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Transtorno afetivo bipolar e terapêutica medicamentosa: identificando barreiras

Resumos

Este estudo identificou as barreiras enfrentadas pela pessoa com Transtorno Afetivo Bipolar (TAB) frente à necessidade de uso contínuo de medicamentos. Foi utilizada a abordagem qualitativa, tendo como referencial metodológico a Teoria Fundamentada nos Dados, à luz do Interacionismo Simbólico. Participaram do estudo 14 pessoas com TAB que estavam em acompanhamento em um ambulatório de transtornos do humor de um hospital universitário e 14 familiares indicados pelas mesmas. A entrevista e observação foram as principais formas de obtenção de dados. Os resultados revelaram duas categorias que descrevem as barreiras enfrentadas pela pessoa com TAB: ter perdas afetivas e cognitivas e ter várias limitações. Constatou-se que a pessoa com TAB sente-se ambivalente em relação à adesão à terapêutica medicamentosa, pois percebem que, qualquer que seja a direção adotada, ela o conduzirá a um contexto de preconceito, de perdas e limitações nas várias esferas da vida cotidiana.

transtorno bipolar; automedicação; relações interpessoais


This study identified the barriers faced by people with bipolar affective disorder (BAD) regarding the need for continuous medication. The qualitative approach was used, and the methodological framework was based on the Grounded Theory in the light of Symbolic Interactionism. In total, of 14 people with BAD, who were being attended at the Outpatient Unit for Mood Disorders of a university hospital, and 14 relatives indicated by them participated in the study. The data collection was carried out through interviews and observation. Two categories emerged from the results, describing the barriers faced by people with BAD: to have affective and cognitive losses and to have several limitations. People with BAD feel ambivalent regarding medication adherence, as they perceive that, no matter the direction they take, it will lead to a context of prejudice, losses and limitations in various spheres of daily life.

bipolar disorder; self medication; interpersonal relations


Este estudio identificó las barreras enfrentadas por las personas con Trastorno Afectivo Bipolar (TAB) ante la necesidad del usar continuamente medicamentos. De enfoque cualitativo, tuvo como referencia metodológico, a la Teoría Basada en los Datos, bajo la perspectiva de la Interacción Simbólica. Participaron del estudio 14 personas con TAB, las cuales seguían tratamiento en un servicio Ambulatorio para Trastornos del Humor de un hospital universitario y 14 familiares señalados por los mismos. Las principales formas de obtención de datos fueron la entrevista y la observación. Los resultados mostraron dos categorías que describen las barreras enfrentadas por las personas con TAB: manifestar olvidos afectivos y cognoscitivos y la aparición de varias limitaciones. Se constató que la persona con TAB sienten ambivalencia con relación al seguimiento medicamentoso, pues perciben que cualquiera que sea la dirección adoptada, las conducirá al preconcepto, pérdidas y limitaciones en las diversas esferas de su vida.

trastorno bipolar; automedicación; relaciones interpersonales


ARTIGO ORIGINAL

IProfessor Doutor, e-mail: amiasso@eerp.usp.br

IIProfessor Titular, e-mail: shbcassi@eerp.usp.br

IIIProfessor Doutor, e-mail: lujope@eerp.usp.br. Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto, da Universidade de São Paulo, Centro Colaborador da OMS para o Desenvolvimento da Pesquisa em Enfermagem, Brasil

RESUMO

Este estudo identificou as barreiras enfrentadas pela pessoa com Transtorno Afetivo Bipolar (TAB) frente à necessidade de uso contínuo de medicamentos. Foi utilizada a abordagem qualitativa, tendo como referencial metodológico a Teoria Fundamentada nos Dados, à luz do Interacionismo Simbólico. Participaram do estudo 14 pessoas com TAB que estavam em acompanhamento em um ambulatório de transtornos do humor de um hospital universitário e 14 familiares indicados pelas mesmas. A entrevista e observação foram as principais formas de obtenção de dados. Os resultados revelaram duas categorias que descrevem as barreiras enfrentadas pela pessoa com TAB: ter perdas afetivas e cognitivas e ter várias limitações. Constatou-se que a pessoa com TAB sente-se ambivalente em relação à adesão à terapêutica medicamentosa, pois percebem que, qualquer que seja a direção adotada, ela o conduzirá a um contexto de preconceito, de perdas e limitações nas várias esferas da vida cotidiana.

Descritores: transtorno bipolar; automedicação; relações interpessoais

INTRODUÇÃO

Cerca de 450 milhões de pessoas sofrem de transtornos mentais, resultantes de complexa interação de fatores genéticos e ambientais(1). Nesse contexto, o Transtorno Afetivo Bipolar (TAB) é considerado um transtorno crônico, caracterizado pela existência de episódios agudos e recorrentes de alteração patológica do humor. A recuperação, após a fase aguda, é geralmente significativa, mas menos completa e isenta de conseqüências daquela que seria desejável(2). Considerando o comprometimento medido por meio de vários parâmetros, o TAB é responsável por 5 a 15% das novas admissões psiquiátricas hospitalares mais prolongadas, consumindo recursos consideráveis dos sistemas de saúde. Estima-se, também, que o tratamento inadequado seja responsável pela maior parte dos custos do transtorno.

Como o TAB é crônico, a adesão ao tratamento é fundamental para aumentar a chance de melhorar o prognóstico. A eficácia está diretamente relacionada à adesão. A partir da década de 50, iniciou-se o desenvolvimento da psicofarmacologia inclusive o uso generalizado de medicamentos antipsicóticos, antidepressivos e ansiolíticos(3). Esses medicamentos representam, nos Estados Unidos, economia de mais de 40 bilhões de dólares, desde 1970; 13 bilhões nos custos de tratamento e 27 bilhões em custos indiretos. Sem os tratamentos modernos, os pacientes tipicamente passavam um quarto de sua vida adulta no hospital e metade dela incapacitados(4).

O tratamento do TAB encontra, entretanto, na sua adesão, grande e sério problema, cujas conseqüências são a falta de controle do transtorno, o aumento de internações evitáveis e aumento no custo dos cuidados de saúde. Por sua magnitude, a não adesão ou a baixa adesão à terapêutica constituem problemas de saúde pública. A literatura tem apontado os motivos para a falta de adesão ao tratamento medicamentoso: não acreditando estar doente, o paciente não vê razão para tomar a medicação; o paciente possui algum pensamento de que a medicação irá lhe fazer mal; o paciente pode estar sofrendo com os efeitos colaterais desagradáveis da medicação e acreditar que a mesma cause mais limitações do que alívio na vida cotidiana, entre outros(5).

Desse modo, a proposta de estudar a questão do tratamento medicamentoso entre as pessoas com TAB vem ao encontro do crescente interesse pelo assunto e à necessidade de se otimizar o tratamento dessa clientela. A importância deste estudo é reforçada pelos aspectos epidemiológicos e evolutivos do TAB. Com base nos grandes estudos populacionais, as estimativas de prevalência de TAB são ao redor de 1% para transtorno bipolar tipo I e II. A partir da introdução do conceito de espectro bipolar, ampliando o limiar para TAB, as estimativas são mais altas, ao redor de 5 a 8%. Indivíduos acometidos têm maiores taxas de desemprego e estão mais sujeitos a utilizarem serviços médicos e serem hospitalizados(6).

Tendo em vista a escassez de estudos sobre adesão ao tratamento medicamentoso que focalizem o fenômeno no paciente, e sabendo-se que o uso de medicamentos consiste em realidade necessária ao cotidiano da pessoa com TAB, acredita-se que melhor compreensão dos fatores associados e determinantes dessa realidade, a partir da perspectiva de quem a vivencia, permitirá testar intervenções que otimizem a adesão e, talvez, melhorem o controle do transtorno e conseqüentes reinternações. Além disso, um trabalho dessa natureza poderá contribuir para discussões com a equipe de saúde envolvida no tratamento, buscando aprimoramento na assistência prestada à pessoa com TAB e ao seu familiar.

OBJETIVO

Identificar as barreiras enfrentadas pela pessoa com TAB frente à necessidade de uso contínuo de medicamentos para estabilização do transtorno, na perspectiva do paciente e familiar.

METODOLOGIA

Este estudo é parte da tese de doutorado intitulada "Entre a cruz e a espada: o significado da terapêutica medicamentosa para a pessoa com transtorno afetivo bipolar, em sua perspectiva e na de seu familiar", defendida em 2006. Foi desenvolvido, após autorização do Comitê de Ética em Pesquisa do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo, no domicílio de pessoas com TAB que realizavam seguimento em uma Unidade Ambulatorial de Transtornos do Humor (APQH) de um hospital universitário, de grande porte, localizado no interior paulista.

Por ser estudo de natureza qualitativa, o número de pessoas com TAB participantes e seus respectivos familiares não foi pré-determinado, mas resultou de um processo de "amostragem teórica". Amostragem teórica significa que a seleção dos participantes é direcionada pela análise emergente. Assim, o critério de seleção é o da relevância teórica para a descoberta e desenvolvimento do fenômeno estudado(7).

Para determinar os pacientes e familiares a serem entrevistados, foram utilizadas várias técnicas: a observação participante, entrevistas informais com pacientes e familiares, durante o período de espera pela consulta no APQH; verificação do prontuário dos mesmos e questionamentos junto aos médicos e enfermeiros para obtenção de dados acerca da terapêutica medicamentosa dos pacientes. Foi, também, utilizada a amostragem por "bola de neve". Esse método consiste na definição de uma amostra por meio de referências feitas por pessoas que compartilham ou conhecem outras que possuem as características de interesse da pesquisa(8).

Determinou-se como critérios de inclusão no estudo para os pacientes: ter diagnóstico médico de TAB, estar utilizando medicamento(s) psicotrópico(s), estar apto a se expressar verbalmente e consentir, por escrito, em participar do estudo. Foi entrevistado um familiar de cada paciente do estudo, mencionado, pelo mesmo, como pessoa mais envolvida ou responsável quanto ao seu tratamento e que consentiu, por escrito, em participar do estudo.

A entrevista gravada, com 14 pessoas com TAB e seus respectivos familiares, e a observação participante, durante as visitas domiciliárias, foram utilizadas como principais estratégias de obtenção de dados e foram realizadas no período de fevereiro de 2005 a janeiro de 2006. A entrevista, como fonte básica de coleta de dados, foi complementada por notas de campo desenvolvidas pela investigadora durante as visitas ao ambulatório e aos domicílios. A entrevista semi-estruturada teve como questão inicial para o paciente: conte-me sobre como é para o sr.(a) usar os medicamentos prescritos pelo médico do ambulatório de psiquiatria, e, para o familiar: conte-me sobre como é para o seu familiar usar os medicamentos prescritos pelo médico do ambulatório de psiquiatria. As questões norteadoras direcionaram os pontos do estudo a serem explorados. Novas questões foram acrescentadas, de acordo com as respostas dos participantes e técnicas para realização de entrevistas, com o intuito de esclarecer e fundamentar a experiência ("poderia contar um pouco mais a esse respeito?", "qual a sua idéia em relação a esse assunto?", entre outras).

A análise dos dados foi embasada, metodologicamente, na Teoria Fundamentada nos Dados (TFD), à luz do Interacionismo Simbólico. Considerando-se que a premissa básica da TFD é a comparação constante, a coleta e a análise de dados caminharam paralelamente. Desse modo, o primeiro passo dessa análise é a própria transcrição dos dados, seguida da codificação dos mesmos. Os procedimentos de codificação são apresentados em três etapas que se complementam: codificação aberta, codificação axial e codificação seletiva(9).

A codificação aberta é a parte da análise que se refere, especificamente, a nominar fenômenos por meio do exame minucioso dos dados, linha por linha(9-10). A comparação dos códigos entre si deu origem às categorias, as quais foram integradas por meio da codificação axial. A identificação das categorias permitiu realizar a codificação seletiva que deu origem à categoria central "Estando entre a cruz e a espada", em relação à terapêutica medicamentosa, revelando a ambigüidade do medicamento enquanto símbolo. Nessa fase, todos os conceitos e categorias foram sistematicamente relacionados à categoria central e, a partir daí, realizou-se a análise de suas relações. Neste artigo, optou-se por apresentar as barreiras enfrentadas e descritas pelas pessoas com TAB frente à necessidade do uso contínuo de medicamentos para estabilização do transtorno. O processo de análise resultou em duas categorias: ter perdas afetivas e cognitivas e ter várias limitações. Para que fosse preservado o anonimato dos pacientes envolvidos, optou-se por identificá-los por letras do alfabeto. Para identificar o familiar de cada paciente, foi acrescentada a letra "F" antes da letra do alfabeto correspondente ao mesmo.

RESULTADOS

Os relatos dos participantes deste estudo revelaram que o transtorno e medicamentos impõem à pessoa com TAB conviver com barreiras como descrito nas categorias a seguir.

Ter perdas afetivas e cognitivas

Ter perdas afetivas

A fragilidade emocional dos pacientes, devido às crises do transtorno, resulta, muitas vezes, em dificuldades afetivas. Eles se queixam de que, quando conseguem encontrar um(a) parceiro(a), freqüentemente seu relacionamento sofre influências de familiares do(a) mesmo(a). Os relatos dos familiares confirmam tais influências. Esses julgam que, por ser uma pessoa com transtorno mental, o paciente pode não ser capaz de prover os cuidados que uma família exige.

Teve os prejuízos afetivos também, os três namorados que eu tive eu perdi por causa do transtorno. Ele falou que eles (família) sentaram pra conversar e decidiram que eu não ia ser uma boa companheira pra ele... não ia dar conta de ser mãe, de cuidar de filho numa cidade grande sozinha. Então ele achou que eu não ia ser auto-suficiente pra isso (G).

Foi muito difícil, a minha família fez muita pressão pra me separar. Quando fala que a mulher está separada do marido que é doente mental eu não julgo de jeito nenhum e falo: realmente é muito difícil. A gente convive porque tem uma proposta diferente de vida (FH).

A impotência sexual, decorrente tanto dos sintomas presentes na fase de depressão do transtorno quanto dos efeitos colaterais dos medicamentos, pode dificultar ainda mais a relação conjugal. No caso do homem, esse aspecto é bastante complexo em virtude de elementos culturais impostos ao seu comportamento sexual. Quando a pessoa com TAB não se insere no papel sexual que a sociedade lhe reserva, sente-se impotente não apenas fisicamente, mas, também, moralmente.

Até certo tempo eu estava me relacionando com uma pessoa, não deu certo, estou com um problema de, como é que fala? De libido, completamente. É difícil eu falo assim, como é que você vai ter uma relação com a pessoa e de repente você não dá resposta, não estava tendo nem ereção mais. É uma coisa que mexe, é um desgaste emocional muito forte, pra mim (I).

Risperdal acabou comigo, me deixou completamente incapacitado em manter relações amorosas com minha esposa, fiquei um ano e quatro meses completamente abstêmio, completamente maluco (E).

Além das perdas afetivas, a pessoa com TAB convive, ainda, com as perdas cognitivas resultantes dos sintomas do transtorno e dos efeitos colaterais dos medicamentos.

Ter perdas cognitivas

A pessoa com TAB avalia sua performance em tarefas cognitivas como prejudicada pelo tratamento medicamentoso. Queixa-se da dificuldade para concentrar-se, mesmo nas atividades que lhe proporcionam prazer, e de falhas na memória, inclusive no que se refere às ações que desenvolve cotidianamente, como leitura, organização de pertences, entre outras.

Eu não consigo... esquecimento... eu não guardo data... a minha memória é um zero à esquerda... minha cabeça não funciona... (I).

Comecei perder organização da vida diária. Comecei perder as coisas, não sabia onde punha, comecei perder algumas noções, eu lia e não captava e eu sempre gostei muito de ler, eu via um filme e não entendia (L).

As perdas cognitivas, como dificuldade de memorização, associadas a outros aspectos inerentes à evolução do transtorno, podem constituir fator de várias limitações cotidianas.

Ter várias limitações

Ter limitações nos estudos

Apesar de desejarem estudar, algumas pessoas com TAB não conseguem se manter na escola, geralmente devido aos freqüentes e longos períodos de ausência por ocasião das crises e internações. Aquelas que têm experiência prévia de crise, ao retomarem os estudos, sentem medo de fazer novas tentativas. As que conseguem estudar têm que conviver com a possibilidade de que a crise ocorra em sala de aula e, quando isso ocorre, sentem-se vulneráveis ao preconceito. Seus depoimentos revelam tentativas frustradas de retomar os estudos.

Eu tentei estudar, só que eu não sei se por causa do medo não consegui. Em 81, eu tive uma crise porque eu fui pra escola e eu não consegui estudar, tenho só a sexta série, eu queria terminar porque terminando eu poderia ter algum campo na vida, mas aí eu não pude (D).

Atrapalhou pelo fato de você estar numa sala de aula, ter crise e as pessoas terem preconceito de você... e você precisar tomar um medicamento e não poder sair da sala de aula... aí o medicamento dava sono, professor nenhum entendia. Ia na secretaria da educação explicar a situação para eu não perder o ano, eles não entendem também... eu perdi quase dois anos por causa desse meu problema (K).

As limitações nos estudos associadas à presença de crises e dos efeitos colaterais dos medicamentos podem resultar em limitações na esfera do trabalho.

Ter limitações no trabalho

Os depoimentos dos pacientes expressam a dificuldade deles em manter vínculo empregatício ou mesmo ingressar no mercado de trabalho, após manifestação do transtorno. Entre os fatores que podem contribuir para tal limitação, na perspectiva dos pacientes, estão a presença de sintomas do transtorno e a percepção, pelos próprios pacientes, de falta de estrutura emocional para assumir a responsabilidade que qualquer emprego exige. Percebem-se não preparados para o trabalho. Mesmo quando conseguem manter um vínculo empregatício, freqüentemente têm seu desempenho funcional prejudicado pela presença dos efeitos colaterais dos medicamentos como tremores e sonolência, entre outros. Seus relatos revelam que o medicamento assume conotação negativa, de algo que limita suas ações.

Eu não trabalho há dez anos. De lá para cá, não foi falta de vontade, foi falta de condição mesmo, de estrutura... eu consegui o emprego, e não tive condição de encarar (E).

... Lá no meu trabalho é supercorrido e por conta disso que às vezes me travava, a medicação... a visão turva, tremores, tudo isso atrapalhou, claro! (C).

Limitou, porque antes eu fazia mil coisas ao mesmo tempo e eu dava conta. Eu não posso acelerar muito que eu vejo que vai queimar alguma válvula, o físico não responde como ele respondia antes... eu acho que isso é devido à droga no organismo, taí o efeito colateral (F).

Devido às crises do transtorno e às internações psiquiátricas não é incomum a pessoa com TAB permanecer afastada do emprego e, por ocasião do término da licença saúde, ser demitida. A limitação funcional em conseqüência dos efeitos colaterais do medicamento, entre eles a sonolência, constitui outro importante fator de risco para a demissão desses pacientes. Há situações em que, apesar de desejar continuar trabalhando, o paciente não consegue se manter produtivo no emprego, sendo necessária a aposentadoria por invalidez. Se, para alguns, a aposentadoria representa um ganho, para outros, pode representar perda financeira e de autonomia, nas relações sociais, da auto-estima, pois o paciente, além do rótulo de doente mental, recebe com a aposentadoria o rótulo de inválido perante a sociedade.

Quando a minha doença foi se agravando mais e mais então os patrões não queriam mais eu... teve um trabalho que eu fiquei um ano afastada, aí o dia que eu voltei falou: ó, infelizmente tem outra no seu lugar (D).

... o trabalho eu aposentei, né... por in-va-li-dez, eu saí por invalidez do banco.... eu não dava conta de trabalhar, como é que trabalha? Tomava um monte de remédio, sentava lá no chão... então, me tiraram (N).

A limitação no trabalho geralmente traz, em seu bojo, a limitação financeira.

Ter limitações financeiras

A limitação financeira está, ainda, relacionada à sintomatologia do transtorno, tanto na fase de mania como na de depressão. Na fase maníaca, o otimismo injustificado, autoconfiança, grandiosidade e fraco julgamento, com freqüência, levam a pessoa com TAB a envolver-se imprudentemente em atividades prazerosas como gastos excessivos, endividamentos, negócios precipitados, que podem produzir ações economicamente destrutivas. Na fase de depressão, por outro lado, sente-se exausta, impotente e, por estar voltada para seu mundo interno, para sua angústia, pode se esquecer de cumprir compromissos de variadas ordens, inclusive financeira. Tais atitudes, tomadas sob baixa crítica, durante o episódio maníaco ou depressivo, podem trazer-lhe conseqüências danosas.

Passei a gastar demais, comprar coisas sem ter condição, entendeu? Compulsivamente (E).

Eu perdi um carro porque eu deixei de pagar, na fase da depressão (L).

Para as pessoas com TAB que realizam seguimento na rede pública, geralmente são prescritos medicamentos fornecidos pelo Sistema Único de Saúde (SUS). Em ocasiões, entretanto, que tais medicamentos estão em falta nos serviços de saúde, ou que recebem prescrição de medicamentos não fornecidos pelos mesmos, elas têm a necessidade de comprá-los e, como geralmente utilizam altas doses, percebem sua renda familiar comprometida. O comprometimento da renda familiar é, também, evidenciado nos depoimentos dos familiares.

É lógico (compromete a renda), você vê, eu tomo 280 comprimidos de lítio por mês (I).

Ela (paciente) não quis tomar o depakene que o médico prescreveu porque estava fazendo mal, então ele (médico) passou o valpakine. Esse está sendo melhor só que eu estou tendo que comprar e está sendo muito difícil... (FB).

As limitações no trabalho, com conseqüentes limitações financeiras, e os efeitos colaterais dos medicamentos podem resultar em limitações no lazer do paciente.

Ter limitações no lazer

A sonolência é um efeito colateral citado pela pessoa com TAB como ocasionando limitações em suas atividades de lazer. Como geralmente necessita tomar medicamentos à noite, percebe-se não podendo realizar qualquer atividade noturna de lazer. Ainda a diarréia, quando presente, faz com que o paciente se sinta constrangido a freqüentar locais públicos, comprometendo, assim, seu lazer. Esse contexto evidencia que, embasada em experiências prévias, a pessoa com TAB privilegie a interação com o medicamento em detrimento da interação com os objetos sociais da vida cotidiana, conforme revelam suas falas e de seus familiares.

Diarréia que é ruim porque você não pode ficar saindo... meu horário de tomar é 10 horas da noite, depois das 10 eu não saio pra lugar nenhum. É uma limitação... eu vou tomar e vou dormir na rua? Vou dormir em pé? Não adianta, então tem que tomar e deitar mesmo (D).

Ele jogava futebol, fazia exercício, hoje não consegue fazer mais, ele mal anda, anda só o necessário dentro de casa. Ele diz que cansa muito (FH).

Outra limitação mencionada pela pessoa com TAB, como presente em seu cotidiano, refere-se à habilitação para conduzir veículos.

Ter limitações para conduzir veículos

Apesar de desejar conduzir veículos, a pessoa com TAB não tem coragem de fazê-lo temendo que efeitos colaterais dos medicamentos como sonolência, diplopia, tontura, entre outros, possam ocasionar acidentes. Há pacientes que querem e gostam de dirigir, mas sofrem influência de pessoas, inclusive de familiares, que julgam que, devido ao uso de psicotrópicos, não devem fazê-lo. Há, no entanto, familiares que julgam que poder dirigir, além de constituir direito da pessoa com TAB, é um aspecto contributivo para sua auto-estima e autonomia, reduzidas, muitas vezes, em função do estigma e das crises do transtorno, conforme revelam os relatos a seguir.

...eu dirijo bem, eu gosto de dirigir é uma coisa que me faz bem, tem pessoas que acham que por eu tomar remédio eu não posso dirigir (K).

... ela não pode dirigir, e ela quer, porque ela é distraída, ela não prestava atenção... e ela qué voltar a dirigir, a gente tá morrendo de medo (FL).

Então, por que que você (médico) não libera a carta pra ele? Só porque ele é doente psiquiátrico? Porque ele guiar e ele ser autônomo, que dizer, ele me libera e ele, a auto-estima dele fica elevada... Então, isso pra ele é muito importante (FH).

A pessoa com TAB expressa, em seus relatos, conviver com muitos obstáculos que precisam ser transpostos e resolvidos para que se possa garantir qualidade de vida.

DISCUSSÃO

Para a pessoa com TAB, a vivência das crises do transtorno é gradativamente acompanhada por perdas e limitações nas várias esferas da vida cotidiana(11). Neste estudo, os depoimentos evidenciaram perdas afetivas e cognitivas, limitações financeiras, no trabalho, entre outras. Os dados apresentados corroboram a literatura ao indicar que as limitações e perdas progressivas estão associadas, entre outros fatores, aos efeitos colaterais dos medicamentos e à sintomatologia nos momentos de crise. Quando em crise, principalmente na fase de mania, os pacientes podem apresentar comportamentos de agressividade dirigidos aos familiares e a outras pessoas do ambiente social(12). Comportamentos como os de grandiosidade, de comprar compulsivamente e da agitação psicomotora também são freqüentes nessa fase do transtorno e passíveis de preconceito e rejeição pelo grupo social(13), tal qual evidenciado nos depoimentos das pessoas com TAB, deste estudo.

Quando na fase de depressão, por vivenciar intensa angústia, o paciente não tem motivação para o trabalho, para o autocuidado, para os estudos bem como para manter vínculos(4). Desse modo, quase sempre, na presença da exacerbação dos sintomas de ambas as fases do transtorno, faz-se necessário internações psiquiátricas.

As crises e internações inviabilizam a permanência da pessoa com TAB no ambiente de trabalho, sendo freqüentes casos de afastamento com posterior demissão(14). Neste estudo, os pacientes expressaram dificuldade em manter o vínculo empregatício ou mesmo em ingressar no mercado de trabalho, após manifestação do transtorno, como resultado do preconceito social ou por se sentirem incapazes. Como conseqüência, vivenciam limitações e perdas financeiras e sociais. Na literatura sobre a temática, alguns trabalhos corroboram esses resultados(15-16). Ao ficarem desempregadas, elas perdem os seus papéis sociais reconhecidos e a sua auto-estima, vivenciando sentimentos de exclusão social e, mesmo quando os benefícios da segurança social amenizam os problemas financeiros, pode estar presente a vergonha ligada à receita proveniente de fontes públicas e a uma falha para providenciar as necessidades da família(16).

Há deterioração cognitiva para algumas pessoas com transtorno afetivo e estudos que realizaram a avaliação da sua performance em tarefas cognitivas demonstraram, entre outros aspectos, prejuízo nos testes de atenção e de memória(17). No que se refere às perdas afetivas, a taxa de divórcios é aproximadamente de duas a três vezes maior comparada àquela de indivíduos considerados "normais"(18). Cerca de 50% de todos os cônjuges relatam que não teriam casado ou tido filhos com os pacientes, se soubessem que eles teriam um transtorno do humor(19).

Quanto a dirigir veículos automotivos, por requerer concentração, atenção, reflexos rápidos, velocidade psicomotora, capacidade de decisão, entre outras habilidades, os transtornos mentais interferem de diferentes maneiras nessa atividade: por meio dos sintomas psicopatológicos, da associação com abuso e/ou dependência de substâncias e do tratamento farmacológico(20). Constata-se, assim, que a capacidade de dirigir pode estar prejudicada tanto na presença de adesão ao medicamento, pelos seus efeitos colaterais, quanto na sua ausência, pela exacerbação dos sintomas psicopatológicos, corroborando os resultados deste estudo.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Os relatos mostraram que o fato de serem pessoas com TAB ou por se tratarem com medicamentos psicoativos não impede, mas dificulta sua permanência na escola, no trabalho, a constituição de núcleos familiares e de participação em outras atividades sociais. Nessa perspectiva, foi observado que a ambivalência em relação à terapêutica medicamentosa explicita o desejo em aderir ou não ao medicamento. Os pacientes percebem que, qualquer que seja a direção adotada, ela o conduzirá a um contexto de preconceito, de perdas e de limitações nas várias esferas da vida cotidiana, tanto pelos efeitos colaterais dos medicamentos, quando a opção é pela adesão, quanto pelas crises do transtorno e reinternações, principalmente na ausência do medicamento.

Os achados deste estudo têm, assim, implicações diretas para a assistência à pessoa com TAB em tratamento medicamentoso, permitindo a implementação de ações de acordo com as suas demandas. Dentre tais estratégias, pode-se sugerir: adequado processo psicoeducativo, ao paciente e familiares, com a finalidade de ampliar conhecimentos e o compartilhamento de experiências; estimular os pacientes a questionar os vários aspectos da terapêutica medicamentosa, atuando como parceiros no tratamento e adotar a visita domiciliar, especialmente para aquelas pessoas com TAB identificadas como em risco para a não adesão à terapêutica medicamentosa.

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  • Transtorno afetivo bipolar e terapêutica medicamentosa: identificando barreiras

    Adriana Inocenti MiassoI; Silvia Helena De Bortoli CassianiII; Luiz Jorge PedrãoIII
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      29 Set 2008
    • Data do Fascículo
      Ago 2008

    Histórico

    • Aceito
      10 Abr 2008
    • Recebido
      04 Jul 2007
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