Acessibilidade / Reportar erro

Violência autorreferida por estudantes de enfermagem no contexto da graduação

RESUMO

Objetivos:

identificar as características da violência no contexto do ensino-aprendizagem da graduação em Enfermagem, sob a perspectiva de estudantes.

Métodos:

estudo quantitativo, transversal, desenvolvido com 208 estudantes de graduação em Enfermagem. Os dados foram obtidos mediante aplicação de questionário tipo survey e tratados por estatística descritiva e bivariada.

Resultados:

dos participantes, 69,2% (n = 144) já vivenciaram algum tipo de violência. Os atos violentos de natureza psicológica foram os mais frequentes, mas também houve relatos de violência física, sexual e de privação ou abandono. A violência foi praticada em ambiente de aprendizagem teórico e prático. Professores e colegas de classe foram os perpetradores mais frequentes. A maioria dos estudantes não teve reação, contou para amigos, familiares e colegas ou fingiu que nada aconteceu diante dos atos violentos.

Conclusões:

a violência está presente em diversos momentos na graduação em Enfermagem e pode impactar negativamente a qualidade da formação na área.

Descritores:
Violência; Aprendizagem; Enfermagem; Educação em Enfermagem; Estudantes

ABSTRACT

Objectives:

to identify the characteristics of violence in the context of the teaching and learning of the undergraduate Nursing course, from the perspective of students.

Methods:

quantitative, cross-sectional study, developed with 208 undergraduate students in Nursing. The data was obtained through the application of a survey questionnaire and processed by descriptive and bivariate statistics.

Results:

of the participants, 69.2% (n = 144) have experienced some kind of violence. Violent acts of a psychological nature were the most frequent, but there were also reports of physical, sexual violence and deprivation or abandonment. Violence was practiced in a theoretical and practical learning environment. Teachers and classmates were the most frequent perpetrators. Most students had no reaction, told friends, family, and colleagues, or pretended that nothing happened in the face of the violent acts.

Conclusions:

violence is present at various moments in the undergraduate Nursing course and can negatively impact the quality of training in the area.

Descriptors:
Violence; Learning; Nursing; Education, Nursing; Students

RESUMEN

Objetivos:

identificar características de violencia en el contexto de enseñanza aprendizaje de grado en Enfermería, bajo la perspectiva de estudiantes.

Métodos:

estudio cuantitativo, transversal, desarrollado con 208 estudiantes de grado en Enfermería. Datos obtenidos mediante aplicación de cuestionario tipo survey y tratados por estadística descriptiva y bivariada.

Resultados:

de los participantes, 69,2% (n = 144) ya vivieron alguno tipo de violencia. Actos violentos de naturaleza psicológica fueron los más frecuentes, pero también hubo relatos de violencia física, sexual y de privación o abandono. Violencia ocurrió en ambiente de aprendizaje teórico y práctico. Profesores y colegas de clase fueron los perpetradores más frecuentes. Mayoría de los estudiantes no tuvo reacción, contó para amigos, familiares y colegas o aparentó que nada pasó delante de los actos violentos.

Conclusiones:

la violencia está presente en diversos momentos en el grado en Enfermería y puede impactar negativamente la calidad de la formación en el área.

Descriptores:
Violencia; Aprendizaje; Enfermería; Educación en Enfermería; Estudiantes

INTRODUÇÃO

A violência é um fenômeno social complexo, enraizado nas relações sociais e presente no cotidiano do ser humano desde o período pré-histórico. Multiforme em origem e manifestações, é definida pela utilização de força física ou de poder contra si, outra pessoa ou grupo de pessoas, de modo que seja provável a ocorrência de lesão, morte, dano psicológico, limitação no desenvolvimento ou privação(11 Krug EG, Dahlberg LL, Mercy JA, Zwi AB, Lozano R. World report on violence and health [Internet]. Geneva: World Health Organization; 2002 [cited 2020 Mar 10]. Available from: https://www.who.int/violence_injury_prevention/violence/world_report/en/
https://www.who.int/violence_injury_prev...
).

Em virtude de representar uma temática de relevância global e de abordagem frequente em diversos campos do conhecimento, a violência pode ser conceitualmente classificada de diversas formas. De acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), é possível que os atos violentos sejam interpretados, com base em sua etiologia, como violência autodirigida, violência interpessoal e violência coletiva; e, conforme a natureza do ato, pode ser física, sexual, psicológica e de privação ou abandono(11 Krug EG, Dahlberg LL, Mercy JA, Zwi AB, Lozano R. World report on violence and health [Internet]. Geneva: World Health Organization; 2002 [cited 2020 Mar 10]. Available from: https://www.who.int/violence_injury_prevention/violence/world_report/en/
https://www.who.int/violence_injury_prev...
).

Independentemente do modo como se manifesta, a violência penetra a totalidade do tecido social, não existindo relação direta ou unicausal com grupos populacionais específicos. Dessa forma, embora exista maior prevalência de atos violentos em extratos sociais de maior vulnerabilidade social(22 Waiselfisz JJ. Mapa da Violência 2016: homicídios por armas de fogo no Brasil [Internet]. Brasil: FLACSO; 2016 [cited 2020 Mar 10]. Available from: https://www.mapadaviolencia.org.br/pdf2016/Mapa2016_armas_web.pdf
https://www.mapadaviolencia.org.br/pdf20...
), o fenômeno não se vincula apenas a uma parcela da população e não possui fronteiras ou delimitações geográficas precisas(33 Minayo MCS. Violence and education: trends and impacts. Rev Pedagóg. 2013;15(31):249-68. https://doi.org/10.22196/rp.v15i31.2338
https://doi.org/10.22196/rp.v15i31.2338...
). A violência se faz presente em todos os lugares onde há convívio social, disseminando-se nos ambientes rural e urbano, no trabalho, nas escolas, nas famílias, nas instituições religiosas, na política e em outros diversos setores(44 Porto MSG. A violência, entre práticas e representações sociais: uma trajetória de pesquisa. Soc Estado. 2015;30(1):19-37. http://doi.org/10.1590/S0102-69922015000100003
http://doi.org/10.1590/S0102-69922015000...
).

Como campo integrante da realidade social, a educação e, consequentemente, os processos de ensino e aprendizagem, não estão livres de atos violentos. A violência atravessa o ambiente de aprendizagem desde a educação básica até o ensino superior, apresentando-se em manifestações que vão desde pressão psicológica, assédio moral e negligência, até assédio sexual e agressão física(55 Alves MG. School life: lack of discipline, violence and bullying as an educational challenge. Cad Pesqui. 2016;46(161):594-613. https://doi.org/10.1590/198053143679
https://doi.org/10.1590/198053143679...

6 Beserra MA, Carlos DM, Leitão MNC, Ferriani MGC. Prevalence of school violence and use of alcohol and other drugs in adolescents. Rev Latino-Am Enfermagem. 2019;27:e3110. https://doi.org/10.1590/1518-8345.2124.3110
https://doi.org/10.1590/1518-8345.2124.3...

7 Bandeira LM. Trotes, assédios e violência sexual nos campi universitários no Brasil. Gênero. 2017;17(2):49-79. https://doi.org/10.22409/rg.v17i2.942
https://doi.org/10.22409/rg.v17i2.942...
-88 Godinho CCPS, Trajano SS, Souza CV, Medeiros NT, Catrib AMF, Abdon APV. Violence in the university environment. Rev Bras Promoç Saúde. 2018;31(4):1-8. https://doi.org/10.5020/18061230.2018.8768
https://doi.org/10.5020/18061230.2018.87...
).

No que se refere à formação superior, os cursos da área da saúde apresentam números elevados de estudantes que vivenciaram violências durante a graduação, o que pode ocorrer em razão de as graduações nesse âmbito exigirem o desenvolvimento de habilidades e competências complexas, o qual ocorre em movimentos de relação com o outro, sobretudo com pacientes e familiares(88 Godinho CCPS, Trajano SS, Souza CV, Medeiros NT, Catrib AMF, Abdon APV. Violence in the university environment. Rev Bras Promoç Saúde. 2018;31(4):1-8. https://doi.org/10.5020/18061230.2018.8768
https://doi.org/10.5020/18061230.2018.87...

9 Costa SM, Dias OV, Dias ACA, Souza TR, Freitas DM, Rosa TTAS, et al. Identification of abuse among health academics. Rev Fac Ciênc Méd Sorocaba. 2017;19(3):133-38. https://doi.org/10.23925/1984-4840.2017v19i3a7
https://doi.org/10.23925/1984-4840.2017v...
-1010 Teixeira MCB, Dias MC, Ribeiro CM. Between mirrors: healthcare training and its production of violence. Rev ABENO. 2018;18(2):156-65. https://doi.org/10.30979/rev.abeno.v18i2.586
https://doi.org/10.30979/rev.abeno.v18i2...
). A respeito da enfermagem, especificamente, ainda existem as questões de gênero, a desvalorização, o baixo status social e as desafiadoras condições de trabalho da profissão, aspectos estimuladores de demasiada competitividade entre os estudantes(1111 Hirsch CD, Barlem ELD, Almeida LK, Tomaschewski-Barlem JG, Figueira, Lunardi. Coping strategies of nursing students for dealing with university stress. Rev Bras Enferm. 2015;68(5):783-90. https://doi.org/10.1590/0034-7167.2015680503i
https://doi.org/10.1590/0034-7167.201568...
-1212 Cestari VRF, Barbosa IV, Florêncio RS, Pessoa VLMP, Moreira TMM. Stress in nursing students: study on sociodemographic and academic vulnerabilities. Acta Paul Enferm. 2017;30(2):190-6. https://doi.org/10.1590/1982-0194201700029
https://doi.org/10.1590/1982-01942017000...
).

Investigações internacionais indicam que a violência está presente em contextos teóricos e práticos na graduação em Enfermagem, atingindo a maioria dos estudantes(1313 Tee S, Özçetin YSÜ; Russell-Westhead M. Workplace violence experienced by nursing students: a UK survey. Nurse Educ Today. 2016;41:30-5. https://doi.org/10.1016/j.nedt.2016.03.014
https://doi.org/10.1016/j.nedt.2016.03.0...

14 Smith CR, Gillespie GL, Brown KC, Grubb PL. Seeing students squirim: nursing students' experiences of bullying behaviors during clinical rotations. J Nurs Educ. 2016;55(9):505-13. https://doi.org/10.3928/01484834-20160816-04
https://doi.org/10.3928/01484834-2016081...
-1515 Hopkins M, Fetherston CM, Morrison P. Prevalence and characteristics of agression and violence experienced by Western Australian nursing students during clinical practice. Contemp Nurse. 2014;49:113-21. https://doi.org/10.5172/conu.2014.49.113
https://doi.org/10.5172/conu.2014.49.113...
). O mesmo ocorre no cenário brasileiro, onde diversos tipos de violência permeiam os processos de aprendizagem(1616 Scardoelli MGC, Ferracini CL, Pimentel RRS, Silva JDD, Nishida FS. Nursing academics' experience in face of moral harassment. Rev Enferm UFPE. 2017;11(2):551-8. https://doi.org/10.5205/1981-8963-v11i2a11973p551-558-2017
https://doi.org/10.5205/1981-8963-v11i2a...

17 Zanatta EA, Motta MGC, Trindade LL, Vendruscolo C. Experiences of violence in the nursing training process: repercussions of corporeity in youths. Texto Contexto Enferm. 2018;27:e3670016. https://doi.org/10.1590/0104-07072018003670016
https://doi.org/10.1590/0104-07072018003...
-1818 Zanatta EA, Kuger JH, Duarte PL, Cristina T, Trindade LL. Violence in the context of Young nursing students: repercussions in the perspective of vulnerability. Rev Baiana Enferm. 2018;32:e25945. https://doi.org/10.18471/rbe.v32.25945
https://doi.org/10.18471/rbe.v32.25945...
). Em ambos os contextos, as pesquisas apontam que a violência produz fragilidades na formação, limitando o aprendizado e gerando diversas consequências, como ansiedade, depressão, diminuição do aprendizado e vontade de desistir da disciplina ou do curso de Enfermagem.

Nesse sentido, questiona-se: Quais são os tipos e as características da violência vivenciada pelos estudantes durante o contexto de ensino-aprendizagem da graduação em Enfermagem?

OBJETIVOS

Identificar as características da violência no contexto de ensino-aprendizagem da graduação em Enfermagem, sob a perspectiva de estudantes desse curso.

MÉTODOS

Aspectos éticos

Esta pesquisa cumpre todas as orientações da Resolução 466/2012 do Conselho Nacional de Saúde. Foi desenvolvida mediante concordância da IES envolvida, bem como do parecer positivo de Comitê de Ética em Pesquisa, no dia 04 de outubro de 2018. No momento do convite para participar da pesquisa, todos os estudantes foram informados dos riscos/benefícios do estudo, da livre escolha para integrar a investigação e assinaram Termo de Consentimento Livre e Esclarecido.

Desenho do estudo

Estudo quantitativo, de delineamento transversal. Para sua construção, foi utilizado como base o roteiro STROBE.

Local e período do estudo

O estudo foi desenvolvido em uma Instituição de Ensino Superior (IES) do Sul do Brasil, que possui mais de cem cursos de graduação. A IES oferta o curso de graduação em Enfermagem há mais de 50 anos, possui diversos programas de pesquisa, extensão e um programa de pós-graduação consolidado.

A graduação em Enfermagem está organizada em dez semestres letivos, com aulas teóricas e práticas. O corpo docente específico do departamento é composto por mais de 60 profissionais, a maioria com título de doutor em Enfermagem ou em áreas integrantes das Ciências da Saúde. Para obter o grau de bacharel em Enfermagem, os estudantes devem concluir 4.980 horas-aula de atividade.

O início do curso é marcado por aulas teóricas, com disciplinas que objetivam construir com os estudantes uma base teórica acerca das ciências biológicas e da saúde. No decorrer dos semestres, o estudante é inserido de forma gradativa nos conteúdos e práticas específicas da enfermagem, até atingir a etapa de estágios curriculares, os quais são desenvolvidos quase integralmente nos serviços de saúde. A média nas aulas teóricas é de 40 estudantes; nas aulas teórico-práticas, no cenário dos serviços, a média é de seis estudantes por professor instrutor; e nos estágios supervisionados o quantitativo depende do contexto prático escolhido pelo estudante. No estágio curricular, que compreende os dois últimos semestres do curso, o estudante atua sob supervisão direta do enfermeiro preceptor do serviço, com orientações dos professores conforme necessidades manifestadas por aqueles dois.

A coleta de dados ocorreu entre os meses de março e abril de 2019, por meio de um questionário tipo survey.

População do estudo

Na pesquisa, foram incluídos estudantes com mais de 18 anos, regularmente matriculados entre o 2º e o 10º semestre do curso e que estivessem em atividade na IES pesquisada há, pelo menos, um ano. Foram excluídos os estudantes com licença para tratamento de saúde, com afastamentos de outras naturezas e aqueles que estivessem matriculados no 1º semestre da graduação. Esse último critério de exclusão foi estabelecido em razão de ser um momento atravessado por muitas mudanças na vida dos estudantes, o que poderia gerar relatos de violências não relacionadas diretamente ao contexto do ensino-aprendizagem da graduação, causando viés na coleta dos dados.

Os estudantes foram convidados a participar da pesquisa de forma presencial, no início ou no final das aulas teóricas. O pesquisador entrava em contato com os professores solicitando um momento para apresentar o projeto aos estudantes e convidá-los para participar. O número de estudantes matriculados entre o 2º e o 10º semestre do curso de Enfermagem no primeiro semestre de 2019 era de 323. Desse total, 208 participaram da pesquisa, equivalendo a 64,4% do total.

Protocolo de estudo

Pelo fato de não existir na literatura científica um instrumento validado e com conteúdo capaz de oferecer as informações necessárias para identificar a violência autorreferida no contexto do ensino-aprendizagem da graduação, o questionário foi produzido exclusivamente para fins da pesquisa. Dessa forma, os pesquisadores realizaram pesquisa bibliográfica no formato de revisão integrativa de literatura(1919 Maffissoni AL, Sanes MS, Oliveira SN, Martini JG, Lino MM. Violence and its implications for undergraduate nursing education: a literature review. Cuidarte. 2020;11(2):e1064. https://doi.org/10.15649/cuidarte.1064
https://doi.org/10.15649/cuidarte.1064...
) e, utilizando-se como base teórica a categorização de natureza das violências (OMS)(11 Krug EG, Dahlberg LL, Mercy JA, Zwi AB, Lozano R. World report on violence and health [Internet]. Geneva: World Health Organization; 2002 [cited 2020 Mar 10]. Available from: https://www.who.int/violence_injury_prevention/violence/world_report/en/
https://www.who.int/violence_injury_prev...
), elaboraram o instrumento.

Este foi construído em encontros da equipe de pesquisa, composta por duas professoras doutoras em Enfermagem, uma doutoranda e um mestrando. Para tal construção, foram utilizadas informações da revisão de literatura e dos documentos da OMS, como forma de avaliar detalhadamente cada tópico a ser incluído. Após finalizar essa etapa, o instrumento foi analisado por dois professores doutores em Enfermagem: um com expertise na área de educação em Enfermagem e outro em estresse moral em estudantes de Enfermagem, os quais analisaram separadamente o instrumento quanto à pertinência, relevância e aplicabilidade. Foram readequadas as questões referentes aos dados sociodemográficos e ao tópico de violência relacionada à privação e abandono. As outras questões não necessitaram alterações, de acordo com os avaliadores.

O instrumento final possui 40 questões (36 fechadas e 4 abertas) e divide-se em 5 partes, sendo a primeira relacionada aos dados sociodemográficos dos participantes, e as quatro seguintes ligadas às naturezas de violência vivenciadas no contexto do ensino-aprendizagem da graduação (violência física, violência sexual, violência psicológica e violência relacionada à privação ou abandono). Nos dados sociodemográficos, as variáveis de coleta foram: idade, gênero, orientação sexual, local de residência anterior à graduação, tempo e local onde reside atualmente, grupo étnico autodeclarado e semestre do curso. Para a identificação da violência, foram utilizadas as mesmas variáveis para todas as naturezas descritas, contemplando: ter sido (ou não) alvo de violência, número de vezes que sofreu violência, período do curso, características do ato violento, características do contexto de aprendizagem (teórico ou prático), agressor ou agressores e reação do estudante diante do ato violento. O instrumento foi construído para a obtenção de informações sobre situações de violência autorreferidas.

A coleta de dados foi realizada por apenas um integrante da equipe de pesquisa, com o objetivo de que a aplicação do instrumento fosse realizada da mesma forma para todos os participantes. No momento da aplicação, o pesquisador responsável explicava os objetivos do estudo e o conceito de cada natureza da violência presente no instrumento. Antes de os estudantes iniciarem o preenchimento do questionário, ele se certificava de que os estudantes tinham compreendido a proposta de todas as naturezas da violência abordadas no instrumento. Quanto a este, foi orientado pelo pesquisador e autoaplicado de forma individual pelos participantes, que levaram, em média, 20 minutos para respondê-lo.

Análise de resultados e estatística

Realizou-se análise descritiva dos dados, apresentando-se os resultados em frequência absoluta e relativa, tanto para os dados sociodemográficos quanto para aqueles relativos à identificação de violências vivenciadas no contexto do ensino-aprendizagem da graduação.

Empregou-se o teste qui-quadrado para analisar as associações da etnia e da orientação sexual com a violência sofrida. As opções de resposta das variáveis referentes à etnia e orientação sexual foram agrupadas em razão da baixa frequência de observações em determinadas categorias de resposta. Os participantes foram classificados em “Brancos” e “Não brancos” (pretos, pardos, indígenas, outros) em relação ao grupo étnico; e em “Heterossexuais” e “Não heterossexuais” (homossexuais, bissexuais, pansexuais, outros) no que se refere à orientação sexual. A violência sofrida foi identificada com base no relato de ocorrência, e os participantes foram classificados em “Agredidos” (independentemente do tipo de agressão) e “Não agredidos”. Adotou-se significância estatística para α = 0,05. A descrição da frequência de relatos de violência vivenciada foi calculada tendo em conta a reincidência das respostas. Dessa forma, um mesmo estudante pode ter relatado mais de um tipo de violência, inclusive com frequências diferentes, e todas foram consideradas. Ou seja, se um estudante, hipoteticamente, tivesse sofrido violência física uma única vez e violência psicológica entre duas e cinco vezes, ambas as respostas integrariam a totalidade de casos, tendo em vista que a porcentagem está calculada de acordo com o número de vezes que a resposta se repete. As análises descritivas e a condução dos testes foram realizadas no software IBM SPSS Statistics 20.0.

RESULTADOS

Quanto à caracterização dos participantes, a Tabela 1 apresenta informações de idade, grupo étnico autodeclarado, gênero, orientação sexual e semestre do curso.

Tabela 1
Caracterização dos participantes (N = 208), Florianópolis, Santa Catarina, Brasil, 2019

Percebe-se que os estudantes do curso de Enfermagem da IES investigada são, em sua maioria, mulheres jovens, de origem étnica branca e heterossexuais. Chama-se atenção para: a pequena quantidade de estudantes com idade acima de 35 anos; a presença de apenas um participante autodeclarado fora do padrão de cisgeneridade; o fato de que menos de 20% dos participantes não pertence ao padrão heterossexual; a presença de apenas 25,1% de pessoas não brancas (dentre elas, apenas um estudante indígena e 13 estudantes pretos).

Além dos dados apresentados na Tabela 1, 34 estudantes (16,3%) referiram ter mudado de estado para estudar na IES investigada. Destes, 18 (8,7%) vieram de estados do Sul do Brasil; 11 (5,3%) vieram da Região Sudeste; 3 (1,4%), do Norte; 2 (1,4%), do Nordeste; e 1 (0,5%), da Região Centro-Oeste. Não houve estudantes estrangeiros que atendessem aos critérios de inclusão da pesquisa.

Dos 208 estudantes pesquisados, 144 (69,2%) declararam já ter vivenciado algum tipo de violência no contexto do ensino-aprendizagem da graduação, demonstrando que a violência se apresenta como um fenômeno constante nesse ambiente. Na Tabela 2, é possível observar, de acordo com a classificação tipológica do fenômeno, o número de vezes que os estudantes declararam sofrer violência, o ambiente no qual ocorreu e o autor da violência, bem como as proporções relativas ao total de casos reportados. A somatória de casos apresentada na tabela está relacionada com o número de vezes que o estudante indicou ter sofrido a violência; assim, o item “total” diz respeito a quantas vezes aquela mesma resposta foi assinalada pelos estudantes, tendo em vista que podem ter experenciado a violência tanto em aulas teóricas como em aulas teórico-práticas e estágios, e que os autores podem ter sido mais do que uma pessoa.

Tabela 2
Características da violência autorreferida por estudantes de graduação em Enfermagem, Florianópolis, Santa Catarina, Brasil, 2019

No tocante ao contexto de aprendizagem onde a violência ocorreu, a frequência de violência psicológica e de privação ou abandono é muito aproximada nos contextos teórico, teórico-prático e nos estágios. Com relação à violência física e sexual, há predominância de acontecimentos no âmbito prático, representado pelas aulas teórico-práticas e pelos estágios.

Quanto à autoria dos atos violentos, chama atenção a elevada frequência de respostas indicando “professor” como agente perpetrador da violência, com destaque para a violência psicológica, na qual a menção desse agente é quase três vezes maior quando comparado com “colegas de classe”. Ainda, nota-se que, referente à violência sexual, a variável “paciente e/ou familiar” foi responsável pela maior frequência de atos.

As associações da etnia e da orientação sexual com a violência sofrida são apresentadas na Tabela 3. A prevalência de violência sofrida foi pouco superior em participantes não brancos (73%), em comparação aos brancos (68%), e em participantes autodeclarados não heterossexuais (71%), comparados aos heterossexuais (68%). Contudo, as associações não foram estatisticamente significativas, sugerindo que os resultados observados na amostra podem não representar a população do estudo e, portanto, devem ser interpretados com cautela.

Tabela 3
Prevalências de violência autorreferida na graduação em Enfermagem, de acordo com o grupo étnico e orientação sexual, Florianópolis, Santa Catarina, Brasil, 2019

No que se refere à reação e conduta dos estudantes diante de um ato de violência, é possível observar, na Tabela 4, o quantitativo de violências relatadas e não relatadas, os principais motivos pelos quais os estudantes não contaram para outras pessoas sobre os atos violentos, bem como as proporções relativas ao total de casos reportados. Esses dados podem indicar possíveis receios dos estudantes com relação à violência sofrida e às redes de apoio desses sujeitos.

Tabela 4
Reação e conduta adotadas por estudantes de Enfermagem diante da violência vivida na graduação, Florianópolis, Santa Catarina, Brasil, 2019

Percebe-se que, no caso da violência física e sexual, os estudantes constantemente não têm reações ou fingem que nada aconteceu ao vivenciarem um ato violento dessa natureza, sendo estas as duas variáveis de maior frequência de respostas. No caso das violências psicológicas e de privação ou abandono, nota-se que os estudantes tiveram maior facilidade em relatar o ocorrido para amigos, familiares e colegas, contudo a frequência de não comunicação dos acontecimentos para outras pessoas também ficou evidenciada.

DISCUSSÃO

As violências de natureza psicológica e de privação ou abandono foram as de frequência mais elevada, alcançando uma parcela considerável dos participantes. Estudos permitem inferir que esta não é uma realidade exclusiva do contexto pesquisado, considerando-se que a incivilidade, a agressão verbal, o bullying e o assédio moral, exemplos clássicos de violência de natureza psicológica, estão presentes em cursos de enfermagem em outras regiões do Brasil(1616 Scardoelli MGC, Ferracini CL, Pimentel RRS, Silva JDD, Nishida FS. Nursing academics' experience in face of moral harassment. Rev Enferm UFPE. 2017;11(2):551-8. https://doi.org/10.5205/1981-8963-v11i2a11973p551-558-2017
https://doi.org/10.5205/1981-8963-v11i2a...
,1818 Zanatta EA, Kuger JH, Duarte PL, Cristina T, Trindade LL. Violence in the context of Young nursing students: repercussions in the perspective of vulnerability. Rev Baiana Enferm. 2018;32:e25945. https://doi.org/10.18471/rbe.v32.25945
https://doi.org/10.18471/rbe.v32.25945...
) e em países como Austrália, Turquia e Egito(1515 Hopkins M, Fetherston CM, Morrison P. Prevalence and characteristics of agression and violence experienced by Western Australian nursing students during clinical practice. Contemp Nurse. 2014;49:113-21. https://doi.org/10.5172/conu.2014.49.113
https://doi.org/10.5172/conu.2014.49.113...
,2020 Bilgin H, Keser Ozcan N, Tulek Z, Boyacioglu NE, Erol O, Arguvanli Coban S, et al. Student nurses' perceptions of agression: an exploratory study of defensive styles, agression experiences, and demographic factors. Nurs Health Sci. 2016;18(2):216-22. https://doi.org/10.1111/nhs.1225
https://doi.org/10.1111/nhs.1225...
-2121 Kassem AH. Bullying behaviors and self efficacy among nursing students at clinical settings: comparative study. JEP. 2015;6(35):25-36. https://doi.org/10.7176/JEP
https://doi.org/10.7176/JEP...
). Não obstante, situações de negligência, de insuficiente orientação/instrução pedagógica e de demérito das capacidades intelectuais dos estudantes, características relacionadas à violência de privação ou abandono, também aparecem de forma recorrente(2222 Baraz S, Memarian R, Vanaki Z. Learning challenges of nursing students in clinical environments: a qualitative study in Iran. J Educ Health Promot. 2015;4:52. https://doi.org/10.4103/2277-9531.162345
https://doi.org/10.4103/2277-9531.162345...
-2323 Budden LM, Birks M, Cant R, Bagley T, Park T. Australian nursing students' experience of bullying and/or harassment during clinical placement. Collegian. 2015;24(2):125-33. https://doi.org/10.1016/j.colegn.2015.11.004
https://doi.org/10.1016/j.colegn.2015.11...
).

No que tange às violências de natureza física e sexual, nota-se diminuição na frequência de acontecimentos e uma tendência de eventos em campo prático. Resultados semelhantes foram encontrados em estudos realizados na Austrália(1515 Hopkins M, Fetherston CM, Morrison P. Prevalence and characteristics of agression and violence experienced by Western Australian nursing students during clinical practice. Contemp Nurse. 2014;49:113-21. https://doi.org/10.5172/conu.2014.49.113
https://doi.org/10.5172/conu.2014.49.113...
,2424 Mckenna L; Boyle M. Midwifery student exposure to workplace violence in clinical settings: an exploratory study. Nurse Educ Prac. 2016;17:123-7. https://doi.org/10.1016/j.nepr.2015.11.004
https://doi.org/10.1016/j.nepr.2015.11.0...
), nos quais também se observa menor ocorrência de violência dessas duas naturezas, as quais geralmente ocorrem no contexto hospitalar e são perpetradas por pacientes, colegas e profissionais do serviço.

Especificamente sobre a violência de natureza sexual, apesar de a análise bivariada não ter demonstrado significância estatística, observou-se que os atos de violência foram reportados com maior frequência por estudantes não brancos e não heterossexuais. Nesse sentido, pesquisas internacionais, realizadas com estudantes de Enfermagem na Turquia(1313 Tee S, Özçetin YSÜ; Russell-Westhead M. Workplace violence experienced by nursing students: a UK survey. Nurse Educ Today. 2016;41:30-5. https://doi.org/10.1016/j.nedt.2016.03.014
https://doi.org/10.1016/j.nedt.2016.03.0...
) e na África do Sul(2525 Villers T, Mayers PM, Khalil D. Pre-registration nursing students' perceptions and experiences of violence in a nursing education institution in South Africa. Nurse Educ Pract. 2014;21(6):666-73. https://doi.org/10.1016/j.nepr.2014.08.006
https://doi.org/10.1016/j.nepr.2014.08.0...
), constataram que a tensão racial entre os estudantes é usual no contexto da graduação, bem como a exposição destes a situações constrangedoras e violentas relacionadas a marcadores de grupo étnico, de gênero e de sexualidade.

Com relação ao ambiente de aprendizagem onde há maior frequência de casos de violências, notam-se ambos os espaços, teórico e prático, como campos de reprodução desses atos. No entanto, ao unir os dados das aulas teórico-práticas e estágios, tendo em vista que são realizados, essencialmente, no contexto prático, percebe-se maior constância do fenômeno nesse âmbito. Tal informação converge com resultados de investigações realizadas no Brasil e em outros países(1414 Smith CR, Gillespie GL, Brown KC, Grubb PL. Seeing students squirim: nursing students' experiences of bullying behaviors during clinical rotations. J Nurs Educ. 2016;55(9):505-13. https://doi.org/10.3928/01484834-20160816-04
https://doi.org/10.3928/01484834-2016081...
,1717 Zanatta EA, Motta MGC, Trindade LL, Vendruscolo C. Experiences of violence in the nursing training process: repercussions of corporeity in youths. Texto Contexto Enferm. 2018;27:e3670016. https://doi.org/10.1590/0104-07072018003670016
https://doi.org/10.1590/0104-07072018003...
,2424 Mckenna L; Boyle M. Midwifery student exposure to workplace violence in clinical settings: an exploratory study. Nurse Educ Prac. 2016;17:123-7. https://doi.org/10.1016/j.nepr.2015.11.004
https://doi.org/10.1016/j.nepr.2015.11.0...
,2626 Scherer ZAP, Scherer EA, Rossi PT, Vedana KGG, Cavalin LA. Expressions of violence in the university environment: the view of nursing students. Rev Eletr Enf. 2015;17(1):69-77. https://doi.org/10.5216/ree.v17i1.22983
https://doi.org/10.5216/ree.v17i1.22983...
-2727 Bordignon SS, Lunardi VL, Barlem EL, Silveira RS, Ramos FR, Dalmolin GL, et al. Nursing students facing moral distress: strategies of resistence. Rev Bras Enferm. 2018;71(4):1663-70. https://doi.org/10.1590/0034-7167-2017-0072
https://doi.org/10.1590/0034-7167-2017-0...
) e, provavelmente, está relacionada ao contexto da prática clínica, em decorrência de configurar um cenário de aprendizagem com o qual os estudantes não estão habituados, de envolver o cuidado direto aos pacientes, muitas vezes em condição crítica de saúde, do contato constante com familiares/acompanhantes e da atuação conjunta com trabalhadores da enfermagem e de outras categorias profissionais(2020 Bilgin H, Keser Ozcan N, Tulek Z, Boyacioglu NE, Erol O, Arguvanli Coban S, et al. Student nurses' perceptions of agression: an exploratory study of defensive styles, agression experiences, and demographic factors. Nurs Health Sci. 2016;18(2):216-22. https://doi.org/10.1111/nhs.1225
https://doi.org/10.1111/nhs.1225...
).

Por outro lado, também foram identificadas situações de violência nas aulas teóricas - nesse caso, se aproximam mais das características de violência psicológica e de privação ou abandono. Os fatores coadjuvantes para a ocorrência dessas situações estão relacionados à insuficiente competência dos instrutores de enfermagem, aos processos de avaliação, ao ambiente de aprendizagem não compreensivo e estressante, ao tradicionalismo nas práticas pedagógicas, à falta de respeito e paciência, às relações hierárquicas rígidas e à excessiva competitividade(1616 Scardoelli MGC, Ferracini CL, Pimentel RRS, Silva JDD, Nishida FS. Nursing academics' experience in face of moral harassment. Rev Enferm UFPE. 2017;11(2):551-8. https://doi.org/10.5205/1981-8963-v11i2a11973p551-558-2017
https://doi.org/10.5205/1981-8963-v11i2a...
,2222 Baraz S, Memarian R, Vanaki Z. Learning challenges of nursing students in clinical environments: a qualitative study in Iran. J Educ Health Promot. 2015;4:52. https://doi.org/10.4103/2277-9531.162345
https://doi.org/10.4103/2277-9531.162345...
). Esses fatores podem explicar a predominância da figura do professor e dos colegas de classe como autores da violência indicada como mais frequente.

Quanto aos professores, as situações de violência podem ter íntima relação com as posturas pedagógicas adotadas. Posturas tradicionais de ensino, calcadas em métodos de aprendizagem verticalizados, em que o professor é o principal agente do processo, podem contribuir insuficientemente para a construção do conhecimento, criar hierarquias demasiadamente rígidas e estabelecer relações de poder entre professores e estudantes(1717 Zanatta EA, Motta MGC, Trindade LL, Vendruscolo C. Experiences of violence in the nursing training process: repercussions of corporeity in youths. Texto Contexto Enferm. 2018;27:e3670016. https://doi.org/10.1590/0104-07072018003670016
https://doi.org/10.1590/0104-07072018003...
,2626 Scherer ZAP, Scherer EA, Rossi PT, Vedana KGG, Cavalin LA. Expressions of violence in the university environment: the view of nursing students. Rev Eletr Enf. 2015;17(1):69-77. https://doi.org/10.5216/ree.v17i1.22983
https://doi.org/10.5216/ree.v17i1.22983...
). Pesquisas demonstram que os estudantes vivenciam situações de violências com essas características em contexto tanto teórico quanto prático e que os professores, em vez de propiciarem momentos de construção de conhecimento com base no diálogo e no respeito, julgam, humilham e fazem aflorar sentimentos de medo nos estudantes(1616 Scardoelli MGC, Ferracini CL, Pimentel RRS, Silva JDD, Nishida FS. Nursing academics' experience in face of moral harassment. Rev Enferm UFPE. 2017;11(2):551-8. https://doi.org/10.5205/1981-8963-v11i2a11973p551-558-2017
https://doi.org/10.5205/1981-8963-v11i2a...
-1717 Zanatta EA, Motta MGC, Trindade LL, Vendruscolo C. Experiences of violence in the nursing training process: repercussions of corporeity in youths. Texto Contexto Enferm. 2018;27:e3670016. https://doi.org/10.1590/0104-07072018003670016
https://doi.org/10.1590/0104-07072018003...
,2626 Scherer ZAP, Scherer EA, Rossi PT, Vedana KGG, Cavalin LA. Expressions of violence in the university environment: the view of nursing students. Rev Eletr Enf. 2015;17(1):69-77. https://doi.org/10.5216/ree.v17i1.22983
https://doi.org/10.5216/ree.v17i1.22983...
).

No caso das violências entre os estudantes, da competitividade e da falta de compreensão, tais fatores estão relacionados com o aumento da incivilidade, do estresse e, consequentemente, da ocorrência de situações violentas no contexto do ensino-aprendizagem da graduação(1616 Scardoelli MGC, Ferracini CL, Pimentel RRS, Silva JDD, Nishida FS. Nursing academics' experience in face of moral harassment. Rev Enferm UFPE. 2017;11(2):551-8. https://doi.org/10.5205/1981-8963-v11i2a11973p551-558-2017
https://doi.org/10.5205/1981-8963-v11i2a...
,2626 Scherer ZAP, Scherer EA, Rossi PT, Vedana KGG, Cavalin LA. Expressions of violence in the university environment: the view of nursing students. Rev Eletr Enf. 2015;17(1):69-77. https://doi.org/10.5216/ree.v17i1.22983
https://doi.org/10.5216/ree.v17i1.22983...
). Essa violência emerge, em grande parte, devido ao desejo dos estudantes por destaque entre seus pares e pelo anseio de reconhecimento estudantil por meio do desempenho acadêmico, geralmente mensurado mediante atribuição de notas às atividades desenvolvidas(2828 Martins NM, Cardoso DAS, Costa LMC, Santos RM, Santos LS. How undergraduate nursing students experience competitiveness. Trab Educ Saúde. 2017;15(3):895-916. https://doi.org/10.1590/1981-7746-sol00069
https://doi.org/10.1590/1981-7746-sol000...
). Nesse contexto, a percepção do outro enquanto colega/companheiro de classe pode ceder espaço à concorrência e rivalidade entre os estudantes, produzindo violências.

No referente à reação diante dos atos de violência, vê-se que uma parcela de estudantes não teve reação, fingiu que nada aconteceu ou não contou sobre o ocorrido, demonstrando a dificuldade em compartilhar com outras pessoas a violência sofrida e a descrença de tomada de providências sobre os atos ocorridos. Resultados de outras investigações apontam que isso pode estar vinculado a fatores como o medo de sofrer consequências negativas dos instrutores/professores e a dúvida do direcionamento correto do caso(1313 Tee S, Özçetin YSÜ; Russell-Westhead M. Workplace violence experienced by nursing students: a UK survey. Nurse Educ Today. 2016;41:30-5. https://doi.org/10.1016/j.nedt.2016.03.014
https://doi.org/10.1016/j.nedt.2016.03.0...
,2323 Budden LM, Birks M, Cant R, Bagley T, Park T. Australian nursing students' experience of bullying and/or harassment during clinical placement. Collegian. 2015;24(2):125-33. https://doi.org/10.1016/j.colegn.2015.11.004
https://doi.org/10.1016/j.colegn.2015.11...
).

Esses resultados podem indicar a transformação da violência em um evento habitual no contexto do ensino-aprendizagem da graduação, o que também é evidenciado por estudos nacionais e internacionais(1717 Zanatta EA, Motta MGC, Trindade LL, Vendruscolo C. Experiences of violence in the nursing training process: repercussions of corporeity in youths. Texto Contexto Enferm. 2018;27:e3670016. https://doi.org/10.1590/0104-07072018003670016
https://doi.org/10.1590/0104-07072018003...

18 Zanatta EA, Kuger JH, Duarte PL, Cristina T, Trindade LL. Violence in the context of Young nursing students: repercussions in the perspective of vulnerability. Rev Baiana Enferm. 2018;32:e25945. https://doi.org/10.18471/rbe.v32.25945
https://doi.org/10.18471/rbe.v32.25945...

19 Maffissoni AL, Sanes MS, Oliveira SN, Martini JG, Lino MM. Violence and its implications for undergraduate nursing education: a literature review. Cuidarte. 2020;11(2):e1064. https://doi.org/10.15649/cuidarte.1064
https://doi.org/10.15649/cuidarte.1064...
-2020 Bilgin H, Keser Ozcan N, Tulek Z, Boyacioglu NE, Erol O, Arguvanli Coban S, et al. Student nurses' perceptions of agression: an exploratory study of defensive styles, agression experiences, and demographic factors. Nurs Health Sci. 2016;18(2):216-22. https://doi.org/10.1111/nhs.1225
https://doi.org/10.1111/nhs.1225...
) e representa uma fragilidade para a formação em enfermagem, devido a todas as consequências geradas por ela. Ao vivenciarem a violência, os estudantes desenvolvem sentimentos de nervosismo, medo, tristeza, desmotivação e ansiedade, resultando no aumento do absenteísmo estudantil, em dificuldades de comunicação com professores, colegas, pacientes e outros profissionais da saúde(1313 Tee S, Özçetin YSÜ; Russell-Westhead M. Workplace violence experienced by nursing students: a UK survey. Nurse Educ Today. 2016;41:30-5. https://doi.org/10.1016/j.nedt.2016.03.014
https://doi.org/10.1016/j.nedt.2016.03.0...
,1515 Hopkins M, Fetherston CM, Morrison P. Prevalence and characteristics of agression and violence experienced by Western Australian nursing students during clinical practice. Contemp Nurse. 2014;49:113-21. https://doi.org/10.5172/conu.2014.49.113
https://doi.org/10.5172/conu.2014.49.113...
-1616 Scardoelli MGC, Ferracini CL, Pimentel RRS, Silva JDD, Nishida FS. Nursing academics' experience in face of moral harassment. Rev Enferm UFPE. 2017;11(2):551-8. https://doi.org/10.5205/1981-8963-v11i2a11973p551-558-2017
https://doi.org/10.5205/1981-8963-v11i2a...
). A ocorrência de violência no contexto universitário também está associada ao desenvolvimento de patologias psicossomáticas como a síndrome de burnout(2929 Babenko-Mould Y, Laschinger HK. Effects of incivility in clinical practice setting on nursing student burnout. Int J Nurs Educ Scholarsh. 2014;11(1):145-54. https://doi.org/10.1515/ijnes-2014-0023
https://doi.org/10.1515/ijnes-2014-0023...
-3030 Horgan A, Kelly P, Goodwin J, Behan L. Depressive Symptoms and Suicidal Ideation among Irish Undergraduate College Students. Issues Ment Health Nurs. 2018;39(7):575-84. https://doi.org/10.1080/01612840.2017.1422199
https://doi.org/10.1080/01612840.2017.14...
).

Limitações do estudo

Uma limitação do estudo encontra-se na realização da investigação em uma única instituição que oferece o curso de graduação em Enfermagem no estado pesquisado. Acredita-se que a ampliação da amostra por meio da inclusão de outras IESs seria capaz de evidenciar possíveis semelhanças e diferenças do fenômeno, contribuindo para uma compreensão mais aprofundada das raízes, manifestações e repercussões da violência. Além disso, a ausência de um pré-teste do questionário survey também pode ter limitado, em alguma medida, o aprofundamento na coleta dos dados.

Contribuições para a Área

O estudo contribui para a educação em enfermagem porquanto expõe um fenômeno que influencia diretamente o contexto do ensino-aprendizagem da graduação e a vida dos estudantes. Os dados demonstram que a violência está presente na graduação em Enfermagem em diversos momentos, causando uma série de fragilidades para a construção profissional dos futuros enfermeiros/enfermeiras.

Nesse sentido, a teoria e a prática não podem configurar duas realidades; precisam andar unidas para que, em qualquer âmbito da vida, as pessoas possam existir com dignidade. Este trabalho convida e instiga as pessoas envolvidas com a formação em enfermagem a repensarem a relação teoria-prática no contexto do ensino-aprendizagem. Ao vislumbrar que os atos violentos estão presentes no cotidiano da graduação e, muitas vezes, são estimulados pelo ato pedagógico, professores, coordenadores de curso/disciplinas e demais atores envolvidos poderão refletir sobre medidas para minimizar a ocorrência de violência e promover um ambiente formativo mais compreensivo, acolhedor e eticamente comprometido com uma formação humanística, assim como também deve ser o cuidado de enfermagem ofertado à população.

CONCLUSÕES

A violência está presente em diversos momentos na graduação em Enfermagem e pode impactar negativamente a qualidade da formação na área. As naturezas da violência mais frequentes foram a psicológica e de privação ou abandono, e as de menor frequência foram as violências física e sexual.

Os estudantes vivenciam a violência em ambiente teórico, teórico-prático e prático. Grande parte das situações ocorreu mais de uma vez, sobretudo no caso da violência psicológica e de privação ou abandono. Os perpetradores são, majoritariamente, professores e colegas de classe, contudo os pacientes, os familiares de pacientes e os trabalhadores dos serviços de saúde também aparecem como autores dos atos.

O estudo demonstra a necessidade de investigar de modo mais apropriado questões que predispõem os estudantes a sofrerem violência, como aquelas relacionadas com gênero, grupo étnico e orientação sexual. O aprofundamento nessa direção poderá indicar a existência de grupos populacionais mais vulneráveis aos atos violentos e apontar medidas mais efetivas de enfrentamento do fenômeno.

REFERENCES

  • 1
    Krug EG, Dahlberg LL, Mercy JA, Zwi AB, Lozano R. World report on violence and health [Internet]. Geneva: World Health Organization; 2002 [cited 2020 Mar 10]. Available from: https://www.who.int/violence_injury_prevention/violence/world_report/en/
    » https://www.who.int/violence_injury_prevention/violence/world_report/en/
  • 2
    Waiselfisz JJ. Mapa da Violência 2016: homicídios por armas de fogo no Brasil [Internet]. Brasil: FLACSO; 2016 [cited 2020 Mar 10]. Available from: https://www.mapadaviolencia.org.br/pdf2016/Mapa2016_armas_web.pdf
    » https://www.mapadaviolencia.org.br/pdf2016/Mapa2016_armas_web.pdf
  • 3
    Minayo MCS. Violence and education: trends and impacts. Rev Pedagóg. 2013;15(31):249-68. https://doi.org/10.22196/rp.v15i31.2338
    » https://doi.org/10.22196/rp.v15i31.2338
  • 4
    Porto MSG. A violência, entre práticas e representações sociais: uma trajetória de pesquisa. Soc Estado. 2015;30(1):19-37. http://doi.org/10.1590/S0102-69922015000100003
    » http://doi.org/10.1590/S0102-69922015000100003
  • 5
    Alves MG. School life: lack of discipline, violence and bullying as an educational challenge. Cad Pesqui. 2016;46(161):594-613. https://doi.org/10.1590/198053143679
    » https://doi.org/10.1590/198053143679
  • 6
    Beserra MA, Carlos DM, Leitão MNC, Ferriani MGC. Prevalence of school violence and use of alcohol and other drugs in adolescents. Rev Latino-Am Enfermagem. 2019;27:e3110. https://doi.org/10.1590/1518-8345.2124.3110
    » https://doi.org/10.1590/1518-8345.2124.3110
  • 7
    Bandeira LM. Trotes, assédios e violência sexual nos campi universitários no Brasil. Gênero. 2017;17(2):49-79. https://doi.org/10.22409/rg.v17i2.942
    » https://doi.org/10.22409/rg.v17i2.942
  • 8
    Godinho CCPS, Trajano SS, Souza CV, Medeiros NT, Catrib AMF, Abdon APV. Violence in the university environment. Rev Bras Promoç Saúde. 2018;31(4):1-8. https://doi.org/10.5020/18061230.2018.8768
    » https://doi.org/10.5020/18061230.2018.8768
  • 9
    Costa SM, Dias OV, Dias ACA, Souza TR, Freitas DM, Rosa TTAS, et al. Identification of abuse among health academics. Rev Fac Ciênc Méd Sorocaba. 2017;19(3):133-38. https://doi.org/10.23925/1984-4840.2017v19i3a7
    » https://doi.org/10.23925/1984-4840.2017v19i3a7
  • 10
    Teixeira MCB, Dias MC, Ribeiro CM. Between mirrors: healthcare training and its production of violence. Rev ABENO. 2018;18(2):156-65. https://doi.org/10.30979/rev.abeno.v18i2.586
    » https://doi.org/10.30979/rev.abeno.v18i2.586
  • 11
    Hirsch CD, Barlem ELD, Almeida LK, Tomaschewski-Barlem JG, Figueira, Lunardi. Coping strategies of nursing students for dealing with university stress. Rev Bras Enferm. 2015;68(5):783-90. https://doi.org/10.1590/0034-7167.2015680503i
    » https://doi.org/10.1590/0034-7167.2015680503i
  • 12
    Cestari VRF, Barbosa IV, Florêncio RS, Pessoa VLMP, Moreira TMM. Stress in nursing students: study on sociodemographic and academic vulnerabilities. Acta Paul Enferm. 2017;30(2):190-6. https://doi.org/10.1590/1982-0194201700029
    » https://doi.org/10.1590/1982-0194201700029
  • 13
    Tee S, Özçetin YSÜ; Russell-Westhead M. Workplace violence experienced by nursing students: a UK survey. Nurse Educ Today. 2016;41:30-5. https://doi.org/10.1016/j.nedt.2016.03.014
    » https://doi.org/10.1016/j.nedt.2016.03.014
  • 14
    Smith CR, Gillespie GL, Brown KC, Grubb PL. Seeing students squirim: nursing students' experiences of bullying behaviors during clinical rotations. J Nurs Educ. 2016;55(9):505-13. https://doi.org/10.3928/01484834-20160816-04
    » https://doi.org/10.3928/01484834-20160816-04
  • 15
    Hopkins M, Fetherston CM, Morrison P. Prevalence and characteristics of agression and violence experienced by Western Australian nursing students during clinical practice. Contemp Nurse. 2014;49:113-21. https://doi.org/10.5172/conu.2014.49.113
    » https://doi.org/10.5172/conu.2014.49.113
  • 16
    Scardoelli MGC, Ferracini CL, Pimentel RRS, Silva JDD, Nishida FS. Nursing academics' experience in face of moral harassment. Rev Enferm UFPE. 2017;11(2):551-8. https://doi.org/10.5205/1981-8963-v11i2a11973p551-558-2017
    » https://doi.org/10.5205/1981-8963-v11i2a11973p551-558-2017
  • 17
    Zanatta EA, Motta MGC, Trindade LL, Vendruscolo C. Experiences of violence in the nursing training process: repercussions of corporeity in youths. Texto Contexto Enferm. 2018;27:e3670016. https://doi.org/10.1590/0104-07072018003670016
    » https://doi.org/10.1590/0104-07072018003670016
  • 18
    Zanatta EA, Kuger JH, Duarte PL, Cristina T, Trindade LL. Violence in the context of Young nursing students: repercussions in the perspective of vulnerability. Rev Baiana Enferm. 2018;32:e25945. https://doi.org/10.18471/rbe.v32.25945
    » https://doi.org/10.18471/rbe.v32.25945
  • 19
    Maffissoni AL, Sanes MS, Oliveira SN, Martini JG, Lino MM. Violence and its implications for undergraduate nursing education: a literature review. Cuidarte. 2020;11(2):e1064. https://doi.org/10.15649/cuidarte.1064
    » https://doi.org/10.15649/cuidarte.1064
  • 20
    Bilgin H, Keser Ozcan N, Tulek Z, Boyacioglu NE, Erol O, Arguvanli Coban S, et al. Student nurses' perceptions of agression: an exploratory study of defensive styles, agression experiences, and demographic factors. Nurs Health Sci. 2016;18(2):216-22. https://doi.org/10.1111/nhs.1225
    » https://doi.org/10.1111/nhs.1225
  • 21
    Kassem AH. Bullying behaviors and self efficacy among nursing students at clinical settings: comparative study. JEP. 2015;6(35):25-36. https://doi.org/10.7176/JEP
    » https://doi.org/10.7176/JEP
  • 22
    Baraz S, Memarian R, Vanaki Z. Learning challenges of nursing students in clinical environments: a qualitative study in Iran. J Educ Health Promot. 2015;4:52. https://doi.org/10.4103/2277-9531.162345
    » https://doi.org/10.4103/2277-9531.162345
  • 23
    Budden LM, Birks M, Cant R, Bagley T, Park T. Australian nursing students' experience of bullying and/or harassment during clinical placement. Collegian. 2015;24(2):125-33. https://doi.org/10.1016/j.colegn.2015.11.004
    » https://doi.org/10.1016/j.colegn.2015.11.004
  • 24
    Mckenna L; Boyle M. Midwifery student exposure to workplace violence in clinical settings: an exploratory study. Nurse Educ Prac. 2016;17:123-7. https://doi.org/10.1016/j.nepr.2015.11.004
    » https://doi.org/10.1016/j.nepr.2015.11.004
  • 25
    Villers T, Mayers PM, Khalil D. Pre-registration nursing students' perceptions and experiences of violence in a nursing education institution in South Africa. Nurse Educ Pract. 2014;21(6):666-73. https://doi.org/10.1016/j.nepr.2014.08.006
    » https://doi.org/10.1016/j.nepr.2014.08.006
  • 26
    Scherer ZAP, Scherer EA, Rossi PT, Vedana KGG, Cavalin LA. Expressions of violence in the university environment: the view of nursing students. Rev Eletr Enf. 2015;17(1):69-77. https://doi.org/10.5216/ree.v17i1.22983
    » https://doi.org/10.5216/ree.v17i1.22983
  • 27
    Bordignon SS, Lunardi VL, Barlem EL, Silveira RS, Ramos FR, Dalmolin GL, et al. Nursing students facing moral distress: strategies of resistence. Rev Bras Enferm. 2018;71(4):1663-70. https://doi.org/10.1590/0034-7167-2017-0072
    » https://doi.org/10.1590/0034-7167-2017-0072
  • 28
    Martins NM, Cardoso DAS, Costa LMC, Santos RM, Santos LS. How undergraduate nursing students experience competitiveness. Trab Educ Saúde. 2017;15(3):895-916. https://doi.org/10.1590/1981-7746-sol00069
    » https://doi.org/10.1590/1981-7746-sol00069
  • 29
    Babenko-Mould Y, Laschinger HK. Effects of incivility in clinical practice setting on nursing student burnout. Int J Nurs Educ Scholarsh. 2014;11(1):145-54. https://doi.org/10.1515/ijnes-2014-0023
    » https://doi.org/10.1515/ijnes-2014-0023
  • 30
    Horgan A, Kelly P, Goodwin J, Behan L. Depressive Symptoms and Suicidal Ideation among Irish Undergraduate College Students. Issues Ment Health Nurs. 2018;39(7):575-84. https://doi.org/10.1080/01612840.2017.1422199
    » https://doi.org/10.1080/01612840.2017.1422199

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    14 Jul 2021
  • Data do Fascículo
    2021

Histórico

  • Recebido
    18 Ago 2020
  • Aceito
    21 Nov 2020
Associação Brasileira de Enfermagem SGA Norte Quadra 603 Conj. "B" - Av. L2 Norte 70830-102 Brasília, DF, Brasil, Tel.: (55 61) 3226-0653, Fax: (55 61) 3225-4473 - Brasília - DF - Brazil
E-mail: reben@abennacional.org.br