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Habilidade oral do prematuro na prática da amamentação à luz da Teoria da Causalidade

RESUMO

Objetivo:

O objetivo do estudo foi refletir, à luz da teoria da causalidade, sobre as repercussões da habilidade oral do prematuro na prática da amamentação.

Métodos:

Produção teórica de reflexão sustentada na teoria da causalidade de Hobbes.

Resultados:

Aborda-se a compreensão da habilidade oral como principal acidente no que tange ao desempenho do recém-nascido prematuro, o qual, somado aos outros acidentes que compõem os demais domínios relativos à amamentação, configurase como causa integral do fenômeno em questão.

Considerações finais:

Apesar da existência de alguns protocolos, embora muitos deles inconsistentes ou incompletos, ainda se observa a utilização de critérios como o peso e a idade gestacional como padrões para estabelecer essa prontidão. Contudo, percebe-se que o efeito se manifesta mesmo na ausência desses acidentes, revelando-os como causas parciais do fenômeno, ao passo que a habilidade oral é, sozinha, causa necessária para a consecução desse evento.

Descritores:
Filosofia; Enfermagem; Causalidade; Aptidão; Aleitamento Materno

ABSTRACT

Objective:

To reflect on the repercussions of premature babies’ oral ability concerning breastfeeding, under the light of the theory of causation.

Methods:

Theoretical production of reflections based on Hobbes’s theory of causation.

Results:

The study addresses the understanding of oral abilities as the main accident regarding the capacity of the premature newborn, which, coupled with other accidents that make up the other domains, concerning breastfeeding, is an integral cause of the phenomenon.

Final considerations:

Although there are protocols, even if some of them are inconsistent or incomplete, the use of criteria such as weight and gestational age as standards to understand this readiness can still be observed. However, the effect manifests itself even in the absence of these accidents, showing them as partial causes of the phenomenon, while oral ability is, by itself, a necessary cause for this event to take place.

Descriptors:
Philosophy; Nursing; Causality; Aptitude; Breastfeeding

RESUMEN

Objetivo:

Basado en la teoría de la causalidad, reflejar sobre las repercusiones de la capacidad oral del prematuro en la práctica de lactancia.

Métodos:

Producción teórica de reflexión basada en la teoría de la causalidad de Hobbes.

Resultados:

Se aborda la comprensión de la capacidad verbal como accidente principal en cuanto al desempeño del recién nacido prematuro, lo cual, sumado a otros accidentes que componen los demás dominios relativos a la lactancia, se configura como causa integral del fenómeno en cuestión.

Consideraciones finales:

Aunque la existencia de algunos protocolos, pero muchos inconsistentes o incompletos, aún se observa el uso de criterios como el peso y la edad gestacional como estándares para establecer esta prontitud. Pero, se percibe exactamente que el efecto se manifiesta en ausencia de estos accidentes, revelándolos como causas parciales del fenómeno, al paso que la capacidad verbal es, sola, causa necesaria para el logro de este acontecimiento.

Descriptores:
Filosofía; Enfermería; Causalidad; Aptitud; Lactancia Materna

INTRODUÇÃO

Em todos os anos, cerca de 15 milhões de crianças nascem prematuramente, o que corresponde a 1 em cada 10 nascimentos. Destes, mais de 1 milhão morre em decorrência de problemas advindos de complicações no próprio parto. Nesse contexto, segundo estimativas de 2010, o Brasil já figurava entre os dez países com maior número de nascimentos prematuros, com 279.300 casos(11 Organización Mundial de La Salud. Nacimientos prematuros: notas descriptivas [Internet]. 2018 [cited 2019 Jun 02]. Available from: https://www.who.int/es/news-room/fact-sheets/detail/preterm-birth
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).

Compreendendo-se que o nascimento prematuro é também uma emergência nutricional, diferentes estratégias têm sido implementadas no intuito de favorecer o crescimento e desenvolvimento dessas crianças e garantir uma sobrevida maior a esses recém-nascidos prematuros (RNPTs) por meio da redução da morbimortalidade neonatal. Dentre elas, merecem destaque as propriedades e benefícios do aleitamento materno. O leite materno configura-se como a experiência nutricional mais exitosa, por apresentar uma composição específica que se ajusta às necessidades nutricionais e, principalmente, por ser compatível com as limitações metabólicas e fisiológicas de cada criança(22 Ministério da Saúde (BR). Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Ações Programáticas Estratégicas. Atenção humanizada ao recém-nascido: Método Canguru: manual técnico [Internet]. 3. ed. Brasília: Ministério da Saúde; 2017[cited 2019 Jun 13]. 340 p. Available from: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/atencao_humanizada_metodo_canguru_manual_3ed.pdf
http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoe...
).

Contudo, a lógica da terapia nutricional modificou-se sobremaneira, com base no pressuposto de que a composição do leite se molda às necessidades nutricionais. Assim, a terapia que, outrora, utilizava a nutrição do adulto ou da criança maior como padrão para o neonato foi subvertida (substituída) pelo processo de mimetização da vida fetal, ou seja, a terapia deveria ter como foco a oferta de nutrientes que o neonato estaria recebendo caso ainda estivesse no útero(22 Ministério da Saúde (BR). Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Ações Programáticas Estratégicas. Atenção humanizada ao recém-nascido: Método Canguru: manual técnico [Internet]. 3. ed. Brasília: Ministério da Saúde; 2017[cited 2019 Jun 13]. 340 p. Available from: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/atencao_humanizada_metodo_canguru_manual_3ed.pdf
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).

É consenso na literatura que o leite materno deve ser o referencial nutricional para o recémnascido (RN), com destaque para os prematuros, visto que sua alimentação deve favorecer o crescimento ao proporcionar condições que se assemelhem ao ambiente intrauterino, proteção contra a enterocolite necrosante e processos infecciosos, conduzindo a uma colonização maior do intestino com lactobacilos e fator bífidus, o que impede, por ação seletiva, que novas bactérias colonizem o trato gastrointestinal e aumenta a tolerância alimentar. Além disso, promove o desenvolvimento imunológico e cerebral, a maturação dos diversos sistemas enzimáticos e crescimento de órgãos e sistema corporais(22 Ministério da Saúde (BR). Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Ações Programáticas Estratégicas. Atenção humanizada ao recém-nascido: Método Canguru: manual técnico [Internet]. 3. ed. Brasília: Ministério da Saúde; 2017[cited 2019 Jun 13]. 340 p. Available from: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/atencao_humanizada_metodo_canguru_manual_3ed.pdf
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).

Apesar dos benefícios já descritos na literatura para a oferta do leite da própria mãe, é importante reconhecer que oferecê-lo por meio da amamentação, no contexto da prematuridade, ainda se mantém como um desafio, não obstante os inúmeros incentivos e mobilizações de organismos nacionais e internacionais para a cultura da amamentação. A dificuldade existe não só por entraves cognitivos e emocionais que refletem a insegurança materna, mas também pelo desempenho dos bebês. A imaturidade fisiológica e neurológica, hipotonia muscular, hiper-reatividade aos estímulos do ambiente e o controle inadequado da sucção/deglutição/respiração são entraves fundamentais ao processo de amamentar(33 Cavalcante SEA, Oliveira SIM, Silva RKC, Sousa CPC, Lima JVH, Souza NL. Habilidades de recém-nascidos prematuros para início da alimentação oral. Rev Rene [Internet]. 2018 [cited 2019 Oct 06];19:e32956. Available from: http://periodicos.ufc.br/rene/article/view/32956/pdf_1
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).

Dentre todos esses fatores, aqueles relacionados ao desempenho do prematuro requerem um conhecimento e uma intervenção profissional no sentido de reverter a máxima de que as condições clínicas advindas da prematuridade contraindicam a amamentação(33 Cavalcante SEA, Oliveira SIM, Silva RKC, Sousa CPC, Lima JVH, Souza NL. Habilidades de recém-nascidos prematuros para início da alimentação oral. Rev Rene [Internet]. 2018 [cited 2019 Oct 06];19:e32956. Available from: http://periodicos.ufc.br/rene/article/view/32956/pdf_1
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). A transição da alimentação gástrica para alimentação oral constitui um dos maiores desafios na prática clínica da neonatologia, pois muitos instrumentos não possuem nenhum tipo de validação, seja ela de conteúdo, de critério seja de constructo; ou porque são validados para recém-nascidos a termo e utilizados em RNPTs. Além disso, outros instrumentos que já foram submetidos a esse processo não conseguem apresentar um consenso acerca da padronização dos parâmetros completos sobre a maturidade oral do RNPT para realizar uma transição segura e eficiente(44 Bolzan GP, Berwig LC, Prade LS, Cuti LK, Yamamoto RCC, Silva AMT, et al. Assessment for oral feeding in preterm infants. CoDAS. 2016;28(3):284-88. https://doi.org/10.1590/2317-1782/20162015115
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).

O que se observa na atualidade é justamente a falta de consenso entre os critérios considerados pelos profissionais e instituições de saúde para avaliar a prontidão oral. De forma geral, existem inúmeros protocolos cujos parâmetros mais empregados para essa avaliação são baseados na análise do peso ao nascer e idade gestacional, e ambos se configuram como critérios físicos que, isolados, não são capazes de predizer essa habilidade. Ademais, alguns profissionais ainda utilizam instrumentos que, somados aos parâmetros citados anteriormente, acrescentam como desfecho a estabilidade clínica; todavia, na maioria dos instrumentos em uso, os critérios são avaliados de forma subjetiva, dependendo fundamentalmente da experiência profissional e da observação(44 Bolzan GP, Berwig LC, Prade LS, Cuti LK, Yamamoto RCC, Silva AMT, et al. Assessment for oral feeding in preterm infants. CoDAS. 2016;28(3):284-88. https://doi.org/10.1590/2317-1782/20162015115
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).

É oportuno ressaltar que as causas diretas da amamentação ineficaz constituem domínios relacionados às dificuldades ou entraves maternos, ao desempenho do RNPT e ao manejo clínico. Portanto, para compreender a amamentação apoiando-se na causalidade de Hobbes, faz-se necessário um aprofundamento sobre as relações de causa e efeito com base nos conceitos de causa integral, suficiente e necessária que fundamentam o fenômeno em questão.

OBJETIVO

Refletir sobre as repercussões da habilidade oral do prematuro na prática da amamentação à luz da teoria da causalidade.

MÉTODOS

Trata-se de uma produção teórica de cunho reflexivo, desenvolvida como parte integrante da disciplina Filosofia e Epistemologia da Ciência do Programa de Pós-Graduação em Enfermagem, nível doutorado, da Universidade Federal do Rio Grande do Norte. A disciplina, fruto de estudos e discussões coletivas, foi ministrada entre os meses de março e julho de 2019, com o propósito de analisar os pressupostos epistemológicos e ontológicos essenciais para a produção do conhecimento na área de enfermagem.

O estudo foi construído com base na teoria da causalidade proposta por Hobbes no que tange à demonstração de que todo efeito possui a sua causa necessária. A escolha desse referencial foi pautada na necessidade de interromper uma cadeia de eventos considerados até então como causas suficientes para a prática ineficaz da amamentação em prematuros. Assim, a intelecção e concretude das correlações existentes entre os significados conceituais de causa e efeito serão fundamentais para a elucidação do fenômeno proposto.

RESULTADOS

As reflexões tecidas foram apresentadas em dois eixos temáticos e embasadas na teoria da causalidade proposta por Thomas Hobbes.

CONCEPÇÕES TEÓRICAS E FILOSÓFICAS SOBRE A TEORIA DA CAUSALIDADE DE THOMAS HOBBES

Thomas Hobbes (1588-1679) era filósofo, teórico político e autor de obras que abordaram temas acerca da política, psicologia, matemática e física. Dentre elas, destacam-se Leviatã (1651), cuja ideia central era a defesa do absolutismo e a elaboração da tese do contrato social; e Elementa philosophiae, na qual expôs seu sistema filosófico e científico divididos em três partes: De civie (1642), que dirige o comportamento dos corpos sociais e políticos que organizam a sociedade; De corpore (1655), obra que compõe essa trilogia e aborda desde os princípios geométricos e físicos do movimento dos corpos materiais e expõe de forma mais minuciosa sua teoria física; De homine (1658), obra que reflete os desejos e o processo de apreensão humana(55 Hobbes T. Elementos de Filosofia: Primeira Seção - Sobre o Corpo. Parte I - Computação ou Lógica. Campinas: IFCH/Unicamp; 2005. 77p.).

De corpore, base dessa reflexão, aborda o conceito de corpo e movimento como primordiais para o entendimento de sua construção teórica. Hobbes reduz a realidade a corpos em movimento e seus acidentes; a partir de então, concebe que não há conhecimento sem a apreensão de suas causas. Assim, por meio da razão, o homem é capaz de sair do seu estado de natureza e passa à condição de natureza humana explicada, por meio da mecânica(55 Hobbes T. Elementos de Filosofia: Primeira Seção - Sobre o Corpo. Parte I - Computação ou Lógica. Campinas: IFCH/Unicamp; 2005. 77p.).

Segundo Hobbes, a razão está associada à faculdade que o homem apresenta de calcular, ao passo que a reta razão faz referência ao raciocínio verdadeiro, ou seja, a seu uso diligente e correto. Ela possui uma função instrumental e calculadora. É instrumental na medida em que indica os meios para a obtenção de determinados fins; e calculadora, pois o raciocínio irá produzir definições exatas e conclusões irrefutáveis. Esse cálculo refere-se às quatro operações matemáticas básicas: soma, subtração, multiplicação e divisão, e funciona inicialmente a partir da atribuição de nomes às concepções que temos. Em seguida, ocorre a correlação entre os nomes, formando as asserções ou proposições; e, por fim, tem-se a conexão entre as proposições para obtenção de conclusões e elucidação, portanto, do conhecimento verdadeiro. O uso correto dos nomes e de suas correlações é a forma pela qual a linguagem resgata as causas, efeitos e consequências dos fenômenos(66 Silva H. Ciência e filosofia: notas acerca da ressignificação de conceitos científicos na filosofia hobbesiana. Kínesis[Internet]. 2009 [cited 2020 Feb 07];1(1):22-38. Available from: https://www.marilia.unesp.br/Home/RevistasEletronicas/Kinesis/HelioSilva(22-38).pdf
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).

Portanto, a faculdade humana de raciocinar não está sempre certa, ao passo que a razão, como ciência, é reta.

A aproximação entre ciência e filosofia, descritas na obra de Hobbes, se efetiva pelo uso da razão, uma vez que ambas buscam o conhecimento de suas causas ou efeitos apoiando-se em construções amparadas em proposições verdadeiras obtidas do cálculo dos nomes (reta razão). O corpo é a base de cálculo de todo o conhecimento possível, assim, é identificado como algo que ocupa um espaço e existe sem depender do pensamento humano. Para que o homem consiga percebê-lo, é fundamental a presença dos acidentes, que se configuram como qualidades ou características singulares dos corpos. É importante destacar que os acidentes estabelecem uma relação de pertencimento e dependência com os objetos externos, entretanto o contrário não se efetiva(66 Silva H. Ciência e filosofia: notas acerca da ressignificação de conceitos científicos na filosofia hobbesiana. Kínesis[Internet]. 2009 [cited 2020 Feb 07];1(1):22-38. Available from: https://www.marilia.unesp.br/Home/RevistasEletronicas/Kinesis/HelioSilva(22-38).pdf
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).

A relação causal proposta em De corpore se dá entre os acidentes e envolve um agente e um paciente. Postula-se que a causa é constituída dos acidentes inerentes ao agente ou paciente e que concorrem para a produção de um efeito. Para compreender essa relação, é essencial o esclarecimento de dois conceitos fundamentais a essa relação: acidente contingente e causa sine qua non. Na vigência de um evento, é preciso entender as circunstâncias que o antecedem; e, por meio da análise e resolução, isolam-se os acidentes com o intuito de eliminar aqueles que não têm relação com o efeito. A estes chamamos de acidentes contingentes, ou seja, acidentes que possuem uma relação de independência com a causa e não contribuem efetivamente para a produção dos efeitos(77 Hirata C. A causalidade em Hobbes: necessidade e inteligibilidade. Cad Espinosanos. 2010;(23):33-8. https://doi.org/10.11606/issn.2447-9012.espinosa.2010.89398
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).

Ao contrário, causa sine qua non é aquela em que o acidente mantém relação direta com o efeito produzido, nutrindo uma relação de dependência - tem-se, portanto, a causa suficiente. Ao excluir os acidentes que não fazem parte da explicação causal da produção do efeito, é possível evitar as proposições falsas e também suposições sobre a gênese de um evento(88 Hirata C. Leibniz e Hobbes: causalidade e princípio de razão suficiente. São Paulo: EDUSP Editora da Universidade de São Paulo; 2017. 272 p.).

Outro conceito relevante diz respeito à causa integral. Ao discriminar todos os acidentes que possam levar à produção do efeito, deve-se avaliar se a reunião ou soma deles não pode ser separada da concepção da produção do efeito. Caso não haja dissociação, trata-se de causa integral. A totalidade desses acidentes é identificada como condição suficiente, sendo necessária para a produção dos efeitos(66 Silva H. Ciência e filosofia: notas acerca da ressignificação de conceitos científicos na filosofia hobbesiana. Kínesis[Internet]. 2009 [cited 2020 Feb 07];1(1):22-38. Available from: https://www.marilia.unesp.br/Home/RevistasEletronicas/Kinesis/HelioSilva(22-38).pdf
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-77 Hirata C. A causalidade em Hobbes: necessidade e inteligibilidade. Cad Espinosanos. 2010;(23):33-8. https://doi.org/10.11606/issn.2447-9012.espinosa.2010.89398
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).

A necessidade da relação de causa-efeito se expande a toda extensão do tempo, independentemente da temporalidade dentro da qual os eventos acontecem. Para explicitar essa relação, Hobbes lança mão dos conceitos de potência e ato, comparando-os com a noção de causa e efeito. A potência equivale à produção do ato no futuro, assim como a causa equivale à produção do efeito no passado.

REPERCUSSÕES DA HABILIDADE ORAL DO RNPT PARA AMAMENTAÇÃO À LUZ DA TEORIA DA CAUSALIDADE

Hobbes entende que, sem a demonstração da causalidade, não seria possível a representação de nenhum evento ou fenômeno. Para ele, sem a causalidade necessária, o discurso científico tornase impossível; e o evento, portanto, ininteligível, cuja representação poderia ser atribuída ao eterno(88 Hirata C. Leibniz e Hobbes: causalidade e princípio de razão suficiente. São Paulo: EDUSP Editora da Universidade de São Paulo; 2017. 272 p.).

A causalidade no contexto da saúde configura-se como uma das mais importantes conquistas da ciência, sendo objeto de estudo dos filósofos, na busca da compreensão da causa e de seus princípios; e dos epidemiologistas, que procuram a identificação das causas, quantificação dos efeitos, exemplos de relações de causa-efeito, com o intuito de fomentar o conhecimento científico sobre os mecanismos de prevenção, cura, tratamento e controle das doenças e agravos à saúde(99 Mota DM, Kuchenbecker R. Causality in Pharmacoepidemiology and Pharmacovigilance: a theoretical excursion. Rev Bras Epidemiol. 2017;20(3):475-86. https://doi.org/10.1590/1980-5497201700030010
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).

Partindo desse pressuposto, convém evidenciar que as causas diretas da amamentação ineficaz podem ser divididas em eixos ou domínios concernentes às dificuldades e limitações maternas; à imaturidade anatomofisiológica que repercute no desempenho do próprio RNPT; e ao manejo clínico por parte dos profissionais de saúde e das instituições hospitalares. Nesse contexto, é importante refletir, à luz da causalidade de Hobbes, sobre a representação do fenômeno “amamentação” com base na compreensão da habilidade oral do prematuro como principal acidente no que tange ao desempenho do RNPT. Este, somado aos outros acidentes que compõem os demais domínios, constitui a causa integral do fenômeno em questão.

Observa-se que há uma subestimação, por parte da equipe de saúde, da potencialidade destes RNs, mesmo prematuros, para vencer, quando estimulados precocemente, a imaturidade sensóriomotora-oral inerente às condições da prematuridade(33 Cavalcante SEA, Oliveira SIM, Silva RKC, Sousa CPC, Lima JVH, Souza NL. Habilidades de recém-nascidos prematuros para início da alimentação oral. Rev Rene [Internet]. 2018 [cited 2019 Oct 06];19:e32956. Available from: http://periodicos.ufc.br/rene/article/view/32956/pdf_1
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).

Em face do exposto, a teoria da causalidade assume papel relevante ao redirecionar a compreensão da amamentação baseando-se na noção de causa e efeito. De modo óbvio, a multicausalidade que envolve a amamentação é exaustivamente conhecida, mas não devidamente elucidada no que tange à função sensório-motora-oral desse prematuro, entendendo-se que o estímulo precoce é vital para que o RNPT conquiste a maturidade e integridade do sistema estomatognático e, por sua vez, isso determine a habilidade para alimentação oral via seio materno(33 Cavalcante SEA, Oliveira SIM, Silva RKC, Sousa CPC, Lima JVH, Souza NL. Habilidades de recém-nascidos prematuros para início da alimentação oral. Rev Rene [Internet]. 2018 [cited 2019 Oct 06];19:e32956. Available from: http://periodicos.ufc.br/rene/article/view/32956/pdf_1
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).

Portanto, duas relações de causa-efeito são estabelecidas hierarquicamente, em função da ordem de necessidade dos eventos, mas que apresentam uma relação de dependência e concorrem, ao final, para a proposição de um mesmo efeito, que é a amamentação eficaz. Na primeira relação, têmse os critérios clínicos, físicos e referentes à função sensório-motora-oral como causas sine quibus non ao estabelecimento da habilidade oral do prematuro, a qual se apresenta como evento esperado. Esta, por sua vez, assume a condição de acidente para, em conjunto com os outros acidentes relativos aos demais domínios, constituírem, por fim, as causas sine quibus non à prática eficaz da amamentação. A Figura 1) sintetiza essas relações:

Figura 1
Critérios clínicos, físicos e sensório-motores como causas sine quibus non à habilidade oral e acidentes pertencentes a diferentes domínios como causas sine quibus non à prática da amamentação, Natal, Rio Grande do Norte, Brasil, 2020

Considerar principalmente os critérios de peso ao nascer, idade corrigida e estabilidade clínica como desfechos principais para avaliação da habilidade oral do prematuro significa entendê-los, no âmbito da teoria da causalidade de Hobbes, como causas suficientes e necessárias à produção do efeito esperado, ou seja, prematuros com peso igual ou superior a 1.500 g, idade gestacional ou a corrigida igual ou acima de 34 semanas e estabilidade clínica conseguirão, obrigatoriamente, ser amamentados, pois segundo a teoria da causalidade a causa necessária e, por consequência, suficiente é aquela que, uma vez suposta, concorrerá necessariamente para a produção do efeito(88 Hirata C. Leibniz e Hobbes: causalidade e princípio de razão suficiente. São Paulo: EDUSP Editora da Universidade de São Paulo; 2017. 272 p.).

Tais desfechos são continuamente utilizados, tendo em vista que, para muitos profissionais, predizem a maturidade anatomofisiológica do RN, todavia já se vê na literatura RNPTs que conseguem coordenar as funções orais com 32 semanas de idade corrigida(1010 Yamamoto RCC, Prade LS, Bolzan GP, Weinmann ARM, Keske-Soares M. Readiness for oral feeding and oral motor function in preterm infants. Rev CEFAC. 2017;19(4):503-9. https://doi.org/10.1590/1982-0216201719411616
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). Tal fato rompe com o nexo causal exposto anteriormente. Além disso, retardar a transição para a via oral significa uso prolongado de sondas de alimentação, que podem interferir, sobremaneira, nas habilidades orais do prematuro, por alterarem a coordenação entre sucção/deglutição/respiração(1010 Yamamoto RCC, Prade LS, Bolzan GP, Weinmann ARM, Keske-Soares M. Readiness for oral feeding and oral motor function in preterm infants. Rev CEFAC. 2017;19(4):503-9. https://doi.org/10.1590/1982-0216201719411616
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).

Portanto, se o efeito se manifesta mesmo na ausência de determinados acidentes, então se pode afirmar, segundo Hobbes, que os mesmos não são determinantes, por si sós, para a gênese do efeito; mas devem estar presentes, constituem, portanto, uma causa parcial; assim, é preciso incrementar esse agregado com outros acidentes indispensáveis ao engendramento do efeito/evento esperado(88 Hirata C. Leibniz e Hobbes: causalidade e princípio de razão suficiente. São Paulo: EDUSP Editora da Universidade de São Paulo; 2017. 272 p.).

Tal constatação demostra a fragilidade dos principais instrumentos para avaliação da função oral, tendo em vista que esses protocolos parametrizam, em sua maioria, critérios físicos e isolados ou baseados no julgamento subjetivo do profissional acerca das condições do RNPT(44 Bolzan GP, Berwig LC, Prade LS, Cuti LK, Yamamoto RCC, Silva AMT, et al. Assessment for oral feeding in preterm infants. CoDAS. 2016;28(3):284-88. https://doi.org/10.1590/2317-1782/20162015115
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). Isso justifica a existência de alguns protocolos sem a legitimidade necessária, por não serem submetidos, especialmente, a processos de validação de constructo, destinados ao RNPT, que avaliem a coordenação da função motora oral e utilizem o seio materno como meio para efetivar a transição. Assim, alguns instrumentos se revelam como ferramentas inconsistentes ou incompletas para promover uma alimentação oral eficiente. Sem uma avaliação segura e contundente da habilidade oral, a amamentação torna-se uma prática inviável, já que a prontidão oral é, sozinha, causa necessária para consecução desse evento.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A compreensão da explicação causal da amamentação possibilita sua análise na perspectiva integral, como causa integral, em que todos os acidentes propostos sejam devidamente conhecidos, valorizados e trabalhados para que se efetive a prática de aleitar diretamente ao seio materno.

Ressignificar a amamentação em prematuros pautando-se na perspectiva filosófica de Thomas Hobbes permitiu visualizar, diante do entendimento das causas e da relação de causalidade, a necessidade de se desvelar o fenômeno sem a sua fragmentação habitual. Essa visão permite o entendimento de que as práticas que são, de forma geral, desenvolvidas nas Unidades de Terapia Intensiva Neonatais são condutas alimentares equivocadas, cujo foco reside apenas no ato isolado de amamentar após o parto, reduzindo-o a um ato instintivo que não necessita de qualquer preparo ou assistência para que a nutrição desse RNPT se efetive de forma satisfatória para todos os sujeitos envolvidos no processo.

Contudo, é fundamental compreender que não há apenas um acidente que explique a causalidade deste evento, mas, ao contrário, é preciso um agregado de acidentes que, juntos, são necessários à produção do efeito. Assim, é oportuno promover uma conscientização maior desse fenômeno por meio da proposição de medidas de suporte, em seus diversos domínios, que contemplem o cumprimento das legislações e políticas efetivas relacionadas a condições de trabalho e emprego para essas mulheres; o desenvolvimento de programas educativos voltados à promoção e manutenção do aleitamento materno exclusivo que atuem desde o pré-natal até as consultas de puericultura; e o uso de tecnologia médica apropriada. Além disso, é necessário o preparo da equipe multidisciplinar para orientar e intervir nas dificuldades do aleitamento materno em RNPTs, mediante a disseminação, entre os profissionais e instituições, de evidências científicas validadas sobre a proposição de instrumentos legítimos e que padronizem as condutas profissionais no que tange à habilidade oral desse prematuro.

REFERENCES

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    04 Jun 2021
  • Data do Fascículo
    2021

Histórico

  • Recebido
    25 Fev 2020
  • Aceito
    09 Ago 2020
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