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“Não tenho, não tive”: vivências de famílias envolvidas na violência contra crianças e adolescentes

RESUMO

Objetivos:

caracterizar e analisar as vivências de famílias envolvidas na violência doméstica contra crianças e adolescentes, com base no Paradigma da Complexidade.

Métodos:

pesquisa qualitativa, sendo a coleta de dados realizada com 15 famílias por meio de pesquisa documental, entrevistas abertas e diário de campo. Os dados foram analisados mediante análise temática.

Resultados:

emergiram duas categorias “Não tenho” e “Não tive”, desvelando a historicidade que marca as violências experienciadas no presente. Fazem parte a vulnerabilidade social, a sobrecarga materna, associadas à violência urbana a que as famílias são expostas. Ao mesmo tempo, histórias de violências pelo parceiro íntimo, bem como a violência intergeracional e o abuso de drogas impactaram o momento atual.

Considerações Finais:

a enfermagem pode contribuir na (re)significação das histórias violentas tecidas pelas famílias, bem como na construção interdisciplinar de olhares e intervenções que considerem as múltiplas violências e adversidades a que tal população está exposta.

Descritores:
Violência Doméstica; Família; Criança; Adolescente; Pesquisa Qualitativa

ABSTRACT

Objectives:

to characterize and analyze the experiences of families involved in domestic violence against children and adolescents, based on the Paradigm of Complexity.

Methods:

qualitative research, in which data of 15 families was collected through documentary research, open interviews and field diary. The data were analyzed through thematic analysis.

Results:

two categories “I don’t have it” and “I didn’t have it” emerged, revealing the historicity that marks the violence experienced in the present. They include social vulnerability, maternal burden, associated with urban violence to which families are exposed. At the same time, stories of violence by the intimate partner, as well as intergenerational violence and drug abuse have impacted the current moment.

Final Considerations:

nursing can contribute to attribute new meaning to violent stories woven by families, as well as to the interdisciplinary construction of perspectives and interventions that consider the multiple violence and adversities to which such a population is exposed.

Descriptors:
Domestic Violence; Family; Child Abuse; Adolescent; Qualitative Research

RESUMEN

Objetivos:

caracterizar y analizar las vivencias de familias envueltas en la violencia doméstica contra niños y adolescentes, con base en el Paradigma de la Complejidad.

Métodos:

investigación cualitativa, siendo la recogida de datos realizada con 15 familias por medio de investigación documental, entrevistas abiertas y diario de campo. Los datos han sido analizados mediante análisis temático.

Resultados:

emergieron dos categorías “No tengo” y “No tuve”, desvelando la historicidad que marca las violencias experienciadas en el presente. Hacen parte la vulnerabilidad social, la sobrecarga materna, relacionadas a la violencia urbana la cual las familias están expuestas. Al mismo tiempo, historias de violencias por la pareja íntima, así como la violencia intergeneracional y el abuso de drogas impactaron el momento actual.

Consideraciones Finales:

la enfermería puede contribuir en la (re)significación de las historias violentas aducidas por las familias, así como en la construcción interdisciplinar de miradas e intervenciones que consideren las múltiplas violencias y adversidades la cual tal población está expuesta.

Descriptores:
Violencia Doméstica; Familia; Niño; Adolescente; Investigación Cualitativa

INTRODUÇÃO

Crianças e adolescentes se apresentam como vítimas potenciais da violência; tal situação é entendida como grave problema de saúde pública no Brasil e no mundo. As violências envolvendo esses atores geralmente ocorrem em espaço de confiança, afeto e poder - o espaço doméstico. Na maioria das vezes, envolve pessoas com laços sanguíneos e/ou afetivos, que residem junto com essa população, entendidos como família neste estudo(11 Word Health Organization. Global status report on violence prevention: 2014 [Internet]. Geneva: World Health Organization; 2014 [cited 2015 Mar 20]. Available from: https://www.who.int/violence_injury_prevention/violence/status_report/2014/en/
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-22 Carlos DM, Pádua EMM, Ferriani MGC. Violence against children and adolescents: the perspective of Primary Health Care. Rev Bras Enferm. 2017;70(3):511-8. doi: 10.1590/0034-7167-2016-0471
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).

A violência pode ser definida como o uso intencional da força ou do poder físico, real ou em ameaça, contra uma pessoa, grupo ou comunidade, que resulte ou tenha grande possibilidade de resultar em injúria, morte, dano psicológico, privação ou alteração de desenvolvimento(11 Word Health Organization. Global status report on violence prevention: 2014 [Internet]. Geneva: World Health Organization; 2014 [cited 2015 Mar 20]. Available from: https://www.who.int/violence_injury_prevention/violence/status_report/2014/en/
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-22 Carlos DM, Pádua EMM, Ferriani MGC. Violence against children and adolescents: the perspective of Primary Health Care. Rev Bras Enferm. 2017;70(3):511-8. doi: 10.1590/0034-7167-2016-0471
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). Pelas características do fenômeno, a Organização Mundial da Saúde (OMS) propõe o modelo ecológico para a compreensão da violência, baseado na evidência de que nenhum fator singular pode explicar o maior risco ou maior proteção de algumas pessoas ou grupos à violência interpessoal. Esse fenômeno é resultado da interação de múltiplos fatores nos campos individual, relacional, comunitário e social(11 Word Health Organization. Global status report on violence prevention: 2014 [Internet]. Geneva: World Health Organization; 2014 [cited 2015 Mar 20]. Available from: https://www.who.int/violence_injury_prevention/violence/status_report/2014/en/
https://www.who.int/violence_injury_prev...
).

A tradição fragmentária de pensamento e cuidado desvela um olhar pontual e não articulado, geralmente direcionado apenas para as crianças e adolescentes expostos à violência, não considerando sua inserção em contextos mais amplos, sobretudo no ambiente familiar(33 Clarke A, Wydall S. From ‘Rights to Action’: practitioners’ perceptions of the needs of children experiencing domestic violence. Child Fam Soc Work. 2015;20:181-90. doi: 10.1111/cfs.12066
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). Corroboramos literatura recente que traz a necessidade de conectar as múltiplas adversidades às quais crianças, adolescentes e suas famílias se expõem, bem como os contextos de vida em que estão inseridos; essa mesma literatura apresenta lacunas no aprofundamento de tais conexões(44 Wilkins N, Tsao B, Hertz M, Davis R, Klevens J. Connecting the dots: an overview of the links among multiple forms of violence. Atlanta, GA: National Center for Injury Prevention and Control, Centers for Disease Control and Prevention; 2014.

5 Latkin CA, Knowlton AR. Social network assessments and interventions for health behavior change: a critical review. Behav Med. 2015;41:(3)90-7. doi: 10.1080/08964289.2015.1034645
https://doi.org/10.1080/08964289.2015.10...
-66 Ports KA, Ford D, Merrick MT. Adverse childhood experiences and adult sexual victimization. Child Abuse Negl. 2016;51:313-322. doi: 10.1016/j.chiabu.2015.08.017
https://doi.org/10.1016/j.chiabu.2015.08...
).

Considerando essas lacunas, e a agenda de prioridades para a pesquisa do Ministério da Saúde brasileiro, traz-se enquanto objeto deste estudo a questão das famílias envolvidas na violência contra crianças e adolescentes. Para apreender tal objeto, buscou-se apoio no Paradigma da Complexidade(77 Morin E. Introdução ao pensamento complexo. 4a ed. Porto Alegre: Sulina; 2011.) como referencial teórico-metodológico. A palavra “complexidade” deriva do latim complexus, que significa “tecido junto” ou “entrelaçado”. O paradigma visa compreender fenômenos complexos, caracterizados por sua imprevisibilidade e pela impossibilidade de serem descritos em um número de passos e espaço de tempo finitos. A articulação das múltiplas dimensões que compõem o fenômeno estudado amplia o grau de compreensão e conhecimento a ponto de tornar possível vislumbrar a sua complexidade(77 Morin E. Introdução ao pensamento complexo. 4a ed. Porto Alegre: Sulina; 2011.).

A literatura apresenta algumas características de famílias envolvidas em situações de violência, como associação a problemas de saúde mental; uso de substâncias psicoativas; vulnerabilidade social; e múltiplos tipos e manifestações de violência(44 Wilkins N, Tsao B, Hertz M, Davis R, Klevens J. Connecting the dots: an overview of the links among multiple forms of violence. Atlanta, GA: National Center for Injury Prevention and Control, Centers for Disease Control and Prevention; 2014.,66 Ports KA, Ford D, Merrick MT. Adverse childhood experiences and adult sexual victimization. Child Abuse Negl. 2016;51:313-322. doi: 10.1016/j.chiabu.2015.08.017
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). Entretanto, entende-se que o conhecimento de dados isolados é insuficiente, visto a necessidade de situá-los em seu contexto para que adquiram sentido. Assim, justifica-se o “ouvir as vozes” das famílias diretamente envolvidas no fenômeno, buscando um olhar “de dentro” para compreensão da articulação desses elementos e de possibilidades para transformação da realidade. Tais aspectos ainda se apresentam como desafios ao cuidar em enfermagem, vislumbrado como um conceito ampliado e dinâmico para promover um viver melhor a seres humanos plurais e multidimensionais.

OBJETIVOS

Caracterizar e analisar as vivências de famílias envolvidas na violência doméstica contra crianças e adolescentes, com base no Paradigma da Complexidade.

MÉTODOS

Aspectos éticos

O estudo foi submetido à análise pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo; e considerado aprovado em 03 de fevereiro de 2016, pelo protocolo CAAE 48671415.0.0000.5393, parecer 1.402.405. Ainda foi solicitado aos participantes o consentimento espontâneo por meio da assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE). Para a realização do estudo, além da aprovação municipal, também foi solicitada a autorização da instituição participante.

Tipo de estudo

Pesquisa de abordagem qualitativa, ancorada pelo Paradigma da Complexidade; foi direcionada por duas noções principais: a contextualização e a compreensão. A primeira busca o olhar transdisciplinar para o fenômeno, considerando sua multidimensionalidade. A compreensão pode ser entendida como a apreensão do significado de um objeto ou acontecimento, tendo em conta suas relações com outros objetos ou acontecimentos(77 Morin E. Introdução ao pensamento complexo. 4a ed. Porto Alegre: Sulina; 2011.). O roteiro COREQ foi utilizado para o relato da coleta de dados.

Procedimentos metodológicos

Cenário do estudo

O cenário de estudo foi uma organização não governamental (ONG) brasileira, localizada na região Sudeste do país, em município com população de 1.144.862 habitantes, predominantemente residente em área urbana e com índice de desenvolvimento humano, em 2016, de 0,805. Essa entidade acolhe famílias envolvidas na violência contra crianças e adolescentes e volta-se a favorecer a promoção de direitos; preservar e fortalecer vínculos familiares, comunitários e sociais; bem como investir na função protetiva das famílias.

Fonte de dados

Estavam em acompanhamento na ONG estudada, 146 famílias, das quais 15 integraram o estudo. Todas atenderam aos seguintes critérios de inclusão: ser membro de família que possuía pelo menos uma criança ou adolescente vítima de violência doméstica, suspeita ou confirmada; ser maior de 18 anos. Foram excluídos os familiares recém-chegados ao atendimento na ONG; e aqueles que estivessem com agravos agudos de saúde física ou mental.

Coleta e organização dos dados

A coleta de dados ocorreu nos meses de fevereiro a abril de 2016, mediante: (i) pesquisa documental; (ii) realização de entrevistas abertas; (iii) diário de campo.

Na etapa da pesquisa documental, foram consultadas as fichas cadastrais contendo o histórico das famílias, existentes no campo de estudo, para identificar e pontuar suas características (idade das crianças e adolescentes acompanhados pelo serviço; data de notificação; violência sofrida; autor da violência; uso de álcool e outras drogas nas famílias; situação do processo judicial). Tal instrumento foi essencial para aproximação das características e contextualização das vivências familiares.

Em seguida, foi iniciada a coleta de dados junto às famílias, utilizando-se como instrumento a entrevista aberta, introduzida pela colocação “Conte-me sobre sua família, as relações entre vocês”, com apresentação de novas perguntas ou comentários na direção de enriquecer descrições e apreender relações entre o narrado e a questão das violências. Os participantes foram selecionados pelos profissionais da ONG de acordo com maior disponibilidade para participação. Buscou-se uma distribuição homogênea entre as cinco regiões territoriais do município estudado, com pelo menos duas famílias representativas de cada região. Todos os familiares convidados aceitaram participar do estudo.

O diário de campo foi utilizado durante todo o processo de coleta para: registro das informações da entrada no campo; aproximação dos participantes; detalhes sobre as técnicas de coleta; andamento da pesquisa. A coleta foi interrompida após a 15ª entrevista, por entender-se que houve a saturação de significado; esta corresponde a uma discussão mais profunda, rica em detalhes e complexa, com os dados para assegurar a compreensão do fenômeno de interesse(88 Hennink MM, Kaiser BK, Marconi VC. Code Saturation Versus Meaning Saturation: How Many Interviews Are Enough? Qual Health Res. 2017;27(4):591-608. doi: 10.1177/1049732316665344.
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). Dessa forma, foram 15 famílias participantes.

As entrevistas foram gravadas no programa Easy Voicer, em um tablet; e, depois, transcritas na íntegra. Foram realizadas com as famílias em local privativo, sendo que seis foram efetuadas durante visita domiciliar; e nove, na instituição. Tiveram duração entre 17 e 43 minutos. Para manutenção do anonimato, foram identificadas como E1, E2, E3 e assim por diante, de acordo com a sequência em que ocorreram.

Análise dos dados

Após o levantamento dos dados em pesquisa documental e transcrição integral das entrevistas pelo primeiro autor, procedeu-se às seguintes etapas(99 Clarke V, Braun V. Teaching thematic analysis: Overcoming challenges and developing strategies for effective learning. The Psychologist [Internet]. 2013;[cited 2016 Oct 20]; 26(2):120-123. Available from: http://eprints.uwe.ac.uk/21155
http://eprints.uwe.ac.uk/21155 ...
): (i) classificação e organização das informações coletadas - após uma leitura atenta do material, foram assinalados os principais pontos levantados nos prontuários e nas entrevistas, observando-se a sua pertinência e relevância para o objeto de estudo (as famílias envolvidas na violência contra crianças e adolescentes); essa organização permitiu uma visão do conjunto da pesquisa e, simultaneamente, a visualização de questões específicas relacionadas ao todo pesquisado; (ii) organização de quadros referenciais com os principais pontos das respostas das famílias, a fim de se ter uma visão do conjunto das informações que possibilite categorizá-las; (iii) estabelecimento de relações entre os dados - por meio da organização dos dados em categorias, que se constituíram pelo agrupamento dos elementos, ideias e/ou expressões em torno de conceitos capazes de abranger todos esses aspectos. Este processo é exemplificado mediante alguns trechos de falas no Quadro 1.

Quadro 1
Processo de categorização

Posteriormente, estabeleceram-se as relações entre os dados obtidos e o Paradigma da Complexidade, os dispositivos legais e a literatura científica. Ressalta-se que o processo analítico e interpretativo foi ilustrado com algumas falas dos participantes e dados dos prontuários, buscando a credibilidade e validade desse processo. Para garantir maior validade e confiabilidade dos dados, foram realizadas as seguintes estratégias recomendadas por instrumentos da literatura: (i) memberchecking - devolutiva dos dados aos participantes para “checagem” da coerência do conteúdo; (ii) análise com pares - a construção dos quadros referenciais e categorias se deram por dois pesquisadores do estudo, com validação por um terceiro quando foi necessário; (iii) uso do diário de campo, garantindo maior transparência de todo o processo de pesquisa.

RESULTADOS

Caracterização dos participantes

Os participantes do estudo foram 15 famílias acompanhadas pelo serviço citado. Uma família teve dois participantes, mãe e filha. Os participantes foram 11 mães, 1 pai, 1 irmã, 1 tia materna e 2 avós maternas de crianças e adolescentes acompanhados pelo serviço. De acordo com a pesquisa documental, o tipo de violência foi negligência em seis famílias; sexual em cinco; e em quatro famílias ocorreram violências associadas. Os principais perpetradores foram os pais, as mães e/ou responsáveis.

Os participantes residiam com 3 a 6 pessoas na mesma casa; 11 famílias tinham história de uso de substâncias psicoativas (USPA) por um dos familiares; 2 famílias apresentavam transtornos mentais graves por um dos familiares; 1 família experienciava situação de rua por um dos familiares; e 1 família experienciava exploração sexual por um integrante. Um adolescente havia cometido um ato infracional e cumpriu medida socioeducativa; uma participante cumpria período condicional após ter sido detida. Onze famílias apresentavam histórico de violência de gênero; três apresentavam situações de violência doméstica intergeracional. Dentre as intervenções realizadas junto às famílias, 12 eram acompanhadas por serviços da rede de proteção social básica; em 1 família que vivenciou violência sexual, o autor foi detido; 4 eram acompanhadas pela rede de proteção especializada, sendo que 2 famílias apresentavam histórico de acolhimento institucional de seus membros.

Categoria 1: “Não tenho”

Nesta categoria, foram apresentadas as características das famílias envolvidas na violência contra crianças e adolescentes. O “Não tenho” abarca a perspectiva dialógica das ausências e presenças nesse contexto, aspectos que, no conjunto, denotam sofrimento para o manejo da vida. As famílias residiam em áreas consideradas de vulnerabilidade social. A precariedade existente nas moradias ficou evidente nas falas, sendo que em alguns casos não possuíam moradia própria:

Eu sou obrigada a morar dentro da casa dos outros, e eu conseguindo me aposentar eu queria morar sozinha numa casa e ter a minha liberdade… (E3 - Mãe)

Porque como agora eu tô sem geladeira [...] porque toda vez que eu tava fazendo comida eu tinha que jogar fora, porque estragava… (E7)

Só o ano que vem. Mas, pelo menos eu vou sair do barraco né, pelo amor de Deus. Menos calor, menos pernilongo, menos ratazana. (E9)

A vulnerabilidade é agravada por um território permeado pelo tráfico de drogas e violência urbana:

Eu mesmo tôcom 35 anos, a violência tátãoforte, tátãosem freio tátãoforte, que uma hora vocêpode távivo, na outra hora vocêpode nãoestar mais… (E1)

Lá da muita briga também. Já mataram duas pessoas, não sei se você ficou sabendo? [...] Jámataram um taxista, jáestruparam [sic] uma criança de 12 anos logo que a gente mudou… (E3 - Mãe)

Os participantes também trouxeram a relevância de problemas de saúde física e mental entre os familiares, e o impacto destes no ambiente familiar, marcado por relações conflituosas:

Tem muito conflito, éconflito… Éporque a C. que éa mãedos meus filho ela tem problema de depressão, tem ainda sabe, nunca aceitou o tratamento, entãoésempre um clima de discórdia e táquerendo separar… (E2)

Eu levo o G. de 6ª feira lá no CAPS, mas é só de 6ª feira… Ele é muito quieto, por isso colocaram ele lá… Ele não faz amigo, não tem amigo, ele é nervoso, aí é assim, tem que levar ele toda 6ª feira… mas o outro [filho] é agitado… (E8)

Ele [marido] tem esquizofrenia. E agora ele está no início do mal de Parkinson. (E15)

A maioria dos participantes apontou a participação e envolvimento incipiente do homem nas questões da família, com centralidade das atividades e do sustento na figura de mulheres, bem como consequente sobrecarga a elas. Esse aspecto é potencializado pelo apontamento de uma frágil rede de apoio social, com incipiente suporte para o enfrentamento das situações de vida.

Porque meu pai mora aqui, mas écomo se nãotivesse [...] se vocêpedir ajuda pra ele, ele diz “ah, eu vou dar um jeito… Mas daí… nunca dá… (E3 - Irmã)

Não tenho pensão, não corri atrás de pensão, porque eu acho se ele [pai dos filhos] quisesse dar, ele mesmo ia atrás pra dar né [...] [silêncio] (E4)

Mesmo nas famílias que contavam com pai, os cuidados eram sempre realizados pela mulher, sendo presente nos relatos a sobrecarga dessa situação:

Ele [pai dos filhos] ficou doente, foi atropelado, ficou internado cinco meses em um hospital, eu sozinha tinha que manter a casa, aífoi complicado. (E14)

Étudo eu. Aíémuita coisa pra eu resolver sabe. Assim, eu tô bem agora, mas assim, eu tô muito sobrecarregada. [um bebê chora] … Não tem assim, ajuda de alguém… (E15)

Categoria 2: “Não tive”

Esta categoria traz o sentido das famílias em refletir sobre experiências passadas e sobre o impacto destas em sua compreensão de vida e de experiências presentes, desvelada espontaneamente nos relatos. Os participantes trouxeram o histórico de violência doméstica de outras gerações e tomaram tais vivências como possíveis fatores de vulnerabilidade para nova ocorrência da violência:

A mãedeles nunca foi assim de dar um abraço, nãodáum beijo, sabe... ela fala que ela nãoteve, que ela nãopode dar o que ela nãoteve… e ela fala pra mim que teve um período na infância de muita dificuldade… (E2)

Não, a avó tomou por falta de carinho, né, a criança não tem… ela é uma pessoa muito seca, e eu não ponho a culpa nela, foi a criação do meu pai, prendeu demais ela, baixou demais, nela e em todo mundo, em mim, na minha mãe… (E3 - Irmã)

Que você se separa da sua família anos. Igual, eu era muito apegada o meu irmão, hoje nós tá separado. Mentia muito pra mim o abrigo. Falava… um dia a monitora falava: ai, sua mãe morreu, ai sua mãe tá presa, ai sua mãe tá isso. (E11)

Além do histórico de violência doméstica, foi relatado também a existência de violência de gênero, por parceiro íntimo, inclusive com exposição indireta das crianças e adolescentes a essa violência; o sentimento de desesperança e revolta é emergente:

Casei pra ver se eu tinha um carinho, uma paz, mas sóera pancada… eu nãoquero mais casar não… (E3 - Mãe)

Sabe o que ele [neto] falou, falou? Assim, oh: tudo o que meu pai fez pra minha mãe, ele tem que pagar agora. Eu vi a minha mãe escorrer sangue quando ele batia nela. Revolta, aí eu descobri que era revolta, entendeu? (E12)

Muitos familiares apresentaram dificuldades para compreensão do que se intitula violência, em especial a negligência:

Mas eu tenho medo de elas [profissionais da ONG] falarem que eu sou negligente... Eu quero, sabe o que eu quero, ajudar minha filha… (E15)

Também reforçaram o aspecto negativo da institucionalização de crianças e adolescentes sem o olhar para as famílias:

Tinha que ter um serviçoque cuidasse dos pais… e nãolevar as criançapro abrigo, cuidar dos pais. Leva os pais, faz um trabalho com eles, vem visitar, leva uma assistente social, faz alguma coisa pra ajudar os pais, como cuidar, como estar junto… (E9)

Percebeu-se ainda nas falas que, ao rememorarem a vida nas famílias de origem, a questão da negligência e da institucionalização de crianças e adolescentes surgiu nas reflexões em termos de esforços para transformar as situações atuais em experiências mais positivas. O envolvimento com uso de substâncias psicoativas também teve destaque nos relatos e foi bastante associado às situações de violências vivenciadas:

Mas ele [filho mais velho] deu uma adolescência assim muito complicada, se envolveu com vicio, com drogas… (E2)

Ele [pai] colocou ela numa casa… ponto de droga, a mulher lá queria ela… uma menina de 14 anos que morava com elas lá com um rapaz que era traficante… (E3 - Mãe)

DISCUSSÃO

Compreende-se que, apenas mediante uma pesquisa que considere a qualidade dos fenômenos, ou seja, apreender e considerar a lógica de conhecimentos e vivências dos diretamente envolvidos em determinado fenômeno, é capaz de nos aproximar dele. Destarte, as categorias do presente estudo “Não tenho” e “Não tive” reforçam a perspectiva e caráter indissociável e polissêmico da violência. As experiências e histórias vivenciadas estão em constante interação e diálogo; e trazem implicações diretas à violência experienciada no presente. Tal questão é pontuada como um princípio do pensamento complexo, o da recursão organizacional, que remete à imagem do redemoinho, ressaltando se tratar de um processo em que produtos e efeitos são, ao mesmo tempo, causas e produtores daquilo que os produziu(77 Morin E. Introdução ao pensamento complexo. 4a ed. Porto Alegre: Sulina; 2011.). Assim, superam-se as relações causa-efeito, não evidentes em fenômenos contemporâneos. O princípio do circuito retroativo também se aproxima desse aspecto, sinalizando que as causas de determinado fenômeno agem sobre os efeitos dele, e os efeitos agem sobre as causas, em uma regulação dinâmica do sistema(77 Morin E. Introdução ao pensamento complexo. 4a ed. Porto Alegre: Sulina; 2011.).

Conforme desvelado pelas falas, percebeu-se a indissociabilidade do contexto político, sociológico e singular das famílias; cada família experiencia tais situações e recria seu cotidiano com base nelas, corroborando o modelo ecológico de compreensão da violência proposta pela OMS(11 Word Health Organization. Global status report on violence prevention: 2014 [Internet]. Geneva: World Health Organization; 2014 [cited 2015 Mar 20]. Available from: https://www.who.int/violence_injury_prevention/violence/status_report/2014/en/
https://www.who.int/violence_injury_prev...
). Assim, emerge sempre um enfrentamento das situações de acordo com o compreendido pelos participantes; o que há em comum é a interdependência, interatividade e inter-retroação de tal tecido que une todos esses contextos de vida das famílias(77 Morin E. Introdução ao pensamento complexo. 4a ed. Porto Alegre: Sulina; 2011.).

A presença da vulnerabilidade e violência urbana, sobretudo movimentada pelo tráfico de drogas, nos territórios de vida das famílias vem sendo apontada pela literatura atual; tal aspecto apresenta influência direta no cotidiano dessas famílias, seja pela vulnerabilização à violência comunitária, seja pelo agravamento de violências vivenciadas no contexto doméstico, também em perspectiva retroativa(1010 Carlos DM, Ferriani MGC. Family violence against children and adolescents in context: how the territories of care are imbricated in the picture. Rev Latino-Am Enfermagem. 2016;24:e2735. doi: 10.1590/1518-8345.0593.2735
https://doi.org/10.1590/1518-8345.0593.2...

11 Cecil CA, Viding E, Barker ED, Guiney J, McCrory EJ. Double disadvantage: the influence of childhood maltreatment and community violence exposure on adolescent mental health. J Child Psychol Psychiatr. 2014;55(7):839-48. doi: 10.1111/jcpp.12213
https://doi.org/10.1111/jcpp.12213...
-1212 Karriker-Jaffe KJ, Foshee VA, Ennett ST. Examining how neighborhood disadvantage influences trajectories of adolescent violence: a look at social bonding and psychological distress. J Sch Health. 2011;81(12):764-73. doi: 10.1111/j.1746-1561.2011.00656.x
https://doi.org/10.1111/j.1746-1561.2011...
).

Agravos de saúde física e mental, incluindo abuso de drogas, emergem relevantes na vida das famílias envolvidas na violência, em movimento recursivo - são ao mesmo tempo produtos e produtores do fenômeno(77 Morin E. Introdução ao pensamento complexo. 4a ed. Porto Alegre: Sulina; 2011.). Por um lado, viver em contextos na presença de agravos físicos ou mentais, em especial na relação pais/cuidadores-criança/adolescente, pode ser um maior risco de perpetração da violência(1313 Konishi A, Yoshimura B. Child abuse and neglect by mothers hospitalized for mental disorders. Arch Womens Ment Health. 2015;18(6):833-4. doi: 10.1007/s00737-015-0574-4
https://doi.org/10.1007/s00737-015-0574-...

14 Schaeffer CM, Swenson CC, Tuerk EH, Henggeler SW. Comprehensive treatment for co-occurring child maltreatment and parental substance abuse: outcomes from a 24-month pilot study of the MST-Building Stronger Families program. Child Abuse Negl. 2013;37(8):596-607. doi: 10.1016/j.chiabu.2013.04.004
https://doi.org/10.1016/j.chiabu.2013.04...
-1515 Gifford EJ, Eldred LM, Vernerey A, Sloan FA. How does family drug treatment court participation affect child welfare outcomes? Child Abuse Negl. 2014;38(10):1659-70. doi: 10.1016/j.chiabu.2014.03.010
https://doi.org/10.1016/j.chiabu.2014.03...
). Por outro, o vivenciar a violência leva a agravos físicos ou mentais, não apenas para as vítimas, mas aos perpetradores e apoiadores informais(1616 Wright EM, Fagan AA, Pinchevsky GM. The Effects of Exposure to Violence and Victimization across Life Domains on Adolescent Substance Use. Child Abuse Negl. 2013;37(11):899-909. doi:10.1016/j.chiabu.2013.04.010
https://doi.org/10.1016/j.chiabu.2013.04...

17 Fong HF, Bennett CE, Mondestin V, Scribano PV, Mollen C, Wood JN. The impact of child sexual abuse discovery on caregivers and families: a qualitative study. J Interpers Violence. 2017:886260517714437. doi: 10.1177/0886260517714437
https://doi.org/10.1177/0886260517714437...
-1818 Izaguirre A, Calvete E. Children who are exposed to intimate partner violence: Interviewing mothers to understand its impact on children. Child Abuse Negl. 2015;48:58-67. doi: 10.1016/j.chiabu.2015.05.002
https://doi.org/10.1016/j.chiabu.2015.05...
). Um estudo que buscou descrever o impacto da descoberta do abuso sexual infantil nos cuidadores e suas famílias revelou que esses cuidadores reportaram intensos danos emocionais e psicológicos relacionados à preocupação com a criança, crenças negativas sobre suas habilidades parentais e memórias de experiências de violências vividas(1717 Fong HF, Bennett CE, Mondestin V, Scribano PV, Mollen C, Wood JN. The impact of child sexual abuse discovery on caregivers and families: a qualitative study. J Interpers Violence. 2017:886260517714437. doi: 10.1177/0886260517714437
https://doi.org/10.1177/0886260517714437...
).

Estudos vêm indicando a importância do estímulo da parentalidade saudável para prevenção de violências; entre eles, destacam-se programas de visitação a gestantes e puérperas, bem como programas de estímulo a relações parentais seguras(1919 Thornberry TP, Henry KL, Smith CA, Ireland TO, Greenman SJ, Lee RD. Breaking the cycle of maltreatment: the role of safe, stable, and nurturing relationships. J Adolesc Health. 2013;53(4 Suppl):S25-31. doi: 10.1016/j.jadohealth.2013.04.019
https://doi.org/10.1016/j.jadohealth.201...

20 Schofield TJ, Lee RD, Merrick MT. Safe, Stable, Nurturing relationships as a moderator of intergenerational continuity of child maltreatment: a meta-analysis. J Adolesc Health. 2013;53(4):S32-S38. doi: 10.1016/j.jadohealth.2013.05.004
https://doi.org/10.1016/j.jadohealth.201...

21 Avellar SA, Supplee LH. Effectiveness of home visiting in improving child health and reducing child maltreatment. Pediatrics. 2013;132(Suppl 2):S90-9. doi: 10.1542/peds.2013-1021G
https://doi.org/10.1542/peds.2013-1021G...

22 Duffy JY, Hughes M, Asnes AG, Leventhal JM. Child maltreatment and risk patterns among participants in a child abuse prevention program. Child Abuse Negl. 2015;44:184-93. doi: 10.1016/j.chiabu.2014.11.005
https://doi.org/10.1016/j.chiabu.2014.11...
-2323 Alonso-Marsden S, Dodge KA, O'Donnell KJ, Murphy RA, Sato JM, Christopoulos C. Family risk as a predictor of initial engagement and follow-through in a universal nurse home visiting program to prevent child maltreatment. Child Abuse Negl. 2013;37(8):555-65. doi: 10.1016/j.chiabu.2013.03.012
https://doi.org/10.1016/j.chiabu.2013.03...
), práticas passíveis de serem articuladas pela equipe de enfermagem, sobretudo na Atenção Primária. No Brasil e em outros países em desenvolvimento e subdesenvolvidos, a evidência é de que a responsabilidade pelo cuidado aos filhos é da figura feminina, abarcando concepções estigmatizadas de gênero(2424 Håland K, Lundgren I, Lidén E, Eri TS. Fathers’ experiences of being in change during pregnancy and early parenthood in a context of intimate partner violence. Int J Qual Stud Health Well-being. 2016;11:30935. doi:10.3402/qhw.v11.30935
https://doi.org/10.3402/qhw.v11.30935...
-2525 Okido ACC, Pizzignacco TMP, Furtado MCC, Lima RAG. Technology-dependent children: the maternal care experience. Rev Esc Enferm USP . 2012;46(5). doi: 10.1590/S0080-62342012000500005
https://doi.org/10.1590/S0080-6234201200...
); nesse sentido, olhar especial para respostas a tal realidade vivida por famílias matriarcais necessita ser construído, assim como estímulo à construção de paternidades ativas.

A literatura apresenta discussão ampla e consolidada sobre a reprodução de atos violentos em famílias envolvidas nessas situações(1919 Thornberry TP, Henry KL, Smith CA, Ireland TO, Greenman SJ, Lee RD. Breaking the cycle of maltreatment: the role of safe, stable, and nurturing relationships. J Adolesc Health. 2013;53(4 Suppl):S25-31. doi: 10.1016/j.jadohealth.2013.04.019
https://doi.org/10.1016/j.jadohealth.201...
-2020 Schofield TJ, Lee RD, Merrick MT. Safe, Stable, Nurturing relationships as a moderator of intergenerational continuity of child maltreatment: a meta-analysis. J Adolesc Health. 2013;53(4):S32-S38. doi: 10.1016/j.jadohealth.2013.05.004
https://doi.org/10.1016/j.jadohealth.201...
); entretanto, as múltiplas dimensões implicadas no fenômeno necessitam ser aprofundadas. Um robusto corpo de estudos relacionando os efeitos de longo prazo da violência infantil, entre outros estressores chamados de Adverse Childhood Experiences (ACE), reforça que traumas precoces aumentam o risco de experienciar violências ao longo do ciclo vital, seja como vítima ou perpetrador, além de gerar outros agravos à saúde(44 Wilkins N, Tsao B, Hertz M, Davis R, Klevens J. Connecting the dots: an overview of the links among multiple forms of violence. Atlanta, GA: National Center for Injury Prevention and Control, Centers for Disease Control and Prevention; 2014.,2626 Felitti VJ, Anda RF, Nordenberg D, Williamson DF, Spitz AM, Edwards V, Koss MP, Marks JS. Relationship of childhood abuse and household dysfunction to many of the leading causes of death in adults. The adverse childhood experiences (ACE) study. Am J Prev Med [Internet]. 1998 [cited 2019 Fen 28];14(4):245-58. Available from: https://www.ajpmonline.org/article/S0749-3797(98)00017-8/fulltext
https://www.ajpmonline.org/article/S0749...
). Estudo desenvolvido na Califórnia mostrou que a violência sexual na infância é um fator de risco significante para a revitimização na fase adulta; cada nova ACE experienciada por sobreviventes à violência sexual infantil aumenta o risco para essa revitimização(66 Ports KA, Ford D, Merrick MT. Adverse childhood experiences and adult sexual victimization. Child Abuse Negl. 2016;51:313-322. doi: 10.1016/j.chiabu.2015.08.017
https://doi.org/10.1016/j.chiabu.2015.08...
). Dessa forma, tem-se uma interconectividade de experiências adversas gerando maior risco de vitimização, as quais não podem ser consideradas apenas separadamente(66 Ports KA, Ford D, Merrick MT. Adverse childhood experiences and adult sexual victimization. Child Abuse Negl. 2016;51:313-322. doi: 10.1016/j.chiabu.2015.08.017
https://doi.org/10.1016/j.chiabu.2015.08...
-77 Morin E. Introdução ao pensamento complexo. 4a ed. Porto Alegre: Sulina; 2011.). Estudo australiano que objetivou examinar a violência de jovens menores de 18 anos contra seus pais ou parentes reforçou a hipótese da transmissão intergeracional da violência, bem como o caráter recursivo da violência de filhos contra pais. Sugerem intervenções precoces nos contextos de violência, que geram benefícios sociais e econômicos não apenas por manterem as famílias saudáveis, mas por reduzirem potencialmente futuras violências(2727 Purcell R, Baksheev GN, Mullen PE. A descriptive study of juvenile family violence: data from intervention order applications in a Childrens Court. Int J Law Psychiatry. 2014;37(6):558-63. doi: 10.1016/j.ijlp.2014.02.029
https://doi.org/10.1016/j.ijlp.2014.02.0...
).

A violência por parceiro íntimo também é bastante associada a situações de violência contra crianças e adolescentes(1818 Izaguirre A, Calvete E. Children who are exposed to intimate partner violence: Interviewing mothers to understand its impact on children. Child Abuse Negl. 2015;48:58-67. doi: 10.1016/j.chiabu.2015.05.002
https://doi.org/10.1016/j.chiabu.2015.05...
,2828 MacMillan HL, Wathen CN, Varcoe CM. Intimate partner violence in the family: Considerations for children's safety. Child Abuse Negl. 2013;37(12):1186-91. doi:10.1016/j.chiabu.2013.05.005
https://doi.org/10.1016/j.chiabu.2013.05...
), corroborando as falas de nosso estudo. Recentemente novos termos foram incorporados para melhor evidenciar essa realidade (denomina-se “crianças e adolescentes expostos à violência doméstica”), direcionando o foco ao contexto e à co-ocorrência de violências. Assim, busca-se também a superação do olhar para essa população como vítima, já que, muitas vezes, esta se encontra como testemunha e interveniente de outras violências(2929 Feder G. Beyond Identification of patients experiencing intimate partner violence. Am Fam Physician [Internet]. 2016 [cited 2019 Feb 28];94(8):600-5. Available from: https://www.aafp.org/afp/2016/1015/p600.html
https://www.aafp.org/afp/2016/1015/p600....
-3030 Szilassy E, Drinkwater J, Hester M, Larkins C, Stanley N, Turner W, et al. Making the links between domestic violence and child safeguarding: an evidence-based pilot training for general practice. Health Soc Care Commun. 2017;25(6):1722-1732. doi: 10.1111/hsc.12401
https://doi.org/10.1111/hsc.12401...
).

Ressalta-se aqui a importância de ir além dessa visão reducionista e simplificadora, ou seja, é preciso construir um olhar ampliado sobre a violência e sobre os envolvidos nela. As respostas de enfrentamento a esses contextos ainda se colocam como desafios a políticas públicas, que têm se pautado em ações compensatórias e fragmentadas; não ocorrem ações de prevenção, mas respostas a “situações-limite” vivenciadas pelas famílias. Confirmando a literatura, são ações pautadas na institucionalização e recolhimento(3131 Furlan V, Sousa TRP. [Family, residential care and public policy: a case study]. Rev psicol polít [Internet]. 2014 [cited 2019 Mar 10];14(31):499-516. Available from: http://pepsic.bvsalud.org/pdf/rpp/v14n31/v14n31a06.pdf. Portuguese.
http://pepsic.bvsalud.org/pdf/rpp/v14n31...
). Nesse sentido, a enfermagem possui um papel-chave na identificação, manejo e tomada de decisões junto com serviços de proteção(3232 Hanafin S.Child protection reports: key issues arising for public health nurses. Commun Pract [Internet]. 2013 [cited 2019 Mar 10];86(10):24-7. Available from: https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/24358612
https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/2435...
). Considerando a lógica da intersetorialidade, quando enfermeiros(as) compartilham suas preocupações e constroem respostas junto com profissionais da assistência social, ajudam a prevenir a exposição de crianças e adolescentes a novos riscos. Uma análise sistemática multiprofissional de uma situação de violência constrói uma referência sólida para fortalecer o processo decisório, o desenvolvimento de intervenções apropriadas e melhores respostas a crianças, adolescentes e suas famílias(3333 O’Dwyer P, Cahalane S, Pelican-Kelly S. Evaluation of a colocation initiative: a public health nursing working in a social work department to improve child protection practice. Irish Soc Worker [Internet]. 2016 [cited 2019 Mar 10];71-4. Available from: http://hdl.handle.net/10147/617867
http://hdl.handle.net/10147/617867...
).

A (re)construção de relações de afeto nas famílias parece ser um caminho sugestionado por elas para superação da historicidade violenta que as acompanha. A produção de um novo tecido de relações dentro dessas famílias precisa ser considerada pela rede de proteção; e o afeto é colocado como o alinhavo a ser resgatado para tal produção. Nesse sentido, estudo que objetivou trazer a compreensão de psicólogos e assistentes sociais de instituições de acolhimento acerca das relações estabelecidas com as famílias de crianças e adolescentes identificou boas iniciativas para integração, entretanto ainda mantendo práticas estigmatizantes(3434 Silva ML, Arpini DM. [New National Adoption Law: reviewing relationship between families and youth shelters]. Aletheia [Internet]. 2013 [cited 2019 Mar 10]; (40):43-57. Available from: http://pepsic.bvsalud.org/pdf/aletheia/n40/n40a05.pdf Portuguese.
http://pepsic.bvsalud.org/pdf/aletheia/n...
). Os profissionais carecem também de ser “trabalhados” para buscar novas possibilidades e estratégias de cuidado a famílias com complexas e variadas necessidades.

Limitações do estudo

A principal limitação do estudo se relacionou ao fato de as famílias envolvidas na violência contra crianças e adolescentes serem acompanhadas por uma ONG, o que pode interferir nas vivências citadas. Ademais, o despreparo dos pesquisadores para lidar com as várias possibilidades de laços familiares dificultou a análise de dados em alguns aspectos.

Contribuições para a área da Enfermagem, Saúde ou Política Pública

A enfermagem, tomando o cuidado como objeto de seu trabalho, pode contribuir na (re)significação das histórias violentas tecidas por famílias; bem como empoderá-las, facilitando o cuidado de suas crianças e adolescentes, tornando-as mais resilientes. Essa tessitura saudável, permeada pelo afeto, pode ser instrumentalizada nos diferentes espaços que a equipe ocupa - consultas, visitas domiciliares e demais atendimentos, como vacinação. Além desse aspecto, os profissionais podem atuar ativamente junto com serviços de proteção, numa lógica compartilhada e apoio mútuo ao trabalho com essa população.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A complexidade das famílias envolvidas na violência contra crianças e adolescentes é desvelada neste estudo; as tramas e conexões presentes e de experiências anteriores (“Não tenho” e “Não tive”) se entrelaçam para formar o tecido analisado. A vulnerabilidade social, a sobrecarga materna, associadas à violência urbana a que as famílias são expostas, emergiram como preponderantes para compreender suas situações de vida. Ao mesmo tempo, histórias de violências pelo parceiro íntimo, bem como a violência intergeracional e o abuso de drogas, impactaram consideravelmente para as famílias significarem suas experiências de vida.

Conclui-se chamando atenção para a necessidade de olhares e intervenções que levem em conta as múltiplas violências e adversidades nas quais crianças, adolescentes e suas famílias estão envolvidas. Ainda, são necessários estudos e ações que coordenem e integrem respostas voltadas para o reconhecimento dessas conexões e dimensões, considerando o indivíduo em seu ambiente familiar, comunitário e social.

  • FOMENTO/AGRADECIMENTO
    Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo, Processo 2014/23620-7.

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Editado por

EDITOR CHEFE: Dulce Aparecida Barbosa
EDITOR ASSOCIADO: Priscilla Valladares Broca

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    31 Jul 2020
  • Data do Fascículo
    2020

Histórico

  • Recebido
    02 Jun 2019
  • Aceito
    10 Maio 2020
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