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O processo de cuidar sob a perspectiva da vulnerabilidade

Resumos

O presente artigo, de natureza teórica, trata do processo de cuidar sob a perspectiva da vulnerabilidade, cuja condição leva à necessidade do cuidado. O texto analisa esse processo, o qual se caracteriza pelo encontro entre o ser que cuida e o ser cuidado. O paciente hospitalizado é um ser extremamente vulnerável que vivencia experiência ímpar e a cuidadora exerce papel fundamental no sentido de reduzir essa situação e manter sua autonomia e dignidade.

vulnerabilidade; autonomia profissional


This theoretical article deals with the process of caregiving in the vulnerability perspective, whose condition leads to the need for care. The text analyzes this process, which is characterized by the encounter between the caregiver and the care receiver. The hospitalized patient is an extremely vulnerable being, experiencing something unique. The caregiver plays a very important role in reducing this situation and preserving his or her autonomy and dignity.

vulnerability; professional autonomy


El presente artículo de naturaleza teórica, aborda el proceso del cuidar bajo la perspectiva de la vulnerabilidad, cuya condición lleva a la necesidad de cuidado. El texto analiza este proceso, que tiene como característica la conjunción entre el ser que cuida y el ser cuidado. El paciente hospitalizado es un ser bastante vulnerable que pasa por una experiencia singular. Por otro lado, la cuidadora tiene un rol fundamental para reducir esta situación y mantener su autonomía y dignidad.

vulnerabilidad; autonomía profesional


ARTIGO TEÓRICO

IDoutor em Educação, Docente aposentada pela Escola de Enfermagem, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Brasil, e-mail: waldowvr@portoweb.com.br

IIDocente da UNILASALLE de Canoas, Brasil

RESUMO

O presente artigo, de natureza teórica, trata do processo de cuidar sob a perspectiva da vulnerabilidade, cuja condição leva à necessidade do cuidado. O texto analisa esse processo, o qual se caracteriza pelo encontro entre o ser que cuida e o ser cuidado. O paciente hospitalizado é um ser extremamente vulnerável que vivencia experiência ímpar e a cuidadora exerce papel fundamental no sentido de reduzir essa situação e manter sua autonomia e dignidade.

Descritores: vulnerabilidade; autonomia profissional

INTRODUÇÃO

Compreende-se como processo de cuidar a forma como ocorre o cuidado ou deveria ocorrer. Esse processo, que será descrito de forma resumida neste texto, trata do encontro de cuidar que ocorre entre cuidadora e ser cuidado

Este texto, portanto, tem como finalidade analisar, de forma teórica, alguns pontos importantes sobre o processo de cuidar. Nesse processo, são enfatizados o cuidador e o ser cuidado os quais vivenciam uma experiência - o momento de cuidado -, caracterizado como encontro de cuidado. Esse cuidado é visualizado sob a perspectiva da vulnerabilidade que, no presente texto, é representado pela doença e pela hospitalização, ou seja, a condição do ser estar doente e hospitalizado.

CUIDADO: INTERPRETAÇÃO FILOSÓFICA

O cuidado é uma maneira de ser homem, possui significado a partir do próprio homem. Inclui comportamentos, atitudes, valores e princípios que são vividos cotidianamente pelas pessoas em determinadas circunstâncias, porém, antes de tudo, diz respeito ao ser, ou, como prefere Santin, ao homem(2).

O ser humano nasce com potencial de cuidado e isso significa que todas as pessoas são capazes de cuidar. Evidentemente, essa capacidade será melhor ou menos desenvolvida conforme as circunstâncias em que for exercida durante as etapas da vida.

O ser humano é um ser de cuidado, é a sua essência. Ele existe antes do próprio ser, é a priori, "está na raiz frontal da constituição do ser humano"(3). É no cuidado que se encontra o ethos necessário para a sociabilidade humana e para identificar a essência do ser.

É reconhecido que seres humanos necessitam de cuidado para se desenvolverem; em maior grau na infância e em fases tardias da terceira idade, quando evidenciam dependência na execução de suas atividades diárias, tanto de ordem físico-sociais, quanto mentais.

A doença, a incapacidade e o sofrimento são algumas das circunstâncias que conferem estado de vulnerabilidade, assim como as anteriores mencionadas, na infância e terceira idade e são condições que levam ao cuidado(4).

A cuidadora deve estar sensibilizada e habilitada para ajudar e apoiar nas circunstâncias de vulnerabilidade e, nesse sentido, o cuidar tem seu ponto de máxima importância, pois os esforços para buscar a restauração vão além da ordem física, representando apoio e permitindo que o outro, o ser cuidado, seja ele mesmo, em sua própria especificidade, em sua singularidade. A cuidadora busca, em última análise, manter a integridade do ser vulnerável, independente do que resulte sua condição, seja de cura, seja de alívio em fase de terminalidade. A ajuda se manifesta no manejo em tratar com o sofrimento, incapacidades e limitações ou, ainda, no caso de apoio em estados de medo e ansiedade, entre outras condições.

O processo de cuidar abrange, além de procedimentos e atividades técnicas, ações e comportamentos que privilegiam não só o estar com, mas o ser com. Melhor dito, acredita-se que procedimentos, intervenções e técnicas realizadas com o paciente só se caracterizam como sendo cuidado no momento em que comportamentos de cuidar sejam exibidos, tais como: respeito, consideração, gentileza, atenção, carinho, solidariedade, interesse, compaixão etc. O cuidar é um processo interativo, só ocorre em relação ao outro. O modo de ser do cuidado envolve relação não de sujeito-objeto, mas sim de sujeito-sujeito. No contexto do processo de cuidar, essa relação se caracteriza por ser de cunho profissional, sujeito-outro, baseada no respeito e, caso recaia em objetificação, enquadrar-se-ia em relação de não-cuidado(5).

Hoje se propõe uma ressignificação do cuidar que engloba, como já foi anteriormente exposto, dimensão bem mais abrangente e integralizadora, incluindo, de forma mais ampla, complexidade de natureza filosófico-antropológica.

O cuidado é a essência humana do ser. Compõe a natureza, o vir-a-ser humano, portanto, assume dimensão existencial. É também de caráter universal, embora assuma conotações próprias, dependendo do contexto cultural.

Vários autores apontam para a responsabilidade no cuidado a responsabilidade e o compromisso com o outro, que representa a dimensão ética(1,4,6). Em Noddings, também se encontra essa dimensão: a resposta ao impulso de cuidar resulta em ato de compromisso e compõe um ideal ético(7).

VULNERABILIDADE SOB A PERSPECTIVA DO SUJEITO

A vulnerabilidade está diretamente associada com o cuidar, conforme já mencionado em item anterior, assim como a idéia de responsabilidade. Tomar-se-á por empréstimo algumas idéias de Francesc Torralba y Roselló para analisar a questão da vulnerabilidade, como expressam os tópicos que seguem.

Todo ser humano é vulnerável, em todas as suas dimensões, ou seja, é vulnerável fisicamente porque está sujeito a adoecer, a sofrer dor e incapacidade e, por tudo isso, necessita cuidado; é vulnerável psicologicamente, porque sua mente é frágil, necessita de atenção e cuidado; é vulnerável socialmente, pois, como agente social, é suscetível a tensões e injustiças sociais; é vulnerável espiritualmente, significando que sua interioridade pode ser objeto de instrumentalizações sectárias(4). Na verdade, a estrutura pluridimensional do ser, seu mundo relacional, sua vida, seu trabalho, suas ações, seus pensamentos, os sentimentos e até suas fantasias são vulneráveis. Dessa forma, pode-se dizer que o ser humano é mais vulnerável do que muitos seres vivos, no entanto, ele tem maior capacidade para se proteger.

No presente texto, o interesse foi analisar a vulnerabilidade que o ser humano experimenta - a enfermidade - que se caracteriza por ser uma das mais extremas e que convoca para o cuidado.

Torralba também faz uma relação entre filosofia e vulnerabilidade no sentido de que, ao experienciar a vulnerabilidade, o ser desencadeia um processo filosófico(4). Em outras palavras, ao padecer de algum mal, o ser humano filosofa e isso porque há necessidade de encontrar sentido no sofrimento, no adoecimento, na morte; é uma forma de dar uma resposta à sua vulnerabilidade. Nessa linha de pensamento, filosofar e cuidar são ações muito semelhantes, uma agindo no plano intelectual e a outra se desenvolvendo fundamentalmente no plano da práxis.

Fenomenologicamente, pode-se distinguir a vulnerabilidade ontológica, a ética, a social, a natural e cultural. A ontológica apresenta níveis distintos; o primeiro diz respeito ao ser, à sua constituição ontológica: um ser vulnerável não é um ser absoluto e auto-suficiente. O ser humano é um ser dependente, limitado e radicalmente determinado por sua finitude.

A vulnerabilidade ética pode se apresentar no sentido da labilidade, que é a capacidade do ser de sucumbir, de fracassar, pois é uma estrutura finita. Por outro lado, existe a capacidade de agir no sentido moral, de proteger o ser mais frágil e necessitado e isso tem relação com o outro e que, por sua vez, também se relaciona com o cuidado, no sentido de se colocar no lugar do outro, de apoiá-lo. É um imperativo ético, ou seja, uma espécie de dever moral para com seu próximo.

A vulnerabilidade natural significa o entorno, o meio ambiente do ser humano que está sujeito a mudanças e transformações. A natureza é frágil, considerando especialmente a ação técnica do ser humano. A intervenção no meio ambiente repercute diretamente no ser e na realização de sua liberdade. É por isso que se deve cuidar da natureza. O deterioramento da realidade natural afeta gravemente a estrutura pessoal do ser assim como sua forma de viver, de trabalhar e de amar.

A vulnerabilidade social diz respeito à sociabilidade do ser humano ele é um ser inevitavelmente relacional. A relação interpessoal pode se desenvolver no plano da amizade, do amor, do respeito e da contemplação; pode também se expandir no plano da violência e da instrumentalidade. A vulnerabilidade social, portanto, é a possibilidade que tem o ser humano de ser objeto de violência no seio da sociedade, de perder sua segurança social.

A vulnerabilidade cultural pode ter sua manifestação máxima na ignorância. Por exemplo, na relação assistencial o paciente sofre não só uma vulnerabilidade do tipo ontológica. Ao adoecer, não só está afetada a sua estrutura anatômica e fisiológica, mas também a sua vulnerabilidade cultural, representada pelo desconhecimento dos motivos e razões de sua enfermidade ou por desconhecer a quais cuidados e tratamentos está sendo submetido. Nesse sentido, o profissional tem o dever moral de cuidar do paciente e isso significa não só ajudar em seu restabelecimento, mas em proporcionar-lhe informações adequadas e pertinentes. Nessa ação de prestar informação o profissional cuidador(a) estará utilizando a competência, a empatia e a arte de comunicação, além, é claro, de estar se relacionando de forma respeitosa, na preservação ou resgate da auto-estima.

A informação deverá estar relacionada às concepções de saúde e doença que o paciente tem e, dessa forma, fala-se que o profissional é também vulnerável, pois deve superar a sua vulnerabilidade cultural por meio do conhecimento personalizado do paciente, o que permitirá tratamento de forma mais digna.

Quando o ser adoece, quando não é capaz de desenvolver o ritmo habitual de sua cotidianidade, seja por uma patologia de ordem somática, social ou psicológica, ele percebe empaticamente a vulnerabilidade de seu ser. Talvez seja nessa circunstância que o ser tem máxima percepção de sua vulnerabilidade. Ao conscientizar-se da sua situação, o ser a aceita bem melhor. Por outro lado, a cuidadora precisa estar consciente da vulnerabilidade do outro, ou seja, da sua extensão e natureza e assim empreender esforços no sentido de ajudar, de cuidar. Para empreender esforços em prol do cuidado, a cuidadora deve envolver-se no processo de trabalho nas organizações de saúde, de forma a buscar e realizar não só o que lhe compete, mas aquilo que é idealizado na enfermagem. O cuidado está inserido no cotidiano de trabalho da enfermagem, pois representa o núcleo dos processos de transformações das situações de saúde-doença dos seres humanos, ou seja, é o produto final(8).

CARACTERIZAÇÃO DO PROCESSO DE CUIDAR

O processo de cuidar ocorre dentro de uma cultura organizacional hospitalar que apresenta componentes de ordem variável e que podem ser visualizados conforme apresentado de forma gráfica e descrita em Waldow(9). Nos componentes destacam-se o meio ambiente, o qual, por sua vez, inclui o meio ambiente físico, o meio ambiente administrativo, o meio ambiente social e o meio ambiente tecnológico. Esses componentes não serão analisados neste texto, pois o que será privilegiado é o encontro entre cuidadora e ser cuidado, embora se saliente que tais componentes desempenham papel fundamental para que o processo de cuidar se realize de forma satisfatória. Os ambientes mencionados compõem o cenário da enfermagem que, em sua função administrativa, é responsável pelas atividades de cuidar, além das ações de educação, da organização, do planejamento e da avaliação, as quais englobam interações humanas de diferentes culturas, saberes e sentimentos.

O momento de cuidar é considerado de caráter transformador, no qual ambos, ser cuidado e cuidadora, crescem, no sentido de que o primeiro apresenta atitude mais positiva e serena frente à sua experiência com a enfermidade, incapacidade e mesmo à morte, fruto de tranqüila e amistosa relação de confiança com seus cuidadores.

É importante que o paciente, sendo considerado e respeitado como uma pessoa singular, todas as dúvidas sobre sua situação sejam esclarecidas. É importante, também que ele aufira maior conhecimento sobre si, sua enfermidade, enfim, sua condição existencial do momento, a fim de empreender, de forma serena, estratégias para enfrentar os obstáculos que se apresentam e delinear planos futuros.

O conhecimento de si, de sua circunstância e de suas limitações e potencialidades, auxiliarão em sua auto-estima e confiança na sua situação, preservando sua identidade, além da coragem. Por outro lado, no plano físico e emocional, pode-se mencionar alívio da dor, conforto, tranqüilidade e relaxamento, bem-estar, entre outros. Sentir-se acolhido, protegido, bem cuidado irá influenciar, sobremaneira, para que a experiência que o paciente esteja vivenciando se torne a mais amena possível.

O crescimento, no que tange à cuidadora, se traduz por satisfação, sensação de dever cumprido, realização, melhora da auto-estima, mais segurança e confiança, além de prazer e bem-estar. A experiência adquirida a cada nova situação vivenciada e a cada novo encontro acrescenta conhecimento ao profissional. Toda nova história de vida e as experiências dos pacientes ajudam a conhecer melhor as pessoas assim como a si própria; suas formas de cuidar se enriquecem a partir das vivências com os pacientes, permitindo que evolua de forma pessoal e profissional.

A EXPERIÊNCIA DO SER CUIDADO

O paciente, ao ser cuidado, vivencia uma experiência única, tanto em relação à sua enfermidade quanto em relação à hospitalização

Todos esses aspectos exacerbam a vulnerabilidade do paciente, tornando-o mais frágil; sua experiência de viver encontra-se interrompida, desarticulada, fora do seu ritmo normal. A relação do paciente com os outros também se encontra comprometida, sua intimidade, privacidade são invadidas, seu papel social se modifica e o paciente se sente oprimido, tolhido em seus movimentos e pensamentos, humilhado, dependente.

É comum ocorrer uma redefinição de valores. O paciente revê o que e como era, o que e como é e está agora e se questiona sobre seu futuro, naquilo e como poderá vir a ser. Há uma reflexão sobre o sentido da vida, sobre as prioridades.

Vários questionamentos ocorrem por ocasião da doença, durante a hospitalização e durante o processo de cuidado, tais como: o que está acontecendo comigo? O que farão/estão fazendo comigo? Isso vai doer? Será que vou morrer? Essas pessoas são competentes, sabem o que estão fazendo? São capazes de me ajudar? E assim por diante.

Ao perceber sua situação, o paciente poderá aceitar ou não o cuidado, porém, via de regra, submete-se à autoridade médica em relação ao seu diagnóstico e tratamento e se coloca em suas mãos, assim como aceita e se submete aos demais cuidadores e aos seus cuidados. Aceitar e colaborar relacionam-se de perto com vários itens descritos por Pellegrino e analisados por Francesc Torralba, no que se refere ao princípio de autonomia e que será apresentado logo a seguir.

Para aceitar e colaborar no cuidado, é imprescindível a confiança nos cuidadores e o conhecimento, ou seja, o quanto o paciente está informado, consciente sobre o que se passa consigo. Ele responderá ao tratamento e ao cuidado na medida em que a confiança, acima mencionada, é preservada e isso corresponde a ter consciência da competência, responsabilidade e da atenção dispensada pela cuidadora. Uma abordagem carinhosa, interessada e respeitosa é a chave também para que o paciente responda positivamente e isso inclui tranqüilidade e segurança.

Essas respostas podem ser verificadas através de vários sinais, seja através de expressão de dúvidas, queixas e mesmo pelo silêncio. Respostas objetivas podem ser detectadas, tais como: relaxamento, redução da dor, febre, sinais vitais estabilizados, além de dados percebidos pela cuidadora como alguns já citados, de postura, expressão facial, entre outros.

A QUESTÃO DA AUTONOMIA

Cuidar de alguém significa velar pela sua autonomia, desenvolver suas capacidades e não se opor ou ir contra suas decisões livres e responsáveis. Não obstante, existem circunstâncias, tais como as que estão relacionadas à necessidade de cuidado, porque a autonomia do ser encontra-se também vulnerável. Essas circunstâncias requerem ,análise da relação entre a ação de cuidar e os limites da autonomia da pessoa, pois a autonomia da pessoa não é ilimitada, apresenta graus distintos e registros de desenvolvimento, é, portanto, dinâmica e concreta(1).

Ainda, valendo-se das idéias de Torralba, sob perspectiva filosófica e bioética, existem formas de compreender autonomia e, segundo ele, "Autonomia se llama al hecho de que una realidad esté regida por una ley propia, distinta de otras leyes, pero no forzosamente incompatible con ellas"(1).

A autonomia não tem direcionalidade, o que difere de liberdade, que se orienta, fundamentalmente para o bem. Difere também de livre-arbítrio, pois esse está relacionado à capacidade humana de eleger entre várias opções. Essa capacidade, contudo, pode não ser autônoma, pode estar totalmente determinada ou condicionada por elementos exógenos da própria subjetividade. A autonomia ocorre na ausência de coação e de capacidade para clarificar as alternativas que se apresentam por si mesmas. Do ponto de vista interno da autonomia, ela se refere a um desejo profundo que se expressa através de suas decisões mediadas pela reflexão crítica.

No adoecimento, a circunstância do ser cuidado, o paciente, se caracteriza, em geral, pela dor, pela ansiedade e pelo medo do futuro; assim, a autonomia está reduzida, por vezes, severamente reduzida e até mesmo ausente. Torralba utiliza o termo circunstância (termo que se tomou por empréstimo ao longo deste texto), explicando que esse conceito filosófico, oriundo de Ortega y Gasset, se refere ao ser, que é um ser-de-relação e se encontra inserido na história, pertence a uma circunstância, ou seja, a um determinado marco social, cultural, espiritual e lingüístico, faz parte da identidade pessoal e é determinada pelo marco de atuação e de decisão pessoal(1).

O ser cuidado apresenta limites em sua autonomia que podem ser de ordem médica, pela incerteza de sua condição patológica, pode estar relacionada à situação de urgência, pode estar limitada em função do poder familiar, e pode estar, por fim, também limitada em função de fatores econômicos, além dos limites impostos por lei.

Outro aspecto sobre esse assunto, que deve ser lembrado, é que o princípio de autonomia não deve ser compreendido de forma isolada, separadamente do princípio de dignidade, de integridade e de vulnerabilidade. Deve ser também visualizado em íntima relação com o princípio de responsabilidade. Nesse sentido, diz-se que é uma autonomia sem responsabilidade, melhor dizendo, uma decisão sem responsabilidade, que não seja capaz de assumir e prever as conseqüências de tal decisão, não pode ser considerada autonomia no sentido moral.

O tema autonomia não se refere apenas ao âmbito do ser cuidado, mas também ao que se considere da alçada dos profissionais cuidadores. No âmbito da saúde está relacionado à questão de competências e é um assunto bastante amplo e complexo que não será abordado aqui.

O SER QUE CUIDA

É importante que a cuidadora tenha consciência do que se passa ou do que pode vir a se passar com os pacientes (seres vivenciando uma circunstância de vulnerabilidade) e, para isso, requer-se não só competência profissional, mas sensibilidade, discernimento e intuição.

O conhecimento do paciente, sua história, sua biografia, experiências anteriores, sua motivação, expectativas, rituais de cuidado e grau de vulnerabilidade serão de total ajuda no processo de cuidar. O conhecimento do paciente permite identificar e entender suas reações mais prontamente. Estar disponível não só para o paciente, mas para sua família também é fator valioso. A família esclarecida, bem cuidada e apoiada poderá colaborar muito no cuidado.

Estudo revela que, na visão da enfermeira responsável pela coordenação e planejamento do cuidar, o conceito de cuidar foi percebido no sentido de essência e integralidade na relação com o ser e isso envolve, principalmente, o suporte à família(8).

A cuidadora deverá estar receptiva e consciente para o que significa ser paciente, ser cuidado, estar doente, estar hospitalizado, bem como ser sensível aos temores, anseios, medos e inseguranças que ele e sua família possam apresentar. Deve estar preparada para ajudar o paciente no manejo com sua nova situação, a de estar doente, de estar hospitalizado e necessitar de ajuda, deve procurar, ao máximo, resguardar sua identidade e preservar sua integridade.

Durante o processo de cuidar, a cuidadora deverá colocar em prática sua habilidade de pensamento crítico. Em todo esse processo, a reflexão sobre o que está acontecendo, o que está sendo feito e como deverá atuar necessita estar sempre presente. A cada novo encontro deverá avaliar o paciente e sua situação, vendo-o como um todo. Várias hipóteses e questionamentos serão feitos tais como: que situação é esta? Quem é este paciente? O quanto está vulnerável? Como posso ajudá-lo? O que preciso saber sobre ele e sua situação? Entre muitas outras.

Ao identificar o que está acontecendo e o que o paciente necessita, a cuidadora verifica os meios disponíveis para que o cuidado se realize o mais pronto e adequadamente possível. As ações deverão sempre ser acompanhadas por interação, ou seja, conversando, ouvindo, tocando, expressando interesse, disponibilidade, aceitação. Postura, expressão facial e corporal, toques e olhar são indicadores desses itens, portanto, o paciente pode, por sua vez, detectar quando esses comportamentos são genuínos e perder toda a confiança na cuidadora e no seu cuidado quando ausentes ou destoantes. O estar com e o ser com o outro, a presença genuína, é fundamental

Durante e após as ações ou procedimentos, os comportamentos de cuidar devem ser explicitados. As ações em todos os momentos sofrem um processo de avaliação como, por exemplo, de como foi realizada a ação, quem a executou, se há necessidade de reformular ou providenciar algo mais para uma próxima vez, se as condições ambientais e materiais estavam adequadas e assim por diante. Por outro lado, é sugerido refletir sobre seus valores e sentimentos e sobre o significado da experiência em relação à situação vivenciada e refletir também sobre como percebeu a reação do paciente e de sua família durante o encontro. Essa reflexão auxilia no aprendizado da cuidadora para que possa sempre refinar seu cuidado, trazendo bem-estar ao paciente.

A avaliação, portanto, é tanto subjetiva quanto objetiva. A cuidadora monitorará as reações físico-químicas do paciente, níveis das funções vitais e sobre as reações colhidas junto ao próprio paciente. Também poderá verificar as reações do paciente, seu comportamento, se está mais ou menos relaxado, apreensivo, tenso, entre outros itens. Entre as variáveis da cuidadora, mencionam-se sua motivação, sua experiência, seu conhecimento, suas habilidades técnicas, sua capacidade para cuidar e o pensamento crítico.

A cuidadora, portanto, ao cuidar, no seu verdadeiro sentido, interage com o paciente, colocando em prática seu conhecimento, sua habilidade técnica, sua sensibilidade, ajudando-o a crescer. O paciente, por sua vez, em sua experiência genuína, compartilha seu ser, sua experiência, seus rituais de cuidado, suas características, as quais contribuirão para o processo de cuidar de forma positiva. Vale ressaltar que ambos, cuidadora e ser que é cuidado, deverão se beneficiar por meio dos encontros de cuidado.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Pelo exposto, no presente texto, verifica-se que o cuidado, embora necessário em todas as fases da vida e em todos os tipos de vida no planeta, é fundamental quando existe vulnerabilidade. A compulsão para cuidar é acionada sempre e imediatamente que o outro ser se apresenta em estado de vulnerabilidade. O paciente, por sua enfermidade, é um ser vulnerável; a hospitalização, por outro lado, agrava esse estado de vulnerabilidade, o qual, como já foi referido, possibilita o cuidado. Durante o processo de cuidar, o encontro entre ser que cuida e ser cuidado é de máxima relevância, pois, dependendo de como é iniciada a relação, a experiência pode se tornar menos traumática.

É primordial também, durante o momento de cuidar, que se estabeleça confiança por parte do ser cuidado para com a enfermagem e todos os demais cuidadores. O primeiro se sentirá mais seguro e tranqüilo, auferindo conforto e bem-estar e os cuidadores sentir-se-ão realizados, gratificados e auferirão mais conhecimento, tanto profissional quanto pessoal, pois cada novo encontro enriquece ambos os seres envoltos nessa relação. O papel da cuidadora é fundamental para reduzir a vulnerabilidade e manter a autonomia e dignidade do paciente. Nesse sentido, o profissional de enfermagem, em especial, é responsável pela obtenção de um ambiente de cuidado e isso envolve ações que mobilizam tanto recursos humanos, na sua máxima possibilidade de relacionar-se, quanto materiais. A dimensão humana, favorecida pelo ato de cuidar, tem caráter de transformação, de integralização com o mundo, o ambiente e as pessoas.

Pensa-se que a revisão proposta neste texto pode contribuir para algumas reflexões, enaltecendo a importância da experiência vivenciada pela cuidadora e ser cuidado durante o processo de cuidar sob a perspectiva da vulnerabilidade - condição que convoca para o cuidado.

REFERÊNCIAS

  • 1.Torralba FR Ética del cuidar: fundamentos, contextos y problemas. Madrid: Institut Borja de Bioética/Fundacion Mapfre Medicina; 2002.
  • 2. Santin S. Cuidado e/ou conforto: um paradigma para a enfermagem. Texto Contexto Enferm 1998 março; 7(2):111-32.
  • 3. Boff L. Ética e eco-espiritualidade. Campinas(SP): Verus; 2003.
  • 4. Torralba FR. Antropologia del cuidar. Madrid: Institut Borja de Bioética/Fundación Mapfre Medicina; 1998.
  • 5. Waldow VR. O cuidado na saúde: as relações entre o eu, o outro e o cosmo. Petrópolis (RJ): Vozes; 2004.
  • 6. Lévinas E. Totalidade e infinito. Lisboa (PT): Edições 70; 2000.
  • 7. Noddings N. O cuidado: uma abordagem feminina à ética e à educação moral. São Leopoldo (RS): Unisinos; 2003.
  • 8. Borges RF. Humanização da rede pública de Porto Alegre: bases e estratégias das gerências de enfermagem no desenvolvimento do cuidado humano. [Dissertação de Mestrado].Canoas (RS):Programa de Pós Graduação em Saúde Coletiva/ULBRA; 2006.
  • 9. Waldow VR. Cuidar: expressão humanizadora da enfermagem. Petrópolis(RJ): Vozes; 2006.
  • 10.Torralba FR. Filosofia de la Medicina; em torno de la obra de E. D. Pellegrino. Madrid: Institut Borja de Bioética/Fundación Mapfre Medicina; 2001.
  • O processo de cuidar sob a perspectiva da vulnerabilidade

    Vera Regina WaldowI; Rosália Figueiró BorgesII
  • 1
    . Em relação ao encontro, assim comenta Torralba: "En la acción de cuidar a un ser humano se produce el encuentro entre dos universos personales, entre dos mundos libres, entre dos conciencias, entre dos destinos singulares en la história"
    (1).As relações de cuidado que são travadas entre os protagonistas ocorrem durante o encontro denominado momento de cuidado. Esse momento de cuidar se concretiza de forma plena quando se estabelece um laço de confiança do ser cuidado para o ser que cuida e que, em princípio, para despertar essa confiança, deverá demonstrar responsabilidade, competência, respeito e sensibilidade. Compreende-se, em adição, que o ser cuidado, no contexto de uma organização hospitalar, é um ser que se encontra vulnerável.
  • 2
    . O sentir-se doente ou estar doente ocasiona ruptura na relação do ser humano com o mundo. Ele se defronta com uma ameaça (da doença, do sofrimento, incapacidade e morte), com o desconhecido (de sua situação, seu destino, do ambiente estranho e pessoas estranhas) e com sua temporária ou definitiva desestruturação, denominada crise ontológica por Pellegrino, e que afeta o indivíduo como um todo, tanto na ordem física, como psicológica, social e espiritual
    (10).
  • 3
    .
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      29 Set 2008
    • Data do Fascículo
      Ago 2008

    Histórico

    • Recebido
      03 Nov 2007
    • Aceito
      17 Abr 2008
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