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Nietzsche, o grande lutador* * Publicado no Correio Paulistano. São Paulo, 19 de outubro de 1934, p. 5.

Resumo

Por ocasião da comemoração do 90º aniversário de Nietzsche, o Partido Nacional-Socialista depositou uma coroa de flores em seu túmulo com a inscrição "Ao grande lutador". Buscando afastar-se do sentido ideológico que teria motivado essa frase, o autor argumenta que nenhum outro pensador teria exercido tão funda influência no espírito atual quanto o autor da Genealogia da moral . O mérito da doutrina nietzschiana estaria, assim, não em seu caráter político, mas sim moral, visto que Nietzsche teria "antecipado a ruína dos princípios cardeais da velha civilização".

Palavras-chave
Nietzsche; filosofia; política; moral; crise

Abstract

On the occasion of the celebration of the 90th anniversary of Nietzsche, the National Socialist Party laid a wreath at his tomb with the inscription "To the great fighter". In seeking to move away from the ideological sense that would have motivated this phrase, the author argues that no other thinker would have exerted such deep influence on the current spirit as the author of Genealogy of Morals . The merit of Nietzschean philosophy would be not in its political character, but in its moral bias, considering that he would have "anticipated the ruin of the cardinal principles of the old civilization".

Keywords
Nietzsche; philosophy; politics; moral; crisis

Não sei se caberia, como definição, o epiteto de chefe da anarquia mental contemporânea, a Frederico Nietzsche, cujo 90º aniversário se comemora este mês na Alemanha. Durante algum tempo eu mesmo hesitei naquela designação, por parecer-me excessiva.

Penso, no entanto, que uma visão global do mundo moderno, principalmente depois da grande guerra, justificaria amplamente aquela afirmativa.

A derrocada dos ídolos políticos, sociais e morais, nunca se processou com esse espírito de iconoclastia, como no fim do século passado, sob a ação veemente e iniludível do autor de "Para além do bem e do mal".

Naturalmente que há 50 anos tais vivos e lúcidos ataques não passariam de tentativas efêmeras, excentricidades de jovem pensador. Talvez desejo de se mostrar paradoxal.

Mas hoje já se poderá, num exame sumário, verificar que a ruína dos princípios cardeais da velha civilização, foi antecipada pelo gênio do filósofo alemão. Nestes últimos trinta anos esse reviramento moral e social tem refletido todas aquelas sensíveis variações do clima moral da humanidade.

E eis por que se compreende que a Alemanha haja também alcançado o sentido da função catalítica do seu filho no albor da nova civilização: e é o que explica que o governo mandasse depositar, anteontem, pelo Sr. Rosenberg, chefe do Partido Nacional Socialista, de Halle, uma coroa, no túmulo de Nietzsche, em Roecken, com esta inscrição: "Ao grande lutador". De outra maneira aquela homenagem pareceria singular...

Não sei de outro escritor moderno que tenha exercido tão funda influência no espírito atual, como o criador de Zaratustra. Nem todos o leram devidamente: mas a essência de seu espírito se irradiou, como a luz, e os recantos obscuros da consciência foram aclarados pela sua energia madrugante.

As revoltas que suas ideias nos causavam - ou mesmo simples espanto - eram vencidas logo pela torrente férvida da argumentação, pelo esplendor d'aquela verdade que se atribui a Platão. E dentro de nós, e contra nós, muitas vezes, uma voz falava a favor do mestre alemão. Pouco a pouco, aquelas ideias vivas, sangrando, passavam a ser acolhidas com sofreguidão, com êxtase, com enternecido encantamento.

Quem poderia resistir a um filósofo dotado de tão radioativa, original e fremente sensibilidade? Se as ideias alarmavam pela total novidade, como negar que elas apareciam envoltas numa forma plena de sedução? Quem discordasse de tais princípios - que até poderiam ser tidos como imorais, pois que eles eram naturais, instintivos, humanos, enfim, quem os combatesse jamais se furtaria a confessar a "berceuse" deliciosa que rondava aquelas sentenças como claridades novas.

Quando, na história das letras ou mesmo do pensamento humano um escritor, de qualquer categoria, ousou dizer verdades tão pungentes como as disse Frederico Nietzsche? Sobre a sua própria individualidade, quem já se havia atrevido a pensar alto com tanta liberdade e clareza veementes?

"Com o Zaratustra, dou à humanidade o mais belo presente que ela jamais recebeu", dizia o filósofo, explicando a concepção e o valor de seu poema.

No capítulo do "Ecce homo" encontro agora uma explicação que havia esquecido por completo, e que traz este título bem significativo: "Por que eu sou uma fatalidade": "Conheço o meu destino: um dia se há de ligar a meu nome a lembrança de uma coisa formidável - a lembrança de uma crise como nunca houve outra sobre a terra, a lembrança da mais profunda colisão de consciências, a lembrança de um julgamento proferido contra tudo quanto até o presente foi acreditado, exigido, santificado. Eu não sou um homem: eu sou dinamite".

No momento em que escrevo estas notas o mundo cada vez mais se integra na visão nietzschiana. Se o super-homem não apareceu, naquele alto sentido, não se negará que os condutores de homens como Mussolini, e, especialmente, Hitler, aí estão para atestar que os povos precisam de guias alertas, poderosos, dominadores.

Para mim, porém, o valor maior e incomparável que resulta da doutrina de Nietzsche não se expõe no seu aspecto político, mas, principalmente, moral.

Em muitas de suas páginas, a revolução russa nada mais é do que a corporificação de certos imperativos fundamentais da doutrina do mestre da "Genealogia da Moral".

A transmutação de todos os valores morais que ele semeou no fim do século passado - germina em ótimas sementeiras, e, em vários canteiros da alma humana, em diversas porções do globo, começou a florescer. Quem auscultar o rumo da nova civilização - verificará que foi Nietzsche a primeira antena que captou as ondas remotas da grande e invencível vibração que começa agora a sacudir a velha e quieta humanidade.

E, nesse sentido, ele foi, realmente, o grande lutador...

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    Publicado no Correio Paulistano. São Paulo, 19 de outubro de 1934, p. 5.
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    José Flexa Pinto Ribeiro (1884-1971). Crítico de arte, poeta, jornalista e professor. É autor de Fialho de Almeida: visão estética de sua obra (1911) e dos seis volumes de História crítica da arte (1962).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jul-Sep 2016
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