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Cotidiano do tratamento a pessoas doentes de tuberculose em unidades básicas de saúde: uma abordagem fenomenológica

Resumos

Este artigo apresenta reflexão sobre o cotidiano assistencial do tratamento aos portadores de tuberculose, fundamentada na fenomenologia. Teve como objetivo compreender o cotidiano assistencial do tratamento de tuberculose, realizado em serviços básicos de saúde. O estudo foi desenvolvido com portadores de tuberculose e profissionais de saúde em Unidades Básicas de Belém, PA. Realizou-se entrevista fenomenológica com os participantes. Os discursos foram organizados em Unidades de Significação e, após, analisadas a partir do referencial de Martin Heidegger. A hermenêutica mostrou que os doentes temem a doença e suas consequências, o cuidado que se realiza de modo impessoal, a responsabilidade pelo tratamento enfatizada pelos profissionais e assumida pelos doentes e que e as condutas dos profissionais se pautam, predominantemente, pelas normas técnicas do discurso biomédico. Conclui-se que há um hiato entre o tratamento oferecido e o tratamento humanizado que se pretende alcançar com vistas ao êxito no controle da doença.

saúde pública; tuberculose; fenomenologia


This study presents a phenomenological reflection on the daily care routine of patients in TB treatment. It aimed to understand the routine of treatment delivered at the primary health care service. Phenomenological interviews were carried out with patients infected with TB and health professionals at Primary Care Units in Belém, PA, Brazil. Reports were organized in units of meaning and analyzed according to Martin Heidegger's framework. Hermeneutics revealed that infected people fear the disease and its consequences, care is provided in an impersonal way, responsibility for the treatment is emphasized by professionals and assumed by patients, and professionals' behavior is predominantly based on the biomedical technical standard. We conclude that there is a gap between the treatment offered and the expected humanized treatment with a view to successful control of the disease.

public health; tuberculosis; phenomenology


Este artículo presenta reflexiones sobre lo cotidiano asistencial del tratamiento a los portadores de tuberculosis, fundamentada en la fenomenología. Tuvo como objetivo comprender lo cotidiano asistencial del tratamiento de tuberculosis, realizado en servicios básicos de salud. El estudio fue desarrollado con portadores de tuberculosis y profesionales de salud en Unidades Básicas de Belém, PA. Se realizaron entrevistas fenomenológicas con los participantes. Los discursos fueron organizados en Unidades de Significado y, después, analizados a partir del marco teórico de Martin Heidegger. La hermenéutica mostró que los enfermos temen la enfermedad y sus consecuencias, el cuidado que se realiza de modo impersonal, la responsabilidad por el tratamiento enfatizada por los profesionales y asumida por los enfermos y que y las conductas de los profesionales se pautan, predominantemente, por las normas técnicas del discurso biomédico. Se concluye que existe un hiato entre el tratamiento ofrecido y el tratamiento humanizado que se pretende alcanzar con la finalidad de obtener éxito en el control de la enfermedad.

salud pública; tuberculosis; fenomenologia


ARTIGO ORIGINAL

Cotidiano do tratamento a pessoas doentes de tuberculose em unidades básicas de saúde: uma abordagem fenomenológica1

Elisabete Pimenta Araújo PazI; Antonia Margareth Moita SáII

IDoutor em Enfermagem, Professor Adjunto da Escola de Enfermagem Anna Nery, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Brasil, e-mail: bete.paz@gmail.com

IIDoutoranda, Professor Assistente da Universidade do Estado do Pará, Brasil, e-mail: margarethmsa@gmail.com

RESUMO

Este artigo apresenta reflexão sobre o cotidiano assistencial do tratamento aos portadores de tuberculose, fundamentada na fenomenologia. Teve como objetivo compreender o cotidiano assistencial do tratamento de tuberculose, realizado em serviços básicos de saúde. O estudo foi desenvolvido com portadores de tuberculose e profissionais de saúde em Unidades Básicas de Belém, PA. Realizou-se entrevista fenomenológica com os participantes. Os discursos foram organizados em Unidades de Significação e, após, analisadas a partir do referencial de Martin Heidegger. A hermenêutica mostrou que os doentes temem a doença e suas consequências, o cuidado que se realiza de modo impessoal, a responsabilidade pelo tratamento enfatizada pelos profissionais e assumida pelos doentes e que e as condutas dos profissionais se pautam, predominantemente, pelas normas técnicas do discurso biomédico. Conclui-se que há um hiato entre o tratamento oferecido e o tratamento humanizado que se pretende alcançar com vistas ao êxito no controle da doença.

Descritores: saúde pública; tuberculose; fenomenologia

INTRODUÇÃO

Diferentes fatores, intrínsecos à atividade profissional em saúde, nem sempre respondem ao desafio que se enfrenta nos serviços de saúde, de promover assistência de qualidade, resolutiva e humanizada. Entre esses fatores, está o contato com as limitações humanas: a realidade da doença, a impossibilidade de curá-la sempre, ou mesmo cuidar dos problemas da melhor maneira possível, as dificuldades de prover ajuda nos serviços de saúde e a contumaz realidade da proximidade da morte entre portadores de doenças. Permeando esse conjunto de fatores, há um aspecto de grande importância na lida dos profissionais que é o trabalho com dimensões humanas, envolvendo emoções e afetividades, e que deveriam permear a relação entre enfermeiros, técnicos, pacientes e familiares(1).

Ao longo da história da humanidade, o homem vem fazendo tentativas para conceituar de modo apropriado o processo saúde-doença. A cada conceito formulado apontam-se limitações que colocam em dúvida sua validade e funcionalidade na explicação desse processo e também as soluções de enfrentamento. Observa-se, quase sempre, que a proposta do mais novo conceito formulado é de superação dos anteriores e a pretensão de trazer algo como uma "versão final", o conceito mais pertinente ao tema(2).

A representação de saúde e doença também está relacionada com o grau de conhecimento sobre esse processo e dos recursos disponíveis ao seu enfrentamento, o que pode ser observado em cada época histórica da humanidade(2). Estar saudável, com mal-estar, com dores, enfraquecido, desconfortável são modos de as pessoas perceberem essas interações entre o ambiente, as condições sociais e os estados físicos que se sucedem na vida. A necessidade de conhecer, representar e enfrentar a doença são constitutivos do homem e permeiam toda a vida em sociedade se se considerar que essa é uma das adversidades a ser vencida no transcurso da vida.

Com relação ao problema da tuberculose, o Brasil ocupa a 16ª posição entre os vinte e dois países que concentram 80% da carga mundial da doença. A prevalência estimada no país é de 58/100.000 habitantes, 50 milhões de infectados susceptíveis ao desenvolvimento da doença, 111.000 casos novos e 6.000 óbitos ao ano. As taxas de cura e de abandono ao tratamento são de 75 e de 12%, respectivamente(3).

Para diminuir o abandono ao tratamento e aumentar a taxa de cura, a estratégia DOTS (Directly Observed Treatament Short Course), recomendada pela OMS para os países prioritários, vem sendo aplicada com êxito em vários municípios brasileiros. Sua implantação não está se dando de forma homogênea, porém, alguns municípios do Estado de São Paulo e Rio de Janeiro vêm apresentando bons resultados com relação ao tratamento de doentes, o que os diferencia de outros Estados brasileiros que detêm altas incidências de casos como o Rio Grande do Sul, Pará e Bahia, mas que não conseguiram avançar para a viabilização do DOTS nas unidades de saúde locais(3).

Na cotidianidade dos ambulatórios de unidades básicas de saúde, que oferecem ações do Programa de Controle da Tuberculose, vê-se que as práticas de atenção aos portadores estão fundadas em relações que podem variar da total entrega aos cuidados profissionais, ao abandono do tratamento por motivos de ordem pessoal, ou ligados ao atendimento recebido no serviço de saúde.

De modo geral, subleva-se as práticas de atenção à saúde pela pressão de demanda, pelo excesso de burocracia, por processos de trabalho que não favorecem o cuidado humanizado em saúde. Nesse contexto, as ações profissionais se mostram como "desumanizadas" e tecnicamente limitadas(4-5).

Se um tratamento crônico como o de tuberculose apresenta nuances que podem contribuir para seu êxito ou, ao contrário, para resultados negativos ao controle, traduzidos em abandono ou óbito, o quê ainda não está claro para aqueles que atuam com uma doença tão complexa socialmente? Como fazer nos serviços para conseguir alcançar os indicadores de efetividade? Quais atitudes se deve adotar para minimizar os transtornos que a tuberculose impõe na dinâmica de vida dos portadores e familiares?

Para conhecer a dimensão do tratamento para profissionais e pessoas portadoras de tuberculose, é que se realizou este trabalho, cujo objetivo foi compreender o cotidiano assistencial do tratamento de tuberculose, realizado em serviços básicos de saúde.

MÉTODO

O estudo foi desenvolvido utilizando-se o método fenomenológico de Heidegger que é a descrição da gênese do fenômeno, descrição de essências, de modos de ser, tornando-os visíveis. Este estudo foi desenvolvido no município de Belém do Pará, em uma instituição pública, pertencente à Universidade do Estado do Pará, e duas Unidades Municipais de Saúde. Nesses serviços, são oferecidas as atividades do programa de controle da tuberculose nas modalidades autoadministrada e supervisionada. Participaram 21 doentes de tuberculose com pelo menos 30 dias de tratamento ambulatorial, com idade acima de 18 anos, e 21 profissionais entre médicos, enfermeiros, assistentes sociais, psicólogos, técnicos de enfermagem e um Agente Comunitário de Saúde. Realizou-se a entrevista fenomenológica como técnica de obtenção dos discursos.

Foram observados os princípios éticos das pesquisas envolvendo seres humanos, com aprovação do projeto pelo Conselho de Ética em Pesquisa da Escola de Enfermagem Anna Nery, da Universidade Federal do Rio de Janeiro. O projeto e objetivos foram apresentados aos participantes e as entrevistas foram gravadas, após leitura e assinatura do termo de consentimento livre e esclarecido.

Após cumprir as exigências das instituições pesquisadas foi realizada ambientação ao campo de pesquisa, que visou tornar conhecida, previamente, aos pesquisadores a rotina assistencial das unidades.

A análise dos discursos foi realizada em duas etapas. Na primeira, elaborou-se as unidades de significação que tratam da compreensão vaga dos sujeitos em relação ao que foi questionado. A compreensão vaga e mediana foi organizada a partir da transcrição dos discursos dos entrevistados e reuniu os temas que mais se repetiram, a partir dos significados que os sujeitos expressaram de suas vivências. Trata-se da compreensão mais imediata do que vivenciam no cotidiano, e própria do modo ôntico de ser, esse mundo imediato das ocupações do dia-a-dia. Na segunda etapa, buscou-se o desvelamento do sentido que funda a existência dos sujeitos envolvidos no estudo em sua dinâmica de vida com a tuberculose, através da articulação entre o que foi dito e sua interpretação, que é a busca do sentido, e se utilizou o referencial filosófico heideggeriano para fundamentar essa interpretação analítica ou hermenêutica(6).

RESULTADOS

A compreensão vaga da tuberculose e seu tratamento

Unidade 1 - A confirmação do diagnóstico de tuberculose abala a vida dos doentes

Nos serviços de saúde, os usuários estão em busca da resolução dos problemas que a doença vem lhes causando. De modo geral, por não procurarem o serviço de saúde logo no início dos sintomas respiratórios, quando o fazem, muitos estão debilitados e, ao receberem o diagnóstico de que estão com tuberculose, uma tragédia se abate sobre suas vidas, desnorteando-os socialmente.

...quando eu soube que estava assim com a doença, meu mundo caiu. (Ent. 8 - Portador).

A gente se sente completamente fora do mundo, é muito difícil, muito complicado, principalmente os três primeiros meses. Eu tentei levar a vida normalmente na medida do possível. (Ent. 6 - Portador).

...o primeiro dia pra eles é um caos, eles se sentem a pior das pessoas, choram, não aceitam, acham que eles vão morrer... (Ent. 9 - Profissional).

...eu sempre procuro dar esse diagnóstico com cuidado porque é um choque o diagnóstico de tuberculose mesmo que o paciente já suspeite, várias pessoas já choraram (Ent. 10 - Profissional).

Essas expressões dos entrevistados mostram o impacto de quem é atingido pela tuberculose e a força negativa desse diagnóstico, pois a doença toma a dimensão de castigo social. Os profissionais que atuam no Programa de Controle da Tuberculose conhecem os sentimentos de aflição que acompanham o momento do diagnóstico e os doentes sabem que a tuberculose, se não tratada, evoluirá para uma grave condição de debilidade física, sofrimento, dores, dificuldades respiratórias e morte. Essa é a possibilidade mais próxima que a doença pode lhes acarretar, o que requer dos profissionais atitude sensível, delicada e respeitosa, concernente ao momento em que se confirma a tuberculose e se espera a adesão ao tratamento.

Unidade 2 - O tratamento contra tuberculose tem significados diferentes para quem tem a doença e para quem trata

A despeito da recomendação para adoção da estratégia DOTS nos serviços, vê-se que a operacionalização diária pelos portadores de tuberculose ainda é tão difícil quanto na vigência do tratamento autoadministrado, devido às mudanças que interferem na continuidade das atividades como estudar ou ter pontualidade para chegar ao trabalho.

...porque agora com o tratamento, ele impede a gente de trabalhar, porque qual é o patrão que vai querer que o seu funcionário falte duas vezes na semana e uma vez no mês?Aí fica totalmente fora de condição de trabalhar. Não tem condições, a gente faz o tratamento, mas fica impedido de trabalhar. E quando eu comecei o tratamento que tinha que tomar injeção todos os dias, nos dois primeiros meses quando eu comecei, eu tomava injeção todo dia... (Ent. 5 - Portador).

...tive que parar de fazer muitas coisas que eu gostava, tive que parar de andar no sol, na chuva, de ter o meu dia-a-dia mais normal, eu tive até que parar de estudar pra fazer o tratamento direito, parar de trabalhar, então foi bastante difícil (Ent. 11 - Portador).

Aspecto importante do tratamento medicamentoso é que ele impõe uma rotina de obrigações. Na modalidade supervisionada, ainda se adiciona o comparecimento diário ou semanal ao serviço para a ingestão dos remédios e nem sempre essa frequência permite conciliar as atividades que eram rotineiras. O doente também não tem como deixar de sentir os prejuízos que uma doença debilitante como a tuberculose impõe ao corpo e ao ânimo do indivíduo.

Os profissionais de saúde também reconhecem que os doentes têm dificuldades para manter o tratamento, mas essas, por não terem a mesma dimensão em suas vidas, são pouco exploradas na dinâmica assistencial. Pode-se ver algumas falas de profissionais que ilustram essa questão.

... a importância para nós é a duração do tratamento é que ele faça seis meses de tratamento, porque só melhorar os sintomas não vai resolver o problema dele (Ent. 2 - Profissional).

...o importante é orientar muito o paciente a aderência ao tratamento porque não adianta a gente fazer tudo, passar o remédio e marcar o retorno para um mês se ele não se interessar em tratar, então tem que orientar ele que tem que tomar o remédio todo dia... (Ent. 12 - profissional).

A existência de meios, recursos e de profissionais vinculados ao Programa de Controle de Tuberculose não garantem o êxito no tratamento e a cura dos portadores de tuberculose. As atitudes dos profissionais, mesmo quando enfatizam a importância do tratamento para a cura, poderiam favorecer o acolhimento da pessoa em sua singularidade e não somente com a preocupação de enfatizar o seguimento, o controle com o tratamento.

Unidade 3 - Para os doentes, o tratamento da tuberculose se dá com grandes dificuldades, nem sempre compreendidas pelos profissionais

Seguir o tratamento conforme orientado pelo profissional de saúde é quase sempre uma tarefa difícil para os doentes, pois os esquemas terapêuticos combinam pelo menos três drogas de uso prolongado e, a despeito de sua eficácia, os doentes passam e expressam dificuldades como desconforto digestivo, com náuseas, vômitos, diarreia.

...No início, dá vontade de desistir porque o abalo do remédio é demais, fazia muito mal, eu ia parar no hospital, minha pressão aumentava, me dava fraqueza, diareia, foi muito ruim. No início desse tratamento eu só vivia jogada na cama, não tinha coragem pra fazer nada, agora não, agora já estou disposta, tenho até vontade de trabalhar, estou bem disposta mesmo. ... estou me sentindo bem, só tenho alteração de pressão, fico inchada e com dor nos ossos, mas eu vou chegar até ao final do meu tratamento... (Ent. 7 - Portador).

...é muito difícil tomar esses remédios direitinho como me falaram. As vermelhas até que descem bem, mas as brancas (pausa), essas são difíceis de engolir. Graças a Deus que eu já estou terminando o segundo mês e me disseram que elas vão sair do tratamento. Quando eu tomo os remédios me sinto mal, fico mole e com vontade de deitar. No começo foi pior porque eu tinha enjoo, dor no estômago, cheguei a vomitar, mas depois passou. Hoje eu só tenho dor nas costas e cansaço, mas me disseram que é assim mesmo, que eu tenha paciência que depois melhora. Eu quase não consigo fechar as mãos por causa da dor nas juntas, às vezes eu tenho vontade de parar com os remédios, mas penso na minha família, em mim e assim vou levando, mas estou melhorando (Ent. 15 - Portador).

O cotidiano assistencial impõe dinâmica mecanizada e muitas vezes irrefletida, que não favorece a troca de subjetividade entre quem cuida e quem recebe ou precisa de cuidado(6-7). Nos turnos de trabalho ambulatoriais, há pouco tempo para que se responda às demandas individuais, porque são muitas as atividades que devem ser executadas pelos profissionais, o que os afasta do atendimento singular a cada doente e reforça a primazia da normatização técnica. É o que se percebe nos trechos abaixo.

...dou orientação, que ele vai entrar no tratamento do DOTS, fazendo a medicação supervisionada, sempre orientando sobre a doença, o tempo de tratamento, as reações da medicação, a importância do tratamento, falo sobre alimentação, higiene, e falo sobre os profissionais da unidade com os quais ele tem que passar: enfermeiro, psicólogo, serviço social. É uma orientação, para que eles entendam que é uma doença que tem cura, que o tratamento é rápido, tem seis meses (Ent. 3 - Profissional).

O paciente de tuberculose tem que ser bem trabalhado. Na minha experiência, se o paciente não é bem trabalhado ele não termina o tratamento... Com o paciente de tuberculose eu levo, no mínimo, quarenta e cinco minutos até uma hora no início do tratamento, aí eu esclareço tudo desde como ele pegou a doença, o que a doença provoca, o tratamento, ao que vai levar a falta de tratamento, comunicantes, dieta. Tudo pra esclarecer e, mesmo assim, a gente ainda tem abandonos de tratamento (Ent. 17 - Profissional).

Os que estão em tratamento passam por dores, desconforto gástrico, náuseas, vômitos, dentre as manifestações mais frequentes, que minam a resistência física e emocional. Decerto que um paciente bem orientado quanto à sua doença, tratamento, os possíveis efeitos adversos dos medicamentos e a valorização de suas queixas estão entre os principais fatores que facilitam a adesão à terapia(8). Os profissionais lidam com essas queixas, mas elas nem sempre parecem ser valorizadas, pois os doentes continuam seguindo com efeitos adversos, que poderiam ser minimizados ou suprimidos com uso das condutas já descritas nas normas técnicas do programa de controle. A orientação para não interromper o tratamento, enfatizada nas consultas ou atendimentos, nem sempre garante a confiança na superação de uma doença que os deixa tão debilitados e vulneráveis socialmente.

Unidade 4 - Para os profissionais, a cura da tuberculose está diretamente relacionada à responsabilidade do doente em seguir o tratamento

Outro aspecto que chama a atenção no cotidiano é a responsabilidade pelo êxito do tratamento. Os doentes assumem ou são impelidos a assumir tal responsabilidade, pois, desde o início são orientados que têm a maior parcela de compromisso com a remissão do quadro clínico e o controle da doença. Pode-se identificar essa atitude nos trechos abaixo.

...a gente procura explicar para ele que o tratamento vai depender muito dele, que é fundamental saber que ele vai ter que ter esse compromisso de levar este tratamento até o sexto mês, seguindo as nossas orientações. ...se ele seguir o tratamento direitinho, seguir as nossas orientações, com toda certeza ele vai sair curado deste tratamento (Ent. 7 - Profissional).

...Acho que é isso que é importante: esclarecer que ele tem condições de fazer o tratamento e receber uma cura, dependendo também muito dele porque a unidade está disponível para dar toda orientação, todo o atendimento, mas também depende muito do paciente para ele ter uma cura (Ent. 11 - Profissional).

Parece não haver co-responsabilização pelo tratamento por parte dos profissionais, e o doente passa a ser o único responsável pelo seu êxito. O sistema de saúde já oferece diagnóstico, tratamento gratuito e profissional para atendê-los de modo que as possíveis falhas serão advindas do não seguimento das orientações recebidas, mesmo se sabendo que os esquemas terapêuticos, ao combinarem pelo menos três drogas de uso prolongado, podem provocar sintomas como desconforto digestivo, astenia, prurido intenso, artralgia entre outros efeitos adversos, que faz com que rejeitem a medicação e pensem em desistir do tratamento, porque a qualidade de vida fica seriamente afetada(9).

DISCUSSÃO DOS RESULTADOS - A HERMENÊUTICA

As unidades de significação produzidas foram o ponto de partida da analítica do discurso de profissionais e doentes em tratamento antituberculose, ou seja, a hermenêutica. A busca do sentido e da interpretação foi elaborada a partir da leitura das descrições contidas nas unidades, para apreensão dos significados que emergiram de seus discursos. Um autor(10), ao apresentar a contribuição de Heidegger para a hermenêutica nos fala que: "A compreensão se mundaniza, permeia todos os momentos da vida, de modo que somos nós que temos o sentido da existência. O modo prático de ser no mundo abre as possibilidades de compreensão, de tal maneira que o compreender não existiria se não se compreendesse o contexto em que surge".

Na interpretação da facticidade do adoecer por tuberculose, pôde-se identificar que, quando o homem adoece devido à infecção pelo bacilo de Koch, instaura-se uma grande ameaça: o de ser subjugado pela doença. A tuberculose é uma ameaça que se tornou concreta, pois, se antes era uma doença temida, agora domina o ser da presença. Sobre o temor Heidegger(11) diz que "...o que se teme possui o caráter da ameaça... o que se teme vem ao encontro porque possui o modo conjuntural de dano... O temor confunde e faz perder a cabeça..." e abre para o ser um mundo repleto de ameaças não imaginadas como, por exemplo, o de ser rejeitado, o de uma debilidade física que pode torná-lo incapaz de manter os compromissos e relacionamentos habituais. A tuberculose tira das pessoas a autonomia de seu viver.

Outro aspecto marcante na vida dos doentes é a dificuldade em seguir corretamente o tratamento pela toxicidade que os quimioterápicos podem provocar. A severidade dos efeitos adversos é conhecida dos profissionais de saúde, bem como as medidas para sua correção, porém, pela fala dos doentes, parece que os profissionais não valorizam suas queixas, como se essas fossem inevitáveis, e o que lhes cabe é esperar naturalmente a cessação de tais efeitos. Como pacientes, são encorajados a superar as dificuldades transitórias consequentes ao tratamento, pois o objetivo é a cura. Ainda assim essas dificuldades deixam marcas permanentes na vida dos doentes.

Esse modo de ser reforça o caráter impessoal que domina os espaços assistenciais, que mostram como preocupação principal o problema de saúde e não a pessoa que apresenta um problema de saúde. Em Heidegger, vê-se que a impessoalidade domina habitualmente as relações entre os homens e que, apesar de ser um dos seus modos de ser, não é o modo mais próprio de lidar entre eles(11). O profissional age de imediato, de modo preocupado com as ações que deve desenvolver para todos os doentes. Esse modo impessoal da assistência não favorece que se coloque no mesmo horizonte do outro, o doente(6).

Outro aspecto que chama a atenção é a responsabilidade assumida pelos doentes para o êxito do tratamento. Os discursos mostraram a necessidade imperiosa de controle e asseguramento de que os doentes seguirão corretamente as prescrições. Em Heidegger, vê-se que o homem já é responsável pelo seu próprio ser(11). Ao ver doentes precisando restabelecer-se, os profissionais ficam subjugados ao que é determinado pela norma pública assistencial. O resultado do discurso técnico-científico da saúde, já incorporado pela sociedade, se concretiza, quase sempre, na oferta de cuidado inautêntico quando esse poderia ter sentido mais amplo, envolvendo a proteção, o cuidado com-o-outro(4), diferentemente do que se viu que é dispor das pessoas no modo da dominação.

Nota-se que a preocupação com o restabelecimento da saúde é comum para doentes e profissionais, mas o sentido dessa preocupação tem caráter distinto para ambos. Para o doente, o tratamento é o horizonte de recuperação de um cotidiano alterado e, para alcançá-lo, segue as recomendações até o limite do possível, mesmo que isso signifique abrir mão de atividades prazerosas comuns no dia-a-dia. O profissional acredita no tratamento, fundado no conhecimento científico, como o caminho para se atingir as metas definidas como adequadas ao controle da doença, cumprindo seu papel social.

Nesse modo de cuidar, a preocupação é exercida em seu modo deficiente, pois o profissional assume o lugar do outro na medida em não se promove abertura para que a pessoa doente participe das decisões acerca de sua situação. Estabelece-se, quase sempre unilateralmente, o que deve ser feito(6-7), e essa é uma situação paradoxal, pois, ao mesmo tempo em que cria dependência dos cuidados profissionais, esses, na maioria das vezes, repetem que a responsabilidade pela cura é principalmente do doente.

Essa atitude limita a compreensão do adoecimento geralmente aos seus aspectos biológicos, quando há mais fatores envolvidos em todo o processo que culminou com o adoecer das pessoas, agora necessitados de tratamento, de cuidados. Suas histórias de vida não podem ser negadas ou deixadas provisoriamente de lado em nome de uma forma de tratar.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Quando se reflete sobre o agir profissional em saúde em relação a uma doença tão frequente como a tuberculose, reflete-se também no conceito de humanização, que hoje se almeja para os serviços do Sistema Único de Saúde, por vezes o principal acesso que se dispõe para a resolução dos problemas da população. A concretização das ações do Programa de Controle da Tuberculose mostrou que ainda há muito a ser feito na direção da compreensão do sentido do viver do outro.

Esse aspecto ainda não enfatizado na rotina dos ambulatórios que atendem pessoas com tuberculose também foi destacado em Ayres(4), quando apontou a necessidade de diálogo onde os interlocutores estejam empenhados em deixar que suas experiências enriqueçam o manejo de uma doença que traz implicações sanitárias no âmbito coletivo e pessoal. A escuta atentiva, a adequação de condutas, a valorização do sentido de cuidar-se, que o doente traz como experiência vivencial, são elementos indispensáveis ao cuidado que se pretende ser humanizado.

Em relação à enfermagem, compreende-se, aqui, que seu objeto de trabalho no espaço dos serviços básicos de saúde é o ser humano, muitas vezes enfermo, e que busca no profissional, grosso modo, o apoio ou a solução para seu problema(1). Assumindo-se o cuidado como pré-ocupação autêntica, necessária será a adoção de atitudes de respeito e consideração para com o outro, respeitando a originalidade ontológica do ser, pois, esse cuidado significa zelo, atenção e ajuda ao outro para ser livre para o seu ser mais próprio(11). Necessário será, nas práticas de saúde, reconhecer que o conhecimento técnico-científico não dispõe de todas as possibilidades de cuidar. É mister compartilhar e valorizar a vivência de quem tem a doença como elemento essencial na efetivação do cuidado que torna o outro livre para sua cura.

REFERÊNCIAS

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    Article based on partial results of the research project "Situações de saúde doença no cotidiano assistencial de enfermagem em saúde coletiva", Escola de Enfermagem Anna Nery, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Brazil;
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      15 Jun 2009
    • Data do Fascículo
      Abr 2009

    Histórico

    • Recebido
      17 Jan 2008
    • Aceito
      23 Dez 2008
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