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Pobreza, bioética e pesquisa

Resumos

Realiza-se, aqui, reflexão bioética sobre a concepção de pobreza enquanto condição, ou circunstância, de restrição e vulnerabilidade. Tal concepção prevê duas perspectivas: a econômica que relaciona pobreza com incapacidade (visão do Banco Mundial, a partir das recomendações políticas para o ajuste econômico dos países latino-americanos) e a ético-filosófica, relacionando pobreza com desigualdade (fundamentada nos conceitos de eqüidade e igualdade, enquanto desdobramentos da idéia de justiça). Uma das graves conseqüências é o tratamento injusto, no que diz respeito aos procedimentos de pesquisa dos países ricos que recrutam populações de países pobres como campo experimental para investigações na área da saúde, principalmente pesquisas biomédicas ou farmacêuticas, colocando sob questionamento ético o caráter de vulnerabilidade e autonomia desses indivíduos.

bioética; pobreza; iniqüidade social; pesquisa biomédica; vulnerabilidade; eqüidade; autonomia pessoal


The article presents a reflection on conception of poverty as a condition or circumstance that restricts personal autonomy and increases vulnerability. Focusing on bioethical arguments, the authors discuss two perspectives: (i) economic, that relates poverty to incapacity to work and (ii) ethical-philosophical, which relates poverty to inequality and injustice. The first perspective corresponds to the World Bank's view according to its recommendations to the political and economic adjustment in Latin America. The second one is based on concepts of fairness and equality as components of social justice. The subjects' autonomy and vulnerability have been under question in an international movement that requests revision of ethical guidelines for the biomedical research. The bioethical arguments presented in this article enhance a discussion on unfair treatment to subjects enlisted in protocols sponsored by rich countries and hosted by poor nations.

bioethics; poverty; social inequity; biomedical research; vulnerability; equity; personal autonomy


Nos proponemos desarrollar una reflexión bioética acerca de la concepción de la pobreza como condición o circunstancia de restricción y vulnerabilidad. Esta concepción presentará dos perspectivas: la económica, relacionada con la incapacidad (visión del Banco Mundial desde las recomendaciones políticas para el ajuste económico de los países latinoamericanos) y la ético-filosófica, relacionada con la desigualdad (basada en los conceptos de equidad e igualdad como desdoblamientos de la idea de justicia). Una de las graves consecuencias de lo anterior es el tratamiento injusto, respecto a los procedimientos de investigación, de los países ricos que reclutan las poblaciones de los países pobres como campo experimental para investigaciones en el área de la salud. Este hecho se produce principalmente en las investigaciones biomédicas o farmacológicas, cuestionando así desde el punto de vista ético el carácter de vulnerabilidad y autonomía de los individuos.

bioética; pobreza; inequidad social; investigación biomédica; vulnerabilidad; equidad; autonomía personal


ARTIGO DE REVISÃO

IFilósofa, Professor Doutor da Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto, da Universidade de São Paulo, Centro Colaborador da OMS para o desenvolvimento da pesquisa em enfermagem, Brasil, e-mail: clearib@eerp.usp.br

IIEnfermeira, Professor Doutor da Escola de Enfermagem da Universidade de São Paulo, Brasil, e-mail: elma@usp.br

RESUMO

Realiza-se, aqui, reflexão bioética sobre a concepção de pobreza enquanto condição, ou circunstância, de restrição e vulnerabilidade. Tal concepção prevê duas perspectivas: a econômica que relaciona pobreza com incapacidade (visão do Banco Mundial, a partir das recomendações políticas para o ajuste econômico dos países latino-americanos) e a ético-filosófica, relacionando pobreza com desigualdade (fundamentada nos conceitos de eqüidade e igualdade, enquanto desdobramentos da idéia de justiça). Uma das graves conseqüências é o tratamento injusto, no que diz respeito aos procedimentos de pesquisa dos países ricos que recrutam populações de países pobres como campo experimental para investigações na área da saúde, principalmente pesquisas biomédicas ou farmacêuticas, colocando sob questionamento ético o caráter de vulnerabilidade e autonomia desses indivíduos.

Descritores: bioética; pobreza; iniqüidade social; pesquisa biomédica; vulnerabilidade; eqüidade; autonomia pessoal

O CONTEXTO DA POBREZA NA ATUALIDADE

A pobreza não é um fenômeno da época contemporânea. Na história da humanidade pode-se encontrá-lo em várias épocas. Mas o contexto e as condições em que, hoje, com ela, se depara são peculiares. Envolvem entrecruzamento complexo de fatores econômicos, políticos, sociais e culturais que tem como pano de fundo o capitalismo e seus desdobramentos, permitindo a construção de um conceito de pobreza a partir de condições conjunturais.

Três pilares podem ser a base para a possível compreensão da situação de pobreza levando em conta, especificamente, os países latino-americanos em desenvolvimento: a política neoliberal, os organismos internacionais de poder econômico (Banco Mundial e FMI) e os marginalizados do mundo do trabalho. Envolvidos por suas dívidas externas, esses países permanecem em regime de renegociação, sob condicionamentos impostos pelos relatórios do Banco Mundial. Os resultados desse tipo de política são: crise econômica, exclusão social e falta de investimento no setor produtivo(1).

O caminho que desemboca em tais resultados pode ser traçado a partir da crise do Estado de Bem-Estar Social (Welfare State), nos anos 1970, para a maioria dos países desenvolvidos, cujo modelo que o sucede é o neoliberalismo. Instituindo-se aos poucos, traz modificações importantes como a drástica retração do Estado em detrimento do papel predominante dos mercados no processo de desenvolvimento - o Estado mínimo - cujo papel passa a ser o de atuar como apoio e facilitador frente à flexibilização dos mercados e não mais como pólo central do desenvolvimento.

Os países da América Latina viveram essa crise nos anos 1980. O Brasil passou, nessa época, pela crise do desenvolvimentismo (o qual desencadeia o endividamento externo), propiciando um processo de renegociação das dívidas com os organismos internacionais já citados. Mas todos, mais cedo ou mais tarde, acabam adotando o "receituário neoliberal". Uma das práticas precursoras na América Latina, em conformidade com esse ideário, foram as medidas adotadas para conter e solucionar a crise interna chilena, que foram: forte desregulação, desemprego maciço, repressão sindical, redistribuição de renda em favor dos ricos, privatização dos bens públicos.

Diante desse quadro de estagnação, acrescido de forte processo inflacionário, surge um conjunto de medidas denominado Consenso de Washington (1989)(1) que logo foram adotadas pelo Banco Mundial e pelo FMI como pauta para os países latino-americanos a serem cumpridas como saída para a crise e como determinantes das negociações das dívidas.

Vale a pena apontar, diante desse panorama, que um dos pontos colocados sob questão foi a governabilidade desses países já que, dependentes e, portanto, sem opções, transferiam a decisão de políticas econômicas e sociais para organismos internacionais. Alguns analistas entenderam que essa questão era uma das facetas do que se entendia por Estado mínimo.

Tais resultados significaram, além da crise, exclusão social e falta de investimentos no setor produtivo. Os ajustes fiscais aumentaram em grande medida o desemprego e o trabalho informal, e uma das causas do empobrecimento é que grande parte da população produtiva não se encontrava mais em situação de trabalho formal.

Sob a perspectiva ética, a condição de pobreza pode ser vista como resultado de uma distribuição injusta de bens, benefícios e recursos. A concepção de justiça foi pela primeira vez concebida por Aristóteles, na Grécia Antiga. Contemporaneamente, tal concepção foi retomada e inserida principalmente no debate sobre filosofia política e economia, causando grande influência entre os especialistas e cientistas que se dedicam às questões de distribuição de renda e recursos, globalização, ética e bioética ou, em sentido geral, à discussão sobre a pobreza e riqueza no mundo atual.

A pobreza é uma forma de vulnerabilidade, pois os indivíduos tornam-se destituídos das condições mínimas para viver e sobreviver. Além disso, tais circunstâncias propiciam situação de indignidade aos indivíduos que, muitas vezes, não têm como esquivar-se à exploração, como os sujeitos de investigação que são recrutados nos países em desenvolvimento para participar de testes com drogas não reconhecidas, em troca de dinheiro para suas necessidades não assistidas - nem pela sociedade nem pelo Estado.

Esse artigo tem o objetivo de desenvolver reflexão bioética acerca da relação entre essas questões, dado que não só cidadãos tiveram restringidas oportunidades de trabalho e assistência social, mas em perspectiva mais ampla, a vida humana assim considerada tornou-se destituída de seu valor intrínseco.

PERSPECTIVA ECONÔMICA DA POBREZA: INCAPACIDADE

Considerando as condições expostas anteriormente, os relatórios do Banco Mundial preocupam-se em emitir medidas de combate à pobreza. De acordo com os informes de 1990 é possível inferir uma concepção de pobreza a partir de determinada ordem social, delineada nesses documentos(1). Nesse ordenamento, dois pontos são importantes: o Estado mínimo e o mundo do trabalho. O primeiro deve garantir e criar condições para a atuação eficaz dos mercados (renovação de instituições para esse fim, regime regulatório que garanta a competição, eliminação da corrupção, segurança dos direitos de propriedade, suprimento de algumas poucas necessidades sociais).

Quanto ao mundo do trabalho, esse não se divide mais em empregados e desempregados. Está caracterizado de um lado por "indivíduos que conseguem atuar no mercado - que seria o mecanismo de funcionamento mais eficaz da sociedade - e, por outro lado, por indivíduos incapazes de integrar-se aos mercados - os pobres - dos quais o Estado deve ajudar por meio de suas políticas sociais residuais e focalizadoras". Tal consideração se expressa nos relatórios de 1990 e permite definir pobreza como "incapacidade de atingir um padrão de vida mínimo"(1).

Mas o que se entende por um padrão mínimo de vida e o que é incapacidade?

Para o Banco Mundial o padrão mínimo de vida refere-se ao consumo, quer dizer, são os gastos mínimos para nutrição e outras necessidades, incluindo pequena parcela para o lazer (diversão e vida social). Esse valor deve ser calculado de acordo com cada país e região. Se alguém não tem um salário suficiente para suprir tais necessidades é considerado pobre; quer dizer, não tem condições para viver minimamente bem. Além disso, a incapacidade também aponta para a necessidade de oportunidades econômicas e prestação de serviços sociais. O Estado, para combater a pobreza, deve planejar políticas nesses dois campos, propiciando novas oportunidades econômicas para a obtenção de rendimentos, além de assistência nas áreas da saúde e educação (serviços sociais).

Esse conceito de pobreza está construído para um mundo do trabalho, no qual o trabalhador é competitivo e tem emprego (e recolocação se o perde) e quem não o tem é incapaz. A crítica é que o pobre, porque incapaz, é visto como fracassado e, portanto, o que lhe resta é integrar-se às políticas sociais que lhe são oferecidas como suprimento à sua "incapacidade".

Um dos pontos críticos a ser considerado é que a atuação do Estado mínimo é um retrocesso na ótica dos direitos sociais. Primeiro porque se institui como mecanismo caritativo e assistencialista e, em segundo lugar, porque tais direitos não são mais democraticamente extensivos a todos. Porém, os necessitados (mesmo com capacidade produtiva) não têm como optar, restando-lhes aceitar. O direito à opção, à escolha, assim percebidos, estão restritos a boas intenções, ferindo a cidadania e as liberdades individuais das pessoas. Sendo assim, a concepção de pobreza pressuposta na política internacional atual pode ser interpretada como reforço à exclusão e à marginalidade.

PERSPECTIVA ÉTICO-FILOSÓFICA DA POBREZA: DESIGUALDADE

A idéia de desigualdade pode ser inferida a partir do texto clássico aristotélico sobre a justiça(2), que examina as noções de igualdade e eqüidade. Para ele, a justiça é uma relação na qual estão envolvidas ações humanas entre si. Algumas dessas relações dizem respeito à honra, ao dinheiro ou à segurança e outras envolvem atitudes ou "objetos com que se relaciona o homem bom" (virtuoso). Ambas estão regidas pela idéia de distribuição, ou seja, o repartir ou trocar justamente. A forma de repartir, no primeiro tipo, pode ser comparada à divisão aritmética na qual se preserva a identidade dos termos, resultando em igualdade, sendo que a segunda maneira exige que os termos sejam equivalentes, mas não iguais, resultando em proporcionalidade. Qualquer reconhecimento de injustiça vai contra essa maneira de proceder em relação ao outro.

A virtude de ser justo nos costumes (ética) relativa ao homem bom tanto pode estar de acordo com o que é devido a cada um, ou com o que lhe cabe em determinadas situações e pessoas envolvidas. A primeira é denominada justiça distributiva ou eqüidade e a segunda justiça comutativa ou igualdade.

Na área da saúde é possível aplicar tais critérios de justiça para operar uma análise ética. Pode-se entender como atitudes justas as eqüitativas, nas quais recursos e benefícios são distribuídos de forma desigual, mas em conformidade com as necessidades de usuários dos serviços. Por exemplo, os recursos destinados à atenção primária, secundária e terciária deverão ser divididos igualmente ou eqüitativamente? Os benefícios e serviços de uma região em processo epidêmico devem ser planejados e distribuídos da mesma maneira que outros serviços que mantêm uma rotina normalizada de atendimento à população? Maior número de profissionais para atuar na assistência à criança do que na assistência ao adulto e ao idoso (ou vice-versa)? População de países pobres com saúde deficitária e morbidez são campos preferenciais de pesquisa por apresentarem menor expectativa de vida e impossibilidade de recuperação?

Assim sendo, os critérios de justiça seguem sendo balizas importantes no julgamento e valoração de situações que envolvem o ser humano. Ao longo da história, pode-se ver que a concepção de justiça vai adquirir diferentes matizes, mas o sistema de valorização da autonomia e do respeito ao sujeito (éticas modernas) ao lado do sistema aristotélico é um dos pilares da reflexão ética em saúde. Nesse sentido a noção de dignidade das pessoas adquire também importância. Conceitualmente, origina-se da noção categórica kantiana de que o ser humano deve ser respeitado como algo importante por si mesmo, ou seja, pelo fato de ser pessoa, adquire um valor intrínseco(3).

No que diz respeito à noção de injustiça, proposta por Aristóteles, como sendo toda atitude ou ação contrária aos parâmetros do que é justo, somando-se à noção kantiana de dignidade da pessoa como tendo valor em si mesma, é possível entender a idéia de desigualdade e associá-la à concepção de pobreza apresentada anteriormente.

Pobreza e riqueza podem ser consideradas resultado de determinada maneira de gerar e distribuir bens com maiores oportunidades de acumulação de capital e fruição para alguns países e menores, ou quase nulas, para outros. O fato, por exemplo, de os serviços de assistência à saúde nos países em desenvolvimento serem geralmente precários em relação às necessidades de atenção e que, além disso, os investimentos e cifras destinadas são insuficientes colocam em questionamento ético a questão da desigualdade de oportunidades e condições de vida, se comparados aos bens e recursos existentes nos países desenvolvidos.

Muitos especialistas lançam mão da justificativa para o grande fosso entre ricos e pobres, nesta época contemporânea, do fenômeno da globalização. Não se desenvolverá aqui essa vertente, mas, como observação, é bom lembrar que há países que se encontram em "estado de severa pobreza" que, no entanto, sequer conseguem participar minimamente das relações que caracterizam o mundo globalizado, como alguns países da África(4).

POBREZA E PESQUISA: EXPLORAÇÃO

Durante a última década, na pesquisa biomédica, um dos desafios mais candentes tem sido a realização de ensaios clínicos nas nações pobres, especialmente quando esses estudos são coordenados e patrocinados por países ricos ou pela indústria farmacêutica. Essa polêmica passou a ocupar lugar considerável na agenda internacional da ética em pesquisa quando vieram a público as pesquisas, feitas em alguns países africanos e asiáticos, em 1996, com financiamento norte-americano, nas quais as mulheres positivas para HIV eram randomizadas em grupos de tratamento com a metade da dose das medicações anti-retrovirais ou grupo controle com placebo. Naquela época, na prática clínica, já estava em uso a combinação de anti-retrovirais e outros medicamentos para a prevenção da transmissão vertical do HIV, o que contra-indicaria, eticamente, com base na Declaração de Helsinque(5), o uso do placebo no grupo controle. Uma das justificativas para a realização dos estudos nos países asiáticos e africanos é que eles não seriam aprovados para serem realizados nos EUA, uma vez que a existência de tratamento de reconhecida eficácia impediria a inclusão de sujeitos em grupo controle com placebo. Ademais, foi alegado que, como os países asiáticos e africanos, onde seria realizado o estudo, eram pobres e não tinham sistema de saúde organizado, as mulheres naquela região, usualmente, não recebiam tratamento algum para AIDS e, assim, ao serem incluídas no grupo placebo não estariam sendo expostas a risco maior do que já enfrentavam em sua vida diária. Ou seja, a pobreza justificaria um duplo padrão ético. As exigências éticas seriam mais rigorosas nas nações ricas e mais lassivas quando as pesquisas com seres humanos fossem desenvolvidas nos países ou nas nações pobres. A vulnerabilidade das pessoas ou grupos não seriam mais justificativa e motivação para sua proteção, com a não inclusão na pesquisa ou a inclusão, mas cercada de medidas corretivas de desigualdades injustas e, também, potencialmente geradoras de injustiças.

A autonomia e a vulnerabilidade das pessoas na ética em pesquisa, e mesmo na ética clínica, tem sido habitualmente tratada em termos da aplicação do formulário de consentimento e da informação transmitida aos sujeitos. Entretanto, para compreender a complexidade da autonomia e da vulnerabilidade humanas, é necessário vislumbrar desafios que ultrapassam a relação entre o investigador ou o profissional de saúde e o sujeito de pesquisa ou usuário do serviço de saúde. O respeito ativo às pessoas como sujeitos autônomos requer análise crítica das condições sociais nas quais a pessoa vive. É necessário compreender e ponderar, de maneira cuidadosa, os fatores socioestruturais que interferem, determinando e condicionando, a vida e a saúde das pessoas. Na realidade, são esses fatores que, em última instância, acabam por definir a esfera mais circunscrita das relações humanas. A vulnerabilidade e a autonomia humanas, apesar de ontológicas, têm suas expressões urdidas na rede social. Assim, é mister contextualizar e alargar os horizontes do debate acerca da vulnerabilidade na ética em pesquisa, incluindo nas considerações as dimensões individual e coletiva do ser vulnerável.

"Vulnerabilidade" e "ser vulnerável" não são o mesmo. Vulnerabilidade é dimensão antropológica, essencial à existência humana. "Ser vulnerável" significa estar susceptível a, ou em perigo de sofrer danos. Além da vulnerabilidade básica, intrínseca à existência humana, comum a todos os seres humanos, há pessoas que são afetadas por circunstâncias desfavoráveis como a pobreza, falta de educação, difíceis condições geográficas, enfermidades crônicas ou endêmicas, falta de acesso às instituições de cidadania ou outro infortúnio que os tornam especialmente vulneráveis. Essa vulnerabilidade socialmente determinada é o que se pode chamar de "secundária" ou "circunstancial" ou, ainda, "susceptibilidade"(5).

Com essa compreensão introduz-se a idéia das relações de poder entre as pessoas, os grupos e as nações. E, assim, aponta-se para a natureza dinâmica da vulnerabilidade, o que é chave para a emancipação dos usuários dos serviços de saúde e dos sujeitos de pesquisa. A pessoa vulnerável com necessidades não atendidas, com dificuldades para acesso aos bens, serviços e realização de suas capacidades vê-se mais frágil na negociação que pode ser menos justa e igualitária, predispondo-a a danos. Uma concepção marcada pela tendência bipolar de classificar e rotular as pessoas e os grupos em "vulneráveis" e "não vulneráveis" não favorece espaço para a construção da emancipação dos usuários e sujeitos, pois oculta a dinamicidade da vulnerabilidade, que não é um estado dado, mas fruto de relações de dominação e exploração. Por outro lado, de uma compreensão mais ampla e que contemple os aspectos sociais da vulnerabilidade decorre a obrigação positiva de tornar real a autonomia das pessoas por meio de intervenções para reduzir a vulnerabilidade, tanto das pessoas como dos grupos e populações(6).

A vulnerabilidade do sujeito de pesquisa não se reduz à definição em termos de sua idade ou capacidade cognitiva, mental, legal ou de discernimento para a tomada de decisão e para assinar o termo de consentimento informado. A visão tradicional do consentimento imputa os encargos da vulnerabilidade do sujeito apenas no aspecto individual, como se a relação entre o pesquisador e o sujeito não ocorresse no bojo de um contexto social complexo e que acaba por influenciá-la.

A vulnerabilidade de uma pessoa, ou de um grupo social específico, resulta de um conjunto de fatores e aspectos não somente individuais, mas também macrossociais, contextuais, relacionais, políticos e organizacionais que determinam tanto o nível de suscpetibilidade dos indivíduos a riscos como sua capacidade para o enfrentamento desses e para a tomada de decisão sobre sua vida e saúde(6). Assim, o foco das discussões em torno da vulnerabilidade não pode tomar as fragilidades, as dificuldades e os carecimentos vividos pelas pessoas como "características naturais, inerentes" delas mesmas, ou dos grupos e das nações, aos quais pertencem. Mas, deve ponderar a situação de vulnerabilidade em meio ao contexto socioestrutural no qual as pessoas vivem a fim de analisar e compreender o conjunto de fatores e circunstâncias que determinam e condicionam a situação vulnerável das pessoas, dos grupos e das nações.

Essa abordagem mais ampla da vulnerabilidade propõe-se a avaliar a coexistência, a sinergia e a conjunção de variados elementos e fatores de diferentes ordens amalgamados na construção da vulnerabilidade individual e grupal. Por isso, as intervenções para redução da vulnerabilidade não podem se restringir a uma resposta individual ou uma ação única e isolada, mas requerem a articulação dos diversos atores sociais implicados e de distintas ações de maneira a propiciar uma resposta social e intervenções, em diferentes níveis. Isso possibilita percepção mais ampla e precisa das especificidades, singularidades e diferenças existentes na vida das pessoas e na organização da sociedade que aumentam, estabilizam ou restringem as opções para a eleição de alternativas na tomada de decisão individual. Ainda oferece um leque de respostas mais estruturadas, articuladas, dinâmicas, de alcance mais abrangente e mais apropriadas à complexidade que conforma a vulnerabilidade das pessoas, grupos e populações na sociedade atual(6).

É possível propor três níveis para a avaliação e intervenção na vulnerabilidade do sujeito de pesquisa(7). O primeiro nível é o individual, que inclui acesso à informação, competência para tomada de decisão, direito à liberdade, direito à privacidade e confidencialidade, qualidade da relação pesquisador-sujeito, compreensão do sujeito quanto a seus direitos, alternativas de serviços e meios diagnósticos e terapêuticos disponíveis.

Um segundo nível é programático e diz respeito, principalmente, às instituições que regulamentam a ética em pesquisa com seres humanos. Abarca desde a existência de regras ou diretrizes éticas para a investigação com sujeitos humanos até a implementação e funcionamento de comissões, locais e internacionais, que avaliem e acompanhem os aspectos éticos envolvidos nas pesquisas e no uso dos sujeitos.

Um terceiro nível é o social, que inclui as condições de vida, a rede social e os conflitos de interesses envolvidos na pesquisa com seres humanos. As condições de vida abarcam a pobreza, oportunidades de educação, nível de desenvolvimento educacional, padrões de distribuição de renda, desigualdades sociais, exclusões sociais, organização e qualidade do sistema de saúde, facilidades e barreiras para acesso aos cuidados médicos, costumes religiosos ou culturais e estruturas de poder de líderes locais e grupais. O suporte da rede social inclui a visão da comunidade acerca da pesquisa biomédica, a exclusão de determinados grupos sociais, fomento às políticas sociais e às leis para proteção dos sujeitos de investigação, existência de organizações não-governamentais para a proteção dos direitos dos sujeitos e dos pacientes, acesso dos sujeitos aos benefícios resultantes da pesquisa, retorno dos benefícios à comunidade onde o estudo foi realizado. Os conflitos de interesses implicam a relação da indústria de insumos e medicamentos com as universidades e com os periódicos científicos: aceitação para publicação somente de artigos cujos resultados sejam positivos, influência dos patrocinadores na publicação dos resultados da pesquisa, patrocínio da indústria para pesquisa biomédica, periódicos, eventos científicos, pesquisadores, atividades de educação básica e continuada e, até mesmo, para as atividades de assistência nas universidades e nos hospitais universitários, altos índices de publicação e produção exigidos pelos critérios de avaliação universitária.

Autonomia e poder não são o mesmo, entretanto, a autonomia é uma expressão de poder. A vulnerabilidade sociocultural transparece nas maneiras desiguais e excludentes de distribuição sociológica do poder de produção e de reprodução nas sociedades. Poder e vulnerabilidade caminham juntos. O ethos cultural contemporâneo, fascinado pelo poder, pretende esquecer-se da condição humana de vulnerabilidade do que resulta não saber manejá-la. A ocultação da vulnerabilidade redunda no encobrimento de suas causas sociais. Essa tentativa de esconder as causas sociais da vulnerabilidade faz da autonomia um discurso para responsabilizar as vítimas de suas próprias feridas. A bioética desenvolvida nos paradigmas latino-americanos tem levado a sério os desafios da vulnerabilidade social e suas causas mais profundas, a fim de que a autonomia seja construída consistentemente. Tem combatido, assim, o ethos do individualismo que pulveriza a razão da responsabilidade interpessoal, domestica a capacidade de indignar-se frente às iniqüidades, reduz a ética a aspectos defensivos, inibindo seu dinamismo afirmativo e criativo(8).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

No intuito de propor uma última questão - mas sem encerrar o debate - convém levar em conta que, em termos do avanço das ciências biomédicas para aperfeiçoamento de conhecimentos em benefício da saúde das pessoas, os testes necessitam ser feitos (de acordo com protocolos aceitos) em humanos. É pertinente, então, lançar mão do princípio aristotélico de justiça como reciprocidade(9), o qual, para essa discussão, exige que sujeitos da pesquisa recebam os benefícios pelo fato de participar. Não se justificaria que um sujeito paciente que tenha recebido placebo, ao finalizar o estudo não receba o medicamento, cujo efeito terapêutico foi aprovado pelo estudo. Também não se justificaria que um sujeito que tenha se beneficiado da medicação fique sem ela, pelo fato dessa não estar ainda comercializada no país. Isso, sem esquecer que quando estiver disponível para comercialização, o preço praticado é, usualmente, proibitivo para quem costuma ser sujeito de pesquisa. Ocorre exploração quando as pessoas ou as agências ricas ou poderosas se aproveitam da pobreza, debilidade ou dependência dos outros, usando-os para alcançar suas próprias metas (a dos ricos e poderosos). A pobreza nos interpela. Clama por respostas claras e ações engajadas de resgate da dignidade do ser humano e em defesa da vida ameaçada e da cidadania plena para todos.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Recebido em: 15.5.2007

Aprovado em: 20.8.2007

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  • Pobreza, bioética e pesquisa

    Cléa Regina de Oliveira RibeiroI; Elma Lourdes Campos Pavone ZoboliII
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      09 Out 2007
    • Data do Fascículo
      Out 2007

    Histórico

    • Recebido
      15 Maio 2007
    • Aceito
      20 Ago 2007
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