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Fogo em campo cirúrgico - Medidas preventivas para cirurgia palpebral segura

Resumo

Fogo em campo cirúrgico durante cirurgia palpebral é uma complicação intra-operatória que é dramática tanto para o paciente quanto para a equipe médica. Relatamos um caso de acidente cirúrgico durante cirurgia palpebral onde o paciente sofreu queimadura de supercílio. Houve interação entre o oxigênio usado para sedação (máscara aberta) e uma fonte de ignição representada pelo cautério monopolar. Embora o paciente tenha apresentado boa evolução clínica com recuperação total da lesão cutânea, este caso é um alerta para se evitar tais tipo de ocorrência. Ressaltamos neste trabalho quais as condições implicadas e o modo de prevenção.

Descritores:
Fogo/prevenção & controle; Sala de cirurgia; Fatores de risco; Pálpebras/cirurgia

Abstract

Fire in the surgical field during eyelid surgery is an intra-operative complication that is dramatic for both the patient and the medical staff. It’s being reported a case of surgical accident during eyelid surgery where the patient suffered a brow burn. There was interaction between the oxygen used for sedation (open mask) and a source of ignition represented by monopolar cautery. Although the patient presented good clinical evolution with complete recovery of the cutaneous lesion, this case is an alert to avoid such type of occurrence. This work highlights the conditions involved and the way of prevention.

Keywords:
Fire/prevention & control; Operating room; Risk factors; Eyelids/surgery

Introdução

O presente relato de caso evidencia uma situação de perigo no ambiente cirúrgico, o acidente com fogo, que pode gerar a complicações potencialmente graves. (11 Jones SB, Munro MG, Feldman LS, Robinson TN, Brunt LM, Schwaitzberg SD, et al. Fundamental use of surgical energy (FUSE): an essential educational program for operating room safety. Perm J. 2017;21:16-050.)

O uso de anestésicos inflamáveis cessou em grande parte na década de 1970, reduzindo o risco de incêndio cirúrgico. Entretanto, com a abundância de fontes de ignição cirúrgica de alta energia, materiais cirúrgicos inflamáveis e o potencial de fontes de oxigênio abertas, o risco de incêndio cirúrgico ainda é presente e, uma vez que ocorre pode ser severamente desfigurante ou fatal.

A prevenção de incêndios cirúrgicos requer a compreensão dos riscos e a comunicação efetiva entre cirurgiões, anestesistas e a equipe de enfermagem. (11 Jones SB, Munro MG, Feldman LS, Robinson TN, Brunt LM, Schwaitzberg SD, et al. Fundamental use of surgical energy (FUSE): an essential educational program for operating room safety. Perm J. 2017;21:16-050.,22 Bruley ME. Surgical fires: perioperative communication is essential to prevent this rare but devastating complication. Qual Saf Health Care. 2004;13(6):467-71.)

Relato de Caso

Paciente do sexo masculino de 68 anos, foi admitido para correção de ptose de supercílios e blefaroplastia superior. Como antecedente relevante apresentava apnéia do sono.

A cirurgia ocorreu em centro cirúrgico geral, com sedação e anestesia local infiltrativa. Foi utilizado como antisséptico a iodopovidona 10% solução aquosa, usou-se ainda máscara facial tipo tenda, sendo que estava coberta por um campo cirúrgico de pano.

Percebeu-se na cirurgia que a saturação de oxigênio estava baixa, assim, o anestesista optou por manter o fluxo de oxigênio(O2) na máscara em 7 litros por minuto.

Durante a cirurgia, no momento de cauterização da bolsa de gordura medial do olho esquerdo, (isolada com o auxílio da pinça cirúrgica de Kelly), uma faísca soltou no momento que o monopolar (potência de 10 Watts) tocou a pinça de Kelly e queimou os pelos do supercílio esquerdo do paciente. A chama foi imediatamente apagada com a mão do assistente, que sofreu queimadura local.

Procedeu-se a limpeza imediata da região com soro fisiológico 0,9% estéril seguida de compressa fria e curativo com sulfadiazina de prata 1%. Esta última foi mantida 2x/dia por 15 dias.

O paciente teve uma boa recuperação sem sequelas maiores (fotos).

Figura 1
Três dias após a cirurgia

Discussão

Esse relato mostra uma das situações mais estressantes que podem ocorrer em uma cirurgia palpebral. Embora rara, a queimadura intra-operatória é uma complicação que vez ou outra 8ocorre nos centros cirúrgicos, sendo que devemos sempre estar alertas em prevenção. No caso em questão, o oxigênio em alta concentração, associado a faísca emitida pelo monopolar causou a chama, acarretando a queimadura do supercílio do paciente.

Figura 2
Dez dias após a cirurgia

Para promover uma cultura de segurança que propõe estratégias de redução de risco de incêndio no centro cirúrgico devemos atentar para alguns pontos. O uso de antissépticos contendo álcool pode gerar faísca no uso do monopolar em ambiente rico em oxigênio, resultando em fogo. O oxigênio deve ser interrompido por pelo menos um minuto antes do uso de uma fonte de ignição, necessitando, portanto, de comunicação e interação entre cirurgião e anestesista.

Sistemas abertos de entrega de O2 (máscara facial, cânula nasal) podem resultar em ambiente enriquecido com O2, recomenda-se que o ar seja a primeira escolha para a entrega aberta, desde que o paciente não exija O2 suplementar. Situações em que o paciente não consiga manter os níveis seguros de saturação de O2 e requer O2 suplementar, a recomendação é garantir a via aérea com tubo endotraqueal ou máscara laríngea.(33 ECRI Institute. New clinical guide to surgical fire prevention. Patients can catch fire-here's how to keep them safer. Health Devices. 2009;38(10):314-32.)

Vale ressaltar que outros produtos inflamáveis podem estar presentes durante a cirurgia: cabelos, lençóis, curativos, pomadas, entre outros. Esses materiais devem ser isolados da fonte de ignição. (44 ECRI Institute. The patient is on fire! A surgical fires primer. Guidance. 1992;21(1):19-34.,55 ECRI Institute. Surgical fire safety. Health Devices. 2006;35(2):45-66.)

É importante lembrar que existem duas modalidades de eletrocirurgia: o sistema monopolar e o bipolar. Na técnica monopolar, são utilizados um eletrodo ativo, para conduzir a corrente, e um eletrodo de dispersão, para a saída da corrente. Na técnica bipolar, são utilizados dois eletrodos idênticos (geralmente semelhantes a uma pinça ou a uma tesoura), que formam um só instrumento bipolar. No sistema monopolar, o eletrodo neutro está distante do eletrodo ativo, enquanto no sistema bipolar, esses eletrodos estão separados por pequena distância (1 mm a 3 mm), limitando-se o fluxo da corrente elétrica no tecido.(66 Tucker RD, Hollenhorst MJ. Bipolar electrosurgical devices. Endosc Surg Allied Technol. 1993;1(2):110-3.)

No sistema monopolar, a corrente elétrica, ao ser transmitida pelo eletrodo ativo, percorre maior área do corpo do paciente antes de encontrar o eletrodo dispersivo. Dessa forma, esse sistema oferece maiores riscos, pois maior quantidade de tecido está exposta à eletricidade. As lesões em eletrocirurgia monopolar ocorrem mais frequentemente no local da placa dispersiva, mas também em locais com eletrodos de monitoração e em sítios de contato acidental com objetos de metal, que funcionam como caminho alternativo para a dispersão da eletricidade.(77 Afonso CT, Silva AL, Fabrini DS, Afonso CT, Côrtes MG, Sant'Anna LL. Risco do uso do eletrocautério em pacientes portadores de adornos metálicos. ABCD Arq Bras Cir Dig. 2010;23(3):183-6.)

Se a placa não estiver completamente aderida ou não for suficiente o fluido de irrigação entre a placa e a pele, a superfície total de dispersão se torna menor, o que oferece maiores riscos.(88 Trindade MR, Grazziotin RU, Grazziotin RU. Eletrocirurgia: sistemas mono e bipolar em cirurgia videolapaposcópica. Acta Cir Bras. 1998;13(3):1-17.) Essa, assim como outras recomendações devem ser conferidas pela equipe cirúrgica: os adornos metálicos devem ser obrigatoriamente retirados; a potência do eletrocautério deve ser confirmada antes da sua ativação, se o cirurgião solicitar contínuo aumento de potência, ou se ocorrer resposta não usual do paciente ou, ainda, interferência no sinal de monitoramento durante o uso do eletrocautério, faz-se necessário investigar todo o circuito à procura de falha;(99 Nduka CC, Super PA, Monson JR, Darzi AW. Cause and prevention of electrosurgical injuries in laparoscopy. J Am Coll Surg. 1994;179(2):161-70.) o volume do indicador sonoro deve ser mantido em nível audível para que seja alertado imediatamente quando o eletrocautério for acionado inadvertidamente ou quando esse não estiver funcionando adequadamente.(1010 Hutchisson B, Baird MG, Wagner S. Electrosurgical safety. AORN J. 1998;68(5):830-7.)

O sistema bipolar elimina muitos destes mecanismos, minimizando significativamente as lesões acidentais ou imprevisíveis, em virtude do curto espaço existente entre o eletrodo ativo e o de retorno, reservando seus efeitos a nível local, além de descartar o uso da placa de retorno, também passível de processo lesivo. (88 Trindade MR, Grazziotin RU, Grazziotin RU. Eletrocirurgia: sistemas mono e bipolar em cirurgia videolapaposcópica. Acta Cir Bras. 1998;13(3):1-17.)

O cirurgião e sua equipe não precisam conhecer todos os pormenores da eletrocirurgia, mas devem entender o seu funcionamento e alguns de seus princípios, bem como conhecer medidas preventivas e ações corretivas que devem ser empregadas na minimização do risco de lesões desnecessárias. (77 Afonso CT, Silva AL, Fabrini DS, Afonso CT, Côrtes MG, Sant'Anna LL. Risco do uso do eletrocautério em pacientes portadores de adornos metálicos. ABCD Arq Bras Cir Dig. 2010;23(3):183-6.)

No presente caso houve boa evolução pós-operatória com recuperação do paciente. Infelizmente este tipo de complicação pode produzir sérios danos físicos, além de confrontos de aspecto médico legal.

No período que antecede a cirurgia, a equipe deve identificar riscos potenciais para um incêndio cirúrgico e implementar um plano com estratégias de redução de risco. Assim, promove-se a conscientização da mesma durante esses procedimentos. É válido discutir as tarefas específicas que cada membro da equipe deve realizar no caso de um incêndio cirúrgico. (1111 Watson DS. New recommendations for prevention of surgical fires. AORN J. 2010;91(4):463-9.)

O grande desafio é a conscientização da equipe cirúrgica como um todo, para isso faz-se necessária a educação por meio de cursos e exercícios afim de promover habilidades para o gerenciamento efetivo caso ocorra complicações cirúrgicas desta natureza

  • O trabalho foi realizado na Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo.

Referências

  • 1
    Jones SB, Munro MG, Feldman LS, Robinson TN, Brunt LM, Schwaitzberg SD, et al. Fundamental use of surgical energy (FUSE): an essential educational program for operating room safety. Perm J. 2017;21:16-050.
  • 2
    Bruley ME. Surgical fires: perioperative communication is essential to prevent this rare but devastating complication. Qual Saf Health Care. 2004;13(6):467-71.
  • 3
    ECRI Institute. New clinical guide to surgical fire prevention. Patients can catch fire-here's how to keep them safer. Health Devices. 2009;38(10):314-32.
  • 4
    ECRI Institute. The patient is on fire! A surgical fires primer. Guidance. 1992;21(1):19-34.
  • 5
    ECRI Institute. Surgical fire safety. Health Devices. 2006;35(2):45-66.
  • 6
    Tucker RD, Hollenhorst MJ. Bipolar electrosurgical devices. Endosc Surg Allied Technol. 1993;1(2):110-3.
  • 7
    Afonso CT, Silva AL, Fabrini DS, Afonso CT, Côrtes MG, Sant'Anna LL. Risco do uso do eletrocautério em pacientes portadores de adornos metálicos. ABCD Arq Bras Cir Dig. 2010;23(3):183-6.
  • 8
    Trindade MR, Grazziotin RU, Grazziotin RU. Eletrocirurgia: sistemas mono e bipolar em cirurgia videolapaposcópica. Acta Cir Bras. 1998;13(3):1-17.
  • 9
    Nduka CC, Super PA, Monson JR, Darzi AW. Cause and prevention of electrosurgical injuries in laparoscopy. J Am Coll Surg. 1994;179(2):161-70.
  • 10
    Hutchisson B, Baird MG, Wagner S. Electrosurgical safety. AORN J. 1998;68(5):830-7.
  • 11
    Watson DS. New recommendations for prevention of surgical fires. AORN J. 2010;91(4):463-9.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    27 Fev 2020
  • Data do Fascículo
    Jan-Feb 2020

Histórico

  • Recebido
    25 Fev 2019
  • Aceito
    13 Jun 2019
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