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Reforma psiquiátrica no Ceará: descrição de um caso

Reforma psiquiátrica en Ceará: descripción de caso

Psychiatric reform in the state of Ceará: a case description

Resumos

Usando observação sistemática e não participante, a pesquisa objetivou estudar o funcionamento de um novo serviço de saúde mental do Ceará e levantar indicadores de continuidade e estabilidade do mesmo. Concluiu-se que o serviço ainda busca seu perfil, contrapõe-se à internação psiquiátrica desnecessária, mas a excessiva clientela atendida, o reduzido número de profissionais que residem no local e o precário vínculo empregatício destes ameaçam seu futuro.

reforma psiquiátrica; serviço de saúde mental; interdisciplinaridade


Usando la observación sistemática y no participante, se realizó esta investigación, apuntando estudiar el funcionamiento de un nuevo servicio de salud mental de Ceará y levantar indicadores de continuidad y estabilidad del mismo. Se concluyó que el servicio aún busca su perfil, se contrapone a la hospitalización innecesaria y la excesiva clientela atendida, el reducido número de profesionales que viven en el lugar y el precario salario que amenazan su futuro.

reforma psiquiátrica; servicio de salud mental; interdisciplinariedad


By employing systematic and nonparticipating observation, the research aimed at studying the operation of a new mental health service in the state of Ceará, Brazil, and obtaining indicators of its continuity and stability. It was concluded that the service is still trying to find its field of action, opposing to unnecessary psychiatric hospitalization but the excessive number of patients the small number of professionals living at the place and the unrealiable job contract jeopardize its future.

psychiatric reform; mental health service; interdisciplinary studies


ARTIGOS ORIGINAIS

Reforma psiquiátrica no Ceará: descrição de um caso

Psychiatric reform in the state of Ceará: a case description

Reforma psiquiátrica en Ceará: descripción de caso

Polyana Alexandre Rolim PontesI; Maria de Nazaré de Oliveira FragaII

IAluna do 8º semestre do Curso de Enfermagem da Universidade Federal do Ceará

IIEnfermeira, Docente do Curso de Enfermagem da Universidade Federal do Ceará

RESUMO

Usando observação sistemática e não participante, a pesquisa objetivou estudar o funcionamento de um novo serviço de saúde mental do Ceará e levantar indicadores de continuidade e estabilidade do mesmo. Concluiu-se que o serviço ainda busca seu perfil, contrapõe-se à internação psiquiátrica desnecessária, mas a excessiva clientela atendida, o reduzido número de profissionais que residem no local e o precário vínculo empregatício destes ameaçam seu futuro.

Unitermos: reforma psiquiátrica, serviço de saúde mental, interdisciplinaridade

ABSTRACT

By employing systematic and nonparticipating observation, the research aimed at studying the operation of a new mental health service in the state of Ceará, Brazil, and obtaining indicators of its continuity and stability. It was concluded that the service is still trying to find its field of action, opposing to unnecessary psychiatric hospitalization but the excessive number of patients the small number of professionals living at the place and the unrealiable job contract jeopardize its future.

Key words: psychiatric reform, mental health service, interdisciplinary studies

RESUMEN

Usando la observación sistemática y no participante, se realizó esta investigación, apuntando estudiar el funcionamiento de un nuevo servicio de salud mental de Ceará y levantar indicadores de continuidad y estabilidad del mismo. Se concluyó que el servicio aún busca su perfil, se contrapone a la hospitalización innecesaria y la excesiva clientela atendida, el reducido número de profesionales que viven en el lugar y el precario salario que amenazan su futuro.

Términos claves: reforma psiquiátrica, servicio de salud mental, interdisciplinariedad

1. INTRODUÇÃO

O movimento hoje denominado reforma psiquiátrica tem como propósitos: reverter a tendência hospitalocêntrica, através da priorização e implementação de um sistema extra hospitalar e interdisciplinar de assistência; proibir a construção de novos hospitais psiquiátricos e o credenciamento de novos leitos em hospitais convencionais; reduzir progressivamente tais serviços, através de sua substituição por leitos psiquiátricos em hospitais gerais; promover a saúde mental, integrando-a a outros programas de saúde2.

O Ceará tem em funcionamento alguns novos serviços de atenção em saúde mental que viabilizam a reforma psiquiátrica. Além disso, dispõe de uma Lei Estadual que impede a construção de hospitais psiquiátricos, regulamenta desativação progressiva destes e impede a criação de novos leitos nos hospitais psiquiátricos existentes7.

A reforma no Ceará é uma questão complexa, porque a maioria dos hospitais psiquiátricos encontra-se na Capital e por isso, grande parte dos novos serviços estão surgindo no interior. Isso se dá porque em Fortaleza estão vários hospitais psiquiátricos privados cujos proprietários se opõem à reforma, porque esta ameaça os lucros advindos do tratamento hospitalar do doente mental.

O interesse das autoras quanto ao trabalho predominantemente interdisciplinar que deve se desenvolver nos novos serviços de saúde mental constituiu motivação para a realização da presente pesquisa, que teve como objetivos: levantar o que está definido na literatura quanto ao perfil dos novos serviços de saúde mental; descrever os antecedentes e o modo de funcionamento de um serviço no Ceará, estruturado nos moldes da proposta de reforma psiquiátrica; identificar indicadores de continuidade e estabilidade do serviço estudado.

2. METODOLOGIA

A pesquisa de campo foi realizada no período de agosto a setembro de 1994, em um Centro de Atenção Psicossocial (CAPS), localizado em uma cidade do interior do Ceará e compreendeu duas fases. Primeiramente foi realizada uma visita para primeiros contatos com a equipe e com a dinâmica do serviço a ser estudado. Esta fase foi executada em conjunto com o grupo de pesquisadores de um projeto de pesquisa mais amplo sobre reforma psiquiátrica no Ceará. A segunda fase teve duração de duas semanas e foi realizada através de observação de todas as atividades desenvolvidas no serviço.

Na coleta de dados foi utilizado um roteiro para caracterização do serviço, constando de itens sobre mês e ano em que foi criado, o que motivou sua criação, dias e horários de funcionamento, composição da equipe, profissionais que residem ou não no próprio município. Este roteiro foi preenchido por membro da coordenação do serviço.

A observação esteve voltada para apreender a dinâmica de funcionamento do serviço, estruturação das atividades, características predominantes de atuação dos componentes da equipe de saúde, caráter interdisciplinar das atividades, vinculação com os propósitos da reforma psiquíatrica. Os dados desse roteiro foram colhidos sempre pela mesma pesquisadora que escolhia para observar uma ou mais atividades entre as que eram realizadas em cada período (manhã e tarde). Os dados colhidos foram submetidos à análise descritiva embasada nos parâmetros definidos pela portaria nº 224/92 para os CAPS ou expressos na proposta de reforma psiquiátrica, como interdisciplinaridade, flexibilidade e versatilidade. Por sua vez, os fatores contextuais diretamente relacionados à administração municipal, sua política empregatícia e de qualificação profissional, bem como a precariedade da rede de assistência em saúde mental, foram discutidos enquanto indicadores da existência ou não de estabilidade do seviço estudado.

3. REFORMA PSIQUIÁTRICA: ANTECEDENTES E ESPECIFICIDADES NO CEARÁ

As críticas ao modelo hospitalocêntrico de assistência psiquiátrica no Brasil não são recentes. Entretanto, elas só encontraram canais de expressão que as veicularam amplamente ao final da década de 70, com o início da abertura política. O fracasso do chamado "milagre brasileiro", tendo como uma de suas conseqüências o agravamento das condições de vida das camadas mais pobres da população, possibilitou ampla mobilização de vários segmentos dos trabalhadores, inclusive dos lotados na área de saúde mental.

Na I Conferência Nacional de Saúde Mental, realizada no Rio de Janeiro em 1987, foram definidos os propósitos da reforma psiquiátrica já referidos na introdução deste artigo. No mesmo evento foram definidas estratégias para processar modificação na legislação referente à saúde mental e à internação compulsória do doente2.

Dessa estratégia resultou o Projeto de Lei 3657/89 de autoria do Deputado Paulo Delgado, propondo a extinção progressiva dos hospitais psiquiátricos e sua substituição por outros recursos assistenciais1. Referido Projeto, aprovado na Câmara Federal, ainda aguarda aprovação no Senado. Mesmo assim, ele foi discutido por vários segmentos da sociedade, o que ampliou o número de interessados na reforma psiquiátrica, a qual hoje é um movimento que conta com aliados em diferentes esferas sociais.

Tais alianças têm distintos espaços de concretização. Na II Conferência Nacional de Saúde Mental, realizada em Brasília, dezembro de 1992, estiveram presentes usuários dos serviços de saúde mental, sociedade civil, prestadores de serviço e representantes do governo6. O Governo Federal incorporou a reforma psiquiátrica como meta em seu plano Quinqüenal e através do Ministério da Saúde vem definindo parâmetros de funcionamento e de pagamento de atividades desenvolvidas por diferentes categorias profissionais nos novos serviços de atenção à saúde mental3,4,5,6. Isso vem estimulando o surgimento de serviços como Núcleos de Atenção Psicossial (NAPS), Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) e Hospitais-dia entre outros, como alternativas à hospitalização psiquiátrica que vinha sendo opção quase exclusiva de tratamento.

Especificamente sobre os parâmentros de funcionamento dos CAPS, em sua portaria Nº 224/92 o Ministério de Saúde definiu o seguinte: são serviços de saúde mental regionalizados que prestam cuidados intermediários entre o ambulatório e a internação, em turnos de 4, 8 ou 24 horas diárias; devem atender a clientela adstrita à sua localização e devem estar integrados a uma rede de cuidados de saúde mental para garantir a referência e contra-referência de casos de distintas complexidades; devem prestar atendimento individual medicamentoso, psicoterápico, grupal, atendimento em oficinas terapêuticas, atividades socioterápicas, visitas domiciliares, atendimento à família e atividades comunitárias, enfocando a integração do paciente ao seu meio social. Pacientes que freqüentam o serviço em regime de 4 e de 8 horas diárias têm direito respectivamente a duas e a três refeições. Para o atendimento de cada grupo de pacientes por 4 horas diárias o serviço deve dispor de um psiquiatra, um enfermeiro, quatro outros profissionais de nível superior (psicólogo, assistente social, terapeuta ocupacional e/ou outro profissional necessário à proposta de trabalho do serviço) e trabalhadores de nível médio e elementar necessários ao desenvolvimento das atividades3. Observa-se portanto, que serviços estruturados a partir de tais parâmetros devem desenvolver as atividades terapêuticas numa perspectiva interdisciplinar, com flexibilidade e versatilidade suficientes para atender às demandas específicas da clientela residente na região.

Alguns estados brasileiros já dispõem de lei, regulamentando a reforma psiquiátrica em seus territórios entre os quais está incluído o Ceará7. Além disso, o Ceará tem em funcionamento alguns desses novos serviços: dois hospitais-dia localizados em Fortaleza e quatro CAPS, localizados no interior do estado, todos com menos de três anos de funcionamento por ocasião da realização da pesquisa.

A localização da maioria dos serviços que se orientam pelos parâmetros da reforma psiquiátrica, nas cidades do interior do Ceará, não ocorre por acaso. Isso se explica, em grande parte, pela resistência dos proprietários de hospitais psiquiátricos privados da cidade de Fortaleza, inibindo o surgimento dos novos serviços na capital. A operacionalização da reforma tem enfrentado outras dificuldades como: a não aceitação da desospitalização dos pacientes psiquiátricos pelos familiares destes e pelos trabalhadores humildes do setor, devido ao medo respectivamente, de perder o hospital psiquiátrico como opção de tratamento e de perder o emprego; os profissionais da área de saúde mental estão indo para os novos serviços com uma formação e uma prática consolidada no interior de hospitais convencionais que prestam assistência tipo asilar.

O fato de a maioria dos novos serviços estarem localizados em municípios do interior implica em uma certa fragilidade dos mesmos. Como esses serviços são novos, os profissionais que ali trabalham ainda estão construindo o perfil dos mesmos, bem como sua dinâmica interna de trabalho. É sobre o perfil de um desses serviços que trataremos no próximo item.

4. O SERVIÇO OBSERVADO

4.1. Estruturação Geral do Serviço e Indicadores de Estabilidade

O serviço estudado localiza-se num município da região central do Ceará, a 166 km de Fortaleza. Com uma área de 266 km2, o município tem uma população de 61513 habitantes, sendo que 41% deles residem na zona rural e 59% na sua sede.

A criação do serviço deu-se em dezembro de 1993 devido à identificação de alguns profissionais que trabalham no município, com a luta antimanicomial e por interesse da Secretaria de Saúde do Município em assistir a pacientes da localidade que freqüentemente eram transferidos para hospitais psiquiátricos de Fortaleza. O serviço funciona de segunda a sexta-feira, de 8:00 às 12:00 e de 14:00 às 18:00 h, e aos sábados de 8:00 às 15:00 h e oferece apenas cafezinho aos usuários. Sua equipe é composta por dois psiquiatras, um enfermeiro, uma terapeuta ocupacional, uma assistente social, uma psicológa, dois atendentes de enfermagem, uma secretária e dois auxiliares de serviços gerais.

Fazendo um paralelo com o que foi apresentado e com o que a Portaria nº 224/92 define como parâmetros mínimos de funcionamento para um Centro de Atenção Psicossocial (CAPS), verifica-se que os dias e horários de funcionamento estão dentro do proposto, o que não ocorre quanto à alimentação oferecida aos usuários. Isso evidencia a atitude racionalizadora da Secretaria de Saúde do Município que, por medida de economia, deixa de oferecer refeições aos clientes. Como o CAPS atende a um grande número de usuários e sua abrangência extrapola os limites do município. O fato de vários técnicos não residirem onde trabalham, e não terem vínculo empregatício seguro indica uma fragilidade do serviço, que durante alguns dias da semana fica com a equipe incompleta e a qualquer momento pode perder alguns dos profissionais que tenham proposta de trabalho mais segura e compensadora.

A participação dos profissionais em eventos de saúde mental fora do município não está assegurada nem obedece a um cronograma previamente estabelecido. Quando ocorre, está sujeita à disponibilidade financeira da Secretaria da Saúde do Município no momento de realização do evento. Tentando superar esta dificuldade, bimestralmente são promovidos seminários no próprio município para os profissionais e abertos a alguns segmentos da sociedade.

A proposta terapêutica do serviço assenta-se nos princípios da reforma psiquiátrica e durante o período de observação ficou constatado que ali se presta atendimento individual e grupal. O tratamento inclui intervenção farmacológica, psicoterapia, atendimento pelo setor de terapia ocupacional e de enfermagem. A atenção é prestada a pessoas com diversos distúrbios e não inclui atendimento de urgência. Há programas especiais de promoção à saúde mental, de reinserção do usuário ao seu meio, de socialização e aproximação do serviço com a comunidade sadia concretizados na realização de visitas domiciliares, grupo de adolescentes, realização de eventos abertos a alguns segmentos da comunidade, promoção de atividades esportivas e de lazer em clubes, escolas e em outros equipamentos sociais do município.

O serviço conta com supervisão mensal e quatro leitos no hospital geral local, destinados à internação de clientes do CAPS. A supervisão mensal permite a avaliação e redirecionamento do projeto terapêutico global e constitui o espaço necessário à explicitação e manejo adequado das questões e disputas corporativas, técnicas e relacionais entre os profissionais da equipe. A existência de leitos no hospital geral para internamento de clientes do CAPS no próprio município, mesmo com algumas resistências, diminui substancialmente o encaminhamento dos mesmos para hospitais psiquiátricos de outras localidades. A inexistência de Comissão de Saúde Mental no município é um fator que fragiliza a equipe e o serviço. Sua existência, em vinculação ao Conselho Municipal de Saúde, a credenciaria como instância adequada para estabelecer o planejamento local das ações de saúde mental e acompanhar os projetos e programas em execução.

4.2. Indicadores de Flexibilidade e Interdisciplinaridade do Serviço

De início, foi possível observar que o serviço apresenta grande flexibilidade em relação às atividades que ali são executadas. Elas eram reprogramadas de acordo com as necessidades apresentadas pela clientela em cada período. Constatamos atividades não programadas que foram executadas, bem como atividades programadas que não foram executadas, sendo que as últimas superam as primeiras. Vale salientar que os casos de atividades programadas e não executadas ocorreram sempre às segundas e sextas-feiras quando registraram-se situações atípicas: na primeira, a Secretaria de Saúde do Município realizou exposição aberta à comunidade, dos materiais e equipamentos adquiridos para suas diferentes unidades de saúde, incluindo aí o CAPS; na segunda, foi realizado Seminário de Epidemiologia Social, incluído na programação bimestral de atividades que o CAPS abre à comunidade e a profissionais de outros municípios.

Entre as atividades programadas e não executadas, a atividade de "reeducação psicomotora" que deveria ocorrer nas manhãs das segundas e quartas-feiras, foi prejudicada devido à falta de um veículo para transportar os usuários até o local onde se realizaria a atividade. Entre as atividades não programadas e executadas prevaleceram as visitas domiciliares e visitas aos usuários internados no hospital geral local. Isso demonstra, respectivamente, a preocupação dos profissionais com os clientes que não retornaram mais ao CAPS, e o esforço que fazem em não encaminhá-los para hospitais psiquiátricos de outros municípios. Houve uma ocasião em que um médico do hospital geral havia tomado todas as providências para transferir um cliente para esse tipo de hospital, e devido ao esforço e oposição dos profissionais do CAPS isso foi evitado. Em outras vezes a própria família do usuário insistia em transferí-lo para uma instituição do tipo asilar, e a interferência da equipe impediu que isso ocorresse.

Todas as atividades constantes no Gráfico nº 1 foram computadas, levando em consideração não o número de clientes atendidos, mas o número de vezes em que aconteceram, durante as duas semanas de observação. Sendo assim, as atividades de maior incidência foram as de terapia ocupacional, que totalizaram 27,8% de todas as que foram executadas. Em segundo lugar, ficam as triagens e consultas médicas (16,7%), logo após vem as triagens e consultas de enfermagem (13,9%), depois, igualmente dispostos, vem a visita domiciliar, a visita ao hospital geral e a terapia em grupo (11,1%) e por último as reuniões de equipe (8,3%).


Foi observado que a grande maioria das consultas e triagens eram realizadas por um único profissional, embora estivessem programadas para ser realizadas por dois. Muitas vezes o psiquiatra não se fazia presente e o enfermeiro realizava os atendimentos de acordo com a demanda. Esse fato ocorria porque o médico trabalhava em mais de um município e o enfermeiro era exclusivo deste, além de residir na própria localidade. Constatamos também que as consultas médicas e de enfermagem apresentavam características muito próximas. A ausência do psiquiatra acarretava a sobrecarga de alguns membros da equipe, especialmente do enfermeiro.

O caráter interdisciplinar do trabalho foi constatado em poucas ocasiões. Ele esteve mais presente durante as reuniões de equipe e nos momentos em que se realizavam as visitas a clientes internados no hospital geral. Nas reuniões de equipe, além das questões administrativas do serviço, eram tratados casos específicos de clientes, cujo comportamento carecia de confirmação ou revisão do plano terapêutico geral. Nas visitas ao hospital geral era comum a presença de vários membros da equipe num mesmo momento. Ali era avaliada em conjunto a condição clínica, social e familiar do internado, bem como havia preocupacão com suas necessidades em geral e com o breve retorno do mesmo para acompanhamento no CAPS. Essa atividade é da maior importância, porque dessa forma se evita internamento de pacientes em hospital psiquiátrico, estimulam-se internações breves em hospital geral, vai-se estruturando a rede de saúde mental no município, tudo isso coerente com os propósitos de reforma psiquiátrica.

A seguir, destacamos algumas situações presenciadas durante as duas semanas de observação, que mostram o esforço da equipe em construir um novo padrão relacional interno e com a clientela, de reinserir a saúde mental na assistência à saúde em geral, orientando, assim, o serviço pela abordagem interdisciplinar e pelo respeito à cidadania dos usuários.

Situação 1

Em uma reunião de equipe estiveram presentes o enfermeiro, a terapeuta ocupacional, a assistente social, o psiquiatra, a médica do hospital geral, a psicóloga, dois atendentes de enfermagem e a secretária. Foram discutidos: a falta de veículo exclusivo para o CAPS; o caso de um usuário que havia apresentado grande melhora, após iniciadas as visitas domicilares; os preparativos do seminário que ocorreria no fim da próxima semana; a não aceitação dos demais pacientes internados no hospital geral em conviver com pacientes psiquiátricos; o caso e a evolução de cada usuário internado no hospital geral local; o fato de um usuário ter conseguido um emprego e ter voltado ao mercado de trabalho, entre outras questões.

Foi convidada para participar desta reunião, uma enfermeira de um distrito onde residia um cliente do CAPS que havia melhorado, após as visitas domiciliares.

O psiquiatra enfatizou o projeto de encaminhar todos aqueles usuários que residiam longe do CAPS aos médicos e enfermeiros da família responsáveis por cada distrito. Assim, o CAPS serviria de apoio para evitar o deslocamento desnecessário dos usuários, que muitas vezes só precisam de nova receita médica ou da atenção do próprio enfermeiro.

Merece destaque a discussão sobre o caso do usuário que havia viajado na segunda-feira para sua cidade natal, no sudeste do país. A assistente social colocou o psiquiatra a par dos acontecimentos, já que ele não se encontrava na cidade na segunda-feira. O usuário solicitou que retirassem todo seu dinheiro do banco, comprassem uma passagem de ônibus e dessem uma receita para que ele se mantivesse medicado por algum tempo. A assistente social tomou as providências e o colocou no ônibus com o destino que havia solicitado, onde ele tem parentes. O psiquiatra discordou do procedimento e disse que se ele próprio estivesse na cidade, não havia permitido a partida, pois apesar de o usuário já ter tido melhora, ele nunca teria em outro local um atendimento como o CAPS. A assistente social disse que pediu ao usuário que pelo menos esperasse a chegada do psiquiatra, mas o cliente estava muito ansioso e toda tentativa de impedí-lo não teve resultado.

Apreciação

Por esse relato pode-se verificar que nas reuniões de equipe são tratadas questões administrativas do serviço, é feito um planejamento e divisão de tarefas, são analisadas as situações dos usuários que necessitam de alguma revisão em seu acompanhamento e são analisadas dificuldades que afetam o serviço.

Na situação acima fica evidenciado novamente o esforço da equipe por concretizar uma rede de saúde mental no município, quando prioriza as visitas diárias a clientes do CAPS internados no hospital geral, e quando convida para a reunião técnicos responsáveis pelo Programa de Saúde da Família nos distritos a fim de prestarem acompanhamento local de saúde mental.

Pode-se observar também, a insegurança da equipe em dar alta a um cliente na ausência do psiquiatra e a discordância deste em relação à alta e sua percepção de que nenhum outro serviço prestaria ao cliente assistência equivalente à do CAPS. Isso exemplifica várias situações observadas em que o psiquiatra ainda aparece como figura central, seus pontos de vista costumam ser determinantes, mesmo havendo discordância de outros técnicos em relação às situações que se apresentam. Obviamente, essa condição não é de inteira responsabilidade do psiquiatra, pois freqüentemente a equipe aceita esse padrão de liderança.

Situação 2

Ao fim da reunião referida anteriormente, o enfermeiro recebe um telefonema do hospital geral local, onde informam que uma usuária internada está andando sem roupas pelos corredores. A equipe se subdivide em dois grupos: um vai para a casa da usuária e o outro para o hospital geral. A pesquisadora acompanha o grupo que se destinou ao hospital, composto pelo enfermeiro, pela médica do hospital geral e pela terapeuta ocupacional. Ao chegarem, a usuária encontrava-se deitada em uma rede na enfermaria. O enfermeiro conversou com ela para que se acalmasse e foi dada nova medicação. A mesma já havia sido medicada anteriormente sem nenhum efeito. A atuação do enfermeiro na abordagem à cliente foi decisiva, enquanto os demais profissionais observavam. Ele usou de diálogo, embalou a rede, segurou sua mão apelando para que dormisse. A usuária pediu velas para acendê-las na capela do hospital. O enfermeiro a atendeu acompanhando-a à capela. Depois disso, retornaram novamente e ela deitou-se. Então, chegaram os profissionais que tinham ido à casa da usuária, trazendo sua filha. Esta disse que não podia ficar acompanhando a mãe porque havia conseguido um trabalho em um comitê eleitoral. Diante da insistência da equipe, ela ficou acompanhando a usuária naquela noite.

Apreciação

Nesse caso, fica evidente o domínio que o enfermeiro exerceu sobre a situação. Foi ele quem se posicionou e interviu, tentando acalmar a cliente, no que foi bem sucedido. Sua abordagem foi empática, acatando a vontade da cliente dentro do possível, com respostas afetivas e medidas tolerantes. Aparentemente, o trabalho da equipe não contemplou o princípio da interdisciplinaridade. Mas essa afirmação merece ser revista, pois foi a divisão temporária de atribuições entre os diferentes membros da equipe que permitiu o acesso tanto à cliente quanto à sua família. A associação dos esforços permitiu, na seqüência, que todos compreendessem a condição sócio-econômica da família e sua dinâmica interna.

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

No geral, é possível afirmar que o serviço estudado aproxima-se bastante do perfil definido na literatura consultada para serviços alternativos em saúde mental: tem uma equipe multiprofissional; funciona em dois turnos de segunda a sexta-feira e em um turno aos sábados; realiza visitas domiciliares; faz atendimento individual e de grupo; dispõe de 04 leitos para internamento de seus clientes no hospital geral local; integra a saúde mental à comunidade, promovendo eventos abertos à população. Mesmo assim, foi constatado que o atendimento à clientela fica prejudicado pela grande demanda, uma vez que não existem serviços com as mesmas características nos municípios vizinhos. Outro limitante é a inexistência de veículo próprio para as visitas domiciliares e outras atividades do CAPS.

O serviço sofre ameaças em sua estabilidade, uma vez que ainda está em fase de estruturação em função dos seguintes fatores: muitos dos componentes da equipe têm vínculo empregatício precário e não residem no município sede; há limitações quanto ao internamento de clientes do CAPS no hospital geral; o município não dispõe ainda de Comissão de Saude Mental.

O serviço tem características flexíveis e os componentes da equipe de saúde esforçam-se por realizar trabalho interdisciplinar, características estas desejáveis em uma instituição de atenção à saúde mental. Registraram-se momentos em que ficou comprovado: o esforço permanente dos profissionais por desenvolver uma relação horizontal com a clientela e de grande envolvimento com a problemática social vivenciada pelos usuários; esforço para evitar o encaminhamento de cliente do município para hospitais psiquátricos; auto-crítica da equipe em relação aos procedimentos terapêuticos com a clientela e em avançar na interdisciplinariedade.

  • 01. BRASIL. Câmara dos Deputados. Projeto de Lei nº 3657/1989. Dispõe sobre a extinção progressiva dos hospitais psiquiátricos e sua substituição por outros recursos assistenciais, regulamenta a internação psiquiátrica compulsória e dá outras providências. Brasília, 1989.
  • 02. BRASIL. Ministério da Saúde. Conferência Nacional de Saúde Mental, 1. Relatório, Brasília, 1987.
  • 03. BRASIL. Ministério da Saúde. Portaria nº 224/1992. Diário Oficial da União, Brasília, 30 jan. 1992.
  • 04. BRASIL. Ministério da Saúde. Portaria nº 407/1992. Diário Oficial da União, Brasília, 7 jan. 1993.
  • 05. BRASIL. Ministério da Saúde. Portaria nº 408/1992. Diário Oficial da União Brasília, 7 jan. 1993.
  • 06. BRASIL. Ministério da Saúde. Conferência Nacional de Saúde Mental, 2. Relatório, Brasília, 1993.
  • 07. CEARÁ. Lei nº 12151/1993. Dispõe sobre a extinção progressiva dos hospitais psiquiátricos e sua substituição por outros recursos assistenciais, regulamenta a internação psiquiátrica compulsória e dá outras providências. Diário Oficial da União Brasília, 12 ago. 1993.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    18 Nov 2005
  • Data do Fascículo
    Maio 1997
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