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"Also spricht meine Seele". O Zaratustra de Nietzsche no Livro vermelho de Jung: a verdade como vida entre experiência e experimento* * Tradução de Larissa Morgato. A citação do título foi retirada da edição alemã de JUNG, C. G. Das Rote Buch: Liber novus. Düsseldorf: Patmos Verlag GmbH & CO. KG, 2010, p. 301. A primeira edição impressa do texto foi publicada em inglês: The red Book: Liber Novus. Ed. By S. Shamdasani. New York/London: W. W. Norton & Company, 2009. Aqui será usada como referência a edição italiana: Il libro rosso: liber novus. S. Shamdasani (Org.). Torino: Bollati Boringhieri, 2010, daqui para frente indicada nas notas com a abreviação RB seguida pelo número da página. Agradeço os amigos e colegas do Seminário permanente nietzschiano (SPN) com os quais tive oportunidade, em diversas ocasiões, de discutir sobre o problema da verdade, no Zaratustra, ao qual são dedicadas duas edições do seminário, em especial, Pietro Gori e Paolo Stellino. Obrigado a Vincenzo Continanza e obrigado à doutora Diana Gran Dall'Olio pela leitura atenta do texto, pelas observações sempre pertinentes e pelas propostas de correção e a Regina Greber por sua sensibilidade na leitura atenta do texto. "O Liber novus", explica o curador, "é um corpus textual incompleto, atestado por um conjunto de testemunhos (manuscritos e cópias datilografadas), nenhum dos quais traz uma redação que possa ser considerada definitiva" e precisa que "não é completamente claro como Jung quisesse completar a obra ou de que forma a teria publicado, caso tivesse decidido fazê-lo". (S. Shamdasani, Nota editorial, In: RB 222). O curador reconstrói a complexa trama textual (Livros negros, Minutas, transcrições etc.) que gira em torno do núcleo central do corpus, ou seja, o volume caligráfico deixado incompleto, ao qual Jung referia-se indicando-o seja como Livro vermelho, seja como Liber novus (cf. RB 193). Se quiséssemos precisar a definição filológica do RB fornecida por Shamdasani, deveríamos acrescentar que este, volume caligráfico à parte, é uma escolha particular e argumentada de textos inéditos, realizada pelos curadores; inéditos que giram em torno ao volume caligráfico. À diferença do curador de RB, prefiro utilizar aqui o título editorial, Livro vermelho, para indicar, em conjunto, seja o volume caligráfico, seja os escritos satélites que se lhe referem. À luz do fato que Shamdasani considera que Liber novus parece "corresponder ao título efetivo" do volume caligráfico (RB 193), é singular a escolha editorial de trazer tal locução como subtítulo em caracteres menores no frontispício das edições inglesa e italiana (completamente ausente na edição alemã, na qual ela aparece apenas nas páginas internas).

Resumo

Sabe-se que o encontro com o pensamento de Nietzsche foi realmente crucial para Jung; pode-se provar pelos seminários realizados por ele entre 1934 e 1939 e dedicado à interpretação de Assim falou Zaratustra. Traços da influência deste trabalho estão presentes na estrutura, linguagem, temas e atmosferas do Livro vermelho, bem como referências explícitas ao próprio Nietzsche. Aqui eu gostaria de propor um levantamento preliminar de alguns desses vestígios. Será uma pesquisa muito limitada, a fim de possibilitar reflexões mais amplas. Os vestígios revelam uma afinidade básica entre os textos de Nietzsche e Jung, e confirma um horizonte temático e teórico comum. Acima de tudo, parece-me - e eu vou tentar provar isso - que ambas as obras compartilham uma função semelhante como dispositivos performativas de representação, mas também da produção da verdade e do confronto com ele. Na esteira dessa linha de argumento, vou me concentrar em alguns dos núcleos textuais no Livro vermelho, relacionando com a questão da verdade em Nietzsche. Nas páginas de Ecce homo que são dedicadas a Zaratustra descobrimos, de forma concentrada, questões que, como veremos, serão retomadas e desenvolvidas também no Livro vermelho: Zaratustra é definido como uma "revelação da verdade" expressa por símbolos; uma "investigação sobre a alma", uma obra em que "o que está mais próximo, o que é realmente diário, fala [...] de coisas inéditas". E a personagem Zaratustra como um homem que se "sente a mais elevada espécie de existência" justamente porque tem "acesso a todos as oposições", sem a isso sucumbir; a mais profunda e conciliadora alma, capaz de experimentar o tempo da maneira mais abissal e imanente do eterno retorno; expressão do "conceito de Dioniso", uma visão antiga, porém renovada do divino e do sagrado.

Palavras-chave
Jung; Livro vermelho; alma; verdade

Abstract

It is known that the encounter with the Nietzsche thought was really crucial to Jung; it is proved, among other things, by the seminars held by him between 1934 and 1939 and dedicated to the interpretation of Thus Spoke Zarathustra. Traces of the influence of this work are present in the structure, language, themes and atmospheres of the Red book, as well as explicit references to Nietzsche himself. Here I would like to propose to you a preliminary survey of some of these traces. It will be a very limited survey in order to make possible wider reflections. The traces reveal a basic affinity between the texts of Nietzsche and Jung, and confirm a common thematic and theoretical horizon. Above all, it seems to me - and I will try to prove it - that both works share a similar function as performative devices of representation but also of production of truth and confrontation with it. In the wake of this line of argument, I will focus on some of the textual nucleus in the Red Book, with more evidence connected with Nietzsche on the question of truth. In the pages of Ecce homo which are dedicated to Zarathustra we find out, in concentrated form, issues which, as we shall see, will be resumed and developed also in the Red Book: Zarathustra is defined as a "revelation of the truth" expressed by symbols ; "research on soul", a work in which "what is nearest, what is really daily, talks [...] of unheard things". And the character Zarathustra as a man who "feels to be the highest of the existing species" just because "access all the opposites" without succumbing to this; deepest and combining soul, able to experience the time in the most abysmal and immanent way of the eternal return; expression of the "concept of Dionysos", an ancient yet renewed vision of the sacred and the divine.

Keyword
Jung; Red book; soul; truth

Os conteúdos do inconsciente poderiam ter-me feito perder a bússola. Mas a minha família, saber que tenho um diploma de médico obtido em uma universidade suíça, que devo ajudar meus pacientes, que tenho uma mulher e cinco filhos, que moro no número 228 da Seestrasse a Küsnacht, tudo isso constituía uma série de realidades efetivas com as próprias exigências. Provavam-me, no dia-a-dia, que eu realmente existia, que eu não era uma folha ondulante aos ventos do espírito, como Nietzsche. C. G. Jung In: A. Jaffé, Ricordi, sogni e riflessioni di C. G. Jung, trad. it., p. 223

Premissa

Com o título Livro vermelho ou Liber novus* * Tradução de Larissa Morgato. A citação do título foi retirada da edição alemã de JUNG, C. G. Das Rote Buch: Liber novus. Düsseldorf: Patmos Verlag GmbH & CO. KG, 2010, p. 301. A primeira edição impressa do texto foi publicada em inglês: The red Book: Liber Novus. Ed. By S. Shamdasani. New York/London: W. W. Norton & Company, 2009. Aqui será usada como referência a edição italiana: Il libro rosso: liber novus. S. Shamdasani (Org.). Torino: Bollati Boringhieri, 2010, daqui para frente indicada nas notas com a abreviação RB seguida pelo número da página. Agradeço os amigos e colegas do Seminário permanente nietzschiano (SPN) com os quais tive oportunidade, em diversas ocasiões, de discutir sobre o problema da verdade, no Zaratustra, ao qual são dedicadas duas edições do seminário, em especial, Pietro Gori e Paolo Stellino. Obrigado a Vincenzo Continanza e obrigado à doutora Diana Gran Dall'Olio pela leitura atenta do texto, pelas observações sempre pertinentes e pelas propostas de correção e a Regina Greber por sua sensibilidade na leitura atenta do texto. "O Liber novus", explica o curador, "é um corpus textual incompleto, atestado por um conjunto de testemunhos (manuscritos e cópias datilografadas), nenhum dos quais traz uma redação que possa ser considerada definitiva" e precisa que "não é completamente claro como Jung quisesse completar a obra ou de que forma a teria publicado, caso tivesse decidido fazê-lo". (S. Shamdasani, Nota editorial, In: RB 222). O curador reconstrói a complexa trama textual (Livros negros, Minutas, transcrições etc.) que gira em torno do núcleo central do corpus, ou seja, o volume caligráfico deixado incompleto, ao qual Jung referia-se indicando-o seja como Livro vermelho, seja como Liber novus (cf. RB 193). Se quiséssemos precisar a definição filológica do RB fornecida por Shamdasani, deveríamos acrescentar que este, volume caligráfico à parte, é uma escolha particular e argumentada de textos inéditos, realizada pelos curadores; inéditos que giram em torno ao volume caligráfico. À diferença do curador de RB, prefiro utilizar aqui o título editorial, Livro vermelho, para indicar, em conjunto, seja o volume caligráfico, seja os escritos satélites que se lhe referem. À luz do fato que Shamdasani considera que Liber novus parece "corresponder ao título efetivo" do volume caligráfico (RB 193), é singular a escolha editorial de trazer tal locução como subtítulo em caracteres menores no frontispício das edições inglesa e italiana (completamente ausente na edição alemã, na qual ela aparece apenas nas páginas internas). é indicado um imponente conjunto de inéditos de Carl Gustav Jung, parcialmente acessíveis ao grande público desde 20092 1 Ano de publicação da primeira edição inglesa. Para uma história da gênese da edição de RB, da constituição do texto e para os complexos fatos editoriais ligados à publicação, cf. U. Hoerni, Prefácio ao RB pp. VIII-IX, mas, sobretudo, S. Shamdasani, Introdução ao RB em RB X-XI e RB 193-223; em particular RB 202-203; 212-215; 220-223. A existência do RB era, há tempo, conhecida pelo público em geral graças ao volume de JAFFÉ, A. Ricordi, sogni e riflessioni di C. G. Jung. Milão: Rizzoli, 1978; ali, é o próprio Jung a falar do RB (pp. 231-232). , dos quais o mais precioso é um volume caligráfico. Esses textos, que contêm as intuições teóricas de fundo dos trabalhos sucessivos, documentam e testemunham a autoanálise que manteve Jung ocupado durante quase vinte anos, de 1913 a 1930, procedendo, mais ou menos secretamente, em paralelo em relação à atividade terapêutica e à produção científica. É de conhecimento geral quanto o contato com o pensamento nietzschiano tenha sido decisivo para Jung3 2 Limito-me a alguns títulos: NILL, P. "Die Versuchung der Psyche: Selbstwerdung als schöpferisches Prinzip bei Nietzsche und C. G. Jung". In: Nietzsche Studien 17 (1988), pp. 250-279; MÀDERA, R. "Jung e Nietzsche". In: Trattato di psicologia analítica. A. c. di A. Carotenuto. Torino: Utet 1992, vol. I, p. 67-93; BISHOP, P. The Dionysian self: C. G. Jung's Reception of Friedrich Nietzsche. Berlin/New York, de Gruyter 1995; DIXON, P. Nietzsche and Jung: Sailing a Deeper Night. New York/Wien, P. Lang 1999; HUSKINSON, L. Nietzsche and Jung: the Whole Self in the Union of Opposites. New York, Brunner: Routledge, 2004; mas sobretudo ver a tradução recente de LIEBSCHER, M. Libido und Wille zur Macht, C.G. Jungs Auseinandersetzung mit Nietzsche. Basel: Schwabe, 2012. ; testemunham-no, entre outros, os seminários ministrados por ele entre 1934 e 1939 e dedicados à interpretação de Assim falou Zaratustra4 3 JARRETT, J. L. (ed.). Nietzsches Zarathustra's. Notes of the Seminar Given in 1934-39 by C.G. Jung, 2 vol l. Londres: Routledge, 1989. O primeiro volume do seminário, na tradução italiana, foi publicado há pouco tempo com organização de CROCE, A. C. G. Jung, Lo Zarathustra di Nietzsche. Seminario tenuto nel 1934-39. Turim: Bollati Boringhieri, 2011. . Sinais da influência dessa obra estão presentes na estrutura, na linguagem, nas atmosferas e nos temas do Livro vermelho, como também nas referências explícitas ao próprio Nietzsche5 4 Shamdasani registra as referências implícitas nas notas. Aqui, vou evidenciar algumas não mencionadas pelo curador. Sobre a relação entre ZA e RB, cf. S. Shamdasani, Introdução, op. cit., RB 202-203. . Aqui, gostaria de propor um primeiro reconhecimento de alguns desses sinais. Será um reconhecimento assaz limitado, seja por razões de espaço, seja no que concerne à densidade e à quantidade dos materiais que deveriam ser examinados para tornar possíveis as reflexões de maior abrangência. Esses sinais revelam a afinidade que existe entre o texto de Nietzsche e o texto de Jung e confirmam uma consonância de horizontes teóricos e temáticos. Sobretudo, parece-me - e tentarei demonstrá-lo - que ambas as obras compartilhem uma análoga função performativa enquanto dispositivos de representação, mas, sobretudo, de confrontação com e produção da verdade. Seguindo essa linha interpretativa, irei me concentrar no exame, no Livro vermelho, de alguns dos pontos chave do texto que trazem à superfície com maior evidência ecos nietzschianos sobre a questão da verdade.

Nas páginas de Ecce homo dedicadas ao Zaratustra afloram, condensados, os temas que, como veremos, serão retomados e desenvolvidos também no Livro vermelho: o Zaratustra é definido como "revelação da verdade [Offenbarung der Wahrheit]" expressada mediante símbolos; "investigação sobre a alma [Seelen-Erforschung]"; obra em que "aquilo que é mais próximo e aquilo que é mais quotidiano falam de coisas extraordinárias" (EH/EH, Assim falou Zaratustra, 6, KSA 6.242). E o personagem Zaratustra como homem que "sente ser a mais alta espécie do existente [die höchste Art alles Seienden]", exatamente porque "entra em contato com todos os opostos" sem, por isso, sucumbir; alma mais profunda e que soma em si a capacidade de fazer experiência do tempo da forma mais abissal e imanente do eterno retorno; expressão do "próprio conceito de Dioniso", de uma antiga e, mesmo assim, renovada visão do sagrado e do indivíduo.

Obscuridade, aspectos místicos, esotéricos e simbólicos caracterizam as duas obras. Uma superfície estetizante6 5 O próprio Jung fala explicitamente de uma "tendência estetizante" expressa no RB; tendência da qual se afasta (Cf. A. Jaffé. Ricordi, op.cit., p. 231). as envolve e uma aura mítica as circunda. O conjunto contribui para alimentar, não poucas vezes, desconfiança na abordagem, nutrida por preconceitos de irracionalismo e por polêmicas nunca esmorecidas que ainda acompanham e acomunam os dois autores7 6 Vejam-se, por exemplo, para Nietzsche: M. Ferraris e P. Kobau, o discutido Posfácio à famigerada compilação pseudo-nietzschiana publicada como: FERRARIS, M. e KOBAU, P. Posfácio In: NIETZSCHE, F. La volontà di potenza. Milão: Bompiani, 2000, p. 563-688; LOSURDO, D. Nietzsche, il ribelle aristocrático. Biografia intellettuale e bilancio critico. Turim: Bollati Boringhieri, 2002. No lado junguiano: NOLL, Richard. Jung, il profeta ariano. Origini di un movimento carismático. Milão: Mondadori, 1999. . Por isso, gostaria de propor ao leitor a tentativa de olhar embaixo e além da superfície, para considerar o Zaratustra e o Livro vermelho, mais do que como narrativa de experiências interiores, também como experimentos stricto sensu; como tentativas conduzidas por Nietzsche e por Jung sobre si mesmos em vista da compreensão, mas sobretudo da construção de uma forma de vida nova - para eles, mas talvez também para outros; experimentos conduzidos com um espírito e uma postura que permanecem, na sua essência e na sua inspiração originária, científico-filosóficos.

Essa contribuição quer ser, ainda, um convite a ler o Livro vermelho através da lente do Zaratustra e o Zaratustra com o espírito do Livro vermelho. Enfim, ela se propõe como um convite à leitura e à descoberta do Livro vermelho na sua completude, na sua mistura, enigmática e visionária, de palavras e de imagens oníricas. Daqui, a escolha de deixar como pano de fundo o texto nietzschiano, mais conhecido, para dar maior espaço às citações escolhidas do Livro vermelho. É um texto ainda não muito lido: sua dimensão e sua complexidade expressiva, assim como seu simbolismo literário e iconográfico, claramente não atraem e não ajudam. O preconceito ainda menos. Daqui deriva a exigência de medir-se com primeiras características acima enunciadas e, também, com esse outro aspecto sempre muito mais insidioso do que os monstros que aparecem nas páginas de Jung.

Experiências e experimentos

No Zaratustra e no Livro vermelho, a racionalidade da razão é colocada em dúvida; dúvida que uma resistência tenaz tenta contrastar e remover. Uma resistência que, apenas por si própria, remete à base irracional da própria "razão". Alvo comum de Nietzsche e de Jung: o dogmatismo do espírito científico, em primeiro lugar quando tal dogmatismo se manifesta neles próprios. Daqui advém a crítica do espírito científico quando este se transforma em dogma, sem que a postura crítica comporte uma licença ou um abandono da essência de tal espírito8 7 "Agora, além disso, com o Zaratustra, acabei até mesmo entre os "literatos" e os "escritores", assim parecerá rescindido também a ligação que me unia à ciência". Assim escreve Nietzsche a Köselitz, em 2.4.1883. A propósito da interrupção da elaboração do RB, Jung sublinha como tal interrupção fosse ligada à exigência de "retornar à realidade humana, coisa que para mim significava à compreensão científica" (JAFFÉ, a. Ricordi, op. cit., pp. 231-232). : Nietzsche e Jung permanecem, de fato, homens da ciência até mesmo quando se movem nas suas fronteiras mais extremas; e se poderia dizer que o são, em sentido mais completo, exatamente por isso. E, também, porque pertencem àquela espécie de homens do conhecimento que assumem integralmente sobre si mesmos a responsabilidade dos próprios experimentos, a partir do momento que os conduzem na própria pele, utilizando a si mesmos como cobaias. Esse fato remete-os a uma dimensão de isolamento e de solidão, heroica e ao mesmo tempo anti-heroica, pode-se dizer, da qual apenas eles mesmos verdadeiramente tiveram consciência de forma plena.

Nietzsche e Jung, ambos empenhados no fronte da doença: um doente sempre à procura de uma cura para si mesmo e um terapeuta, que decide transformar a própria relação com a doença em experimento. "Tunc bene navigavi cum naufragium feci"9 8 Trata-se de um ditado familiar tanto à Nietzsche quanto a Jung, ambos atentos leitores do texto de Schopenhauer, em que este aparece, que tem como título Speculazione transcendente sull'apparente disegno intenzionale nel destino dell'individuo In: Parerga e Paralipomena, Milano, Adelphi, 1981, tomo II, p. 280. Cf. também Nietzsche, Nachlass/FP 16 [44], KSA 13.501 e nota relativa. O ditado é retirado de Vidas dos filósofos de Diógenes Laércio (7, 4), outro autor que Nietzsche, como filólogo, tinha conhecido a fundo. : contudo, no lugar em que Nietzsche deve ter sucumbido [naufragium feci], Jung saiu ileso [bene navigavi] ainda que seguindo os passos de Nietzsche. Nietzsche e Jung compartilham a convicção de que a doença seja um elemento constitutivo fundamental da cura e que ajude de modo determinante a convalescência. Assumem sobre si o sintoma do próprio sofrimento e da própria loucura incipiente: Jung o segue com coragem para ver onde pode levar e, depois de tê-lo vivido, transforma-o em uma técnica de cura; Nietzsche, ao contrário, experimenta-o mas não consegue distanciar-se do mesmo e acaba sendo submergido por ele.

Zaratustra e o Livro vermelho nascem a partir de um ato de autorreconhecimento radical do qual são a expressão; tem início no momento em que, terminadas as justificativas, chega-se ao estrato duro e irredutível sobre o qual a enxada se dobra e, então, não resta senão dizer: "É isso, eu ajo exatamente assim"10 9 WITTGENSTEIN, L. Ricerche Filosofiche. Turim: Einaudi, 1983, § 217. . Esses não são tanto e não são apenas tentativas de dizer a verdade, quanto, pelo contrário, modos de representar simbolicamente as condições extremas da própria produção, do seu manifestar-se, permanecendo fixo o fato de que, se procura concebê-la como vida, a verdade é, na sua essência, indizível e somente experimentável; ou então exprimível apenas parcialmente.

Livros, portanto, vividos como experimentos com a verdade. Experimentos com a verdade ligados a experimentos de linguagem (válido sobretudo no caso do Zaratustra) e uma espécie de teatralização da relação com o inconsciente (sobretudo no Livro vermelho), uma "representação sacra" dos símbolos que, para a teoria junguiana, o inconsciente produz. Recorrem ao simbolismo para exprimir verdades que não são científicas, mas que não pretendem tampouco ser religiosas, pelo menos não no sentido tradicional, conduzindo-nos, ao invés disso, a uma renovada experiência do sacro.

Verdade, cuja expressão implica o reconhecimento do fato de que, no plano ontológico e no mundo psíquico, o princípio da contradição é sistematicamente violado; ou melhor, tal violação constitui a base dessas duas dimensões. Verdade que requer a adoção de uma postura crítica em relação às instituições, às formas de saber e às figuras que são tradicionalmente destinadas e legitimadas a ocuparem-se do problema da verdade.

As obras/experimentos de Nietzsche e de Jung colocam em questão a própria legitimidade da razão, a sua pretendida autonomia da esfera do irracional; em relação ao inteiro, sempre excedente, corpóreo e espiritual, ao qual pertence e do qual recebe impulso, mas que a transcende e a coloca em xeque. Uma razão cuja matriz irracional é traída, paradoxalmente, pela sua própria "incessante aspiração"11 10 Grifo meu. [rastlosen Bestrebung]"12 11 KANT, I. Critica della ragion pura, Prefácio à segunda edição. Milão: Bompiani, 2004, p. 33 de encontrar "a estrada segura da ciência [sicherer Weg der Wissenschaft]"13 12 Ibid. . A modalidade, o sentido, a direção de tais experimentos correm o risco de ser mal compreendidos. Consciente disso, Jung escreve no Livro vermelho: "não há dúvida de que, se você entra no mundo da alma, você é semelhante a um louco, e que um médico o consideraria doente. Aquilo que estou dizendo pode parecer patológico. E ninguém mais do que eu mesmo pode considerá-lo insano" (RB, 238-239). Daqui, talvez, as fortes dúvidas sobre a inoportunidade de publicar o Livro vermelho: o temor de ser ridicularizado, do risco da perda de credibilidade científica. Coerentemente com os pressupostos da auto-experimentação à qual me referi acima - experimentos de alto risco, bem representados pela figura e pela imagem do equilibrista no Prefácio do Zaratustra. A verdade se manifesta em condições experimentais que são condições extremas. Elas têm a ver intrinsecamente com os limites. Por isso, quando a verdade está em jogo, a vida igualmente está em jogo: arrisca-se a própria vida.

Uma aproximação que, à primeira vista, pode parecer não pertinente com o Tractatus logico-philosophicus pode, todavia, mostrar-se útil para esclarecer em que sentido o Zaratustra e o Livro vermelho estão implicados com a verdade. Não poderia existir obra mais distinta do Livro vermelho (e do Zaratustra) do que o Tractatus de Wittgenstein. Todavia, a conectar essas obras há uma significativa concomitância: ambas estão implicadas, cada uma da própria forma, com a I Guerra Mundial, ou seja, com a mesma extrema experiência coletiva da eclosão das dinâmicas destrutivas da irracionalidade : o Livro vermelho nasce do pressentimento da guerra (Cf. RB 230-231, 255), enquanto o Tractatus é pensado e escrito no fronte, onde, aliás, o Zaratustra também estava presente na equipagem de muitos soldados alemães14 13 Cf. ASCHHEIM, S. E. The Nietzsche Legacy in Germany 1890-1990. Berkeley: University of California Press, 1992., p. 135. . A partir desse terreno comum entre as respectivas experiências - como diria Nietzsche, a experiências vividas e compartilhadas correspondem o desenvolvimento de uma linguagem e de um horizonte problemático consonantes (Cf. JGB/BM 268, KSA 5.221) - as três obras estão implicadas com a verdade de forma radical, porque na experiência da qual elas têm origem, arrisca-se a própria vida. Por isso, trata-se de obras que não miram a nada além do essencial.

A guerra é o paradigma emblemático do embate decisivo, face a face com o outro, com o inimigo, com o outro que é fora de nós, mas, sobretudo, com o outro que é em nós, do qual o primeiro é apenas, segundo Jung, objetivação e projeção (Cf. RB 254, 255). Na guerra não há mais nem espaço nem tempo para o disfarce e para o teatro das aparências, para as vacuidades acadêmicas e doutrinais (a racionalidade como máscara; a normalidade que não deixa aflorar a essência).

Como um material, um metal ou uma estrutura arquitetônica que, somente depois das solicitações mais fortes, revelam as suas propriedades fundamentais intrínsecas, silentes em condições normais; assim, a vida revela o seu sentido, a sua verdade somente depois de experiências extremas, experiências do limite: a irrupção, na vida, de eventos casuais e traumáticos, a guerra, a doença, o luto, a perda e o risco da perda da razão ou, de qualquer modo, como no caso do Zaratustra, a experiência de uma tensão cognitiva que deriva de uma espasmódica tensão psíquica15 14 Em 17 de abril de 1883, Nietzsche escreve a Overbeck sobre o sofrimento ligado à escrita do Zaratustra e conclui: "nesse livro, você compreende, há tanto do meu sangue" (KSB 6.361); e à Meta von Salis, em 1 de janeiro de 1887, recorda o período da elaboração da primeira parte da obra, concebida "em um estado de tal sofrimento físico e espiritual cuja recordação me faz estar mal" (KSB 8.5); de novo, a Overbeck no mês de dezembro de 1885: "Se penso em quais condições me encontrei e na qual consegui escrever o meu Zaratustra, considero ter pretendido o máximo de mim mesmo: - não há sequer um dia dos últimos três anos que eu voltaria a viver uma segunda vez, a tensão e os contrastes eram excessivos!" (KSB 7.116). . O Zaratustra e o Livro vermelho configuram-se como os testemunhos de tais experiências e, eles mesmos, experiências extremas. No conjunto, as três obras - quase três declinações de uma comum matriz faustiana - parecem eclodir a partir do reconhecimento dos seus autores - homens de ciência, cada um no próprio campo - de uma espécie de insuficiência, de incomensurabilidade constitutiva da própria ciência em relação à vida. Todos os três parecem compartilhar a experiência de ter chegado àquele ponto da pesquisa em que se adverte "que, ainda uma vez que todas as possíveis perguntas científicas tenham sido respondidas, os nossos problemas vitais não foram ainda sequer tocados"16 15 WITTGENSTEIN, L. Tractatus Logico-philosophicus e Quaderni 1914-1916. Turim: Einaudi, 1964, § 6.52. . Observando, depois, o Zaratustra e o Livro vermelho a partir de uma perspectiva wittgensteiniana, as duas obras transparecem como ataques repetidos contra os limites da linguagem, tentativas de dizer aquilo que se deve calar17 16 Cf. WITTGENSTEIN, L. Tractatus, op. cit., § 7. . Ataques para superar os limites da linguagem realizados por meio do recurso ao símbolo, utilizado em alternativa à forma lógica tradicional para exprimir a verdade.

A verdade é algo que deve ser descoberto, que não é evidente por si mesma. Ainda assim, ao mesmo tempo, a verdade está ali; sempre disponível, desde sempre dada. De tal modo que a verdade parece estar escondida pela sua própria evidência: a vida é essa verdade evidente e, ainda assim, escondida, velada a si por si mesma. Trata-se, então, de desenvolver uma visão que nos permita vê-la e que apenas as condições extremas fazem aflorar. Condições extremas e símbolo. "O verdadeiro significado" escreve Jung "é profundo demais para que se possa compreender de outra forma que não através do símbolo" (RB 290). É o símbolo, então, a tornar visível a verdade. E o símbolo torna visível a cada um a sua própria verdade18 17 "O símbolo é a palavra que sai da boca e que não é dita, mas pousa inesperada sobre a língua como palavra forte e urgente que sobe do profundo do Self. É uma palavra que aparece estupefaciente e talvez injustificável, mas que se reconhece como símbolo enquanto é alheia à mente consciente. Se o símbolo é acolhido, é como se se escancarasse uma porta que conduz a um novo quarto do qual, antes, não se suspeitava sequer a existência. Se, ao contrário, o símbolo não é acolhido, é como se se passasse na frente daquela porta sem prestar atenção [...] A redenção é uma longa estrada que passa por muitas portas. Essas portas são os símbolos. Cada nova porta é, em um primeiro momento, invisível, ou melhor, é como se antes tivesse / que ser construída [...] se se deseja criar o símbolo, deve-se, primeiro, reunir o bem e o mal" (RB 311). .

Todavia, a vida permanece a última medida da verdade e verdade em si mesma, em relação à qual a linguagem é marginal e inconfiável: "Dado que entre nós existiram tantas pessoas capazes de dizer qualquer coisa, presta atenção àquilo que elas vivem. Aquilo que alguém diz pode ser muitíssimo ou pouquíssimo. Investiga, por isso, a sua vida" (RB 301).

A verdade, ainda, está implicada com uma completude que vai além do bem e do mal, no sentido que abrange o bem e o mal concomitantemente e comporta uma contradição; bem e mal pensados um em função do outro, não, portanto, no sentido da contraposição, mas no sentido da integração, da congenericidade e do coopertencimento; elementos assinalados por um movimento contínuo que oscila entre os dois; ambivalência que não implica o bloqueio e a paralisia, mas é concebida como relação dinâmica entre polaridades. Um dinamismo que Jung indica com o termo enantiodromia.

No Livro vermelho

Loucura consciente e escavação no sentido contrário

No Livro vermelho o Eu de Jung se confronta com múltiplas personificações, uma fantasmagoria de figuras animadas do inconsciente; nas formas que o inconsciente assume a cada vez - entidades psíquicas que se apresentam como dotadas de uma vida autônoma -, evocadas por meio de uma espécie do equivalente psicológico da teurgia, uma técnica definida por Jung como "imaginação ativa"19 18 Cf. JUNG, C. G. A função transcendente. In: JUNG, C. G. Opere, v. 8, La dinamica dell'inconscio. Turim: Bollati Boringhieri, 2008, p. 83-106. Cf. também S. Shamdasani, Introdução, op. cit., RB 198-202. . Tal técnica se baseia na produção de imagens e escrita que Jung utiliza com os seus pacientes e sobre si mesmo para "ativar" os símbolos gerados pelo inconsciente, para seguir as pistas presentes nos sonhos e nas fantasias da vigília e ver, literalmente, aonde conduzem. Desse modo, os conteúdos do inconsciente tornam-se visíveis; afloram na forma de figuras humanas, divindades, animais, situações e atmosferas que começam a viver por conta própria e com as quais é possível interagir. Jung atribui grande importância à descoberta da função ativa do inconsciente, de uma parte da psique em quanto universo dotado de vida própria, autônoma. Uma descoberta não livre de perigos, a partir do momento em que Jung compreende de imediato o tipo de experiência que está vivendo e, antes de ser capaz de adestrá-la e convertê-la em experimento, teme ser vítima de uma psicose20 19 Jung observa: "Vocês não podem se tornar conscientes desses fatos inconscientes sem se abandonar a eles. Se vocês conseguirem superar o medo do inconsciente e se abandonarem a ele, então esses fatos assumem uma vida própria. Vocês podem ser tomados por essas ideias até enlouquecer realmente ou de se aproximar à loucura. Essas imagens possuem uma realidade tal que se impõe e um tão extraordinário significado que faz com que uma pessoa seja capturada por elas". (RB 253, n. 217). Também Nietzsche é consciente do perigo ínsito nas experiências interiores que estão à base do Zaratustra; experiências enraizadas no tempo e de natureza incontrolável e inconsciente: "E ainda o inteiro Zaratustra é uma explosão de forças que se acumularam no decorrer de décadas: explosões desse gênero podem facilmente explodir quem as provoca" (carta a F. Overbeck, em 6 de fevereiro de 1884, KSB 6.474). . A própria técnica da imaginação ativa não é livre de riscos. Jung trabalha nesse caso na fronteira entre "normalidade" e "loucura"; seria possível dizer, então, que o Livro vermelho é a prova de uma espécie de psicose vigilada ou sob controle21 20 Para compreender a diferença entre o estado de "loucura consciente", tornado possível com a técnica junguiana, e a deriva psicótica se poderia pensar analogicamente na diferença que intercorre entre o manifestar-se da energia na fissão em cadeia controlada que ocorre em uma central nuclear e o manifestar-se da mesma energia na explosão de uma bomba atômica. .

A exploração junguiana do inconsciente no Livro vermelho remete explicitamente, na abertura do volume caligráfico, ao topos consolidado da descida ao inferno e tem início a partir da distinção fundamental, que cumpre a função de fio condutor do texto inteiro, entre o espírito da época presente [Geist dieser Zeit] e o espírito do profundo [Geist der Tiefe]22 21 Trata-se de uma contraposição em certa medida familiar e reconduzível ao binômio nietzschiano atual/inatual. :

Aprendi que, além do espírito do tempo presente, é operante também um outro espírito, ou seja, aquele que governa as profundezas de todo presente. O espírito do tempo presente gostaria de escutar coisas úteis e que têm valor [von Nutzen und Wert]. Eu também pensava dessa forma e a minha parte humana [mein Menschliches] continua de qualquer forma sempre pensando assim. Mas aquele outro espírito me obriga, em todo caso, a falar além de qualquer justificação, utilidade ou sentido. Repleto de orgulho humano e cegado pelo espírito presunçoso do tempo presente, tentei, por longo período, manter distante de mim esse outro espírito. Mas não considerava que o espírito do profundo, há tempos imemoráveis e para todo o sempre, possui um poder maior [die hörere Macht] do que o espírito do tempo presente, que se transforma com as gerações. O espírito do profundo submeteu todo orgulho e toda arrogância ao poder do juízo [Urteilskraft]. Retirou-me minha fé na ciência [den Glauben an die Wissenschaft], privou-me do prazer de explicar as coisas e de classificá-las e fez apagar-se em mim a dedicação aos ideais do tempo presente. Obrigou-me a me calar sobre as coisas derradeiras e mais simples. O espírito da profundidade retirou-me a razão [Verstand] e todos os meus conhecimentos a fim de colocá-las ao serviço do inexplicável e do paradoxal. Privou-me da linguagem e da escritura em tudo aquilo que não estava ao serviço desta única coisa, ou seja, da íntima fusão de sentido [Sinn] e de sentido contrário [Widersinn] que produz o sentido superior [Übersinn] (RB 229-230).

A referência ao profundo remete, de um lado, à escavação psíquica na dimensão interior, escavação que é acompanhada por uma renúncia e por um abandono da racionalidade do Eu. Do outro, tal escavação configura-se como um movimento em sentido contrário na memória inconsciente; remete à dimensão temporal e se configura como uma escavação no passado. Situações pessoais que são caracterizadas pelo encontro com símbolos que parecem surgir de forma extemporânea e casual e que ativam figuras e situações arquetípicas.

A escavação no passado traz à luz coisas que o Eu não gostaria de ver, o substrato bestial pré-humano, desumano da consciência. "Ir ao inferno significa transformar em inferno nós mesmos", escreve Jung (RB 24123 22 Cf. n.108, no qual Shamdasani faz perceber a assonância com o parágrafo 146 de Para além de bem e mal (JGB/BM 246, KSA 5.169). ):

Viver para si mesmo significa ser uma tarefa para si mesmo. Você não pode jamais dizer que viver para si mesmo seja um prazer. Não será uma alegria, mas um longo sofrimento, porque você deve se transformar em criador de si mesmo24 23 Ser criadores de si próprios significa que não somos jamais estáveis de uma vez por todas, de modo definitivo, mas que somos plásticos e dinâmicos, continuamente em via de definição. . Se você quer se criar, não começará, com certeza, pelos lados melhores e mais elevados, mas por aqueles piores e ínfimos. Por isso, diga sem medo que te enoja viver para si mesmo. O confluir das correntes da vida não é alegria, mas dor, porque é violência contra violência, é culpa, e destrói aquilo que é considerado sacro (RB 250).

Deriva, daqui, uma forte resistência do Eu em olhar para dentro e para trás:

Nada é comparável ao tormento de percorrer o próprio caminho. Parece uma coisa de extraordinária dificuldade, tão difícil que não há nada que não se preferiria à semelhante tortura. [...] Por isso, agarro-me a qualquer coisa que impeça o percurso na direção de mim mesmo (RB 310).

A resistência chega a tal ponto que nos faz perceber a nós mesmos como desconhecidos, com alguém diferente de nós. E a descida na direção do espírito do profundo é marcada pelo encontro com o absolutamente diferente que habita o Eu: "É algo atroz, como uma noite insone, intuir da parte de cá a da parte de lá, ou seja, o Outro, o oposto presente em mim [das Andere und entgegengesetzte in mir]" (RB 264).

O caminho percorrido pelo Eu protagonista do Livro vermelho é orientado na direção "daquilo que há de vir" - como diz o título do primeiro capítulo do volume manuscrito - mas procede na direção de um nível abaixo que é um caminhar ao contrário, revelando que o passado é um receptáculo no qual se prepara o futuro, a matéria da qual o futuro é feito e em que o futuro toma corpo:

Todas as coisas futuras estavam prefiguradas em imagens [...]. Medite constantemente sobre as imagens que os antigos nos deixaram. Elas indicam o caminho daquilo que há de vir. Observe, no passado, a caída dos impérios, o crescimento e a morte, os desertos e os conventos; essas são as imagens do que virá (RB 236).

O eu pertence, ao contrário, ao espírito do presente, incapaz de avaliações e privado de discernimento: "Mas o que é belo e o que é feio? O que é inteligente e o que é ignorante. O espírito do tempo presente é o seu padrão de medida [dein Maß]. O espírito do profundo é superior a ele em todos os aspectos. Apenas o espírito do tempo presente conhece a diferença entre grande e pequeno que, todavia, é vã, como o espírito que a reconhece" (RB 233).

O espírito do presente vive na ilusão de ser uma entidade autônoma e independente. Dessa convicção e crença de autonomia, dessa ausência de consciência das suas raízes na profundidade, tem origem a sua inquietação, o seu desassossego e a sua doença. E, da sua doença, o estado de sofrimento que desempenha também uma função motriz essencial e terapêutica que empurra o Eu à escavação. Se a racionalidade do Eu se fechasse na resistência, se se opusesse obtusamente ao seu sintoma doloroso sem colocar-se a escutá-lo, se recusasse com arrogância racionalista as imagens fantásticas do inconsciente estigmatizando-as como absurdas e ridicularizando-as com desdém, o processo de busca se bloquearia, condenando o Eu a viver no mundo unidimensional do presente, privado da sua profundidade de perspectiva e amassado como em uma pintura egípcia. Mas, sobretudo, o elemento obscuro, o outro comprimido em nós cresceria, se expandiria sem limites, buscando por expressão e transformando-se, assim, em uma ameaça destruidora para o Eu.

O passado é um receptáculo formigante habitado pelos mortos25 24 Referindo-se à minuta do Liber Novus em RB 387, Shamdasani considera que Jung faz uma alusão a Nietzsche desse modo: "Nos precedeu um profeta cuja proximidade com Deus o tinha tornado louco. Cegado pela sua predicação enfurecia-se contra o Cristianismo; era, ao contrário, o advogado dos mortos, que o elegeram como seu porta-voz e ribombante trombone. Ele gritava com voz fortíssima, de tal modo que muitos o escutaram, e a potência da sua linguagem inflamou também aqueles que eram relutantes" (RB 296, n. 184). , que sofrem por tudo aquilo que deixaram incompleto. Os mortos gostariam que os vivos tomassem sobre si o peso da continuação da sua obra. Os mortos representam o removido; aquilo que no Eu é pantanoso, bloqueado e que deve ser colocado de novo em movimento; algo com o qual devemos ter cuidado (Cf. p.e. RB 296-297). O paradigma daquilo que é irresoluto e do qual devemos nos liberar, mas através da ação no presente; uma ação que deve ser consciente e não impulsiva e automática. Reatividade e automatismo tornam a ação impossível, a não ser nas formas da reação ou da coação, formas sintomáticas, doentias e com ressentimento pelo passado. Percorrer o caminho do espírito do profundo e na direção do profundo deveria tornar possível a recuperação do que é irresoluto e incompleto em nós, daquilo que em nós está morto e tende à vida. Deveria consentir a aquisição de uma consciência da profundidade e da radicação do Eu em uma temporalidade que transcende o presente e o momentâneo.

A via principal de acesso ao espírito do profundo é o caminho dos sonhos, da qual a racionalidade científica tem uma compreensão parcial:

Desejaríamos aprender essa linguagem [ou seja, a linguagem dos sonhos, LL], mas quem é capaz de aprendê-lo e de ensiná-lo? A erudição [Gelehrsamkeit] sozinha não é suficiente: existe um saber do coração26 25 Cf. JGB 295. Aqui com a expressão "Gênio do coração" [Genie des Herzens] Nietzsche alude a Dioniso, "aquele que sabe descer no além de todas as almas [Unterwelt jeder Seele]" (JGB/BM 295, KSA 5.237). [Wissen des Herzens] que não se encontra nos livros e tampouco na boca dos professores, mas cresce em você, como o grão verde da terra preta. A erudição faz parte do espírito do tempo presente, mas esse espírito não compreende de forma alguma o sonho, porque a alma se encontra em toda parte em que não se encontra o saber erudito (RB 233).

O acesso ao "saber do coração" que permite compreender a dimensão inconsciente é possível apenas se própria vida é vivida plenamente; e

você vive plenamente a própria vida, se vive também aquilo que ainda não viveu, mas que apenas delegou para que outros o vivam e o pensem. Você dirá: "Não posso viver e pensar tudo aquilo que os outros vivem e pensam". Deve dizer, ao invés disso: "Deveria viver a vida que eu poderia ainda viver e deveria pensar todos os pensamentos que posso ainda pensar"27 26 "eu ainda vivo, e ainda penso: eu devo viver ainda porque devo ainda pensar. Sum, ergo cogito: cogito, ergo sum" (FW/GC 276, KSA 3.521). . Dir-se-ia que você quer fugir de você mesmo. Aquilo que você não viveu permanece com você a todo instante e exige satisfação. Se você se torna cego e surdo frente a essa exigência, você será cego e surdo consigo mesmo. De tal modo, não alcançará jamais o saber do coração (RB 324).

Aquilo que está em jogo no "percorrer a estrada" é a aquisição de uma consciência da temporalidade capaz de levar o Eu a "ver corretamente" a si mesmo e ao mundo, e a si mesmo como parte do mundo. Uma consciência da temporalidade, portanto, que implica o reconhecimento da ligação entre a esfera psíquica, a temporalidade e a possibilidade de declinar em sentido temporal as entidades psíquicas: o Eu como presente e o Self como passado e futuro radicados no passado. Na condição psíquica pré-racional, que no Livro vermelho é indicada como "pré-pensamento", é possível ao Eu reconhecer a nulidade da própria "existência momentânea, como um minúsculo ponto entre a infinidade do passado e aquela do que está por vir" e ver "a multiplicidade dos inumeráveis mundos e o seu ciclo que não tem nunca fim" (RB 254).

A verdade é pensável, portanto, como uma certa maneira, consciente, poderíamos dizer, de experienciar a temporalidade. Mas aqui está em jogo uma certeza que não é, sem dúvida, simplesmente cognitiva, mas existencial em sentido próprio: trata-se de reapropriar-se das etapas que tornaram possível a qualquer indivíduo tornar-se aquilo que é. O que está em jogo, então, é a reapropriação desse transformar-se que não se limite a uma mera recapitulação e ao mero contar a si mesmo como as coisas aconteceram, mas implica, ao invés disso, um reviver o percurso realizado tendo em vista uma reconfiguração da própria forma de vida no presente, e do próprio presente como forma crucial da temporalidade em sentido literal, enquanto ponto de encontro e condensação entre passado e futuro, recipiente em que o passado pode ser replasmado tendo como finalidade o futuro. O "fim" do percurso permite ao Eu abandonar o preconceito que vê o presente sem conexão com o passado e o futuro e de reconhecê-lo, ao contrário, como resultante dinâmica do passado do qual o futuro depende. Por fim, aqui, deve-se compreender o fim de uma experiência inconsciente da temporalidade que inaugura um novo início, uma nova vida. Deriva, disso, uma visão circular da temporalidade que se repropõe, ainda que com oscilações, retificações e objeções, em diversas passagens do Livro vermelho (Cf. p.e. RB 358).

O discurso junguiano utiliza a imagem do alternar-se entre o dia e a noite para representar a ambivalência circular enatiodrômica da temporalidade e da verdade, para concluir como o estatuto enatiodrômico da realidade reflita, simultaneamente, a verdade lógica, ontológica e temporal. A enantiodromia tem no instante o seu centro de gravidade oscilante:

[...] A suprema verdade se transforma na máxima mentira, o dia mais claro na noite mais escura. Como o dia pressupõe a noite, a noite o dia, assim o sentido pressupõe o seu sentido contrário [Widersinn] e o sentido contrário, o sentido.

O dia não existe por si mesmo e tampouco a noite existe por si. A realidade [Das Wirkliche], que existe por si mesma, é ao mesmo tempo dia e noite. Portanto, a realidade é ao mesmo tempo sentido e sentido contrário. O meio-dia é um instante. E, assim, a meia-noite também é um instante, a manhã vem da madrugada e a noite dirige-se à madrugada, mas a noite também vem do dia, assim como a manhã dirige-se à tarde. Portanto o sentido é um instante e uma passagem [Übergang] de sentido contrário [Widersinn] a um sentido contrário e o sentido contrário é apenas um instante e uma passagem de sentido a sentido (RB 242-243).

Voltaremos a essas imagens na conclusão, depois de ter examinado os obstáculos que se interpõem entre o Eu e o si mesmo no seu caminho através do espírito do profundo.

Obstáculos no caminho

Os doutos

"Eu saí da casa dos doutos" declara Zaratustra, "e, ainda por cima, bati a porta atrás de mim". "Por um período demasiado" continua

a minha alma sentou-se faminta à mesa deles; eu não estou adestrado ao conhecimento como eles, por conseguinte, conhecer é como quebrar nozes. Eu amo a liberdade e o ar sobre a terra fresca: prefiro dormir sobre couros de bois a dormir sobre as suas dignidades e respeitabilidades. Eu sou ardente demais e queimo pelos meus próprios pensamentos: com frequência se entrecorta a minha respiração. E então devo fugir ao ar livre, fora do ambiente fechado das salas empoeiradas. Eles, ao contrário, sentam-se frios à sombra fria: em tudo, não querem nada mais do que ser expectadores, e vigilam com cuidado para não sentar-se onde o sol arde os degraus. Semelhantes àqueles que, no meio da rua, olham de queixo caído os passantes, eles também esperam e olham de queixo caído os pensamentos, que outros pensaram. [...] Não perdem jamais de vista os dedos uns dos outros e não confiam em ninguém. Engenhosos nas pequenas astúcias, esperam aqueles cuja ciência manca - esperam como as aranhas (Za/ZA, Dos doutos, KSA 4.160).

No rastro de Zaratustra, também para Jung o fechamento de um racionalismo dogmático é o primeiro obstáculo que deve ser superado para que possa iniciar o diálogo com a alma, objetivação psíquica e personificação do trâmite, do elemento de mediação que torna possível ao Eu o contato com o espírito do profundo. O abandono da postura do douto configura-se, então, como pressuposto da investigação, e a tomada de uma nova orientação cognitiva abre o caminho ao "reencontro da alma" e a uma radical mudança de perspectiva:

Eu acreditava que a minha alma pudesse ser objeto do meu juízo e do meu saber; o meu juízo e o meu saber são, ao contrário, eles mesmos o objeto da minha alma [...]. Tive que entender que aquilo que eu antes considerava a minha alma era apenas uma inerte construção doutrinal. Tive, então, de falar à alma como se ela fosse algo distante e desconhecido, que não existia graças a mim, mas sim graças à qual eu mesmo existia (RB 232).

A escavação interior leva Jung a reconhecer a si mesmo em uma das imagens inconscientes como "velho sepultado nos livros e na árida ciência, homem justo e pesado, que arranca grãos de areia do deserto infinito" enquanto a sua alma "sofria com isso profundamente" (Cf. RB 264, n. 30). Alma que, em outro lugar, lembra ao Eu quão incomensuráveis são a sua avidez de conhecimento e de saber, a sua mania "de recolher, de assemblar, englobar, utilizar, influenciar, dominar, classificar, atribuir significados e interpretações" (RB 306), com a pretensão de abraçar o Todo. A vida do douto transparece, então, como um afligir-se sob o estandarte da futilidade, do espírito imitativo e da procura do reconhecimento:

Você acredita que talvez o homem que dedica a própria vida à pesquisa conduza uma existência espiritual e que viva a sua alma / em maior proporção de um outro. Mas inclusive uma vida desse gênero é exterior, exatamente como é exterior a vida de uma pessoa que vive as coisas exteriores. Um semelhante estudioso [Gelehrter] não vive, portanto, as coisas exteriores, mas sim os pensamentos exteriores e, por isso, não vive a si mesmo [sich selber], mas sim o seu objeto [sein Gegenstand]. [...] Desperdiçou-se em todos aqueles livros e em todos os pensamentos formulados por outras pessoas. Por isso, a sua alma está necessitada, deve humilhar-se e ir à sala de todos os desconhecidos para mendigar o reconhecimento que ele lhe nega.Por isso, você vê aqueles velhos estudiosos [alten Gelehrten] correrem para obter reconhecimentos [Anerkennung], cobrindo-se de ridículo e de forma indigna. Ofendem-se se o próprio nome não é citado, ficam tristes se outrem diz melhor do que eles a mesma coisa, implacáveis contra quem muda até mesmo uma só vírgula das suas opiniões. Vá a um congresso de doutos [Gelehrten] e você verá esses miseráveis velhos com os seus grandes méritos e as suas almas famintas, que almejam reconhecimentos [Anerkennung] e não conseguem jamais placar a própria sede. A alma precisa da sua ingenuidade [Torheit], não do seu saber (RB 264).

Modelo e imitação

O primeiro obstáculo no caminho em direção a uma experiência da verdade é, como vimos, uma prática míope do saber, em que o saber, nutrido de modo hipertrofiado e distendido todo ao externo, mostra-se - de forma humana, demasiada humana - como sintoma; e a busca, subordinada à necessidade de reconhecimento, torna-se para o douto um pretexto para desviar de si o foco cognitivo. A questão da relação educativa e, em particular, da relação entre mestre e discípulo é um tema decisivo do Zaratustra. É no interior de tal relação que se constitui e se joga a partida da verdade; aqui, constitui-se um nó central no ensinamento zaratustriano que é também o fio condutor do Livro vermelho: o modelo imitativo. A imitação servil do modelo: eis, intrinsecamente ligado ao primeiro, o segundo obstáculo, que deve ser superado no caminho em direção à verdade; caminho [Weg] que, retomando um topos consolidado e recorrente, torna-se imagem paradigmática e símbolo principal da própria verdade28 27 Sobre a imagem filosófica do "caminho", cf. p.e. CONSTÂNCIO, J. Imagens e Concepções da Vida Humana em Platão: Investigações sobre bios e psychē. Diss., Universidade Nova de Lisboa, 2005, p. 519-553. .

Através de muitas espécies e de diversas maneiras alcancei a minha verdade; não foi uma única escada [Leiter]29 28 Em Ecce Homo, Nietzsche volta à imagem da escada (Cf. EH/EH, Assim falou Zaratustra 6, KSA 6.242). Também em Wittgenstein, que a utilizou e a tornou célebre no Tractatus, tal imagem é ligada à adoção de uma posição que permite uma reorientação de perspectiva do olhar (cf. Wittgenstein, Tractatus, cit., § 6.54). Sobre a leitura wittgensteiniana de Nietzsche cf. BRUSOTTI, M. "Il mio scopo è una 'trasvalutazione di tutti i valori'. Wittgenstein e Nietzsche". In: FORNARI, M.C. Fornari (Org.). Nietzsche. Edizioni e interpretazioni. Pisa: ETS, 2006, p. 97-122. , aquela sobre a qual eu subi para alcançar o cume, onde o meu olho se difunde nas minhas longínquas distâncias. E apenas de má vontade eu sempre perguntei pelos caminhos, - o que sempre foi contra o meu desejo! Preferia interrogar e procurar sozinho os caminhos. O meu caminhar sempre foi, em tudo e para tudo uma tentativa e uma interrogação - na verdade, também é preciso aprender a responder a esse interrogar! Mas esse é - o meu desejo: - não um desejo bom ou um desejo ruim, mas sim o meu desejo, do qual não me envergonho mais e que não escondo. "Esse, em suma, é o meu caminho, - onde está o de vocês?" assim eu respondo àqueles que querem saber de mim "o caminho". Esse caminho, de fato, não existe! (Za/ZA, Do espírito da gravidade 2, KSA 4.241)30 29 Para uma interpretação esclarecedora desse texto, veja PIAZZESI, C. La verità como trasformazione di sé. Terapie filosofiche in Pascal, Kierkegaard e Wittgenstein. Pisa: ETS, 2009, p. 11-22. .

O caminho de Zaratustra é evocado pelo Eu junguiano no início do Livro vermelho:

[Amigos meus]31 30 Cf. RB 231, n. 24. Acreditem-me. Aquilo que lhes dou não é nem uma doutrina nem um ensinamento. E de cima de qual púlpito eu poderia doutriná-los. Informo-os do caminho iniciado por esse homem, do seu caminho, mas não do seu. O meu caminho não é o seu caminho, então / eu não posso ensinar-lhes nada. A vida está em nós, mas não nos deuses, nem em doutrinas, nem em leis. Em nós está o caminho, a verdade e a vida. Atenção a quem vive seguindo modelos! Neles não está a vida. Se vocês vivem seguindo um modelo, então vivem a vida do modelo, mas quem deveria viver a nossa vida? Portanto vivam vocês mesmos. [...] Vocês procuram o caminho através da aparência, leem livros e escutam opiniões: a que isso tudo pode beneficiar? Existe apenas um caminho e é o seu caminho. [Existe apenas uma lei e é a sua lei. Existe apenas uma verdade e é a sua verdade]32 31 Cf. RB 231, n. 28. . Vocês procuram o caminho? Coloco-os em estado de atenção para que não adentrem o meu caminho. Para vocês pode ser o caminho errado. Cada um percorre o próprio caminho. Não quero ser o seu salvador, nem dar-lhes leis, nem educá-los. Vocês não são mais crianças. Impor leis, melhorar ou tornar fáceis as coisas tornou-se um erro e um mal. Cada um procure o próprio caminho (RB 213).

Abandonar o espírito do tempo presente para encaminhar-se no caminho do espírito do profundo - cada um tem o próprio33 32 Cf. PIAZZESI, C. La verità, op. cit. - conduz necessariamente a confrontar-se com o "mistério de Cristo":

O espírito do tempo presente nos conduziu à pressa. Se você serve ao espírito do tempo presente não terá mais nem futuro nem passado. A nós é necessária a vida da eternidade. No profundo, carregamos o futuro e o passado. O futuro é velho e o passado é jovem. Você serve ao espírito do tempo presente e acredita poder se subtrair ao espírito do profundo. Mas o profundo não espera mais e o obrigará a aderir ao mistério de Cristo. Faz parte desse mistério que o homem não seja salvo pelo herói, mas transforme-se em Cristo ele próprio. Isso nos ensina, de modo simbólico, o exemplo que no passado nos deram os santos (RB 255).

Cristo - Crucificado que, como veremos, acabará se sobrepondo e coincidindo emblematicamente com Dioniso - é a figura que se torna, paradoxalmente, exemplo de quem percorreu o próprio caminho; modelo de uma vida que não seguiu modelos; e é apenas isso que de Cristo deve ser "imitado" e o que Cristo ensina: é o modelo que nos diz que não existem modelos que devem ser seguidos, lá onde a questão em jogo é a compreensão do sentido da própria vida e da construção de si. "Se quero compreender verdadeiramente Cristo" diz a si mesmo o Eu de Jung,

devo entender que Cristo viveu realmente apenas a sua própria vida e não imitou ninguém. Não copiou nenhum modelo. Se, desse modo, tenho a intenção de imitar, de verdade, Cristo, então não imitarei nem copiarei ninguém, mas irei pelo meu caminho sem me definir nem mesmo cristão (RB 293).

É impossível pensar em poder "alcançar a si mesmo", poupando-nos o percurso do nosso próprio caminho. Mas sabemos que o caminho em direção a si mesmo é um caminho que procede ao contrário e para baixo; condição do "viver plenamente a própria vida" é saldar os débitos com o passado, cuja configuração é, para cada um, única; e não se trata de uma experiência indolor. Cristo socorre e ajuda ensinando que não há socorro e ajuda quando a questão em jogo é a própria vida e a compreensão do seu sentido. Dar forma à própria vida seguindo um modelo seria como pretender que um outro experimentasse a sensação que experimentamos sendo quem somos. Jung escreve:

Você mesmo deve ser não cristão, mas Cristo, de outra forma, você não está pronto para o deus que virá. Há, talvez, um entre vocês que acredita poupar-se desse caminho [Weg]? Quem acredita poder enganar a si mesmo deixando de lado o tormento de Cristo? Eu digo: "Essa pessoa se engana para seu próprio prejuízo. Acomodamo-nos sobre um leito de lanças de fogo. A ninguém será poupado o caminho de Cristo, porque é aquele que conduz àquilo que há de vir. Vocês devem, todos, transformar-se em Cristo" (RB 235).

O Eu junguiano entrevê a possibilidade de que o tempo dos modelos e da imitação esteja destinado a acabar para dar espaço ao tempo da revelação de uma nova dimensão do sacro.

O lado animalesco do homem mantém-se por períodos longuíssimos, mas chegará o tempo em que o homem perderá uma outra parte de animalidade. Será um tempo de redenção, de descida da pomba, do fogo e da salvação eternos. Então não existirão mais heróis nem mais ninguém que possa imitá-los. A partir dessa época, qualquer imitação será maldita. O novo Deus ri da imitação e do proselitismo. Ele não precisa daqueles que repetem orações como papagaios, nem de um cortejo de discípulos. Ele obriga o homem a passar através de si mesmo. / O Deus é seguidor de si mesmo no homem. Ele imita a si mesmo (RB 245).

O final da imitação é concomitante à revelação de uma divindade que, para usar as palavras do inconsciente junguiano, coloca-se "um passo atrás das costas do cristianismo, e um passo além dele" (RB 296). Jung tem em mente uma divindade com características dionisíacas e enatiodrômicas que, em diversas partes do material manuscrito, indica respectivamente com os nomes de Fanes e Abraxas. Fanes descreve si mesmo em termos panteísticos que lembram tanto a epifania de Krishna no XI canto da Bhagavad Ghita quanto a celebre descrição da vontade de potência nos fragmentos póstumos nietzschianos (Cf.Nachlass/FP, 1885, 38 [12], KSA 11.610): "Suprema ação e não existência, mundo e grão de areia, eternidade e instante, [...] prazer indizivelmente atormentado, incognoscível, irreconhecível, ponta do alfinete entre a vida e a morte, um rio de mundos" que dá "o vaso da perfeição" em que escorrem água, vinho, leite e sangue. "Eternamente negado", Fanes "perdura pela eternidade. Retornando em todas as formas, eternamente idêntico [in allen Formen wiederkehrend, ewig dasselbe] [...] negando a si mesmo e sonhando em um novo esplendor através da negação de si" (RB 301, n. 211). E ainda, em uma sugestiva descrição de si mesmo, o Deus identifica a perfeição com a contradição enantiodrômica:

Eu sou a luz perene, mas perfeito é aquele que está entre o dia e a noite. Eu sou o amor que dura eternamente, mas perfeito é aquele que pousou a faca sacrifical ao lado do próprio amor. Eu sou a beleza, mas perfeito é aquele que se senta contra o muro do templo e remenda os sapatos por dinheiro. [...] Aquele que é perfeito conhece luz e escuridão, mas eu sou a luz além do dia e da escuridão. Aquele que é perfeito conhece o Acima e o Abaixo, mas eu sou a altura além do alto e do baixo. Aquele que é perfeito conhece aquilo que cria e a criação, mas eu sou a imagem que procria, além da criação e da criatura. Aquele que é perfeito conhece o amar e o ser amado, mas eu sou o amor além do abraço e do luto. Aquele que é perfeito conhece o masculino e o feminino, mas eu sou o ser humano, seu pai e seu filho, além do masculino e do feminino, além da criança e do velho. Aquele que é perfeito conhece o surgir e o desaparecer, mas eu sou o centro além da aurora e do crepúsculo. Aquele que é perfeito me conhece e é por isso que é diferente de mim (RB 301, n. 211).

Igualmente, Abraxas "diz a palavra venerável e maldita que é ao mesmo tempo vida e morte"; gera "verdade e mentira, bem e mal, luz e escuridão na mesma palavra e no mesmo ato" e por esse motivo é "terrível"; é "o polvo dos mil braços"; é o senhor dos sapos e das rãs que vivem na água e sobem na terra, que cantam em coro ao meio-dia e à meia-noite; é "o amor e o seu assassinato"; "a mais resplandecente luz do dia e a mais escura noite da loucura"; "a criatura mais potente e nele a criação se assusta de si mesma" etc. (RB 350).

Dando "um passo atrás às costas do cristianismo" através da imaginação ativa, a exploração junguiana "dá um passo além dele [o cristianismo]", atingindo um reconhecimento da verdade em termos de contradição e de ambivalência e a uma sua representação e transfiguração na imagem de um divino com traços agnóstico-dionisíacos. Enfrentando isso por meio dos símbolos, a análise permite reconquistar conscientemente "o lado obscuro", o negativo removido, precedentemente demonizado pelo cristianismo e transformado em culpa, em tentação, e assim nutrido de forma hipertrófica.

O percurso nietzschiano registra uma análoga composição do dualismo. Aqui a superação do cristianismo vê a oposição de Dioniso ao Crucifixo, mas também a sobreposição de Dioniso ao Crucifixo: o Anticristo, de um lado, mas também, de outro, a representação da realização do "transformar-se naquilo que se é", em termos de "Ecce homo"; título que alude à essência dolorosa da experiência e do experimento com nós mesmos, à radicação na tradição religiosa à qual também Nietzsche se opõe, mas que, ao mesmo tempo, inclui em si; uma tradição incontornável.

A afirmação de ateísmo é assinalada pela morte do Deus cristão, mas a morte de Deus não coincide com a dissolução do sagrado que é, ao contrário, reconquistado com o dionisíaco, em termos de veneração da imanência e da sua pluralidade, da contradição e da transformação que são inerentes à própria imanência.

Nietzsche e Zaratustra no Livro vermelho

Na biblioteca

A sabedoria narrativa da imaginação junguiana escolhe a biblioteca e o manicômio como cenários em que colocar as referências mais explícitas e diretas ao Zaratustra e a Nietzsche que toma corpo e se manifesta como verdadeira e real fantasia psíquica. Em ambos os textos, aflora a questão da verdade, quase como se Zaratustra e o seu autor representassem o fulcro em torno do qual tal questão se condensa e gira.

Na fantasia da biblioteca34 33 O episódio é inserido no capítulo do segundo livro do volume caligráfico com o título A loucura divina [die göttliche Narrheit]. o Eu de Jung se entretém com o bibliotecário ao qual pede emprestado a Imitatio Christi. Daqui, nasce uma conversação que tem como objeto a crise do cristianismo; como pano de fundo, Nietzsche, o seu livro e o problema da verdade.

Eu: "O senhor sabe que eu tenho uma enorme consideração pela ciência, mas na vida acontecem, de verdade, alguns momentos em que até mesmo a ciência nos deixa vazios e doentes. Em tais momentos, um livro como aquele de Tomás de Kempis significa muitíssimo para mim, porque é escrito com a alma [aus der Seele]35 34 A propósito da publicação da primeira parte do Zaratustra e sobre o projeto por inteiro, em 9 de novembro de 1883, Nietzsche escreve a Overbeck: "trata-se de uma síntese gigantesca [ungeheure], a qual considero nunca tenha sido concebida pela mente ou pela alma de ninguém" (KSB 6.454). Respondendo a Carl Spitteler, que considerava o Zaratustra apenas "uma espécie de exercício superior de estilo", Nietzsche definia a própria obra, ao contrário, como "o evento mais profundo e mais decisivo - da alma, se o senhor permite! - em meio a dois milênios, o segundo e o terceiro -" (carta a C. Spitteler, em 10 de fevereiro de 1888, KSB 8.247). Assim como Nietzsche, Spitteler representa um autor crucial para Jung na economia da sua obra Tipos psicológicos. ". Bibliotecário36 35 Para facilitar a leitura eu preferi introduzir a indicação dos interlocutores, indicação ausente no texto, conformando-me ao hábito de Jung em outras partes do RB (cf. p.e. infra o dialogo entre Eu e Alma). : "Mas é tão antiquado. Nos dias de hoje, não podemos mais nos deixar envolver pelo dogmatismo cristão". Eu: "Com o cristianismo não chegamos ao término simplesmente deixando-o de lado. Parece-me que, dele, ainda nos reste mais do que podemos enxergar". B: "Mas o que deve restar dele? É apenas uma religião". Eu: "Por quais motivos e em que idade nós o colocamos de lado? Para a maioria, provavelmente, no período dos estudos universitários ou, talvez, até mesmo antes. O senhor definiria um momento especialmente propício a julgar? E já examinou mais de perto por quais motivos as pessoas colocam de lado a religião positiva? Os motivos são, na maior parte, fúteis, por exemplo, porque o conteúdo da fé se embate com as ciências naturais e com a filosofia". B: "[...] Além disso, agora já tomamos, abundantemente, providências para encontrar substitutos à perda de ocasiões devocionais [Gelegenheit zu Andacht], causada pela decadência da religião. Nietzsche, por exemplo, escreveu mais de um único autêntico livro de devoção [Andachtsbuch]37 36 Em uma carta a Köselitz de 2 de setembro de 1884, Nietzsche fala sobre o Zaratustra como do "meu 'livro de edificação e exortação' [Erbauungs - und Ermuthigungsbuch]" (KSB 6.524). ; para não citar, também, o Faust". Eu: "Isso é verdade, em um certo sentido. Mas justamente a verdade de Nietzsche, a meu ver, é inquieta e provocatória demais [ist mir zu unruhig und aufreizend], adequada àqueles que ainda devem ser liberados. Mas, por isso, a sua verdade é adequada somente a eles. Creio ter descoberto, há pouco tempo, que precisamos de uma verdade também para quem precisa acabar em uma rua sem saída [die in die Enge zu gehen haben]. Para esses, é talvez mais indispensável uma verdade deprimente [eine depressive Wahrheit] que torne o homem mais modesto e o enriqueça espiritualmente". B: "Mas, permita-me, Nietzsche é extraordinário em enriquecer espiritualmente o homem". Eu: "Talvez o senhor tenha razão do seu ponto de vista, eu, porém, não posso subtrair-me à impressão de que Nietzsche, falando de si mesmo fale também àqueles que precisariam ter maior liberdade e não àqueles que se chocaram duramente com a vida e sangram por feridas causadas pelo contato com as coisas reais. [...] Como eu disse, parece-me que no cristianismo existam, talvez, muitas coisas que devam ser conservadas. Nietzsche se opõe excessivamente a ele. Infelizmente, como tudo o que é são e durável [Gesunde und Dauerhafte], a verdade mantém-se mais no caminho do meio, que nós, erroneamente, detestamos" (RB 292).

No diálogo encontra expressão a tensão entre a confiança na racionalidade da ciência e a procura de um saber diferente que parece distanciar-se de e estar em contraste com tal racionalidade. O componente cético e desencantado, de um lado e, de outro, aquele numinoso, aberto ao espírito do profundo, ao reconhecimento do lado de sombra do outro, são personificadas, respectivamente, no bibliotecário e no Eu de Jung. Esse último parece propenso à procura daquele "saber do coração" que se contrapõe, em aparência, ao ceticismo de Nietzsche.

O mecanismo dialógico permite entrever como Jung pareça concordar inicialmente em todos os pontos indicados pelo bibliotecário em favor de Nietzsche, exceto, depois, quando deixa transparecer, pelas adversativas e pelas discordâncias que se seguem às afirmações, um dissídio de fundo. Parece que nessa fantasia Jung tenha desejado teatralizar a ambivalência e a oscilação do seu posicionamento em relação a Nietzsche. O contraste entre o Crucifixo e Dioniso toma corpo no contraste entre Tomás de Kempis e Nietzsche. Parece que Jung vê em Nietzsche uma incapacidade de apreender realmente o mundo real. Nietzsche parece incapaz de "falar àqueles que se chocaram duramente com a vida e sangram por feridas causadas pelo contato com as coisas reais". É como se Jung percebesse uma espécie de artifício no fundo do pensamento nietzschiano, o risco de um intelectualismo longínquo da vida, uma desproporção que deriva de uma degeneração, de uma exasperação, de um paroxismo do espírito do douto: talvez prevaleça aqui o juízo do clínico frente à construção filosófica, de quem deve se confrontar concretamente, todos os dias, com a dor do outro, diante da qual a construção teórica do filósofo isolado ressoa como vazio falatório narcisista de um ego inflado. O contraste e a tensão entre filosofia e psicologia, entre teoria e clínica fazem ouvir a própria voz: o exercício desanimado da abstração teórica que resta aí até mesmo quando evoca a vida, contra a necessidade, completamente sensível e corpórea, da cura. Daí, se não uma própria proliferação, ao menos a duplicação da verdade e, de qualquer forma, o atestado de um rompimento na sua inatacabilidade monolítica; um seu apresentar-se sob uma pluralidade de formas possíveis, cada uma diferente para cada vida. A oscilação junguiana freia provisoriamente, no fim do diálogo, remetendo a uma noção de verdade assimilada, reconduzida ao âmbito do "tudo aquilo que é são e durável", uma verdade implicada na dimensão da cura de si e com o tempo; e, portanto, ainda uma vez, com a vida, em conclusão; com o exercício de uma medida aplicada às coisas da vida. Medida que não pode realizar-se, verdadeiramente, e não pode ser tal sem um reconhecimento, mas, sobretudo, sem uma experiência dos extremos, ou seja, do limite; sem a vertigem da contradição. Não é uma medida autêntica aquela que não conhece o desmedido. É essa medida que leva em conta a ambivalência, é esse exercício da racionalidade que sabe estar intimamente conectada com a esfera do irracional, que "nós, erroneamente, detestamos". Mas, nessa seara, Jung retorna, talvez inadvertidamente, ao mesmo caminho de Nietzsche e o distanciamento parece arrefecer.

No manicômio

A fantasia do manicômio é a segunda cena de fundo nietzschiano. Trata-se de uma fantasmagoria com uma pluralidade de vozes, com as quais o Eu de Jung dialoga38 37 Trata-se da parte do volume caligráfico intitulada Nox tertia. . Na abertura, o Eu de Jung é empenhado em um confronto com a própria alma que lhe pergunta:

Alma: "[...] Você notou que as suas bases [Untergründe] têm raízes completamente na loucura [Wahnsinn]? Você não gostaria de reconhecer a sua loucura e dar-lhe amigáveis boas-vindas? Você não queria aceitar todas as coisas? Aceita, então, inclusive a loucura. Deixa resplandecer a luz da sua loucura e, na sua frente, irá se abrir uma grande luz. A loucura não deve ser desprezada, nem temida, mas você deve dar-lhe vida [ihm das Leben geben]". Eu: "Duras são as suas palavras e difícil é a tarefa que você me dá". A: "Se você quiser encontrar caminhos, não desdenhe da loucura, já que ela constitui uma parte tão grande da sua natureza". Eu: "Eu não sabia que fosse assim". A: "Fique feliz de poder reconhecê-lo, assim você evita de se tornar sua vítima. A loucura [Wahnsinn] é uma forma particular do espírito [eine besondere Form des Geistes] e adere a todas as doutrinas e filosofias, mas ainda mais à vida de todos os dias, já que a própria vida é cheia de loucura [Tollheit] e é substancialmente irracional [unvernunftig]. O homem aspira à razão [Vernunft] apenas para poder criar sozinho regras para si mesmo. A vida em si não tem regras. Esse é o seu segredo. Essa é a sua lei desconhecida. Aquilo que você chama de conhecimento [Erkenntniss] é a tentativa [Versuch] de impor à vida alguma coisa que resulte compreensível". Eu: "Tudo isso me soa muito desconfortante, mas acorda o meu espírito de contradição". A: "Você não tem nada a contradizer: você está no manicômio" (RB 297-298).

O medo que se segue à perda da razão é acompanhado pela fantasia de uma viagem em uma nave39 38 O conteúdo da fantasia possui, talvez, algumas ligações com a lembrança da viagem americana de Jung com Freud em 1909, como sugeriria a leitura das cartas de Jung à esposa Emma, publicadas na Apêndice do volume de A. Jaffé, Ricordi, op. cit., p. 421 e ss. e produz uma sensação de vertigem e interrogativos cruciais: "Em mim tudo ondula e precipita completamente em confusão. A questão torna-se séria, o caos avança. Eu toquei de verdade o fundo dos fundos [ist dies der unterste Grund]? O caos é também um alicerce [ist das Chaos auch eine Grundlegung]?". A vertigem se mistura à consciência da própria condição; o Eu de Jung se dirige a uma voz dizendo: "Sim, é verdade, sinto náuseas, mas de um modo particular, já que eu estou de fato no manicômio" (RB 298). A cena se desloca no lugar de contenção onde acontece o encontro com um louco [Narr] que diz ser Nietzsche fixando os olhos no rosto do Eu narrador: "Percebo que ele é o meu vizinho, o qual evidentemente se recuperou da apatia e agora está sentado sobre a minha cama. Continua falando com vigor e com insistência: 'Eu sou Nietzsche, mas rebatizado, e sou também Cristo, o Salvador encarregado de redimir o mundo, mas eles não me permitem fazê-lo'" (RB 298).

Em uma espécie de condensação onírica, aqui parecem entrelaçar-se duas referências; uma ao filósofo e outra a uma figura do seu Zaratustra: a primeira no momento da erupção da doença (como está documentado nos bilhetes da loucura em que Nietzsche aproxima o próprio nome ao nome de Cristo40 39 Cf. as breves cartas de Nietzsche a vários destinatários em 4 de janeiro 1889 (KSB 8.573-77). ) e a segunda no Narr do Canto da melancolia. Depois do breve diálogo, em que revelou as suas identidades, o Narr "deita-se novamente e recai na sua apatia" (RB 298).

A aparição de Nietzsche introduz a retomada da fantasia marinha e uma ulterior alusão à quarta e à última parte do Zaratustra41 40 Da correspondência emerge como Nietzsche havia pensado inicialmente a quarta parte do Zaratustra como um texto não destinado à publicação: vejam-se as cartas a C. von Gersdorff, de 12 de fevereiro de1885; a C. Fuchs de 29 de julho de 1888(KSB 8.374); a H. Köselitz de 14 de fevereiro de 1885 (KSB 7.1) e a Franziska e E. Nietzsche de 16 de abril de 1885 (KSB 7.40). Como escrito não destinado ao público, essa parte do livro nietzschiano parece funcionalmente afim ao Livro vermelho. : os raios de um sol que surge

fazem-se mais luminosos e mais quentes e o sol fulgurante inflama-se sobre o mar azul. O movimento ondular se placou. Sobre o mar cintilante estende-se uma benéfica quietude de manhã veraneia. Levanta-se um odor salobro de água marinha (RB 298).

Na luminosidade do meio-dia irrompe a imagem da temporalidade à qual se segue o estado emotivo de inquietação que caracteriza a pontualidade concentrada e decisiva dos momentos culminantes da noite e do dia42 41 Pensemos na imagem do pseudo-demônio meridiano dos Salmos do Antigo Testamento (cfr. Salmo 91, 6) e na mesma visão do eterno retorno em FW 341. , abertos como portas sobre o tempo:

Uma ampla e cansada onda de ressaca quebra sobre a areia com surdo fragor e continua a retornar [immer erneut kehrt sie wieder], doze vezes as batidas do relógio do mundo... acabou a décima-segunda hora e, a esse ponto, toma o seu lugar o silêncio. Nenhum rumor, nem mesmo um sopro, tudo é rígido e mortalmente silencioso. Eu espero tomado por uma secreta angústia [Ich harre heimlich beklommen] (RB 298).

A fantasia diurna junguiana é uma retomada especular e o avesso do "O canto do notívago" [Das Nachtwandler Lied] no Zaratustra, construído a partir dos doze versos, muito conhecidos43 42 Assinalo a leitura original de Carlo Serra desse texto, em relação ao seu uso musical realizado por Gustav Mahler: SERRA, Carlo. "Mahler lettore di Nietzsche". In: "Bollettino Filosofico" XXV, a cura di P. Colonnello e R. Bufalo. Roma: Aracne editrice, 2010 p. 222-255. , que fecham, como batidas de relógio44 43 Para um reconhecimento e interpretação esclarecedores do tema dos sinos nos textos de Nietzsche, assinalo P. D'ILORIO, P. Le campane di Genova e le epifanie nietzscheane in Goethe, Schopenhauer, Nietzsche. Saggi in memoria di Sandro Barbera, a cura di G. Campioni, L. Pica Ciamarra, M. Segala. Pisa: ETS, 2011. , "A segunda canção de dança" (Cf. Za/ZA, KSA 4.282) ao fim da terceira parte da obra nietzschiana. Zaratustra dirige-se aos homens superiores para os quais quer dizer alguma coisa ao pé do ouvido,

como faz comigo aquele velho sino, - tão intimamente, assustadoramente, afavelmente [so heimlich, so schrecklich, so herzlich] como aquele sino à meia-noite fala comigo, que viveu mais coisas do que um só homem: - que já contou todas as batidas de dor no coração seus pais - ah, ah, como suspira! como ri no sono! a velha profunda meia-noite!". Zaratustra se interroga: "'Onde está o tempo? Eu não cai em um poço profundo? O mundo dorme - (Za/ZA, O canto do notívago 3, KSA 4.395).

Zaratustra sente-se transportar e sente que a sua alma dança; assim incita os homens superiores a liberar os mortos e os sepulcros, a acordar os cadáveres: interpela diretamente os objetos como se estivessem vivos e exclama: "Você, velho sino! Você, doce lira! Todas as dores te dilaceraram o coração, a dor do pai, e aquela dos pais e aquela dos avós [...] (Za/ZA, O canto do notívago 6, KSA 4.39)".

No canto noturno de Zaratustra, canto que "sempre retorna" [Rundgesang] afloram, assim, os temas que giram em torno das formas fundamentais da verdade e dos caminhos que tornam possível adentrar-se nela e reconhecê-la: a relação com o tempo; a necessidade de escavar no passado; de saldar os débitos com os mortos. E, enfim, a confirmação do momento em que se revela a verdade suprema da enantiodromia da existência: "Agora mesmo; o meu mundo se tornou perfeito, meia-noite é também meio-dia, - a dor é também um prazer, a maldição é também uma benção, a madrugada é também um sol, - vão embora ou serão as suas vezes de aprender: um sábio é também um louco" (Za/ZA, O canto do notívago 10, KSA 4.39).

A consciência da radicação do presente no passado e do fato que o passado é a condição de possibilidade do presente, a sua essência, implica uma aceitação do inteiro passado. Se nós quisemos e desejamos também um único instante da nossa existência, isso comporta, então, um querer em direção contrária a inteira cadeia dos eventos que faz de nós aquilo que somos (Cf. Za/ZA, O canto do notívago 10 e 11, KSA 4.39).

Igualmente, o trabalho analítico de ativação do passado inconsciente, de despertamento dos mortos e daquilo que está morto em nós, tudo orienta-se, na sua totalidade, à aceitação e à compreensão da nossa condição presente, como quer que ela seja. Um trabalho interminável. O Eu junguiano conclui, de fato: "Cheguei, no meu Self45 44 Em uma variante encontra-se no lugar do Self: "a mim mesmo" (Cf. RB 330 nota 352). , a uma dúvida e a um miserável personagem" esclarece, quase ratificando a provisoriedade de toda conquista na pesquisa, e expressa a necessidade de um ulterior trabalho de escavação: "É necessária uma obra em que se possam e se devam, se preciso, investir dezenas de anos. Devo recuperar uma parte de Idade Média em mim mesmo". "Meu caro Eu" continua Jung, "você é um bárbaro. Quero viver com você, por isso lhe arrastarei por todo o inferno medieval, até que você não seja capaz de tornar suportável a convivência contigo". "Você deverá ser vaso e ventre da vida, por isso lhe purificarei. Pedra de comparação é o estarmos sozinhos com nós mesmos. Esse é o caminho" (RB 330).

Não tem valor, permanece abstrata, uma racionalidade que não se meça com a irracionalidade em que é radicada; que não reconquiste a si mesma através da resposta à chamada do espírito do profundo. Mostra-se incapaz de criar; pode apenas imitar cansativamente e proceder lado a lado da vida sem jamais encontrá-la.

A fantasia do meio-dia marinho transforma-se, de novo, no alojamento do manicômio em que o Eu junguiano dialoga com um não melhor especificado "ele". Nesse diálogo, o problema da verdade reaparece; verdade e vida confluem no caminho: o repertório lexical e metafórico alude ainda uma vez à figura de Cristo46 45 Cf. João 14, 6. como verdade encarnada e imanente, como vida que cria a si mesma:

Diz Eu: "Não encontrei o caminho". Ele: "agora não preciso procurar nenhum caminho". "Ele diz a verdade. O caminho, ou o que quer que seja aquilo sobre o que alguém caminha, é o caminho, o caminho justo. Não existem estradas planas para o futuro. Digamos: que esse seja o caminho, e esse o é. Criamos as estradas enquanto as percorremos. A nossa vida é a verdade que nós buscamos. Apenas a minha vida é a verdade, a verdade absoluta. Nós criamos a verdade vivendo-a (RB 298).

Referências bibliográficas

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  • *
    Tradução de Larissa Morgato. A citação do título foi retirada da edição alemã de JUNG, C. G. Das Rote Buch: Liber novus. Düsseldorf: Patmos Verlag GmbH & CO. KG, 2010, p. 301. A primeira edição impressa do texto foi publicada em inglês: The red Book: Liber Novus. Ed. By S. Shamdasani. New York/London: W. W. Norton & Company, 2009. Aqui será usada como referência a edição italiana: Il libro rosso: liber novus. S. Shamdasani (Org.). Torino: Bollati Boringhieri, 2010, daqui para frente indicada nas notas com a abreviação RB seguida pelo número da página. Agradeço os amigos e colegas do Seminário permanente nietzschiano (SPN) com os quais tive oportunidade, em diversas ocasiões, de discutir sobre o problema da verdade, no Zaratustra, ao qual são dedicadas duas edições do seminário, em especial, Pietro Gori e Paolo Stellino. Obrigado a Vincenzo Continanza e obrigado à doutora Diana Gran Dall'Olio pela leitura atenta do texto, pelas observações sempre pertinentes e pelas propostas de correção e a Regina Greber por sua sensibilidade na leitura atenta do texto. "O Liber novus", explica o curador, "é um corpus textual incompleto, atestado por um conjunto de testemunhos (manuscritos e cópias datilografadas), nenhum dos quais traz uma redação que possa ser considerada definitiva" e precisa que "não é completamente claro como Jung quisesse completar a obra ou de que forma a teria publicado, caso tivesse decidido fazê-lo". (S. Shamdasani, Nota editorial, In: RB 222). O curador reconstrói a complexa trama textual (Livros negros, Minutas, transcrições etc.) que gira em torno do núcleo central do corpus, ou seja, o volume caligráfico deixado incompleto, ao qual Jung referia-se indicando-o seja como Livro vermelho, seja como Liber novus (cf. RB 193). Se quiséssemos precisar a definição filológica do RB fornecida por Shamdasani, deveríamos acrescentar que este, volume caligráfico à parte, é uma escolha particular e argumentada de textos inéditos, realizada pelos curadores; inéditos que giram em torno ao volume caligráfico. À diferença do curador de RB, prefiro utilizar aqui o título editorial, Livro vermelho, para indicar, em conjunto, seja o volume caligráfico, seja os escritos satélites que se lhe referem. À luz do fato que Shamdasani considera que Liber novus parece "corresponder ao título efetivo" do volume caligráfico (RB 193), é singular a escolha editorial de trazer tal locução como subtítulo em caracteres menores no frontispício das edições inglesa e italiana (completamente ausente na edição alemã, na qual ela aparece apenas nas páginas internas).
  • 1
    Ano de publicação da primeira edição inglesa. Para uma história da gênese da edição de RB, da constituição do texto e para os complexos fatos editoriais ligados à publicação, cf. U. Hoerni, Prefácio ao RB pp. VIII-IX, mas, sobretudo, S. Shamdasani, Introdução ao RB em RB X-XI e RB 193-223; em particular RB 202-203; 212-215; 220-223. A existência do RB era, há tempo, conhecida pelo público em geral graças ao volume de JAFFÉ, A. Ricordi, sogni e riflessioni di C. G. Jung. Milão: Rizzoli, 1978; ali, é o próprio Jung a falar do RB (pp. 231-232).
  • 2
    Limito-me a alguns títulos: NILL, P. "Die Versuchung der Psyche: Selbstwerdung als schöpferisches Prinzip bei Nietzsche und C. G. Jung". In: Nietzsche Studien 17 (1988), pp. 250-279; MÀDERA, R. "Jung e Nietzsche". In: Trattato di psicologia analítica. A. c. di A. Carotenuto. Torino: Utet 1992, vol. I, p. 67-93; BISHOP, P. The Dionysian self: C. G. Jung's Reception of Friedrich Nietzsche. Berlin/New York, de Gruyter 1995; DIXON, P. Nietzsche and Jung: Sailing a Deeper Night. New York/Wien, P. Lang 1999; HUSKINSON, L. Nietzsche and Jung: the Whole Self in the Union of Opposites. New York, Brunner: Routledge, 2004; mas sobretudo ver a tradução recente de LIEBSCHER, M. Libido und Wille zur Macht, C.G. Jungs Auseinandersetzung mit Nietzsche. Basel: Schwabe, 2012.
  • 3
    JARRETT, J. L. (ed.). Nietzsches Zarathustra's. Notes of the Seminar Given in 1934-39 by C.G. Jung, 2 vol l. Londres: Routledge, 1989. O primeiro volume do seminário, na tradução italiana, foi publicado há pouco tempo com organização de CROCE, A. C. G. Jung, Lo Zarathustra di Nietzsche. Seminario tenuto nel 1934-39. Turim: Bollati Boringhieri, 2011.
  • 4
    Shamdasani registra as referências implícitas nas notas. Aqui, vou evidenciar algumas não mencionadas pelo curador. Sobre a relação entre ZA e RB, cf. S. Shamdasani, Introdução, op. cit., RB 202-203.
  • 5
    O próprio Jung fala explicitamente de uma "tendência estetizante" expressa no RB; tendência da qual se afasta (Cf. A. Jaffé. Ricordi, op.cit., p. 231).
  • 6
    Vejam-se, por exemplo, para Nietzsche: M. Ferraris e P. Kobau, o discutido Posfácio à famigerada compilação pseudo-nietzschiana publicada como: FERRARIS, M. e KOBAU, P. Posfácio In: NIETZSCHE, F. La volontà di potenza. Milão: Bompiani, 2000, p. 563-688; LOSURDO, D. Nietzsche, il ribelle aristocrático. Biografia intellettuale e bilancio critico. Turim: Bollati Boringhieri, 2002. No lado junguiano: NOLL, Richard. Jung, il profeta ariano. Origini di un movimento carismático. Milão: Mondadori, 1999.
  • 7
    "Agora, além disso, com o Zaratustra, acabei até mesmo entre os "literatos" e os "escritores", assim parecerá rescindido também a ligação que me unia à ciência". Assim escreve Nietzsche a Köselitz, em 2.4.1883. A propósito da interrupção da elaboração do RB, Jung sublinha como tal interrupção fosse ligada à exigência de "retornar à realidade humana, coisa que para mim significava à compreensão científica" (JAFFÉ, a. Ricordi, op. cit., pp. 231-232).
  • 8
    Trata-se de um ditado familiar tanto à Nietzsche quanto a Jung, ambos atentos leitores do texto de Schopenhauer, em que este aparece, que tem como título Speculazione transcendente sull'apparente disegno intenzionale nel destino dell'individuo In: Parerga e Paralipomena, Milano, Adelphi, 1981, tomo II, p. 280. Cf. também Nietzsche, Nachlass/FP 16 [44], KSA 13.501 e nota relativa. O ditado é retirado de Vidas dos filósofos de Diógenes Laércio (7, 4), outro autor que Nietzsche, como filólogo, tinha conhecido a fundo.
  • 9
    WITTGENSTEIN, L. Ricerche Filosofiche. Turim: Einaudi, 1983, § 217.
  • 10
    Grifo meu.
  • 11
    KANT, I. Critica della ragion pura, Prefácio à segunda edição. Milão: Bompiani, 2004, p. 33
  • 12
    Ibid.
  • 13
    Cf. ASCHHEIM, S. E. The Nietzsche Legacy in Germany 1890-1990. Berkeley: University of California Press, 1992., p. 135.
  • 14
    Em 17 de abril de 1883, Nietzsche escreve a Overbeck sobre o sofrimento ligado à escrita do Zaratustra e conclui: "nesse livro, você compreende, há tanto do meu sangue" (KSB 6.361); e à Meta von Salis, em 1 de janeiro de 1887, recorda o período da elaboração da primeira parte da obra, concebida "em um estado de tal sofrimento físico e espiritual cuja recordação me faz estar mal" (KSB 8.5); de novo, a Overbeck no mês de dezembro de 1885: "Se penso em quais condições me encontrei e na qual consegui escrever o meu Zaratustra, considero ter pretendido o máximo de mim mesmo: - não há sequer um dia dos últimos três anos que eu voltaria a viver uma segunda vez, a tensão e os contrastes eram excessivos!" (KSB 7.116).
  • 15
    WITTGENSTEIN, L. Tractatus Logico-philosophicus e Quaderni 1914-1916. Turim: Einaudi, 1964, § 6.52.
  • 16
    Cf. WITTGENSTEIN, L. Tractatus, op. cit., § 7.
  • 17
    "O símbolo é a palavra que sai da boca e que não é dita, mas pousa inesperada sobre a língua como palavra forte e urgente que sobe do profundo do Self. É uma palavra que aparece estupefaciente e talvez injustificável, mas que se reconhece como símbolo enquanto é alheia à mente consciente. Se o símbolo é acolhido, é como se se escancarasse uma porta que conduz a um novo quarto do qual, antes, não se suspeitava sequer a existência. Se, ao contrário, o símbolo não é acolhido, é como se se passasse na frente daquela porta sem prestar atenção [...] A redenção é uma longa estrada que passa por muitas portas. Essas portas são os símbolos. Cada nova porta é, em um primeiro momento, invisível, ou melhor, é como se antes tivesse / que ser construída [...] se se deseja criar o símbolo, deve-se, primeiro, reunir o bem e o mal" (RB 311).
  • 18
    Cf. JUNG, C. G. A função transcendente. In: JUNG, C. G. Opere, v. 8, La dinamica dell'inconscio. Turim: Bollati Boringhieri, 2008, p. 83-106. Cf. também S. Shamdasani, Introdução, op. cit., RB 198-202.
  • 19
    Jung observa: "Vocês não podem se tornar conscientes desses fatos inconscientes sem se abandonar a eles. Se vocês conseguirem superar o medo do inconsciente e se abandonarem a ele, então esses fatos assumem uma vida própria. Vocês podem ser tomados por essas ideias até enlouquecer realmente ou de se aproximar à loucura. Essas imagens possuem uma realidade tal que se impõe e um tão extraordinário significado que faz com que uma pessoa seja capturada por elas". (RB 253, n. 217). Também Nietzsche é consciente do perigo ínsito nas experiências interiores que estão à base do Zaratustra; experiências enraizadas no tempo e de natureza incontrolável e inconsciente: "E ainda o inteiro Zaratustra é uma explosão de forças que se acumularam no decorrer de décadas: explosões desse gênero podem facilmente explodir quem as provoca" (carta a F. Overbeck, em 6 de fevereiro de 1884, KSB 6.474).
  • 20
    Para compreender a diferença entre o estado de "loucura consciente", tornado possível com a técnica junguiana, e a deriva psicótica se poderia pensar analogicamente na diferença que intercorre entre o manifestar-se da energia na fissão em cadeia controlada que ocorre em uma central nuclear e o manifestar-se da mesma energia na explosão de uma bomba atômica.
  • 21
    Trata-se de uma contraposição em certa medida familiar e reconduzível ao binômio nietzschiano atual/inatual.
  • 22
    Cf. n.108, no qual Shamdasani faz perceber a assonância com o parágrafo 146 de Para além de bem e mal (JGB/BM 246, KSA 5.169).
  • 23
    Ser criadores de si próprios significa que não somos jamais estáveis de uma vez por todas, de modo definitivo, mas que somos plásticos e dinâmicos, continuamente em via de definição.
  • 24
    Referindo-se à minuta do Liber Novus em RB 387, Shamdasani considera que Jung faz uma alusão a Nietzsche desse modo: "Nos precedeu um profeta cuja proximidade com Deus o tinha tornado louco. Cegado pela sua predicação enfurecia-se contra o Cristianismo; era, ao contrário, o advogado dos mortos, que o elegeram como seu porta-voz e ribombante trombone. Ele gritava com voz fortíssima, de tal modo que muitos o escutaram, e a potência da sua linguagem inflamou também aqueles que eram relutantes" (RB 296, n. 184).
  • 25
    Cf. JGB 295. Aqui com a expressão "Gênio do coração" [Genie des Herzens] Nietzsche alude a Dioniso, "aquele que sabe descer no além de todas as almas [Unterwelt jeder Seele]" (JGB/BM 295, KSA 5.237).
  • 26
    "eu ainda vivo, e ainda penso: eu devo viver ainda porque devo ainda pensar. Sum, ergo cogito: cogito, ergo sum" (FW/GC 276, KSA 3.521).
  • 27
    Sobre a imagem filosófica do "caminho", cf. p.e. CONSTÂNCIO, J. Imagens e Concepções da Vida Humana em Platão: Investigações sobre bios e psychē. Diss., Universidade Nova de Lisboa, 2005, p. 519-553.
  • 28
    Em Ecce Homo, Nietzsche volta à imagem da escada (Cf. EH/EH, Assim falou Zaratustra 6, KSA 6.242). Também em Wittgenstein, que a utilizou e a tornou célebre no Tractatus, tal imagem é ligada à adoção de uma posição que permite uma reorientação de perspectiva do olhar (cf. Wittgenstein, Tractatus, cit., § 6.54). Sobre a leitura wittgensteiniana de Nietzsche cf. BRUSOTTI, M. "Il mio scopo è una 'trasvalutazione di tutti i valori'. Wittgenstein e Nietzsche". In: FORNARI, M.C. Fornari (Org.). Nietzsche. Edizioni e interpretazioni. Pisa: ETS, 2006, p. 97-122.
  • 29
    Para uma interpretação esclarecedora desse texto, veja PIAZZESI, C. La verità como trasformazione di sé. Terapie filosofiche in Pascal, Kierkegaard e Wittgenstein. Pisa: ETS, 2009, p. 11-22.
  • 30
    Cf. RB 231, n. 24.
  • 31
    Cf. RB 231, n. 28.
  • 32
    Cf. PIAZZESI, C. La verità, op. cit.
  • 33
    O episódio é inserido no capítulo do segundo livro do volume caligráfico com o título A loucura divina [die göttliche Narrheit].
  • 34
    A propósito da publicação da primeira parte do Zaratustra e sobre o projeto por inteiro, em 9 de novembro de 1883, Nietzsche escreve a Overbeck: "trata-se de uma síntese gigantesca [ungeheure], a qual considero nunca tenha sido concebida pela mente ou pela alma de ninguém" (KSB 6.454). Respondendo a Carl Spitteler, que considerava o Zaratustra apenas "uma espécie de exercício superior de estilo", Nietzsche definia a própria obra, ao contrário, como "o evento mais profundo e mais decisivo - da alma, se o senhor permite! - em meio a dois milênios, o segundo e o terceiro -" (carta a C. Spitteler, em 10 de fevereiro de 1888, KSB 8.247). Assim como Nietzsche, Spitteler representa um autor crucial para Jung na economia da sua obra Tipos psicológicos.
  • 35
    Para facilitar a leitura eu preferi introduzir a indicação dos interlocutores, indicação ausente no texto, conformando-me ao hábito de Jung em outras partes do RB (cf. p.e. infra o dialogo entre Eu e Alma).
  • 36
    Em uma carta a Köselitz de 2 de setembro de 1884, Nietzsche fala sobre o Zaratustra como do "meu 'livro de edificação e exortação' [Erbauungs - und Ermuthigungsbuch]" (KSB 6.524).
  • 37
    Trata-se da parte do volume caligráfico intitulada Nox tertia.
  • 38
    O conteúdo da fantasia possui, talvez, algumas ligações com a lembrança da viagem americana de Jung com Freud em 1909, como sugeriria a leitura das cartas de Jung à esposa Emma, publicadas na Apêndice do volume de A. Jaffé, Ricordi, op. cit., p. 421 e ss.
  • 39
    Cf. as breves cartas de Nietzsche a vários destinatários em 4 de janeiro 1889 (KSB 8.573-77).
  • 40
    Da correspondência emerge como Nietzsche havia pensado inicialmente a quarta parte do Zaratustra como um texto não destinado à publicação: vejam-se as cartas a C. von Gersdorff, de 12 de fevereiro de1885; a C. Fuchs de 29 de julho de 1888(KSB 8.374); a H. Köselitz de 14 de fevereiro de 1885 (KSB 7.1) e a Franziska e E. Nietzsche de 16 de abril de 1885 (KSB 7.40). Como escrito não destinado ao público, essa parte do livro nietzschiano parece funcionalmente afim ao Livro vermelho.
  • 41
    Pensemos na imagem do pseudo-demônio meridiano dos Salmos do Antigo Testamento (cfr. Salmo 91, 6) e na mesma visão do eterno retorno em FW 341.
  • 42
    Assinalo a leitura original de Carlo Serra desse texto, em relação ao seu uso musical realizado por Gustav Mahler: SERRA, Carlo. "Mahler lettore di Nietzsche". In: "Bollettino Filosofico" XXV, a cura di P. Colonnello e R. Bufalo. Roma: Aracne editrice, 2010 p. 222-255.
  • 43
    Para um reconhecimento e interpretação esclarecedores do tema dos sinos nos textos de Nietzsche, assinalo P. D'ILORIO, P. Le campane di Genova e le epifanie nietzscheane in Goethe, Schopenhauer, Nietzsche. Saggi in memoria di Sandro Barbera, a cura di G. Campioni, L. Pica Ciamarra, M. Segala. Pisa: ETS, 2011.
  • 44
    Em uma variante encontra-se no lugar do Self: "a mim mesmo" (Cf. RB 330 nota 352).
  • 45
    Cf. João 14, 6.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jul-Sep 2016

Histórico

  • Recebido
    16 Mar 2016
  • Aceito
    23 Jun 2016
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