capítulo da IV Parte do romance. Seria tudo isso mera coincidência? Parece que Dostoiévski dá algum significado especial ao número quatro. E realmente é assim – esse significado revela-se claramente na mencionada cena. Nela, cada frase, cada palavra contém um significado especial, mas a sua análise detalhada ocuparia aqui muito espaço, por isso daremos atenção apenas ao momento mais relevante.

Não é por iniciativa própria que Sônia começa a ler o Evangelho. Por algum motivo, Raskólnikov insiste com ela: “Lê! Eu quero! – insistiu ele. – Já que lias para Lisavieta!” (DOSTOIÉVSKI, 2009, p.336). Ele próprio exige que ela leia o episódio da ressurreição de Lázaro, que, a propósito, encontra-se no “Quarto Evangelho”. Por que Raskólnikov insiste nessa leitura? Dostoiévski explica o movimento de sua alma: por um lado, “Ele compreendia bem demais como era difícil para ela, nesse momento, revelar e evidenciar todo o seu íntimo. Compreendeu que, em realidade, esses sentimentos pareciam constituir o segredo verdadeiro dela” (DOSTOIÉVSKI, 2009, p.337; grifo no original); por outro lado,

agora ele sabia, e sabia de certo, que ela, ainda que sentisse melancolia e temesse alguma coisa terrível ao começar a ler, todavia, por outro lado, sentia pessoalmente uma angustiante vontade de ler, a despeito de toda a melancolia e de todos os temores, e fazê-lo precisamente para ele, para que ele ouvisse, e precisamente agora (DOSTOIÉVSKI, 2009, p.337, grifo no original).

O próprio escritor destaca em itálico, no original russo, as palavras que dão a chave da compreensão do que está acontecendo: “seu íntimo”, “segredo”, “agora”. Acontece algum mistério, algum tipo especial de cerimônia de iniciação: Sônia transmite o seu conhecimento secreto àquele que mais precisa dele exatamente agora. Ela prenuncia o milagre que deve acontecer com ele: o milagre da renovação.

Ela se aproximava da palavra que narra o milagre mais grandioso e inaudito, e o sentimento de um imenso triunfo apossou-se dela. Sua voz se fez sonora como metal; o triunfo e a alegria soaram nela e lhe deram força. [...]

Jesus, agitando-se novamente em si mesmo, encaminhou-se para o túmulo; era este uma gruta, a cuja entrada tinham posto uma pedra. Então ordenou Jesus: Tirai a pedra. Disse-lhe Maria, irmã do morto: Senhor, já cheira mal, porque já é de quatro dias.

Ela acentuou com energia a pronúncia da palavra quatro (DOSTOIÉVSKI, 2009, p.337-338; grifo no original).

Como se vê, o próprio Dostoiévski, destacando mais uma vez a palavra-chave em itálico, decifra o simbolismo do número quatro. Entretanto, ao mesmo tempo, ele desnuda diante do leitor o abissal fundamento do enredo do romance: a passagem bíblica da ressurreição de Lázaro. Não é por acaso que Raskólnikov exige a leitura justamente dessa passagem; é como se percebesse, no interior de si, que o episódio se referia a si próprio. Mais uma vez, não é por acaso que o nome do personagem do Evangelho surge ainda antes, na conversa de Raskólnikov com Porfiri Pietróvitch:

E... e... e... em Deus, acredita? Desculpe tanta curiosidade.

– Acredito – respondeu Raskólnikov, levantando a vista para Porfiri.

– E... e na ressurreição de Lázaro, acredita?

– Ac-acredito. Por que lhe interessa tudo isso?

– Acredita literalmente?

– Literalmente (DOSTOIÉVSKI, 2009, p.270).

No início, esse diálogo parece estranho: se a pessoa crê em Deus, então por que passar a Lázaro e ainda enfatizar “literalmente”? Só depois da cena com Sônia, “passado um tempo”, torna-se compreensível o significado desse diálogo: o perspicaz Pofiri Pietróvitch já adivinha o que aconteceu e prevê o que acontecerá com Raskólnikov, que repete, no sentido não “literal”, mas metafórico, o destino de Lázaro.

Justamente no seio do enredo do Evangelho, as oposições mencionadas antes se reúnem e adquirem completude de sentido: de um lado, o espaço fechado, o calor, o abafamento, o mau cheiro; de outro, o espaço aberto, o ar, a umidade. O falecido Lázaro ficou no espaço fechado da gruta e, como conta a escritura sagrada, já começava a cheirar mal; Jesus “clamou em alta voz: Lázaro, vem para fora. Saiu aquele que estivera morto” (DOSTOIÉVSKI, 2009, p.338; grifo no original). Saiu o ressuscitado, saiu da gruta para o espaço aberto, pleno de ar e de luz.

O mesmo, porém no sentido metafórico, acontece com Raskólnikov. Entretanto, curiosamente, Dostoiévski dotou esse enredo revalorizado metaforicamente de motivos e soluções espaciais personificados de modo quase literal. Bakhtin discerniu, na comparação do cubículo de Raskólnikov com um túmulo, um elemento de carnavalização. Como escreveu Bakhtin (2010, p.142-144, grifo no original), “o próprio núcleo da cosmovisão carnavalesca: a ênfase das mudanças e transformações, da morte e da renovação [...] Todas as imagens do carnaval são biunívocas, englobam os dois campos da mudança e da crise: nascimento e morte…” A ambivalência carnavalesca pressupõe a presença da imagem de morte e, lógico, é por isso que nasce a comparação do cubículo de Raskólnikov com um caixão. O espaço fechado, onde se instala o personagem, reproduz o espaço da gruta obstruída por uma pedra, onde estava o corpo do falecido Lázaro. Talvez haja uma menção a essa pedra quando Dostoiévski fez com que Raskólnikov enterrasse os objetos roubados justo sob “uma grande pedra bruta” (DOSTOIÉVSKI, 2009, p.123). Precisamente do mesmo modo, os motivos do calor, do abafamento e do mau cheiro são chamados a transmitir aquela atmosfera em que estava o corpo putrefato de Lázaro. Que Raskólnikov é metaforicamente um “morto”, até ele próprio compreende: “Por acaso eu matei a velhota? Foi a mim que eu matei, não a velhota! No fim das contas eu matei simultaneamente a mim, para sempre!...” (DOSTOIÉVSKI, 2009, p.428). Aliás, ele “matou” a si próprio antes, quando ficava permanentemente em seu “canto”, ponderando a própria ideia, escrevendo o artigo sobre “os eleitos”, aos quais “tudo é permitido”.

E ainda outro detalhe: Raskólnikov, depois de planejar o crime, colocou-se numa condição de isolamento físico e espiritual que lembra o isolamento do defunto. Depois que ele cometeu o assassinato, essa sensação de alheamento em relação à sociedade aumentou reiteradamente:

Uma sensação nova e insuperável o dominava cada vez mais quase a cada minuto: era uma repulsa infinita, quase física, persistente, raivosa, odiosa a tudo o que encontrava e o cercava. Achava nojentos todos os transeuntes com que cruzava – eram nojentos seus rostos, seu andar, seus movimentos. Simplesmente cuspiria em alguém, morderia, parecia, se alguém começasse a conversar com ele... (DOSTOIÉVSKI, 2009, p.124).

Essa sensação já está numa espécie de fronteira qualitativa entre o “morto” e os vivos, é a sensação interior de um vampiro.

Mas o sofrimento e a compaixão ajudam Raskólnikov a ressuscitar e a sair do “túmulo”: a chuva e as lágrimas purificam-no, e, no espaço aberto, pleno de ar e de luz, à margem do rio, acontece a sua transfiguração. É a concretização do que está escrito na Escritura Sagrada: “Saiu aquele que estivera morto” (DOSTOIÉVSKI, 2009, p.338). E um detalhe final, já no epílogo, após a ressurreição do personagem – outra confirmação da Escritura: “Tinha o Evangelho debaixo do travesseiro. Pegou-o maquinalmente. O livro pertencia a ela, era aquele mesmo de onde ela lhe havia lido a ressurreição de Lázaro” (DOSTOIÉVSKI, 2009, p.559).

5

O Capítulo 4 do livro de Bakhtin está dedicado às peculiaridades do gênero, do enredo e da composição das obras de Dostoiévski. O pesquisador mostra com maestria a natureza multifacetada dos gêneros das obras do escritor russo. O que foi dito permite acrescentar mais uma hipóstase de gênero do romance Crime e castigo, oculta e bastante singular: ele se apresenta como uma paráfrase artística do enredo bíblico de Lázaro.

Faz sentido escrever algumas palavras sobre esse gênero. Inicialmente, o termo “paráfrase” significava recontar ou transmitir em outras palavras um texto, às vezes transmitir um texto poético na forma de prosa ou o inverso, uma prosa em versos. No século XX, a noção de paráfrase artística ampliou-se e aprofundou-se significativamente, e isso estava relacionado ao surgimento, na via do movimento modernista na literatura, de uma série de obras com orientação singular, com novas abordagens do material mitológico. Diferentemente, digamos, da tragédia clássica, que usava os enredos e personagens mitológicos diretamente, embora pudesse lhes dar novas interpretações, no modernismo, no gênero da paráfrase artística, o “eterno” enredo mitológico ou clássico encontra-se tão profundamente “oculto” e “mascarado” que são necessários esforços analíticos consideráveis para identificá-lo no âmago da obra; mas, apesar disso, ele existe, pode ser percebido e, em grande medida, pode determinar o mundo ficcional e o enredo da obra.

É importante sublinhar: estamos falando aqui não de um caráter mitológico espontâneo, irrefletido, que pode se manifestar até entre escritores naturalistas. A principal marca definidora do gênero da paráfrase artística está justamente no fato de que o escritor recorre conscientemente ao enredo mitológico ou clássico e, com ele, estabelece o fundamento da obra. Outra marca consiste em que esse enredo se apresenta como obscuro, oculto, modificado, isso sem falar nos personagens, que trazem outros nomes, vivem em outros lugares e em outra época, encontram-se em outras situações. Como modelo mais conhecido desse gênero, cujo florescimento acontece no século XX, podemos citar o romance de Ulisses, de Joyce. Mas as bases do gênero foram lançadas no século anterior, inclusive na literatura russa, que esteve muito à frente de seu tempo.

Na paráfrase artística, observam-se duas estratégias básicas dos escritores em relação ao enredo “de partida”. Uma é a paródia, “o revirar do avesso”. Essa estratégia é usada com brilhantismo na novela Proprietários de terra à moda antiga, de Gógol, que consiste em uma paráfrase artística do mito grego antigo de Filémon e Baucis. A outra estratégia não contém o elemento da paródia nem do escárnio amargo: nela, o escritor reproduz metaforicamente o enredo ou algum de seus elementos básicos. Esse é o caso de Dostoiévski no romance Crime e castigo. Não faz sentido apontar aqui as diferenças essenciais entre o enredo bíblico de Lázaro e o enredo do romance, pois elas são muitas e todas bem evidentes, começando pelo fato de que Raskólnikov é um assassino, enquanto Lázaro não é um pecador. Mas justamente nisso consiste a essência do gênero: quanto mais impressionantes são as diferenças, mais impressionante é a semelhança interna, que confirma o caráter inabalável de verdades seculares. O elemento básico do enredo do Evangelho, a onipotência do Senhor, ou em outras palavras, do bem, capaz de fazer ressuscitar os mortos. Construindo o enredo do próprio romance com base nesse fundamento, Dostoiévski confirmou a possibilidade de renascimento espiritual do ser humano, jamais perdida definitivamente.

Tanto o livro de Bakhtin, que foi publicado 90 anos atrás, quanto os seus trabalhos seguintes possuem um caráter provocativo. Eles fazem o leitor refletir profundamente sobre o texto artístico, o que tentei demonstrar com clareza neste texto.

Notes

  • 1
    Na Rússia, a obra de 1963 Problemas da poética de Dostoiévski é considerada a segunda edição de Problemas da criação de Dostoiévski, de 1929. Estamos utilizando aqui, nas referências, a tradução da edição modificada de 1963, cujo título passa a ser Problemas da poética de Dostoiévski. BAKHTIN, M. Problemas da poética de Dostoiévski. Trad. de Paulo Bezerra. 5. ed. Rio de Janeiro, Editora Forense Universitária: 2010. (Nas citações subsequentes, será utilizada esta tradução para as citações diretas da obra).
  • 2
    DOSTOIÉVSKI, F. Crime e castigo. Trad. P. Bezerra. 6. ed. São Paulo: Editora 34, 2009. (Nesta e nas citações subsequentes, será utilizada esta tradução para as citações diretas da obra).
  • 3
    Traduzido por Denise Sales (UFRGS) – denise.sales@ufrgs.br
  • 4
    e Elena Vássina (USP) - lenavass@uol.com.br

REFERÊNCIAS

  • БАХТИН, М. М. Проблемы творчества Достоевского Достоевского [BAKHTIN, M. M. Problems of Dostoevsky’s Creation]. Москва: Прибой, 1929.
  • БАХТИН, М. М. Проблемы поэтики Достоевского [BAKHTIN, M. M. Problems of Dostoevsky’s Poetics]. Москва: “Советская Россия”, 1979.
  • БАХТИН, М. М. М. М. Бахтин. Собрание сочинений. Т. 2. [BAKHTIN, M. M. M. M. Bakhtin. Selected Works Vol. 2]. Москва: Русские Словари, 2000. [Редакторы тома С. Г. Бочаров, Л. С. Мелихова]
  • ДОСТОЕВСКИЙ, Ф. М. Собрание сочинений Том 5. Преступление и наказание. [DOSTOEVSKY, F. M. Selected Works Vol. 5. Crime and punishment]. Москва: Государственное издательство художественной литературы, 1957.
  • УШАКОВ, Д. Н. Большой толковый словарь русского языка [UCHAKOV, D. N. Great Monolingual Dictionary of the Russian Language]. Moscout: ACT: Astrel, 2009.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    18 Jun 2021
  • Data do Fascículo
    Apr-Jun 2021

Histórico

  • Recebido
    16 Abr 2020
  • Aceito
    22 Mar 2021
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