Acessibilidade / Reportar erro

Diagnóstico e tratamento medicamentoso da dor neuropática em hanseníase1 1 Artigo extraído da dissertação de mestrado "Diagnóstico e tratamento da dor neuropática em pacientes tratados de hanseníase", apresentada à Faculdade de Medicina de São José do Rio Preto, São Jose do Rio Preto, SP, Brasil.

RESUMO

Objetivo:

identificar as dificuldades em diagnosticar e tratar a dor neuropática causada pela hanseníase, bem como determinar as características principais dessa situação.

Métodos:

examinaram-se 85 pacientes tratados no ambulatório de referência para hanseníase e referiam dor. Aplicou-se questionário, o teste Douleur Neuropathic 4, e criterioso exame neurológico pelo qual excluíram-se 42 pacientes por não se comprovar dor.

Resultados:

dos 37 pacientes com dor, 22 (59,5%) tinham Douleur Neuropathic ou mista e, desses, 90,8% caracterizavam essa dor como de intensidade moderada ou severa, sendo que 81,8% sofriam por mais de 6 meses. Apenas 12 (54,5%) pacientes haviam sido diagnosticados com Douleur Neuropathic e quase metade dos casos (45,5%) estava sem reconhecimento. Quanto ao tratamento medicamentoso (n=12) para a Douleur Neuropathic, 5 (41,6%) responderam que tiveram melhora, nos outros 7 (58,4%) não houve alteração da dor ou pioraram quando se comparou ao quadro inicial. A análise estatística, comparando a melhora da dor entre os pacientes tratados (n=12) e aqueles não tratados (n=10), foi significante (valor-p=0,020).

Conclusão:

identificou-se dificuldade em diagnosticar a dor neuropática em hanseníase, haja vista que quase metade dos pacientes estudados estava sem reconhecimento desse quadro. Atribuíram-se, como fatores associados, a não adoção de protocolo apropriado para efetivo diagnóstico e tratamentos inadequados que podem mascarar o quadro.

Descritores:
Hanseníase; Manifestações Neurológicas; Incapacidades; Dor.

ABSTRACT

Objective:

to identify the difficulties in diagnosing and treating neuropathic pain caused by leprosy and to understand the main characteristics of this situation.

Methods:

85 patients were treated in outpatient units with reference to leprosy and the accompanying pain. We used a questionnaire known as the Douleur Neuropathic 4 test and we conducted detailed neurological exams. As a result, 42 patients were excluded from the study for not having proved their pain.

Results:

Out of the 37 patients that experienced pain, 22 (59.5%) had neuropathic pain (or a mixture of this pain and their existing pain) and of these 90.8% considered this pain to be moderate or severe. 81.8% of the sample suffered with this pain for more than 6 months. Only 12 (54.5%) of the patients had been diagnosed with neuropathic pain and in almost half of these cases, this pain had not been diagnosed. With reference to medical treatment (n=12) for neuropathic pain, 5 (41.6%) responded that they became better. For the other 7 (58.4%) there were no changes in relation to the pain or in some cases the pain worsened in comparison to their previous state. Statistical analysis comparing improvements in relation to the pain amongst the patients that were treated (n=12) and those that were not, showed significant differences (value p=0.020).

Conclusion:

we noted difficulties in diagnosing neuropathic pain for leprosy in that almost half of the patients that were studied had not had their pain diagnosed. We attributed this to some factors such as the non-adoption of the appropriate protocols which led to inadequate diagnosis and treatment that overlooked the true picture.

Descriptors:
Leprosy; Neurologic Manifestations; Disabled Persons; Pain

RESUMEN

Objetivo:

identificar las dificultades de diagnosticar y tratar el dolor neuropático causado por la lepra, así como determinar las características principales de esa situación.

Métodos:

se examinaron 85 pacientes tratados en ambulatorio de referencia para lepra y que refirieron dolor. Se aplicó el cuestionario test Douleur Neuropathic 4, y se hizo un minucioso examen neurológico a través del cual se excluyeron 42 pacientes por no haberse comprobado dolor.

Resultados:

de los 37 pacientes con dolor, 22 (59,5%) tenían dolor neuropático o mixto y, de esos, 90,8% caracterizaban ese dolor como de intensidad moderada o severa, siendo que 81,8% sufrían de él hace más de 6 meses. Apenas 12 (54,5%) pacientes habían sido diagnosticados con dolor neuropático y casi mitad de los casos (45,5%) estaba sin reconocimiento. En cuanto al tratamiento medicamentoso (n=12) para el dolor neuropático, 5 (41,6%) respondieron que tuvieron mejoría; en los otros 7 (58,4%) no hubo alteración del dolor o empeoraron cuando se comparó con el cuadro inicial. El análisis estadístico, comparando la mejoría del dolor entre los pacientes tratados (n=12) y aquellos no tratados (n=10), fue significativa (valor-p=0,020).

Conclusión:

se identificó dificultad en diagnosticar el dolor neuropático en la lepra, considerando que casi la mitad de los pacientes estudiados estaban sin reconocimiento de ese cuadro. Se atribuyeron como factores asociados la no adopción de protocolo apropiado para un efectivo diagnóstico y tratamientos inadecuados que pudieron haber enmascarar el cuadro.

Descriptores:
Lepra; Manifestaciones neurológicas; Discapacidades; Dolor

Introdução

A presença de dor é uma característica comum no paciente com hanseníase e responsável por sofrimento físico e psicológico11. Lasry-Levy E, Hietaharju A, Pai V, Ganapati R, Rice ASC, Haanpaa M, et al. Neuropathic pain and psychological morbidity in patiens with treated leprosy: A cross - sectional prevalence study in Mumbai. PLoSNegl Trop Dis 2011;5(3):e981.. A causa da dor pode estar relacionada ao estímulo nociceptivo secundário à inflamação dos tecidos, que é encontrada com frequência nos episódios de ativação imune (reação reversa e eritema nodoso hansênico), ou de causa neuropática que é secundária ao dano ou disfunção do sistema nervoso22. Stump PRNAG, Dalben G da S. Mecanismos e manejo clínico de dor. Braz Res Orais. 2012;26(spe1)..

Definida como dor causada por lesão ou doença do sistema nervoso somatosensitivo pela Associação Internacional de Estudo da Dor (IASP), a dor neuropática é um problema negligenciado no tratamento de pessoas hansenianas33. Treede RD, Jensen TS, Campbell JN, Cruccu G, Dostrovsky JO, Griffin JW, et al. Neuropathic pain: redefinition and a grading system for clinical and research purpose. Neurology. 2008;70:1630-5.-44. Saunderson P, Bizuneh E, Leekassa R. Neuropathic Pain in People Treated for MultibacillaryLeproy More Than Ten Years Previously. Lepr Rev 2008;79:270-276.. Durante muito tempo atribuiu-se ao processo inflamatório, ou mesmo ao processo de compressão neural - dor nociceptiva, toda a causa da dor nesse grupo de pacientes.

O diagnóstico errôneo acabava por prejudicar o paciente que não recebia o tratamento correto, bem como por causar comorbidades tais como gastropatias, osteoporose, nefropatias entre outras, pelo uso excessivo de anti-inflamatórios, sobretudo os corticosteroides que, junto com os analgésicos, constituíam as poucas armas à disposição da equipe de saúde.

A Associação Médica Brasileira (AMB) preconiza, para o tratamento da dor neuropática, a utilização de 3 classes de medicamentos- os antidepressivos tricíclicos (amitriptilina, nortriptilina, imipramina e clomipramina), os neurolépticos fenotiazínicos (clorpromazina, levomepromazina) e os anticonvulsivantes (carbamazepina, gabapentina, oxcarbazepina, topiramato, pregabalina) que podem ser associados a analgésicos e anti-inflamatórios, conforme a necessidade de cada paciente22. Stump PRNAG, Dalben G da S. Mecanismos e manejo clínico de dor. Braz Res Orais. 2012;26(spe1).) (Figura 1).

Figura 1
Medicações preconizadas para ao tratamento da dor neuropática no Brasil*

Nas principais publicações relacionadas à dor neuropática em hanseníase, procurou-se investigar aspectos epidemiológicos e etiológicos dessa entidade, determinando prevalências e tentando inferir relação causal, quando não, avaliando o perfil psicológico dos pacientes11. Lasry-Levy E, Hietaharju A, Pai V, Ganapati R, Rice ASC, Haanpaa M, et al. Neuropathic pain and psychological morbidity in patiens with treated leprosy: A cross - sectional prevalence study in Mumbai. PLoSNegl Trop Dis 2011;5(3):e981.

2. Stump PRNAG, Dalben G da S. Mecanismos e manejo clínico de dor. Braz Res Orais. 2012;26(spe1).

3. Treede RD, Jensen TS, Campbell JN, Cruccu G, Dostrovsky JO, Griffin JW, et al. Neuropathic pain: redefinition and a grading system for clinical and research purpose. Neurology. 2008;70:1630-5.

4. Saunderson P, Bizuneh E, Leekassa R. Neuropathic Pain in People Treated for MultibacillaryLeproy More Than Ten Years Previously. Lepr Rev 2008;79:270-276.
-55. Stump PRNAG, Baccarelli R, Marciano LHSC, Lauris JRP, Teixeira MJ, Ura S, et al. Neuropathic pain in leprosy patients. Int J Lepr Other Mycobact Dis. 2004;72(2):134-8.. Diferente das pesquisas antecessoras, este estudo preocupou-se em identificar as dificuldades em diagnosticar e tratar a dor neuropática causada pela hanseníase, bem como determinar as características principais dessa situação.

Método

Trata-se de estudo descritivo e transversal. Iniciou-se pela coleta de dados dos prontuários e pela aplicação de protocolos em 85 pacientes atendidos em um ambulatório de referência em hanseníase, em um município de grande porte no Brasil, no ano 2013. O Projeto foi aprovado pelo Comitê de Ética e Pesquisa da Faculdade de Medicina de São José do Rio Preto (FAMERP), CAAE 02435120.00005414.

Após serem explicados os motivos do estudo e assinado o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE), o inquérito foi realizado pelos pesquisadores envolvidos e constava de formulário com dados do perfil demográfico e epidemiológico do paciente e sobre a evolução da doença, acurada anamnese clínica relacionada ao diagnóstico da dor neuropática, dados sobre o exame físico neurológico específico, escala de pontuação e localização anatômica da dor e características do tratamento, em especial dos fármacos utilizados.

Todos os pacientes incluídos no estudo foram classificados de acordo com os critérios adotados para hanseníase da Organização Mundial de Saúde (OMS) e não estavam em tratamento com Poliquimioterapia (PQT) de, no mínimo, 6 doses para a forma Paucibacilar (PB) e de 12 doses para a forma Multibacilar (MB)66. Smith WCS, Odong DS, Ogosi AN. The importance of the neglected tropical diseases in sustaining leprosy programs. Lepr Rev.2012;83:121-3-77. Ministério da Saúde (BR). Portaria nº 3.125, de 07 de outubro de 2010. Aprova as Diretrizes para Vigilância, Atenção e Controle da Hanseníase. Diário Oficial da República Federativa do Brasil, Brasília (DF), 2010 out 10; p. 55 Seção 1..

No momento da entrevista, nenhum paciente apresentava sinais ou sintomas de estado reacional, tais como Reação Reversa (RR) ou Eritema Nodoso Hansênico (ENH). Para o diagnóstico de dor neuropática, os pacientes deveriam se queixar de dor não gerada por estímulos e com plausibilidade anatômica - referida em uma ou mais regiões relacionadas ao nervo afetado33. Treede RD, Jensen TS, Campbell JN, Cruccu G, Dostrovsky JO, Griffin JW, et al. Neuropathic pain: redefinition and a grading system for clinical and research purpose. Neurology. 2008;70:1630-5.,88. National Institute for Health and Care Excellence. Neuropathic pain - pharmacological management: NICE Clin Guideline. 2013;1-157.-99. Haanpaa M, Attal N, Backonja M, Baron R, Bennett M, Bouhassira D et al. NeuPSIG guidelines on neuropathic pain assessment. Pain. 2011;152(1):14-27..

Optou-se pelo questionário Douleur Neuropathic 4 Questionary (DN4), traduzido e validado para o português por Santos et al., em 20091010. Santos JG, Brito JO, Andrade DC, Kaziyama, Ferreira KA, Souza I et al. Translation to Portuguese and Validation of the Douleur Neuropathique 4 Questionnaire. J Pain. 2010;11(5):484-90., pela sua facilidade de aplicação, por apresentar boa sensibilidade (83%) e especificidade (90%) para predizer a presença de dor com características de neuropatia1111. Ramos JM, Alonso-Castañeda B, Eshetu D, Lemma D, Reyes F, Belinchón I, et al. Prevalence and characteristics of neuropathic pain in leprosy patients treated years ago. Pathog Glob Health. 2014;108(4):186-90..

Após definido o caso como sendo de dor de origem neuropática, utilizou-se a Escala de Estimativa Numérica (Numeric Rating Scale - NRS) para melhor compreensão da sua intensidade e o Desenho da Localização da Dor (Pain Drawing - PD) para a sua localização1212. Bertilson B, Grunnesjö M, Johansson SE, Strender LE. Pain drawing in the assessment of neurogenic pain and dysfunction in the neck/shoulder region: inter-examiner reliability and concordance with clinical examination. Pain Med. 2007;8(2):134-46.-1313. Parker H, Wood RLR, Main CJ. The use of the pain drawing as a screening measure to predict psychological distress in chronic low back pain. Spine.1995;20:236-43..

Para a avaliação de deformidades, foram usados os critérios da OMS: Grau zero - sem deformidade, Grau 1 - perda sensitiva em mãos ou pés ou Grau 2 - deformidade motora visível, incluindo lagoftalmo e garra de dedos, contraturas e/ou úlceras nas mãos ou pés1414. Organização Mundial de Saúde (OMS). Weekly epidemiological Record Relevé épidémiologique hebdomadaire. 2013;35(88):365-80. [Acesso 20 nov 2014]. Disponível em: http://www.who.int/wer.
http://www.who.int/wer...
.

Na Figura 2 estão contidos os critérios utilizados para inclusão dos pacientes com dor de origem neuropática. Optou-se por excluir os pacientes com diagnóstico de diabetes mellitus e/ou alcoolismo para não confundir possível diagnóstico de neuropatia de causa diversa ou associada.

Figura 2
Critérios de inclusão de pacientes com dor de origem neuropática. São José do Rio Preto, SP, 2014

Os resultados foram analisados nos programas estatísticos Microsoft Excel 2013 e Graf Pad Instat 3.00/1997. Verificou-se a significância dos resultados por meio de testes t de Student, para as variáveis paramétricas, e Mann-Whitney para as variáveis não paramétricas, conforme apropriado. Considerou-se como limite para significância estatística o valor de p≤0,05.

Resultados

Dos 85 pacientes com hanseníase avaliados neste estudo, 37 (43,5%) apresentavam quadro álgico nociceptivo e/ou neuropático e 48 (56,5%) foram excluídos por não se queixarem de dor ou por se referirem a ela apenas no passado.

Após a aplicação dos quesitos para diagnosticar dor de origem neuropática nos 37 pacientes com queixa de dor, identificou-se que 15 desses não se encaixavam nos critérios de inclusão (Figura 2) e foram excluídos. Os 22 pacientes restantes que relataram dor neuropática ou mista estabelecida representaram 25,9% da população total investigada (n=85) e são o foco principal deste estudo.

Características gerais

Como características dos acometidos por dor neuropática, relacionadas à hanseníase, notou-se que 14 (63,7%) eram mulheres, e a idade variou entre 24 e 66 anos, com média de 51 anos (dp±10,78).

Quinze (68,1%) pacientes acometidos apresentavam a forma MB. Foi mais frequente a presença de dor neuropática em indivíduos com maior tempo de diagnóstico, 14 (63,7%) pacientes sabiam da doença há mais de 5 anos, sendo que 11 (50%) haviam completado PQT há mais de 5 anos. A presença ou não de estados reacionais prévios, não apresentou relação com dor neuropática.

As características clínicas estão apresentadas na Tabela 1.

Tabela 1
Características gerais dos pacientes com dor neuropática. São José do Rio Preto, SP, Brasil, 2014

Diagnóstico e tratamento

Dos 22 pacientes incluídos no estudo por terem dor neuropática causada pela hanseníase, 10 (45,5%) casos permaneciam sem correto diagnóstico. Os dermatologistas representaram a especialidade que fez o diagnóstico de 66,6% (n=8) dos casos. Não houve erro de diagnóstico (falso-positivo) por parte dos médicos assistentes. Todos os pacientes diagnosticados receberam, em algum momento, tratamento com medicações indicadas para casos de dor neuropática.

Os antidepressivos tricíclicos foram a classe de medicamentos mais utilizada; em algum momento todos os 12 casos tratados receberam a prescrição de amitriptilina. Efeitos colaterais como sonolência, boca seca e constipação foram a causa de abandono da medicação em 2 pacientes; um outro paciente abandonou o tratamento pois achava que a medicação havia sido prescrita para tratar depressão.

A posologia insuficiente de amitriptilina com doses baixas de 10 a 25mg/dia foi a causa de falência na melhora da dor em 2 pacientes. E em outro caso o paciente usava uma dose média de amitriptilina - 50mg/dia e a não instituição de politerapia pode justificar a ausência de melhora dos sintomas.

Na classe dos anticonvulsivantes, a carbamazepina foi utilizada por 8 pacientes, sendo depois substituída por gabapentina em 1 caso e por pregabalina em outro, uma vez que a medicação inicial não atingiu o efeito terapêutico desejado. Os pacientes em uso de gabapentina e pregabalina relataram melhora dos sintomas.

Outra causa de falência do tratamento aconteceu com um paciente em politerapia (amitriptilina + carbamazepina) que abandonou a carbamazepina queixando-se de efeitos colaterais da medicação (sonolência e tontura) e não recebeu prescrição de medicação substituta que pudesse ser alternativa para o problema. Nenhum paciente estudado recebeu medicação da classe dos fenotiazínicos.

Apesar de se ter instituído a politerapia em 8 casos, nenhum paciente, dos 12 estudados, chegou a receber dose máxima das medicações utilizadas no tratamento da dor neuropática.

Dois pacientes adquiriram as medicações com recursos próprios, pois a gabapentina e pregabalina não são fornecidas pelo Sistema Único de Saúde (SUS) (Tabela 2).

Tabela 2
Características de diagnóstico e tratamento dos pacientes com dor neuropática em hanseníase. São Jose do Rio Preto, SP, Brasil, 2014

Quando perguntados (n=12) sobre os resultados do tratamento medicamentoso para a dor, houve melhora da dor dos pacientes tratados quando comparados aos não tratados (valor de p=0,020). A intensidade da dor e da pontuação no DN4 entre os pacientes com dor neuropática tratados (n=12) e não tratados (n=10) não mostrou diferença significativa (Tabela 3).

Tabela 3
Comparação entre casos tratados e não tratados para dor neuropática em hanseníase. São Jose do Rio Preto, SP, Brasil, 2014

Discussão

O estudo evidenciou que a dor neuropática atinge um em cada quatro pacientes tratados de hanseníase (25,8%). O sintoma é bastante comum como comprovam os últimos estudos publicados na China (2012) e Índia (2011) que apresentaram respectivas frequências de 45,8 e 21,8%11. Lasry-Levy E, Hietaharju A, Pai V, Ganapati R, Rice ASC, Haanpaa M, et al. Neuropathic pain and psychological morbidity in patiens with treated leprosy: A cross - sectional prevalence study in Mumbai. PLoSNegl Trop Dis 2011;5(3):e981.,1515. Chen S, Qu J, Chu T. Prevalence and characteristics of neuropathic pain in the people affected by leprosy in China. Lepr Rev.2012;83:195-201..

Embora seja importante causa de sofrimento do paciente, já que 90,8% caracterizam a dor como de intensidade moderada e/ou severa e que 81,8% sofrem por um período maior do que seis meses, quase metade dos casos estudados estava sem diagnóstico (45,5%), esse achado reforça o fato de ser a dor neuropática causada pela hanseníase uma complicação negligenciada pelas equipes de saúde que, por exigência do Ministério da Saúde, despendem seu tempo na busca e diagnóstico de novos casos da doença em sua área de abrangência, aplicação da poliquimioterapia para os casos já em tratamento, manejo dos episódios reacionais, na prevenção das deformidades e no controle dos comunicantes44. Saunderson P, Bizuneh E, Leekassa R. Neuropathic Pain in People Treated for MultibacillaryLeproy More Than Ten Years Previously. Lepr Rev 2008;79:270-276.,1616. Smith WC, Nicholls PG, Das L, Barkataki P, Suneetha S, Suneetha L, et al. PLoS negl Trop Dis. Predicting neuropathy and reactions in leprosy at the moment of diagnosis and before events incidents-cohort study results INFIR 2009;3(8):e500.doi: 10.1371/journal.pntd.0000500.
https://doi.org/10.1371/journal.pntd.000...
).

A adoção de um protocolo para a identificação da dor neuropática, causada pela hanseníase, pode reduzir as falhas em diagnosticar essa condição. O DN4, escolhido neste estudo, é um inquérito de simples manejo, validado para a língua portuguesa, que pode ser utilizado por qualquer profissional da equipe de saúde que for habilitado a aplicá-lo.

Incentivar os profissionais da área a se familiarizarem com as drogas indicadas para o tratamento da dor crônica/neuropática e sistematizar a condução desses casos pode minimizar os sintomas dos pacientes.

O tratamento medicamentoso da dor neuropática, causada pela hanseníase, não está bem estabelecido, necessitando ainda de estudos classe I e II com amostras aleatórias e controladas, que não se encontram disponíveis na literatura mundial. O entendimento dessas terapias pode aliviar sintomas e prevenir danos neuropáticos no paciente com hanseníase1616. Smith WC, Nicholls PG, Das L, Barkataki P, Suneetha S, Suneetha L, et al. PLoS negl Trop Dis. Predicting neuropathy and reactions in leprosy at the moment of diagnosis and before events incidents-cohort study results INFIR 2009;3(8):e500.doi: 10.1371/journal.pntd.0000500.
https://doi.org/10.1371/journal.pntd.000...

17. Raymond P, André N, Stump G. Orientação para o tratamento farmacológico da dor neuropática. Dor é coisa séria. 2012;8(2):5-16.
-1818. Wilder-Smith EP, Van Brakel WH. Nerve damage in leprosy and its management. Nat Clin Pract Neurol. 2008;4(12):656-63.doi: 10.1038/ncpneuro0941.Epub 2008 Nov 11.
https://doi.org/10.1038/ncpneuro0941.Epu...
. Estudo de revisão sobre o tratamento das diversas causas de dor neuropática incluem, em sua maioria, doentes com polineuropatia diabética dolorosa e neuralgia pós-herpética1919. Attal N, Cruccu G, Baron R, Haanpaa M, Hasson P, Jensen TS, et al. EFNS guidelines on the pharmacological treatment of neuropathic pain: 2009 revision. Eur J Neurol. 2010. Epub Abril 9..

As drogas para tratamento da dor neuropática, preconizadas pela AMB22. Stump PRNAG, Dalben G da S. Mecanismos e manejo clínico de dor. Braz Res Orais. 2012;26(spe1)., devem ser iniciadas em doses baixas e aumentadas ou associadas a outras de maneira progressiva em casos de persistência da dor; precisam ser monitorizadas as funções renal e hepática; recomenda-se orientar pacientes sobre possíveis efeitos colaterais e optar por medicações com custo/efetividade benéfico2020. Finnerup NB, Sindrup SH, Jensen TS. The evidence for pharmacological treatment of neuropathic pain. Pain. 2010;150:573-8.-2121. Attal N, Cruccu G, Baron R, Haanpää M, Hansson P, Jensen TS et al. EFNS guidelines on pharmacological treatment of neuropathic pain. Eur J Neurol. 2006;13:1153-69..

O governo brasileiro oferece algumas medicações para tratamento da dor neuropática de forma gratuita. Muitas delas estão disponíveis por serem de baixo custo, no entanto, uma vez que são drogas antigas, costumam não ser bem toleradas em doses médias e altas, o que dificulta o tratamento. Neste estudo, quase a metade (42,9%) dos abandonos tiveram como justificativa o efeito colateral da medicação.

Os fármacos mais eficazes e com poucos efeitos colaterais, como a duloxetina, pregabalina e gabapentina, não são disponibilizados pelo governo e, devido ao alto valor econômico, são inacessíveis à maioria daqueles pacientes com hanseníase que pertencem à população de baixa renda88. National Institute for Health and Care Excellence. Neuropathic pain - pharmacological management: NICE Clin Guideline. 2013;1-157.,2222. Paschoal VDA, Nardi SMT, Cury MRCO, Lombardi C, Virmond M, Silva RMDN et al.Criação de Banco de Dados para sustentação da pós-eliminação em hanseníase. Rev Ciênc Saúde Coletiva.2011;16(supl 1):1201-10..

Quando foram avaliados os 12 pacientes que receberam tratamento com medicação para dor neuropática, reparou-se que 7 pacientes (58,4%) não obtiveram melhora dos sintomas. As causas identificadas para a falência do tratamento medicamentoso foram os efeitos colaterais provocados, a posologia inadequada/insuficiente dos fármacos, a não instituição de politerapia nos casos em que a resposta terapêutica a uma única droga foi insatisfatória e o desconhecimento dos benefícios das medicações que são utilizadas em dor neuropática. A falta de acompanhamento adequado (prazos de retorno muito longos ou troca de médico especialista), desconfiança no diagnóstico de dor neuropática (recebiam ainda altas doses de corticosteroides e analgésicos associadas às medicações para dor neuropática) e causas psicossociais podem ter também colaborado para justificar a ausência de melhora.

Mesmo com as dificuldades em se tratar a dor neuropática, fica clara a importância da introdução da terapêutica medicamentosa, pois os resultados provam a melhora significativa dos sintomas da dor dos casos que receberam tratamento comparado aos que não foram tratados.

A principal limitação deste estudo, e talvez de todos que investigam a dor, foi a subjetividade do sintoma. De natureza multifatorial, a intensidade e característica da dor não pode ser medida de forma objetiva, o que pode levar a ser sub ou supraestimada. Outro entrave relaciona-se ao número reduzido de pacientes com dor neuropática (n=22) o que limita maiores desdobramentos e inferências dos resultados deste estudo. A população apresentada relaciona-se a um ano de atendimento pós-alta em um ambulatório de referência regional.

Durante o estudo, todos os pacientes que não haviam sido diagnosticados com dor neuropática foram orientados quanto à sua doença, receberam introdução ao tratamento medicamentoso e seguiram com encaminhamento para especialista em dor crônica.

Conclusão

Identificou-se a dificuldade em diagnosticar a dor neuropática em hanseníase, haja vista que quase metade dos pacientes estudados estava sem reconhecimento desse quadro. Um dos fatores para essa dificuldade pode estar no fato de os profissionais da equipe de saúde não adotarem rotineiramente protocolo apropriado para a investigação e o efetivo diagnóstico da dor neuropática. A confusão diagnóstica e tratamentos inadequados podem causar complicações e prolongar o sofrimento desses indivíduos.

A dor neuropática em pacientes já tratados com hanseníase atinge 90,1% dos casos, e os mesmos a caracterizam como de intensidade moderada e severa e convivem com a mesma por período maior que seis meses. Portanto, a dor neuropática na hanseníase é uma importante causa de sofrimento.

Os resultados provam a melhora significativa dos sintomas da dor dos casos que receberam tratamento comparado aos que não foram tratados. Dentre os pacientes que relataram estar igual ou pior após a terapêutica, atribui-se esse insucesso pela quantidade de efeitos colaterais relatados e/ou pela posologia insuficiente dos fármacos utilizados, bem como à não instituição de politerapia nos casos em que a resposta terapêutica a uma única droga foi insatisfatória.

Esses resultados fazem concluir que o tratamento medicamentoso para dor neuropática, causada pela hanseníase, mesmo que não sistematizados pela falta de estudos com metodologia adequada nessa área, deve ser introduzido, pois colabora para a redução do sofrimento humano.

References

  • 1
    Lasry-Levy E, Hietaharju A, Pai V, Ganapati R, Rice ASC, Haanpaa M, et al. Neuropathic pain and psychological morbidity in patiens with treated leprosy: A cross - sectional prevalence study in Mumbai. PLoSNegl Trop Dis 2011;5(3):e981.
  • 2
    Stump PRNAG, Dalben G da S. Mecanismos e manejo clínico de dor. Braz Res Orais. 2012;26(spe1).
  • 3
    Treede RD, Jensen TS, Campbell JN, Cruccu G, Dostrovsky JO, Griffin JW, et al. Neuropathic pain: redefinition and a grading system for clinical and research purpose. Neurology. 2008;70:1630-5.
  • 4
    Saunderson P, Bizuneh E, Leekassa R. Neuropathic Pain in People Treated for MultibacillaryLeproy More Than Ten Years Previously. Lepr Rev 2008;79:270-276.
  • 5
    Stump PRNAG, Baccarelli R, Marciano LHSC, Lauris JRP, Teixeira MJ, Ura S, et al. Neuropathic pain in leprosy patients. Int J Lepr Other Mycobact Dis. 2004;72(2):134-8.
  • 6
    Smith WCS, Odong DS, Ogosi AN. The importance of the neglected tropical diseases in sustaining leprosy programs. Lepr Rev.2012;83:121-3
  • 7
    Ministério da Saúde (BR). Portaria nº 3.125, de 07 de outubro de 2010. Aprova as Diretrizes para Vigilância, Atenção e Controle da Hanseníase. Diário Oficial da República Federativa do Brasil, Brasília (DF), 2010 out 10; p. 55 Seção 1.
  • 8
    National Institute for Health and Care Excellence. Neuropathic pain - pharmacological management: NICE Clin Guideline. 2013;1-157.
  • 9
    Haanpaa M, Attal N, Backonja M, Baron R, Bennett M, Bouhassira D et al. NeuPSIG guidelines on neuropathic pain assessment. Pain. 2011;152(1):14-27.
  • 10
    Santos JG, Brito JO, Andrade DC, Kaziyama, Ferreira KA, Souza I et al. Translation to Portuguese and Validation of the Douleur Neuropathique 4 Questionnaire. J Pain. 2010;11(5):484-90.
  • 11
    Ramos JM, Alonso-Castañeda B, Eshetu D, Lemma D, Reyes F, Belinchón I, et al. Prevalence and characteristics of neuropathic pain in leprosy patients treated years ago. Pathog Glob Health. 2014;108(4):186-90.
  • 12
    Bertilson B, Grunnesjö M, Johansson SE, Strender LE. Pain drawing in the assessment of neurogenic pain and dysfunction in the neck/shoulder region: inter-examiner reliability and concordance with clinical examination. Pain Med. 2007;8(2):134-46.
  • 13
    Parker H, Wood RLR, Main CJ. The use of the pain drawing as a screening measure to predict psychological distress in chronic low back pain. Spine.1995;20:236-43.
  • 14
    Organização Mundial de Saúde (OMS). Weekly epidemiological Record Relevé épidémiologique hebdomadaire. 2013;35(88):365-80. [Acesso 20 nov 2014]. Disponível em: http://www.who.int/wer
    » http://www.who.int/wer
  • 15
    Chen S, Qu J, Chu T. Prevalence and characteristics of neuropathic pain in the people affected by leprosy in China. Lepr Rev.2012;83:195-201.
  • 16
    Smith WC, Nicholls PG, Das L, Barkataki P, Suneetha S, Suneetha L, et al. PLoS negl Trop Dis. Predicting neuropathy and reactions in leprosy at the moment of diagnosis and before events incidents-cohort study results INFIR 2009;3(8):e500.doi: 10.1371/journal.pntd.0000500.
    » https://doi.org/10.1371/journal.pntd.0000500
  • 17
    Raymond P, André N, Stump G. Orientação para o tratamento farmacológico da dor neuropática. Dor é coisa séria. 2012;8(2):5-16.
  • 18
    Wilder-Smith EP, Van Brakel WH. Nerve damage in leprosy and its management. Nat Clin Pract Neurol. 2008;4(12):656-63.doi: 10.1038/ncpneuro0941.Epub 2008 Nov 11.
    » https://doi.org/10.1038/ncpneuro0941.Epub
  • 19
    Attal N, Cruccu G, Baron R, Haanpaa M, Hasson P, Jensen TS, et al. EFNS guidelines on the pharmacological treatment of neuropathic pain: 2009 revision. Eur J Neurol. 2010. Epub Abril 9.
  • 20
    Finnerup NB, Sindrup SH, Jensen TS. The evidence for pharmacological treatment of neuropathic pain. Pain. 2010;150:573-8.
  • 21
    Attal N, Cruccu G, Baron R, Haanpää M, Hansson P, Jensen TS et al. EFNS guidelines on pharmacological treatment of neuropathic pain. Eur J Neurol. 2006;13:1153-69.
  • 22
    Paschoal VDA, Nardi SMT, Cury MRCO, Lombardi C, Virmond M, Silva RMDN et al.Criação de Banco de Dados para sustentação da pós-eliminação em hanseníase. Rev Ciênc Saúde Coletiva.2011;16(supl 1):1201-10.
  • 1
    Artigo extraído da dissertação de mestrado "Diagnóstico e tratamento da dor neuropática em pacientes tratados de hanseníase", apresentada à Faculdade de Medicina de São José do Rio Preto, São Jose do Rio Preto, SP, Brasil.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    2016

Histórico

  • Recebido
    03 Mar 2015
  • Aceito
    10 Set 2015
Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto / Universidade de São Paulo Av. Bandeirantes, 3900, 14040-902 Ribeirão Preto SP Brazil, Tel.: +55 (16) 3315-3451 / 3315-4407 - Ribeirão Preto - SP - Brazil
E-mail: rlae@eerp.usp.br