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Síndrome de Klippel-feil e compressão medular

Resumos

O A. apresenta o caso de um homem de 40 anos de idade portador de Brevicollis Congênito, em que se instalou tetraparesia flácida nos membros superiores, espasmódica nos inferiores. A mielografia ascendente com lipiodol revelou bloqueio à altura de C7. Morte por acidente bulbar. O A. sugere a coexistência de brevicollis e tumor intravertebral, concomitância ainda não descrita entre as síndromes nervosas associadas à síndrome de Klippel e Feil. Estuda a morfogênese da coluna vertebral a fim de demonstrar que a sinostose das vértebras se processara em um período muito precoce do desenvolvimento da coluna. Procura filiar o Brevicollis Congênito ao grupo dos distúrbios na morfogênese do sistema nervoso (encéfalo-mielodisplasias).


The A. reports the case of a man, forty years old, who had Congenital Brevicollis. At this age it manifests itself tetraparesy, flaccid in the superior limbs and spastic in the inferior ones. Ascending myelography with Lipiodol reveals blockage at the seventh thoracic vertebra. Death by bulbar accident. The A. suggests the coexistence of Brevicollis and intravertebral tumor, concomitance not yet described among the nervous syndromes associated with Klippel-Feil's. He studies the morphogenesis of vertebral column in order to demonstrate that the synostosis of vertebrae processes itself in a very early period of developement of the column. He tries to affiliate Congenital Brevicollis to the group of troubles in the morphogenesis of nervous system (encephalo-myelodysplasias).


Livre-docente de Neurologia na Univ. do Brasil. Médico-adjunto da Santa Casa do Rio de Janeiro

RESUMO

O A. apresenta o caso de um homem de 40 anos de idade portador de Brevicollis Congênito, em que se instalou tetraparesia flácida nos membros superiores, espasmódica nos inferiores. A mielografia ascendente com lipiodol revelou bloqueio à altura de C7. Morte por acidente bulbar.

O A. sugere a coexistência de brevicollis e tumor intravertebral, concomitância ainda não descrita entre as síndromes nervosas associadas à síndrome de Klippel e Feil. Estuda a morfogênese da coluna vertebral a fim de demonstrar que a sinostose das vértebras se processara em um período muito precoce do desenvolvimento da coluna. Procura filiar o Brevicollis Congênito ao grupo dos distúrbios na morfogênese do sistema nervoso (encéfalo-mielodisplasias).

SUMMARY

The A. reports the case of a man, forty years old, who had Congenital Brevicollis. At this age it manifests itself tetraparesy, flaccid in the superior limbs and spastic in the inferior ones. Ascending myelography with Lipiodol reveals blockage at the seventh thoracic vertebra. Death by bulbar accident.

The A. suggests the coexistence of Brevicollis and intravertebral tumor, concomitance not yet described among the nervous syndromes associated with Klippel-Feil's. He studies the morphogenesis of vertebral column in order to demonstrate that the synostosis of vertebrae processes itself in a very early period of developement of the column. He tries to affiliate Congenital Brevicollis to the group of troubles in the morphogenesis of nervous system (encephalo-myelodysplasias).

O registro de um caso clínico em neurologia, apresenta sempre interesse de ordem prática. Além disso, reveste-se, freqüentemente, de aspectos doutrinários dignos de atenção e estudo. Cresce de importância, entretanto, quando se incorpora à convergência de esforços para o esclarecimento de determinado setor da neuropatologia que venha merecendo a atenção de estudiosos e pesquisadores.

As afeccções heredodegenerativas do sistema nervoso ultimamente vêm atraindo as vistas dos neurologistas em nosso meio. Duas publicações revelam esta tendência e balisam a sua trajetória: a primeira, a tese de Antonio R. Mello1 1 . Mello, A. R. de - Heredo-degeneração cerebelo-espinhal. Arch. Brasil, de Medicina (Rio de Janeiro) 32: 4, 1942. , registra os fatos com minúcia e precisão; a segunda, a tese de Aluisio Marques2 2 . Marques, A. C. - Da genética das doenças orgânicas do sistema nervoso. Tese de professorado, Rio de Janeiro, 1945. , de caráter doutrinário e erudito, examina-os nos seus aspetos gerais, filia-os, interpreta-os à luz dos mais recentes conhecimentos deste novo mas já frondoso ramo da biologia - a Genética. Falando de enfermidades heredodegenerativas do sistema nervoso não podemos deixar de citar os trabalhos de Austregésilo Filho3 3 . Austregésilo Filho, A. - Neurodisplasias (encefalodisplasias, estado disráfico, espinha bifida oculta, mielodisplasia, diastematomielia, diplomielia). Arq. Neuro-Psiquiat., 1: 234-270 (dezembro) 1943. e seus pontos de vista pessoais sobre o assunto. Não é ociosa esta incursão pela bibliografia de nosso meio, porquanto o caso que passaremos a expor, em sua singeleza clínica, se filia àquela ordem de idéias e a esta tendência de estudos. Em trabalho recente, com o nosso Mestre, Professor Austregésilo4 4 . Austregésilo, A. e Nery, O. - Encefalomielodisplasias. Medicina, Cirurgia, Farmácia (Rio de Janeiro) n.° 127, novembro, 1946. , já tivemos a oportunidade de estudar três outros que filiámos a distúrbios na morfogênese do sistema nervoso. Relataremos, agora, mais um que supomos enquadrar-se na mesma moldura etiopatogênica.

Observação - D. A. M., 41 anos, sexo masculino, branco, português, padeiro, residente nesta Capital. Há cerca de um ano, começou a sentir falta de força nos braços. A princípio, não podia erguer pesos acima da cabeça, em seguida, nem mesmo pentear-se. Passado algum tempo, notou também fraqueza nos membros inferiores: sentia prisão nas pernas (sic) e tinha sôbressaltos musculares. Atualmente todos esses sintomas se agravaram: anda com muita dificuldade, na ponta dos pés, não pode erguer os braços, tem discreta retenção de urina. Antecedentes pessoais e familiares - Desde pequeno, tem o pescoço imóvel. Não virava a cabeça para os lados e o fazia com dificuldade e limitação de amplitude para a frente, e sôbretudo, para trás. Apesar disso, desenvolveu-se normalmente e, salvo a deformação que apresenta, gozou boa saúde até a data em que surgiram os atuais padecimentos. Pai falecido aos 41 anos de idade, de febre palustre. Mulher e três filhos sadios.

Exame clínico-neurológico - Cabeça semifletída para a frente. Face normal. Coluna vertebral retificada na região cérvico-torácica (ausência da cifose fisiológica) Ao exame do paciente, de costas, nota-se que o pescoço é curto, embora discretamente, e que a implantação do cabelo é muito baixa (fig. 1). Scapulae alatae. Atrofia dos músculos da região supra e infraspinhosa, dos deltóides e dos biceps. As mãos não evidenciam amiotrofia. Estática normal. Marcha pareto-espasmódica. Extensão e flexão da cabeça limitadas, rotação impossível. Abolição da força de elevação lateral dos braços. Força de flexão e extensão do antebraço sobre o braço muito diminuída. Os movimentos da mão e dos dedos acham-se relativamente conservados. Nos membros inferiores, a força acha-se muito diminuída e, à manobra de Barre, a perna esquerda cai mais rapidamente que a direita. Fibrilação muscular na cintura escapular. Hipotonia muscular nos membros superiores, tono aumentado nos inferiores. Sinais de Babinski, Rossolimo e Mendel-Bechtereff. Reflexo cremastérico normal à direita, abolido à esquerda. Reflexos abdominais abolidos. Reflexos patelares e aquileus exaltados. Reflexos bicipitais e tricipitais abolidos. Reflexos da munheca, estilo-radial e cúbit -pronador muito diminuídos. Clono do pé e da rótula, espontâneo e provocado. Reflexos de automatismo e defesa exagerados. Distúrbios esfincterianos, ora de tipo retenção, ora incontinência. Parestesias nas mãos, dormência em ambos os braços. Hipostesia táctil, térmica e dolorosa ao longo da face externa dos braços e antebraços (G-Ca). Nervos cranianos normais. Pupilas circulares, iguais, reagindo bem à luz e à acomodação. Palavra e psiquismo normais. Aparelho circulatório: bulhas claras na ponta e na base. Aparelhos respiratórios e digestivo normais.



Exames complementares: - Exame de sangue: reações de Wassermann, Kahn e Eagle negativas. Exame do liqüido cefalorraqueano (29-1-1945): 8.8 céls. por mm3; 46,8 grs. de proteínas totais por litro; r. Pandy, Ross-Jones e Nonne positivas; r. benjoim 00000.01222.22000.0; r. Wassermann, duvidoso com 1 mm3. He-mograma (31-1-45): Leucócitos 7300 por mm3 (basófilos 0, eosinófilos 1, mielócitos 1, formas jovens 0, núcleo em bastão 8, núcleo segmentado 50, linfócitos 35, monócitos 6); hipocromia -moderada. Raquemanometria (31-5-45): Pressão inicial 230: toque jugular 230-230; compressão profunda 230-240-250-240-230-230; compressão abdominal 180-340-350-250-240-200-200; retirada de 7 cm3; pressão inicial 210; pressão final 80; raquemanometria feita com aparelho de Fremont-Smith, com a colaboração do Dr. Renato Barbosa.

O paciente faleceu na sua residência em conseqüência de síncope respiratória após alguns dias de intensa dispnéia (por comprometimento evidente dos centros vegetativos bulbares). Não foi conseguida a necrópsia.

Resumindo, trata-se de indivíduo de 41 anos de idade, o qual, desde a infância apresentava deformidade da coluna cervical com postura viciosa. Entretanto, até aos 40 vivera nor almente e constituíra família. A partir dessa época, instalou-se paresia, acompanhada de amiotrofia, distúrbios ensitivos e arreflexia, nos membros s periores, de predominância proximal. Em seguida, paraparesia crural espasmódica e distúrbios e fincterianos.

O quadro clínico é tipicamente o da compressão medular, à altura do engrossamento cervical, com sintomas segmentares, de destruição (paralisia flácida, amiotrófica, arrefléxica, com distúrbios sensitivos de tipo radicular) e sintomas de compressão dos tratos longos, isto é, sinais de liberação infra-segmentar (paraparesia espasmódica, sinal de Babinski, clono, automatismo exagerado). O exame raquemanométrico revela bloqueio, que o exame do liquor, com uma típica dissociação albumino-citológica, confirma e a mielografia objetiva. É evidente, pois, tratar-se de compressão medular.

Por outro lado, os achados radiológicos evidenciaram síndrome óssea de natureza provavelmente congênita, caracterizada por fusão e coalescência das vertebras cervicais. Este quadro não permite dúvida também quanto à sua classificação nosográfica: trata-se da síndrome de Klippel-Feil ou brevicollis congênito. Já distinto ortopedista patrício, o Dr. Dagmar Chaves, que vira o paciente em primeira mão, fizera o diagnóstico com rapidez e acerto.

Entretanto, qual a relação existente entre as duas síndromes encontradas em nosso paciente: brevicollis congênito e compressão medular? Na verdade, a natureza do agente compressivo não foi, infelizmente, esclarecida. Tratar-se-ia de tumor situado dentro do canal ósseo, como o evidencia o fato de o lipiodol ascendente ter parado à altura de C7, sem que houvesse sinais de alteração da sinostose preexistente. Parece tratar-se de tumor extramedular.

Resumindo, em período tardio da vida de um portador de síndrome de Klippel-Feil surge associação mórbida que ocasiona a morte. A concomitância de síndromes nervosas é freqüentemente encontrada nas doenças heredodegenerativas do sistema nervoso. Em nosso modo de ver, a sinostose das vertebras cervicais ou cérvico-torácicas, que constitui o substrato anatômico da síndrome de Klippel-Feil, pertence ao grupo das dismorfias do sistema nervoso. A síndrome de Klippel-Feil, designação eponímica pela qual é geralmente conhecido o brevicollis congênito ou a sinostose congênita da coluna cervical ou cérvico-torácica, é rara anomalia vertebral consistente em redução numérica das vertebras cervicais e alterações de forma e relações dos seus elementos constitutivos. Klippel e Feil descreveram, em 1912, "um caso de ausência das vertebras cervicais" em um homem de 46 anos de idade cuja coluna apresentava apenas doze vertebras nitidamente diferenciadas: a quinta lombar estava reunida ao sacro, as oito torácicas inferiores estavam bem individualizadas, mas as quatro torácicas superiores estavam fundidas a todas as vertebras cervicais, formando uma peça óssea única. A este quadro radiológico corresponde, clinicamente, limitação de movimentos da cabeça, implantação baixa do cabelo e ausência de pescoço. São os "homens sem pescoço" na pitoresca expressão de Dubreuil-Chambardel.

Willet e Walsham, citados por Elsberg5 5 . Elsberg, Ch. A. - Surgical diseases of the spinal cord, membranes and nerve roots. Paul B. Hoeber, New York, págs. 44 e 163. , publicaram em 1880, sob o título "An account of the dissection of parts removed after death from the body of a woman subject of congenital malformation of the spinal column, bony thorax and left scapular arch, with remarks on the probable nature of the defects in development producing the deformities", o primeiro caso que, depois, tornou-se conhecido como a síndrome de Klippel-Feil. Neste caso, havia ausência de quatro vertebras dorsais e cervicais, o que ocasionou a perda da convexidade superior da coluna e escoliose de convexidade para a esquerda. Além dessas deformidades vertebrais, havia deformidade do esterno e costelas, quatro das quais faltavam à direita e cinco à esquerda.

Hutchinson (1894) apresentou à Sociedade de Patologia de Londres uma criança na qual o ombro estava altamente situado, logo abaixo do occipital, e no qual as lâminas das 3.a, 4.a, 5.a e 6.a vertebras cervicais não se uniam na linha mediana e estavam fundidas à esquerda.

Clarke (1906) relatou o caso de uma criança de 4 anos que desde o nascimento tinha o queixo tão encostado no esterno que não podia mover a cabeça. Clarke foi o primeiro a fazer radiografias da coluna e encontrou anomalias extensas na região cervical e dorsal superior, e costelas cervicais. Clarke operou o menino e submeteu-o a massagens, obtendo movimentação do pescoço.

Feil distingue três tipos: 1) Síndrome com um máximo de lesões: fusão de um certo número de vertebras em um bloco, espinha bifida e elevação congênita da caixa torácica. O crânio pode apresentar uma cifose basilar. Tórax cervical. 2) Síndrome de transição: fusão menos extensa (2 a 3 vertebras), espinha bifida inconstante. Esta forma acompanha-se de occipitalização (Bertolotti) ou de fusões menos extensas C2-Cs, C2-C4. As apófises espinhosas podem ser aplasiadas ou hipertrofiadas. 3) Síndrome muito complexa grave: sinostose cervical com reduções extensas em toda a coluna e malformações muito acentuadas e pouco compatíveis com a vida: é a telescopagem de Bar.

A concomitância da síndrome de Klippel-Feil com outros distúrbios neurológicos tem sido registrada por numerosos autores. A associação com a espinha bifida foi encontrada por Feil, Vallois, Vajas, Kirmisson, Lop e Pujol. A coexistência com a escapula alta congênita - deformidade de Sprengel - foi referida por Greig, Paterson Brown, Rocher, Dubreuil-Chambardel6 6 . Austregésilo Filho, A. e Nery, O. - Scapula alta congenita. Deformidade de Sprengel. Cultura Médica (Rio de Janeiro). e7 7 . Critchley, M. D. - Sprengel's deformity with paraplegia. Brit. J. Surg., 14: 243, 1926. . Wilson8 8 . Wilson, S. A. K. - Neurology. The Williams and Wilkins Co., Baltimore, 1940, pág. 1432. refere um caso ao qual posteriormente se ajuntou paraplegia e paralisia do simpático cervical - síndrome de Claude Bernard-Horner.

Outros distúrbios têm sido descritos como associações e complicações: devidas a lesões cranianas - cefaléia, diminuição do nível mental (Guillain e Mollaret), oftalmoplegia, surdez ou surdomudez, hemiplegia congênita (Lereboullet, Bernard e Villey). Fiszhaint e Zeldowicz publicaram o caso de um paciente que sofreu um encurvamento forçado de pescoço e foi acometido de tetraparesia espasmódica súbita. A siringomielia tem sido descrita como associação por diversos autores9 9 . Du Toit, F. - A case of congenital elevation of scapula with defect of the cervical spine associated with syringomyelia. Brain, 54 : 421, 1931. e10 10 . Ford, F. R. - Diseases of the nervous system in infancy, childhood and adolescence. Ch. C. Thomas, Springfield, Illinois, 1937, pág. 231. . Também já foram assinalados: doenças de Friedreich (Mattirolo e Bertolotti); pseudo-miopatia (Siccard e Lermoyez), atrofia dos músculos tenares e hipotenares (Kallius); anestesia com parestesias (Roger, Arnaud e Audier); paralisia espasmódica do braço com mão em garra (MacKenzie e Tallerman); escrita em espelho (Bauman, Villard, Nicholson), edema do braço (Turner). Associações a distúrbios endócrinos foram descritas, sobretudo, afetando a tireóide. Merio e Risak publicaram dois casos de mixedema e uma forma eunucóide. Paisseau descreve-a em um idiota mongolóide com cardiopatia congênita.

Outros distúrbios neurológicos menos definidos têm sido publicados: perturbações da sensibilidade (dores e parestesias na nuca, espádua e membros superiores), contratura da musculatura cervical, distúrbios respiratórios e da deglutição, calcificação dos plexos coróides (Deolindo Couto). Entre os defeitos esqueléticos associados à siringomielia (cifoscoliose, costelas cervicais, hidrocefalia, acromegalia, platibasia) encontra-se a síndrome de Klippel-Feil. Entre nós, Deolindo Couto publicou, em 1937, com A. Homem de Carvalho, "uma observação na qual complexa deformidade da coluna cervical se acompanhava de nítida síndrome de Claude Bernard-Horner".

Em cuidadosa revisão do assunto sob a rubrica de "Distúrbios nervosos da síndrome de Klippel e Feil" este último autor11 11 . Couto, D. -. Clínica Neurológica. Rio de Janeiro, 1944, pág. 75. refere mais dois interessantes casos. "No primeiro era a sintomatologia representada, além do vício esquelético, pela restrição dos movimentos de abdução dos membros superiores, cefaléia occipital e calcificação acentuada e simétrica dos plexos coróides, fenômeno este concomitante mais digno de realce. No segundo, notava-se amiotrofia das mãos, que lembravam as simiescas pelo comprometimento simultâneo das regiões tenares e hipotenares e por leve restrição dos movimentos de oposição dos polegares".

No caso que motiva a presente publicação, encontrou-se uma concomitância ainda não descrita, ao que nos consta: brevicollis e compressão medular. A primeira síndrome foi nitidamente evidenciada pelo tamanho do pescoço, implantação do cabelo, redução da mobilidade da cabeça, deformação da coluna cérvico-torácica e, finalmente, um quadro radiológico típico integrado por redução numérica e sinostose das vertebras cervicais. A última síndrome, com seu cortejo clínico habitual, teve localização alta, apresentou sintomas lesionais de nível (C5, C6) e foi comprovada pela raquemanometria e dissociação albumino-citológica.

Para termos idéia segura da patogenia da sinostose congênita da coluna cérvico-torácica, torna-se mister procedermos a breve recapitula-ção da morfogênese do esqueleto. Este, segundo Arey12 12 . Arey, L. B. - Developmental Anatomy. W. B. Saunders Co. Philadelphia e Londres, 1946, pág. 369. , se divide em: axial (crânio, vertebras, costelas, esterno) e apendicular (cinturas escapular e pélvica, membros). As vertebras e costelas são derivadas dos esclerótomos, de maneira complexa. De cada par de primordia (Anlagen) das vertebras definitivas, dá-se o crescimento em três direções: 1) medial, para cercar o notocórdio, estabelecendo, assim, o corpo vertebral; 2) dorsal, flanqueando o tubo neural para constituir o arco vertebral; 3) ventrolateral, para formar os processos costais, que darão ulteriormente os primordia das costelas.

Com exceção dos ossos chatos da face e da abóbada craniana, os ossos do esqueleto dos mamíferos apresentam primeiro um estádio blastêmico (mesenquimatoso ou membranoso), em seguida, uma fase cartilaginosa e, finalmente, uma fase óssea permanente. O suporte axial de todos os vertebrados é o notocórdio, único esqueleto no Amphioxus mas que, nos Chordata superiores, é substituído por um esqueleto mais rijo, constituído de vertebras. Convém lembrar que, nos mamíferos superiores, o único vestígio do notocórdio é o núcleo pulposo.

As vértebras se originam, assim como as costelas, daquela massa de células difusas do mesênquima que, no somite de quarta semana, proliferam na sua parede ventromedial e constituem o chamado esclerótomo. O mesênquima esclerotômico apresenta-se como massas segmentares colocadas ao longo do notocórdio, separadas pelas artérias intersegmentares. No embrião de 4 milímetros cada esclerótomo prolifera, de modo que a sua metade caudal fica mais densa e a superior menos densa. Em seguida, uma fissura separa estas duas metades, que vão se reunir ao esclerótomo adjacente, de modo que a metade mais densa caudal junta-se à metade menos densa cranial em uma nova combinação na qual a artéria intersegmentar ocupa o centro. Esta recombinação e não os esclerótomos primitivos são os primordia da vertebra definitiva. Da porção mais densa de cada primordium brotam os processos que se tornarão os arcos vertebrais e as costelas. O novo arranjo referido acima cria novas fissuras intervertebrals. Tecido mesenquimatoso condensa-se em cada espaço entre as vertebras, como disco intervertebral. No interior desses disco é que se incluem os restos do notocórdio que constituirão o núcleo pulposo.

Após este estado blastêmico, começam a aparecer, na sétima semana, centros de condrificação, em número de dois para cada corpo vertebral e um para cada metade do arco vetebral ainda não completo e separado na linha mediana. Estes quatro centros descem e constituem a vertebra cartilaginosa. Só no terceiro mês os arcos vertebrais se unem envolvendo completamente a medula. Deles nascem as apófises espinhosas e transversas. Na décima semana começa a ossificação. Cada arco vertebral tem dois centros, um para cada metade, e o corpo vertebral apenas um. No quinto mês, todos os centros estão presentes, salvo nas vertebras sacras. A união completa desses centros só se dará anos após o nascimento. Os vários ligamentos da coluna vertebral diferenciam-se do mesênquina na proximidade das vertebras. O atlas e o axis (epistropheus) apresentam variações deste padrão de desenvolvimento.

Desta sumária incursão na morfogênese do esqueleto podemos concluir que a sinostose do corpo das vertebras só poderá dar-se por distúrbios muito precoces na sua diferenciação, isto é, naquela fase em que os esclerótomos se rearranjam para individualizarem os futuros corpos das vertebras. Nesta ocasião, provavelmente, tal diferenciação não se dará. É, por conseguinte, distúrbio no Anlage dos corpos vertebrais. Que causa preside a esta indiferenciação ignoramos ainda. Mas, decerto, reconhece, como outras alterações no desenvolvimento do sistema nervoso central, distúrbio remoto, de causa talvez genotípica.

Av. Princesa Isabel, 58 - apt.º 84 - Rio de Janeiro

  • 1. Mello, A. R. de - Heredo-degeneração cerebelo-espinhal. Arch. Brasil, de Medicina (Rio de Janeiro) 32: 4, 1942.
  • 2. Marques, A. C. - Da genética das doenças orgânicas do sistema nervoso. Tese de professorado, Rio de Janeiro, 1945.
  • 3. Austregésilo Filho, A. - Neurodisplasias (encefalodisplasias, estado disráfico, espinha bifida oculta, mielodisplasia, diastematomielia, diplomielia). Arq. Neuro-Psiquiat., 1: 234-270 (dezembro) 1943.
  • 4. Austregésilo, A. e Nery, O. - Encefalomielodisplasias. Medicina, Cirurgia, Farmácia (Rio de Janeiro) n.° 127, novembro, 1946.
  • 5. Elsberg, Ch. A. - Surgical diseases of the spinal cord, membranes and nerve roots. Paul B. Hoeber, New York, págs. 44 e 163.
  • 6. Austregésilo Filho, A. e Nery, O. - Scapula alta congenita. Deformidade de Sprengel. Cultura Médica (Rio de Janeiro).
  • 7. Critchley, M. D. - Sprengel's deformity with paraplegia. Brit. J. Surg., 14: 243, 1926.
  • 8. Wilson, S. A. K. - Neurology. The Williams and Wilkins Co., Baltimore, 1940, pág. 1432.
  • 9. Du Toit, F. - A case of congenital elevation of scapula with defect of the cervical spine associated with syringomyelia. Brain, 54 : 421, 1931.
  • 10. Ford, F. R. - Diseases of the nervous system in infancy, childhood and adolescence. Ch. C. Thomas, Springfield, Illinois, 1937, pág. 231.
  • 11. Couto, D. -. Clínica Neurológica. Rio de Janeiro, 1944, pág. 75.
  • 12. Arey, L. B. - Developmental Anatomy. W. B. Saunders Co. Philadelphia e Londres, 1946, pág. 369.
  • Síndrome de Klippel-feil e compressão medular

    Olavo Nery
  • 1
    . Mello, A. R. de - Heredo-degeneração cerebelo-espinhal. Arch. Brasil, de Medicina (Rio de Janeiro) 32: 4, 1942.
  • 2
    . Marques, A. C. - Da genética das doenças orgânicas do sistema nervoso. Tese de professorado, Rio de Janeiro, 1945.
  • 3
    . Austregésilo Filho, A. - Neurodisplasias (encefalodisplasias, estado disráfico, espinha bifida oculta, mielodisplasia, diastematomielia, diplomielia). Arq. Neuro-Psiquiat., 1: 234-270 (dezembro) 1943.
  • 4
    . Austregésilo, A. e Nery, O. - Encefalomielodisplasias. Medicina, Cirurgia, Farmácia (Rio de Janeiro) n.° 127, novembro, 1946.
  • 5
    . Elsberg, Ch. A. - Surgical diseases of the spinal cord, membranes and nerve roots. Paul B. Hoeber, New York, págs. 44 e 163.
  • 6
    . Austregésilo Filho, A. e Nery, O. - Scapula alta congenita. Deformidade de Sprengel. Cultura Médica (Rio de Janeiro).
  • 7
    . Critchley, M. D. - Sprengel's deformity with paraplegia. Brit. J. Surg., 14: 243, 1926.
  • 8
    . Wilson, S. A. K. - Neurology. The Williams and Wilkins Co., Baltimore, 1940, pág. 1432.
  • 9
    . Du Toit, F. - A case of congenital elevation of scapula with defect of the cervical spine associated with syringomyelia. Brain, 54 : 421, 1931.
  • 10
    . Ford, F. R. - Diseases of the nervous system in infancy, childhood and adolescence. Ch. C. Thomas, Springfield, Illinois, 1937, pág. 231.
  • 11
    . Couto, D. -. Clínica Neurológica. Rio de Janeiro, 1944, pág. 75.
  • 12
    . Arey, L. B. - Developmental Anatomy. W. B. Saunders Co. Philadelphia e Londres, 1946, pág. 369.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      20 Fev 2015
    • Data do Fascículo
      Set 1948
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