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O que Pensa o Brasileiro sobre a Federação? Centralização e Crise de Confiança pós-2013

What do Brazilians Think about the Federation? Post-2013 Centralization and Trust Crisis

Ce que Pense le Brésilien de la Fédération ? Centralisation et Crise de Confiance Post-2013

¿Qué Piensa el Brasileño sobre la Federación? Centralización y Crisis de Confianza Post-2013

Resumo

As crises política e econômica que assolaram o Brasil nos últimos anos do governo Dilma resultaram em uma queda substancial nos níveis de confiança no governo central. Estes caíram de 57,10% em 2013, com Dilma Rousseff (PT) como presidente, para 13,35% em 2018. Este artigo investiga o impacto desse fenômeno sobre as atitudes dos eleitores em relação à distribuição de poder entre os níveis de governo no Brasil. Com base em dois surveys inéditos com representatividade nacional, mostramos que a queda de confiança no governo central reduziu o apoio ao aumento do poder da União na federação brasileira, mas, contraintuitivamente, não resultou em crescimento de atitudes descentralistas, em direção distinta da encontrada para o caso norte-americano. A crise de confiança no governo central que se instalou entre esses dois pontos no tempo mudou significativamente a importância da confiança como um fator preditivo de atitudes centralistas. Em conjunto, esses resultados mostram que a opinião pública sobre a federação não se opõe ao nível de centralização existente no Brasil, e também alertam para a importância dos choques de confiança para entendermos como esta última afeta a formação de atitudes centralistas.

federação; formação de preferências; centralização; confiança; alocação de autoridade

Abstract

The political and economic crises that ravaged Brazil in the last years of Dilma Rousseff’s government resulted in a substantial drop in voters’ trust in the central government (57.10% in 2013 to 13.35% in 2018). This article investigates the impact of this phenomenon on voters’ attitude toward the distribution of power across government levels in Brazil. Based on two original nationally representative surveys, we show that the reduction of voters’ trust in the central government did not lead to an increase in decentralist attitudes, which is counter-intuitive and different from the trends observed in the United States. However, the trust crisis which worsened along these years significantly changed the importance of trust as a predictor of centralist attitudes. These results show that the public opinion about the federation does not oppose the current level of centralization in Brazil and alert to the importance of trust shocks to understand its role in the formation of opinions about centralist attitudes.

Federation; preference formation; centralization; trust; authority allocation

Résumé

Les crises politiques et économiques qui ont frappé le Brésil lors des dernières années du gouvernement Dilma ont entraîné une baisse substantielle des niveaux de confiance dans le gouvernement central. Ces niveaux sont passés de 57,10 % en 2013, sous la présidence de Dilma Rousseff (Parti des Travailleurs), à 13,35 % en 2018. Cet article examine l’impact de ce phénomène sur les attitudes des électeurs à l’égard de la répartition du pouvoir entre les différents niveaux de gouvernement au Brésil. Sur la base de deux enquêtes inédites à représentativité nationale, nous montrons que la baisse de confiance dans le gouvernement central a réduit le soutien à un renforcement du pouvoir de l’Union dans la fédération brésilienne, mais, de manière contre-intuitive, n’a pas entraîné une croissance des attitudes décentralisatrices, contrairement à ce qui a été constaté dans le cas américain. La crise de confiance dans le gouvernement central qui s’est installée entre ces deux points dans le temps a considérablement modifié l’importance de la confiance en tant que facteur prédictif des attitudes centralisatrices. Dans l’ensemble, ces résultats montrent que l’opinion publique sur la fédération ne s’oppose pas au niveau de centralisation existant au Brésil, et soulignent également l’importance des chocs de confiance pour comprendre comment ce dernier affecte la formation des attitudes centralisatrices.

fédération; formation des préférences; centralisation; confiance; allocation de l’autorité

Resumen

Las crisis política y económica que afectaron a Brasil en los últimos años del gobierno Dilma, implicaron una caída sustancial en los niveles de confianza en el gobierno central. Estos niveles pasaron de 57,10% en 2013, con Dilma Rousseff (PT) como presidenta, a 13,35% en 2018. Este artículo investiga el impacto de ese fenómeno sobre las actitudes de los electores en relación con la distribución de poder entre los niveles de gobierno en Brasil. A partir de dos encuestas inéditas con representatividad nacional, mostramos que la menor confianza en el gobierno central redujo el apoyo al aumento del poder de la Unión en la federación brasilera, pero, de forma contraintuitiva, no implicó un crecimiento de actitudes descentralistas, a diferencia del caso norteamericano. La crisis de confianza en el gobierno central que se instaló entre esos dos puntos en el tiempo cambió significativamente la importancia de la confianza como un factor predictivo de actitudes centralistas. En conjunto, estos resultados muestran que la opinión pública sobre la federación no se opone al nivel de centralización existente en Brasil y también resaltan la importancia de los choques de confianza para entender cómo esta última afecta la formación de actitudes centralistas.

federación; formación de preferencias; centralización; confianza; asignación de autoridad

Introdução

Embora a federação seja um tema central nas ciências sociais brasileiras, são raríssimos os estudos que se dedicaram a examinar como os eleitores brasileiros avaliam seu desenho. Mais raros ainda são os estudos que explorem quais fatores afetam as preferências desses eleitores. Ainda que seja pouco controverso que o modelo federativo pós-88 concentra muita autoridade na União e que seu modelo de descentralização delegou a implementação de muitas políticas públicas aos municípios, as percepções dos cidadãos sobre este desenho da federação – bem como atitudes favoráveis a um formato alternativo – são pouco estudadas.

O tema é relevante não apenas por razões de legitimidade política. A distribuição vertical de autoridade é objeto de intensa disputa em muitas federações. No limite, tais conflitos podem dar origem a movimentos secessionistas, como atestam os casos de Catalunha, Quebec e Escócia. No Brasil, a emergência da bandeira “Mais Brasil, menos Brasília” no programa bolsonarista de 2018 aponta na direção de uma possível mobilização política em torno da questão. O que pensam os brasileiros sobre a federação? Preferem mais ou menos Brasília? O conjunto de crises que tiveram a capital federal como epicentro nos anos recentes − escândalos de corrupção, Lava Jato, crise econômica, impeachment da presidenta, emergência de um governo de extrema direita – afetaram as atitudes dos brasileiros sobre nosso modelo de estado? Muitos estudos, sobretudo a partir do caso norte-americano, partiriam da hipótese de que sim: abalos na confiança em relação ao governo central têm impacto nas atitudes dos eleitores acerca do desenho da polity . Este é o foco central deste artigo, tendo como objeto de análise o caso brasileiro.

Nosso estudo mostra que, entre 2013 e 2018, ocorreram continuidades e mudanças expressivas nas preferências dos brasileiros em relação ao desenho institucional da federação brasileira. Quais foram as continuidades? Primeiro, nesses dois pontos no tempo a parcela que não mudaria o desenho atual – ou seja, que não daria nem mais nem menos poder para nenhum nível de governo – representava uma maioria simples, sendo minoritários aqueles que preferiam ainda mais centralização ou mais descentralização. Segundo, tanto em 2013 quanto em 2018 os cidadãos percebiam o governo central como a esfera que tomava as decisões mais importantes e cujas eleições (para presidente) eram as mais relevantes. Interpretamos estes dados como um indicador de que o cidadão vê o desenho atual da federação como centralizado.

Quais foram as descontinuidades? Primeiro, embora as opiniões contra mudanças na federação fossem majoritárias tanto em 2013 quanto em 2018, ocorreu um expressivo aumento de 12.1 pontos percentuais no grupo que daria menos poder para o governo central, o que foi acompanhado por uma redução de 6.2 pontos percentuais naqueles que dariam mais poder para esse nível de governo. No conjunto, podemos dizer que ocorreu uma queda no apoio ao papel dirigente que a União desempenha na federação brasileira.

Dentre as principais mudanças, nesse intervalo a confiança no governo federal sofreu um grande abalo. A proporção dos que declaravam ter alguma ou muita confiança no governo federal caiu de 57,10%, em 2013, com Dilma Rousseff (Partido dos Trabalhadores – PT) como presidente, para 13,35%, em 2018, com Michel Temer (Movimento Democrático Brasileiro – PMDB) no Planalto. Foi entre os eleitores que disseram ter votado em Dilma em 2010 ou 2014 que a confiança mais caiu.

Escândalos de corrupção, crise econômica, retórica antipolítica, impeachment e troca das forças políticas no poder são alguns dos fatores do período com potencial para afetar essa atitude. Houve queda generalizada na confiança, mas que se revelou mais pronunciada em relação ao governo central. Entretanto, diferentemente da trajetória encontrada para os EUA ( Hetherington, Nugent, 2001Hetherington, Marc J.; Nugent, John. (2001), “Explaining public support for devolution”, in J. R. Hibbing; E. Teiss-Morse (eds.), What is it About government that americans dislike? New York: Cambridge University Press, pp. 134-156. ), no Brasil a queda na confiança no governo federal não deu origem a preferências descentralizadoras. O que observamos foi que a crise de confiança entre 2013 e 2018 implicou uma mudança na correlação desta variável com atitudes pró-centralismo. Mais precisamente, controlado o efeito de outras variáveis sociodemográficas e políticas, a confiança no governo federal passou a ser estreitamente associada com a preferência por centralização em 2018. Entre 2013 e 2018, pouca mudança ocorreu na forma como outros fatores – a exemplo de renda individual ou regional, idade, região ou identidade territorial – se relacionam com atitudes centralistas. As dimensões que importavam em 2013 assim continuaram em 2018. A confiança, no entanto, passou a ser um fator relevante. Esses achados baseiam-se em dados inéditos coletados no projeto “Imagens da Federação”, realizado pelo Centro de Estudos da Metrópole com apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), que envolveu duas ondas de surveys com representatividade nacional tendo como foco as atitudes do brasileiro diante da federação.

Nossos resultados são analiticamente relevantes por razões teóricas e por suas implicações políticas. Teoricamente, enfatizamos como uma queda na confiança pode mudar a importância explicativa dessa variável, nesse caso, com relação às atitudes (des)centralistas. O caso do Brasil revela que, em apenas cinco anos, podem ocorrer mudanças significativas nos determinantes de atitudes centralistas devido a choques de confiança, o que tem sido negligenciado por abordagens clássicas da economia política ( Beramendi, 2012Beramendi, Pablo. (2012), The political geography of inequality: Regions and redistribution. Cambridge: Cambridge University Press. ; Bolton, Roland, 1997Bolton, Patrick; Roland, Gerard. (1997), “The breakup of nations: A political economy analysis”. The Quarterly Journal of Economics, v. 11, n. 4, pp. 1057-1090. ), da identificação com o território ( Henderson, Jeffery, Wincott, 2014Henderson, Ailsa; Jeffery, Charlie; Wincott, Daniel (eds.). (2014), Citizenship after nation state: Regionalism, nationalism and public attitudes in Europe. Basingstoke: Palgrave Macmillan. ), do voto retrospectivo ( Hetherigton, Nugent, 1998Hetherington, Marc J. (1998), “The political relevance of political trust”. American Political Science Review, v. 92, n. 4, pp. 791-808. ; Leland et al., 2021Leland, Suzanne et al. (2021), “Policy venue preference and relative trust in government in federal systems”. Governance, v. 34, n. 2, pp. 373-393. ) ou ainda da “cultura política federativa” ( Bednar, 2004Bednar, Jenna. (2004), “Authority migration in Federations: A framework for analysis”. PS: Political Science & Politics, v. 37, n. 3, pp. 403-408. ; Livingston, 1952Livingston, William S. (1952), “A note on the nature of federalism”. Political Science Quarterly, v. 67, n. 1, pp. 81-95. ). Em outras palavras, eleitores podem mudar suas preferências com relação à distribuição vertical da autoridade em um curto espaço de tempo em parte porque a relevância das variáveis que afetam essas atitudes pode mudar, mesmo sem haver mudança substancial demográfica, na distribuição territorial da renda ou no desenho das instituições. Como demonstra nosso estudo, teorias baseadas em fatores atitudinais, ligados à confiança política na pessoa do representante ou no partido dos ocupantes do Executivo da respectiva esfera de governo, são mais promissoras para explicar as mudanças que observamos empiricamente. Do melhor de nosso conhecimento, este tipo de estudo é inteiramente inédito tanto no Brasil quanto na literatura comparada.

Embora estudos no Brasil tenham relacionado a confiança nos governos a diferentes facetas atitudinais, a exemplo do apoio ao presidente e o combate à corrupção ( Colen, 2010Colen, Célia M. L. (2010), “As covariantes da confiança política na América Latina”. Opinião Pública , v. 16, n. 1, pp. 1-27. ), seus efeitos sobre as preferências acerca de gastos do Estado e impostos ( Turgeon, Rennó, 2010Turgeon, Mathieu; Rennó, Lucio. (2010), “Informação política e atitudes sobre gastos governamentais e impostos no Brasil: evidências a partir de um experimento de opinião pública”. Opinião Pública, v. 16, n. 1, pp. 143-159. ) e suas relações com a (in)satisfação com a democracia ( Moisés, Carneiro, 2008Moisés, José A.; Carneiro, Gabriela P. (2008), “Democracia, desconfiança política e insatisfação com o regime: o caso do Brasil”. Opinião Pública, v. 14, n. 1, pp. 1-42 ), pouco se tem estudado sobre como esta afeta atitudes em relação aos níveis de governo. Em tempo, as conexões entre confiança e preferências sobre a distribuição vertical da autoridade não têm sido estudadas, inclusive porque, assim como ocorre nos Estados Unidos ( Dinan, Heckelman, 2020Dinan, John; Heckelman Jac C. (2020), “Stability and contingency in federalism preferences”. Public Administration Review, v. 80, n. 2, pp. 234-243. ), surveys com representatividade nacional que tenham como objeto as atitudes do eleitor diante da federação são escassos no Brasil.

Em termos de implicações políticas, se o cálculo de sobrevivência dos políticos os incentiva a ser responsivos às preferências do eleitorado, é de se esperar que as atitudes diante da federação possam tornar-se politicamente sensíveis e com potencial de mobilização programática. A título especulativo, é plausível supor que o lema “Mais Brasil, menos Brasília”, adotado pelo candidato Jair Bolsonaro em 2018, seja expressão da saliência que o tema pode vir a ganhar em campanhas eleitorais. Movimentos separatistas como o da Catalunha alertam para desdobramentos possíveis em casos extremos ( Della Porta, Portos, 2020Della Porta, Donatela; Portos, Martín. (2020), “A bourgeois story? The class basis of catalan independentism”. Territory, Politics, Governance, v. 9, n. 3, pp. 391-411. ). Com dados para apenas dois momentos no tempo, não há como apontar tendência em qualquer direção, mas os resultados mostram que fatores contextuais de curto prazo podem afetar essas atitudes políticas, isto é, a confiança no governo federal pode apresentar implicações substanciais no apoio por (des)centralização da autoridade.

O restante desse artigo está dividido da seguinte forma. A próxima seção apresenta a literatura relevante com a qual este estudo dialoga. Em seguida, discutimos os dados e os métodos que utilizamos. Na sequência, mostramos como a confiança no governo central, nossa variável independente principal, sofreu um abalo entre 2013 e 2018, considerando também a relevância da identidade partidária do eleitor nesse contexto, usando como suporte empírico uma análise descritiva comparada entre Brasil e Estados Unidos. Na sequência, apresentamos como nossa variável dependente principal, a preferência dos eleitores por mais (ou menos) centralização política, mudou no período. Por fim, mostramos como a importância preditiva da confiança no governo central para explicar o apoio por centralização mudou substancialmente nesses dois momentos no tempo.

Atitudes sobre a federação: discussão da literatura

As teorias mais influentes sobre a formação de atitudes quanto ao desenho da polity tendem a enfatizar determinantes e mecanismos que dariam caráter duradouro a essas orientações. A existência de uma cultura política federativa garantiria o equilíbrio entre integração e descentralização ( Livingston, 1952Livingston, William S. (1952), “A note on the nature of federalism”. Political Science Quarterly, v. 67, n. 1, pp. 81-95.: 90) ou seria a fonte de resistência contra um governo central tentado a usurpar poder de entes subnacionais ( Bednar, 2004Bednar, Jenna. (2004), “Authority migration in Federations: A framework for analysis”. PS: Political Science & Politics, v. 37, n. 3, pp. 403-408. ). Normas e valores socialmente dominantes seriam forjados no longo prazo, com caráter histórico, a partir da sedimentação de expectativas compartilhadas sobre a distribuição da autoridade.

No campo da economia política, cálculos racionais (bem-informados) acerca das consequências redistributivas de diferentes arranjos institucionais orientariam a formação das preferências dos eleitores ( Bolton, Roland, 1997Bolton, Patrick; Roland, Gerard. (1997), “The breakup of nations: A political economy analysis”. The Quarterly Journal of Economics, v. 11, n. 4, pp. 1057-1090. ). Neste argumento, a polity preferencial dos eleitores dependeria fundamentalmente da renda das jurisdições de residência quando comparadas à média nacional ( Dahlby, Rodden, Wilson, 2009Dahlby, Bev; Rodden, Jonathan.; Wilson, Sam L. (2009), “A median voter model of the vertical fiscal gap”. Edmonton: University of Alberta Working Paper, n. 14. Disponível em: https://sites.ualberta.ca/~econwps/2009/wp2009-14.pdf. Acesso em 25/3/2015.
https://sites.ualberta.ca/~econwps/2009/...
) ou do lugar dos indivíduos na distribuição de renda ( Beramendi, 2012Beramendi, Pablo. (2012), The political geography of inequality: Regions and redistribution. Cambridge: Cambridge University Press. ). Por exemplo, eleitores pobres de jurisdições ricas prefeririam a descentralização da autoridade para não ter de repartir a renda gerada em seu estado/província com o resto do país, ao passo que os ricos de regiões pobres prefeririam a centralização para se beneficiar das receitas geradas em outras jurisdições e reduzir a carga tributária com fins redistributivos em sua própria jurisdição. Na medida em que a distribuição relativa da renda das jurisdições permaneça estável, pouca mudança deveria ser observada na média das preferências dos eleitores por (des)centralização.

Por fim, muito influentes nos estudos europeus, as teorias que atribuem a formação dessas preferências à identificação territorial argumentam que pressões por devolução da autoridade política derivam de sentimentos de pertencimento a um território ( Della Porta, Portos, 2020Della Porta, Donatela; Portos, Martín. (2020), “A bourgeois story? The class basis of catalan independentism”. Territory, Politics, Governance, v. 9, n. 3, pp. 391-411. ; Henderson, Jeffery, Wincott, 2014Henderson, Ailsa; Jeffery, Charlie; Wincott, Daniel (eds.). (2014), Citizenship after nation state: Regionalism, nationalism and public attitudes in Europe. Basingstoke: Palgrave Macmillan. ). A demanda por realocação de autoridade decorreria de ligações afetivas com uma coletividade com identidades compartilhadas formadas ao longo do tempo por meio de processos de socialização política dos indivíduos.

Essas teorias assumem, ainda que de forma não explícita, que as preferências sejam estáveis ou, pelo menos, tão estáveis quanto cálculos redistributivos, identificação com o território e normas culturais de fundo histórico. Embora essas proposições tenham dado origem a um campo extremamente produtivo de estudos empíricos, elas não nos fornecem elementos que permitam interpretar a mudança substancial ocorrida no Brasil – em especial, a relevância da confiança política como fator preditivo das atitudes relativas à (des)centralização da autoridade. O aporte teórico que oferece um caminho mais promissor está em estudos que enfatizam o efeito da confiança nos diferentes níveis de governo; confiança que pode ser afetada por fatores contextuais de curto prazo, inclusive a mudança do partido incumbente.

Diferentes estudos postulam que a queda da confiança no governo nacional é suficiente para produzir atitudes favoráveis à descentralização (e.g., Hetherington, Nugent, 2001Hetherington, Marc J.; Nugent, John. (2001), “Explaining public support for devolution”, in J. R. Hibbing; E. Teiss-Morse (eds.), What is it About government that americans dislike? New York: Cambridge University Press, pp. 134-156. ; Chanley, Rudolph, Rahn, 2000Chanley, Virginia A.; Rudolph, Thomas J.; Rahn, Wendy M. (2000), “The origins and consequences of public trust in government: A time series analysis”. Public Opinion Quarterly, v. 64, n. 3, pp. 239-256. ; Brooks, Cheng, 2001; Jennings, 1998Jennings, Kent M. (1998), “Political trust and the roots of devolution”, in V. Braithwaite; M. Levi (eds.), Trust and governance. New York: Russel Sage Foundation, pp. 218-244. ). Nos Estados Unidos, cidadãos que confiavam menos no governo federal se mostraram mais inclinados a passar aos estados responsabilidades em políticas sociais, ambientais e de combate ao crime. Hetherington e Nugent (2001)Hetherington, Marc J.; Nugent, John. (2001), “Explaining public support for devolution”, in J. R. Hibbing; E. Teiss-Morse (eds.), What is it About government that americans dislike? New York: Cambridge University Press, pp. 134-156. testaram duas hipóteses para o suporte à descentralização em direção aos estados: (i) maior eficiência dos estados na provisão de políticas ou (ii) reprovação do governo federal, manifestada em níveis declinantes de confiança. As evidências os levaram a se inclinar pela segunda alternativa. Em seu estudo, as capacidades dos governos estaduais, em termos de menores dívidas, mais poder arrecadatório e abertura para participação popular na definição de leis, não se mostraram preditores consistentes das preferências descentralizadoras dos eleitores. Em lugar disso, partidarismo 1 1 . Medida por uma escala recorrente nas ondas ao American National Electoral Study (ANES) com sete pontos que vão de “fortemente democrata” ( strong democrat ) a “fortemente republicano” ( strong republican ) e tendo como ponto central “independente”. , ideologia 2 2 . Medida por uma escala recorrente nas ondas ANES com sete pontos que vão de “extremamente liberal” ( extremely liberal ) a “extremamente conservador” ( extremely conservative ) e tendo como ponto central “moderado” ( moderate, middle of the road ). e desconfiança no governo federal mostraram-se associados às preferências por devolução de competências aos estados. Diferentemente dos argumentos do cálculo redistributivo da economia política, da cultura política federativa ou da identidade territorial, nessa abordagem os eleitores preferem (des)centralização das políticas quando confiam no nível de governo responsável por sua execução.

Essas abordagens sobre a importância da confiança na formação de atitudes sobre a distribuição de poder entre os níveis de governo limitam-se a comparar o poder explicativo da confiança contra outras explicações alternativas, como a distribuição da renda nas jurisdições ou a identidade territorial. Diferentemente, nossa hipótese aqui é não somente que a confiança nos níveis de governo importa para a formação de atitudes pró ou anticentralistas vis-à-vis outras explicações alternativas, mas que a importância explicativa da confiança pode mudar quando essa confiança sofre um abalo. Em outras palavras, quando a confiança dos eleitores nos níveis de governo muda substancialmente, assim também muda o quanto essa variável pesa para explicar atitudes em relação à distribuição de poder na federação. Exploramos essa hipótese a partir de dois surveys inéditos conduzidos em 2013 e em 2018.

Dados e Métodos

Nosso estudo faz uma análise empírica com base em dois surveys originais de opinião pública com representatividade nacional. A primeira onda da pesquisa, aplicada em março de 2013, entrevistou 2.285 eleitores poucos meses antes das históricas manifestações de junho. Foi empregado o método CATI (computer-assisted telephone interview) e amostragem por cota de sexo, idade e escolaridade, espelhando o Censo de 2010. Na segunda onda, entre abril e junho de 2018, 2.534 eleitores foram entrevistados, a maioria pelo método CATI, mas com parcela residual em sistema face a face, em pontos de afluxo de público e com uso de tablets, de forma a completar cotas nas mesmas dimensões 3 3 . Nas pesquisas, as amostras foram estratificadas para representar as cinco macrorregiões do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), com oversampling em três Estados selecionados a partir da distribuição de renda: o estado mais rico, São Paulo (SP); um estado pobre e mais desigual, Bahia (BA); e um estado pobre e menos desigual, Ceará (CE). Cada área constitui um estrato independente, com margem de erro de até 5%. . A pesquisa foi realizada anteriormente à campanha oficial à Presidência, que acabou com Jair Bolsonaro, então no Partido Social Liberal (PSL), eleito.

Nossa variável dependente principal são atitudes centralistas. Mais amplamente, consideramos as opiniões sobre alocação de autoridade na União, estados ou municípios. Medimos essas opiniões usando duas perguntas separadamente. A primeira questionava qual nível de governo, na opinião do entrevistado, deveria ter menos poder ; a segunda perguntava quem deveria ter mais poder . Construímos um indicador de preferência por mudanças na distribuição de autoridade combinando as respostas dessas duas questões 4 4 . Para uma discussão detalhada da construção de indicadores de preferências por alocação de autoridade entre níveis de governo, ver Arretche et al. (2016) . . Indivíduos são considerados centralistas se, em sua opinião, o governo central deveria ter mais poder e a autoridade dos outros níveis de governo deveria permanecer como está ou ser reduzida. Os perfis estadualista e municipalista foram construídos de forma análoga. Aqueles que opinaram que nenhum nível de governo deveria ter nem mais nem menos poder foram classificados como favoráveis ao status quo . Em resumo, as categorias resultantes são as seguintes:

  • Status quo é o grupo que congrega os entrevistados que deixam de apontar uma esfera federativa que deveria ter menos ou mais poder;

  • Centralista é quem defende mais poder para a União e 1) quer limitar a autoridade das outras duas esferas ou 2) avalia que nenhuma delas deva ter seu poder encolhido;

  • Estadualista é quem defende mais poder para os Estados e 1) quer limitar a autoridade das esferas federal e municipal ou 2) avalia que nenhuma delas deva ter seu poder diminuído;

  • Municipalista é quem defende mais poder para os municípios e 1) quer limitar a autoridade das outras duas esferas ou 2) avalia que nenhuma delas deva ter menos poder.

Cabe notar que os resultados obtidos para a categoria status quo devem ser interpretados com cautela, pois podem significar atitudes muito distintas. Opiniões que classificamos como favoráveis à manutenção do status quo podem tanto representar apoio à distribuição atual, conforme esta é percebida pelo eleitor, quanto desinteresse em relação à distribuição vertical de poder. No limite, pode representar até mesmo descrença no sistema político. Entretanto, essa possibilidade não altera os resultados de nossa análise, na medida em que constatamos que (i) há uma queda do apoio a um aumento do protagonismo da União neste período que (ii) não foi acompanhado pelo crescimento de atitudes descentralistas, mas sim pelo (iii) aumento dos que não dariam mais poder a nenhum nível de governo, e (iv) pela mudança na importância da confiança no governo central como preditor de atitudes centralistas.

As opiniões dos eleitores sobre distribuição de poder entre os níveis de governo são nossa variável dependente principal. Recapitulando: nosso argumento tem duas partes. Primeiro, fatores exógenos, como crises econômicas e políticas, podem afetar a confiança nos níveis de governo e segundo, um abalo na confiança pode mudar a relevância dessa variável para explicar atitudes centralistas. A ênfase desse artigo é a segunda parte do argumento.

Quanto à primeira parte do argumento, partimos da premissa que ela é verdadeira. Ou seja, embora não exploremos diretamente na análise empírica as causas da mudança de confiança no governo central no Brasil, demonstramos que essa confiança de fato sofreu um abalo entre 2013 e 2018 e mostramos como isso ocorreu entre eleitores independentemente de suas filiações partidárias. Apresentamos uma análise descritiva da queda da confiança usando os dois surveys originais discutidos acima. Além disso, exploramos a trajetória da confiança nos três níveis de governo no Brasil com base nos dados do Barómetro das Américas, pesquisa de caráter comparativo realizada em três dezenas de países das Américas pelo Latin American Public Opinion Project (LAPOP), disponíveis no endereço eletrônico https://www.vanderbilt.edu/lapop/. As ondas do LAPOP aplicadas no Brasil e utilizadas aqui referem-se a 2010, 2012, 2014, 2017 e 2019. Para título comparativo, apresentamos também dados sobre o caso americano com base no American National Election Studies (ANES) disponíveis no endereço eletrônico https://electionstudies.org/.

Para a segunda parte do argumento, ou seja, para nossa análise da mudança na relevância da confiança como fator preditivo das atitudes centralistas, dada a crise de confiança no governo federal entre as duas ondas do survey , empregamos estatísticas descritivas e modelos de regressão multinomial multivariada. Com base nessas análises, aplicamos um teste estatístico comparando se a correlação entre confiança no governo central e atitudes centralistas mudou de forma significativa nesses dois períodos.

Incluímos a preferência partidária (partido pelo qual o eleitor expressou ter simpatia) como variável de controle por ser uma variável confundidora em potencial. Partidarismo é um fator associado à confiança no governo central, como veremos a seguir. Além disso, estudos indicam que a identificação partidária importa para as atitudes pró-centralização. Nos EUA, por exemplo, republicanos e conservadores tendem a apoiar mais a descentralização, enquanto democratas e liberais são mais centralistas quando comparados com eleitores que se dizem independentes e moderados. No entanto, quando há troca do incumbente os partidários se comportam de forma assimétrica: o apoio dos republicanos à descentralização praticamente não é afetado, enquanto os democratas passam a apoiar mais descentralização quando há um presidente do partido adversário no governo federal. Em menor medida, algo semelhante se passa com conservadores e liberais. A estabilidade das preferências federativas se mantém para os republicanos. Para democratas e liberais, e em menor medida para conservadores, argumentos pela descentralização têm maior probabilidade de serem adotados “de forma oportunista” ( Dinan, Heckelman, 2020Dinan, John; Heckelman Jac C. (2020), “Stability and contingency in federalism preferences”. Public Administration Review, v. 80, n. 2, pp. 234-243.: 235). Assim, a associação mais provável neste caso é que o partidarismo afete tanto as opiniões sobre centralização quanto a confiança, de modo que incluímos essa variável na nossa análise de regressão.

As outras variáveis principais que usamos como controles nos modelos de regressão incluem a renda regional e familiar, o voto nas eleições locais e nacionais imediatamente anteriores ao survey , o vínculo identitário do respondente com seu estado de moradia e a avaliação retrospectiva de cada nível de governo.

Continuidades e descontinuidades nas preferências sobre o desenho da federação

Começamos por descrever nossa principal dimensão de interesse: opiniões sobre a alocação de autoridade entre os níveis de governo. Há continuidades e descontinuidades marcantes nos resultados dos surveys realizados em 2013 e em 2018. Em ambos, os entrevistados consideraram que a esfera federal é destacadamente a mais importante da federação. Essa percepção aparece na hierarquização que os entrevistados fizeram da relevância de decisões e de eleições (ver Figura 1 ).

Figura 1
: Qual nível de governo toma as decisões mais importantes e realiza as eleições mais importantes? (2013 e 2018)

Em relação às decisões mais importantes, a maioria dos entrevistados indicou o governo federal – 52,8% (+/- 1.1) em 2013 e 60,6% (+/- 1) em 2018. Decisões estaduais e locais dividiram o segundo lugar, bem atrás. Nas duas edições do survey , cerca de dois terços da amostra consideraram serem as eleições federais as mais importantes. Além disto, as eleições locais são percebidas como tão ou mais importantes do que as estaduais. Em 2013, 18,8% (+/- 0.8) declararam que as eleições municipais são mais importantes, contra 11,3% (+/- 0.67) que mencionaram as estaduais. No survey recente, essa diferença foi de 15,9% (+/- 0.7) contra 11,2% (+/- 0.6). Apesar de alguma flutuação, esses rankings sugerem uma avaliação relativamente estável da relevância de cada esfera de governo. Neste artigo, interpretamos esses dados como indicadores de que tanto em 2013 quanto em 2018 os brasileiros percebiam a federação como centralizada.

A Tabela 1 apresenta as preferências relativas a quem deveria ter mais/menos poder, isto é, quais são as preferências dos eleitores no que diz respeito à alocação de autoridade. Se a importância atribuída aos níveis de governo manteve-se estável nos dois períodos, ocorreu uma mudança importante nas preferências por distribuição vertical da autoridade. Em 2018, reduziu-se muito o percentual de eleitores dispostos a conferir mais autoridade ao governo federal. Entre 2013 e 2018, cresceu de 10,5% para 22,6% o grupo que daria menos poder ao presidente, ao passo que caiu de cerca de 20% para 13,4% o percentual daqueles que lhe confeririam ainda mais poder. Nossa interpretação é que caiu o apoio ao aumento do protagonismo da União na federação.

Tabela 1
: Quem deveria ter mais e menos poder?*

Entretanto, esta disposição para frear a expansão do governo federal não se traduziu em uma preferência por mudança na direção de aumentar a autoridade de estados e municípios, conforme identificado para os estudos sobre os EUA. Estudos posteriores devem explorar melhor esta divergência de trajetórias que, para o caso brasileiro – insistimos – conta com apenas dois pontos no tempo. Mas sabemos que os estados têm maiores prerrogativas decisórias nos Estados Unidos, assim como uma tradição descentralista que data da formação daquela federação ( Bednar, Eskridge Jr., Ferejohn, 1999Bednar, Jenna; Eskridge Jr., William N.; Ferejohn, John. (1999), “A political theory of Federalism”, in J. Ferejohn; Jack N. Ravoke; J. Riley (orgs.), Constitutional culture and democratic rule. Cambridge: Cambridge University Press, pp. 223-69. ). Diferentemente, a trajetória da federação brasileira desde os anos 1930 é de concentração de autoridade na União.

Nossas evidências, contudo, revelam que a queda na confiança no governo federal ocorreu concomitantemente com a expansão da parcela de eleitores que não conferiria mais poder a nenhum nível de governo: estes cresceram de 36,8% para 48,9%. Em outras palavras, seja qual for a atitude que a categoria status quo expressa – apoio ao arranjo atual, indiferença em relação ao desenho da polity ou mesmo descrédito na política – o fato é que a desconfiança no governo federal não se converteu em uma preferência pró-descentralização.

Na verdade, os dados indicam o status quo (“nenhum” nível de governo com mais ou menos poder) como a atitude com maior concentração de preferências nos dois momentos no tempo. A título de comparação, o eleitorado dos Estados Unidos manifesta preferência por concentrar autoridade nos estados, em detrimento do governo federal. Pesquisa do Instituto Gallup encontrou 55% da amostra nacional em favor de concentrar poder nos governos estaduais contra 37% em favor da União, em 2016. A ordem é a mesma de 35 anos atrás – 56% a 28%, em 1981 (Gallup, 2016). Em vez disto, a maior parte do eleitorado brasileiro reconhece que a federação brasileira é centralizada ( Figura 1 ), mas não parece disposta a alterar substancialmente este desenho ( Tabela 1 ).

A Tabela A.1 do Apêndice mostra as frequências simples para cada categoria da nossa variável dependente para cada onda do survey (ver linha Total). O grupo classificado como apoiadores do status quo são maioria simples em todos os casos, excluindo as não respostas. A Tabela A.1. apresenta também um cruzamento simples entre essa variável e a percepção dos eleitores sobre o nível de centralização da federação, captada pela pergunta sobre a importância das decisões de cada nível de governo. Valores na coluna Total diferem ligeiramente da Figura 1 pois não respostas foram incluídas na tabela.

A Figura 2 mostra frequências simples de cada perfil de opinião por mudança na distribuição de autoridade, por ano e por estrato territorial. O grupo favorável à manutenção do status quo em 2013 não era uma maioria expressiva em nenhuma região, exceto no Sudeste. Em 2018, todos os territórios convergiram para a preferência pelo status quo , exceto na Bahia, com maior proporção de municipalistas. Entre 2013 e 2018, ocorreu uma diminuição dos centralistas, em particular na região Nordeste − a única em que a queda esteve além do intervalo de confiança. A redução de centralistas no Nordeste e em outras áreas, como São Paulo, se refletiu no aumento dos favoráveis ao status quo , mais do que no aumento de municipalistas ou estadualistas 5 5 . Em alguns estratos, os valores obtidos ficaram dentro da margem de erro, o que em parte se explica pelo reduzido tamanho da amostra de cada subgrupo. .

Figura 2
: Perfis de preferência por alocação da autoridade por região e estados sobreamostrados*

Em relação aos estados, o padrão geral no survey mais recente é que os defensores de seu empoderamento sejam o grupo minoritário. Isso vale para o Norte, o Sudeste e o Sul, onde menos de um quinto da amostra se apresenta como estadualista. Em outras palavras, a queda do centralismo não se traduziu em expansão do descentralismo, diferentemente do encontrado para o caso norte-americano.

A Figura 3 apresenta evidências sobre as variações nos perfis de preferência por alocação de autoridade, desta vez somando os grupos favoráveis à estadualização ou municipalização, denominados de descentralistas. A figura permite observar mais claramente que o grupo que cresce entre 2013 e 2018 é aquele que prefere manter o status quo . No caso dos estados de São Paulo e do Ceará, a diferença percentual dos favoráveis ao status quo cresceu em mais de 12 e 7 pontos percentuais, respectivamente. Parte dessa ampliação se deve ao esvaziamento do perfil centralista, especialmente no Ceará. Mais que isso, diferentemente do encontrado no caso norte-americano, ocorreu também uma retração daqueles que se declaram descentralistas (soma dos estadualistas e municipalistas), especialmente no Sul e Centro-Oeste. Foi no Nordeste que o apoio aos estados mais avançou.

Figura 3
: Variação nos perfis de alocação da autoridade entre 2013 e 2018 (em pontos percentuais)

Em resumo, (1) o apoio à expansão de autoridade do governo central diminuiu sensivelmente entre 2013 e 2018 (Tabelas 1 e A.1 do Apêndice) mas esta queda não se converteu em expansão do apoio à alternativa da descentralização, com a clara exceção do Nordeste ( Figura 3 ). Entretanto, a direção da mudança aponta na direção da categoria status quo , que tanto pode significar apoio à manutenção do arranjo atual quanto descrença em relação ao sistema político.

Considerando que a federação brasileira é altamente centralizada, porque concentra policy decision-making na União, estas evidências não fornecem suporte ao argumento de que havia no eleitorado uma preferência majoritária por mudanças na direção de uma polity com menos Brasília. Se preferências por mudança existem, estas não são na direção da descentralização da autoridade sobre políticas públicas. Dito de outro modo, a fração majoritária dos eleitores percebe nossa federação como muito centralizada e, mesmo sob contexto de acentuada queda na confiança em relação ao governo federal, não se converte em descentralista. Contrariamente, mantém atitudes favoráveis à centralização ou ao status quo , ainda que tenha refreado o suporte à expansão da autoridade do governo central. Antes de explorarmos os fatores correlacionados com essas atitudes em 2013 e 2018, discutimos na seção seguinte a crise de confiança no governo central entre esses dois momentos no tempo, para então explorar se a relevância dessa variável mudou.

Crises de Confiança no Governo Central

Os estudos comparados têm encontrado grande variação nos níveis de confiança no governo central ao longo do tempo, distinguindo tendências históricas de movimentos de curto prazo. No caso norte-americano, o American National Election Study (ANES) levanta dados sobre a confiança dos eleitores no governo federal desde 1958. Uma tendência declinante de longo prazo combina componentes de estabilidade com mudanças contingenciais. A Figura 4 mostra a tendência histórica marcada por queda sustentada do governo Johnson ao governo Carter, recuperação no governo Clinton e após o 11 de Setembro de 2001 e nova queda sustentada. Kincaid e Cole (2011) encontraram evidências de que a reação aos atentados de 11 de Setembro elevou significativamente a confiança no governo federal norte-americano por cerca de cinco anos, com os índices posteriormente retornando aos níveis anteriores.

Figura 4
: Confiança no governo federal dos EUA (1958-2021)

Para além de fatores conjunturais, a literatura norte-americana destaca a identificação partidária como uma dimensão relevante na confiança no governo federal. Identificação partidária ou atitudes em relação ao partido que controla a Presidência fazem diferença. Eleitores republicanos declaram maior confiança no governo federal quando um republicano está na Presidência. O mesmo ocorre com os eleitores democratas. Em 2021, 36% dos partidários do Partido Democrata ou simpatizantes diziam confiar no governo dirigido por Joe Biden, contra 9% entre partidários ou simpatizantes dos republicanos. Em análise bivariada, esse padrão mostra caráter histórico ( Figura 5 ).

Figura 5
: Confiança no governo federal dos EUA, por preferência partidária (1958-2021)

Assim, os estudos sobre os EUA revelam uma trajetória declinante de longo prazo na confiança no governo federal. No curto prazo, entretanto, esta é afetada tanto por fatores conjunturais quanto por lealdades partidárias.

Nossos dados indicam que preferências partidárias também importam no Brasil. A Figura 6 apresenta dados do LAPOP entre 2010 e 2019, apenas para a confiança no governo federal. O eixo vertical mostra a média da confiança entre eleitores do PT, de seu principal opositor nas eleições federais (Partido da Social Democracia Brasileira − PSDB até 2017, PSL em 2018), de outros partidos (os demais partidos, excluídos PT, PSDB ou PSL) ou dos eleitores que declararam não ter votado em nenhum partido nestas eleições. Valores positivos indicam confiança elevada e valores negativos indicam ausência de confiança.

Figura 6
: Confiança no governo federal por identificação partidária do eleitor (2010-2020)

Há uma tendência de queda de confiança no governo federal até 2017. Entretanto, essa confiança era positiva entre eleitores petistas quando o PT (Dilma Rousseff) estava na Presidência. Embora a trajetória indique redução da confiança até mesmo entre petistas ao longo desse período, a confiança no governo federal permaneceu maior entre os eleitores do PT do que entre eleitores dos demais partidos, enquanto o PT esteve no governo. Somente em 2017, após os escândalos de corrupção e a crise política que levou Michel Temer a ocupar o lugar de Dilma em 2016, os eleitores do PT aparecem com score negativo de confiança.

O governo Temer registra ausência de confiança de modo generalizado. Destacam-se os eleitores que disseram não ter votado em ninguém na eleição presidencial de 2014, possivelmente os mais céticos diante da política, que apresentam média próxima do ponto mais baixo da escala. Em 2019, Jair Bolsonaro assume a Presidência e os níveis de confiança entre seus partidários se inverte. Os níveis de confiança no governo central subiram, mas mais substancialmente somente entre eleitores do PSDB ou PSL (partido do candidato eleito Jair Bolsonaro). Entre eleitores do PT, então fora do controle do Executivo federal, a confiança permaneceu negativa. As mesmas tendências são observadas se identificação partidária, medida em termos de simpatia do eleitor pelo partido, é utilizada ao invés de voto.

As duas ondas do survey apresentam resultados semelhantes. A Figura 7 apresenta evidências sobre a confiança e a avaliação nos diferentes níveis de governo: federal, estadual e municipal, pelos eleitores do PT e do PSDB/DEM na eleição que antecedeu o survey . Esta fonte de dados tem a vantagem de permitir a comparação entre as diferentes esferas, dado que a informação para os três níveis não está disponível para toda a série na pesquisa do LAPOP.

Figura 7
: Aprovação e confiança nos níveis de governo, segundo partido no qual votou na eleição presidencial anterior

A linha contínua refere-se a 2013 e a linha tracejada, a 2018. O fato de que a segunda esteja contida na primeira em todas as dimensões e para ambos os grupos de eleitores revela que tanto a aprovação quanto a confiança em qualquer dos níveis de governo foi abalada entre os dois pontos do tempo, independentemente do partido no qual o eleitor votou na eleição anterior.

Entretanto, a reprovação e a erosão de confiança foram bem mais reduzidas na esfera municipal e comparativamente menor na esfera estadual. Entre 2013 e 2018, o grande abalo na confiança ocorreu em relação ao governo federal e à figura do presidente. Embora não possamos afirmar que a reprovação do governo federal e o abalo na confiança neste nível de governo estejam causalmente relacionados, não há dúvida de que tiveram comportamento paralelo. Ademais, em consonância com a hipótese partidária, a queda na confiança no governo federal foi mais intensa em 2018 entre aqueles que declararam ter votado no PT na eleição anterior (comparação entre o radar à esquerda e o radar referente aos eleitores de PSDB e Democratas − DEM, à direita).

Essa queda na confiança no governo federal não surpreende. Entre os dois surveys , a política federal passou por sucessivos e combinados choques reputacionais. O crescimento econômico do período 2004-2013 − média anual de aumento de 4% do PIB − deu lugar a uma recessão econômica que se estendeu do segundo trimestre de 2014 até o final de 2016 (De Paula, 2019); o período recessivo foi seguido por crescimentos modestos, na casa de 1% do PIB, em 2017 e 2018. A Operação Lava Jato, com foco na corrupção da classe política, fortaleceu sentimentos antipolítica e favoreceu eleitoralmente a direita radical em detrimento da direita moderada ( Santos, Tanscheit, 2019Santos, Fabiano; Tanscheit, Talita. (2019), “Quando velhos atores saem de cena: a ascensão da nova direita política no Brasil”. Colombia Internacional, n. 99, pp.151-186. ). A operação intensificou o crescimento do antipetismo, iniciado ainda antes de 2014 ( Ribeiro, Carreirão, Borba, 2016Ribeiro, Ednaldo; Carreirão, Yan; Borba, Julian. (2016), “Sentimentos partidários e antipetismo: condicionantes e covariantes”. Opinião Pública, v. 22, n. 3, pp. 603-637. ; Samuels, Zucco, 2018Samuels, David; Zucco, Cesar. (2018), Partisans, antipartisans, and nonpartisans: Voting behavior in Brazil. Cambridge: Cambridge University Press. ). Ademais, a reeleição de Dilma Rousseff em 2014 representou estabilidade das forças eleitorais e foi seguida de eleição que pode ser considerada desviante, porque impactada por causas de curto prazo que podem não significar realinhamento do eleitorado em prazo mais longo ( Braga, Zolnerkevic, 2020Braga, Maria S.; Zolnerkevic, Aleksei. (2020), “Padrões de votação no tempo e no espaço: classificando as eleições presidenciais brasileiras”. Opinião Pública, v. 26, n. 1, pp. 1-33. ). Norte e Nordeste foram as únicas regiões em que o PT manteve sua participação nos votos do segundo turno da eleição presidencial entre 2010 e 2014; em 2018, apenas o Nordeste manteve essa estabilidade ( Nicolau, 2020Nicolau, Jairo Nicolau. (2020), O Brasil dobrou à direita: uma radiografia da eleição de Bolsonaro em 2018. Rio de Janeiro: Zahar.: 187). No ano em que foi realizada a segunda onda do survey , a reprovação ao governo Michel Temer (2016-2018) variou entre 70% (janeiro) e 82% (junho) de ruim/péssimo, segundo o Datafolha ( CEM, 2021CEM (Centro de Estudos da Metrópole). (2021), Avaliação de Presidentes - Temer. Disponível em: https://centrodametropole.fflch.usp.br/pt-br/presidentes-e-governadores/presidentes/datafolha/avaliacao/temer. Acesso em 18/3/2021.
https://centrodametropole.fflch.usp.br/p...
). Quando o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva foi preso sob acusação de corrupção, em 7 de abril de 2018, estava em curso a fase final de entrevistas da segunda onda do survey utilizado.

O passo seguinte de nossa análise consiste em examinar a confiança no governo central como preditor de atitudes centralistas . Dada essa queda substancial na confiança, nos interessa saber se seu valor preditivo mudou entre 2013 e 2018. Em caso afirmativo, podemos identificar um dos fatores potenciais que dão origem às preferências por alocação de autoridade em uma federação como a brasileira. Esta análise também nos permitirá discutir os fatores associados à estabilidade destas preferências, tal como postulado pela literatura clássica (cálculo redistributivo, cultura federativa, identidade regional). Nesse caso, é possível examinar como fatores contextuais de curto prazo podem afetar não só suporte por centralismo em si mesmo, mas em especial a relevância dos fatores correlacionados com essas atitudes centralistas.

Correlatos do suporte por mudanças na federação

Nas duas seções anteriores, descrevemos algumas mudanças expressivas nos níveis de confiança, em especial no governo central, a relação da confiança com voto e identificação partidárias, bom como as mudanças em direção à queda no suporte ao papel protagonista do governo federal. A questão remanescente é se, dada a expressiva mudança nos níveis de confiança no governo central e a mudança do partido no governo, houve alguma alteração nos fatores correlacionados com as atitudes em relação à federação entre os dois pontos do tempo que consideramos neste estudo. Quais fatores permitem prever atitudes por mudanças na direção de mais (des)centralização? Dadas as mudanças expressivas nos níveis de confiança, mudou a relevância desse fator como variável preditiva das atitudes federativas, levando em conta as explicações alternativas sobre o efeito da identidade territorial e da distribuição da renda?

Exploramos essa questão por meio de uma análise multivariada com um modelo de regressão multinomial, usando o grupo favorável à manutenção do status quo como categoria de referência. A variável dependente são as atitudes por mais (des)centralização ou pela manutenção do status quo , como explicado na seção Dados e Métodos. Para testar os argumentos da economia política – de que preferências por polity são resultado de cálculos racionais de natureza redistributiva –, incluímos como preditores a região de origem do entrevistado e a sua renda domiciliar per capita, assim como a interação entre esses fatores. O exame do argumento sobre o efeito da identidade territorial está representado na variável que mede o grau de identificação do indivíduo com seu estado de origem.

Os resultados estão apresentados na Figura 8 . As regressões multinomiais foram estimadas separadamente para o survey de 2013 e 2018. Optamos por essa abordagem desagregada porque ela permite investigar mais claramente mudanças entre esses dois momentos nos coeficientes lineares estimados. O eixo y mostra a variável preditora. Os pontos em cinza representam estimadores baseados no survey de 2013 e os pontos em preto foram computados com o survey de 2018. As barras representam os intervalos de confiança a 95%.

Figura 8
: Regressão multinomial usando atitudes por (de)centralização de poder como variável dependente*

Gostaríamos de chamar a atenção, primeiramente, para a consistência na associação dos preditores com as preferências por mais (des)centralização. Nas duas ondas dos surveys , praticamente todos os coeficientes mantiveram a mesma associação com a variável dependente. Ou seja, embora alguns preditores deixaram de ter significância estatística, os preditores não são significativamente diferentes entre si nos dois anos na maioria dos casos. Por exemplo, a interação entre renda e região Sudeste era negativa e significante em 2013, indicando que no Sudeste, uma região relativamente rica em relação à região de referência (Centro-Oeste), o apoio à centralização diminui com a renda. Em 2018, essa interação deixou de ser estatisticamente significante. Porém, não há significância estatística na diferença entre o coeficiente estimado em 2013 e em 2018. Isso significa que embora esse fator (interação entre renda e região Sudeste) deixou de ser significante em 2018 como preditor de atitudes centralistas, a correlação em 2018 não é significativamente diferente da correlação encontrada em 2013. Outro exemplo é o caso da interação entre renda e região Nordeste como preditor de atitudes descentralistas. Em 2013, não havia significância estatística dessa interação como preditora de atitudes descentralistas, mas em 2018 passa a haver. Ou seja, em 2013 não rejeitaríamos a hipótese de que essa correlação fosse nula. Em 2018, podemos rejeitar essa hipótese. No entanto, não podemos rejeitar a hipótese de que o valor da correlação dessa variável com as atitudes descentralistas tenha mudado nos dois momentos. É possível que ela seja igual nos dois pontos do tempo. De modo geral, esses resultados validam as duas ondas do survey e indicam uma estabilidade nos fatores correlacionados com atitudes pró-centralistas.

Há apenas duas exceções nas quais a correlação mudou de forma significativa entre os dois períodos: a confiança no governo central e a avaliação do governo municipal. No caso da confiança, em 2018 ela passou a ser uma variável positiva e correlacionada com significância com o centralismo. Essa correlação é significantemente diferente da correlação encontrada em 2013. O z-score da diferença entre os coeficientes de 2018 e 2013 é de 2.91, e o p-valor é de 0,0018. Para a variável de avaliação do prefeito, o z-score é de -2.33 e o p-valor é de 0,01. Ou seja, houve uma mudança significativa na relevância da variável de confiança, de modo que em 2018, no modelo de regressão da Figura 8 , a confiança no governo central passou a prever atitudes favoráveis a mais centralismo, de forma significativamente diferente de como o fazia em 2013 .

A avaliação da performance do governo local, no entanto, fez um caminho oposto. Enquanto melhores avaliações desse nível de governo estavam correlacionadas com aumento na probabilidade de suporte ao centralismo (contrariamente ao que seria esperado), em relação ao apoio ao status quo , essa correlação desaparece em 2018, e essa mudança é estatisticamente significativa.

Esses resultados nos permitem uma resposta inicial, dado o caráter exploratório do presente estudo, à pergunta deste artigo. A crise generalizada de confiança no governo central que ocorreu entre 2013 e 2018, antes da eleição de Bolsonaro, parece ter mudado a importância da confiança como variável preditora de atitudes centralistas. Aqueles que expressavam confiança no governo central durante a crise de confiança e apesar dela, mesmo controlados os fatores partidários, a avaliação de governo, a identidade territorial e a distribuição regional e pessoal da renda, são aqueles que mais tendiam a preferir um aumento na centralização e conferir mais poder para o governo central. Em 2013, a probabilidade de ser centralista aumenta apenas em 18% entre os que mais confiam em relação àqueles que mais desconfiam. Em 2018, essa mesma probabilidade de ser centralista aumenta em duas vezes e meia (150%) quando saímos do nível mais baixo para o nível mais alto de confiança.

Considerações finais

Este artigo investigou continuidades e mudanças nas atitudes do eleitorado brasileiro diante da federação a partir de duas ondas de surveys com dimensões inéditas em estudos nacionais. Apresentamos quatro achados principais.

Primeiro, constatamos uma continuidade entre 2013 e 2018 na percepção dos brasileiros sobre a relevância do governo federal como a principal instância de tomada de decisões políticas no Brasil. Os eleitores brasileiros avaliam que as principais decisões que afetam suas vidas são tomadas pelo governo federal e consideram que as eleições para este nível de governo são as mais relevantes. Em segundo lugar, identificamos uma queda expressiva no suporte a um incremento da autoridade da União entre os dois pontos no tempo. Cai expressivamente entre 2013 e 2018 o percentual daqueles que concentrariam mais autoridade no governo federal e aumenta o percentual dos que reduziriam a autoridade deste nível de governo. Entretanto, isto não se converte, diferentemente do encontrado para os EUA, em demanda por descentralização. Em vez disto, os eleitores movem-se para uma categoria que denominamos de status quo , cuja consequência prática consiste em deixar a federação como está.

Em terceiro lugar, encontramos uma queda generalizada na confiança nos governos, especialmente acentuada em relação à esfera federal. Entre os dois pontos no tempo, o país viveu escândalos de corrupção, crise econômica, deposição de uma presidenta e mudança radical na orientação ideológica da Presidência, entre outros processos marcantes, de modo que a queda na confiança não surpreende. Finalmente, em quarto lugar e mais relevante do ponto de vista teórico, nosso estudo demonstrou que a queda drástica de confiança dos eleitores no governo federal veio acompanhada de uma mudança no quanto essa variável importa como determinante de atitudes centralistas. A confiança no governo central não tinha esse efeito independente em 2013, controladas as características atitudinais, políticas e socioeconômicas, mas foi um dos únicos fatores cuja associação com preferências centralistas mudou em 2018, passando a ser um dos elementos preditivos mais relevantes.

Nossos achados contribuem para o entendimento das atitudes por distribuição de poder em arranjos multinível. O caso do Brasil revela que, em apenas cinco anos, podem ocorrer mudanças sensíveis nessas atitudes sem que tenha havido alterações significativas na distribuição territorial da renda, no sentimento de pertencimento regional ou em fatores culturais de mais longo prazo, que são fatores explicativos tradicionalmente abordados pela literatura. Nesse sentido, nosso estudo interpela e complementa essas abordagens clássicas para explicar as preferências por distribuição da autoridade, indicando que a relevância explicativa desses fatores, e em particular da confiança no governo central, pode estar sujeita a dinâmicas contextuais.

Em outra frente, nossa investigação sugere cautela antes de associar quedas na confiança no governo federal com atitudes pró-descentralização, recorrente em estudos sobre os Estados Unidos. A confiança no governo central despencou de 57,1% em 2013 para 13,4% em 2018, mas esse movimento não foi acompanhado de crescimento das atitudes descentralistas. A queda na confiança no governo federal foi acompanhada de uma expansão da parcela de eleitores que não conferiria mais poder a nenhum nível de governo: cresceram de 36,8% para 48,9%. A maior parte do eleitorado brasileiro reconhece que a federação brasileira é centralizada e não parece disposta a alterar substancialmente este desenho, apesar dos choques vividos pela política nacional entre 2013 e 2018.

AGRADECIMENTOS

Os autores agradecem a Rodrigo Mahlmeister pela colaboração no tratamento dos dados do Latin American Public Opinion Project (LAPOP) bem como àas sugestões obtidas em apresentações na Área Temática de Comportamento Político da Associação Brasileira de Ciência Política (ABCP) e em seminários do Centro de Estudos da Metrópole (CEM). Este estudo teve apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (processo Fapesp no 2013/07616-7) e do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (processo CNPq no 305653/2017-2).

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Notas

  • 1
    . Medida por uma escala recorrente nas ondas ao American National Electoral Study (ANES) com sete pontos que vão de “fortemente democrata” ( strong democrat ) a “fortemente republicano” ( strong republican ) e tendo como ponto central “independente”.
  • 2
    . Medida por uma escala recorrente nas ondas ANES com sete pontos que vão de “extremamente liberal” ( extremely liberal ) a “extremamente conservador” ( extremely conservative ) e tendo como ponto central “moderado” ( moderate, middle of the road ).
  • 3
    . Nas pesquisas, as amostras foram estratificadas para representar as cinco macrorregiões do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), com oversampling em três Estados selecionados a partir da distribuição de renda: o estado mais rico, São Paulo (SP); um estado pobre e mais desigual, Bahia (BA); e um estado pobre e menos desigual, Ceará (CE). Cada área constitui um estrato independente, com margem de erro de até 5%.
  • 4
    . Para uma discussão detalhada da construção de indicadores de preferências por alocação de autoridade entre níveis de governo, ver Arretche et al. (2016)Arretche, Marta; Schlegel, Rogerio; Ferrari, Diogo. (2016), “Preferences regarding the vertical distribution of authority in Brazil: On measurement and determinants”. Publius: The Journal of Federalism, v. 46, no1, pp. 77-102. .
  • 5
    . Em alguns estratos, os valores obtidos ficaram dentro da margem de erro, o que em parte se explica pelo reduzido tamanho da amostra de cada subgrupo.

Disponibilidade de dados

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    20 Nov 2023
  • Data do Fascículo
    Jul-Sep 2024

Histórico

  • Recebido
    9 Jun 2022
  • Aceito
    16 Jul 2022
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