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A grande recessão: oportunidade para o Brasil alcançar os países desenvolvidos

PENSATA

A grande recessão: oportunidade para o Brasil alcançar os países desenvolvidos

Yoshiaki Nakano

Professor da Escola de Economia de São Paulo, Fundação Getúlio Vargas - São Paulo - SP, Brasil. yoshiaki.nakano@fgv.br

A crise financeira do subprime e o colapso do sistema financeiro, com a quebra do Lehman Brothers no terceiro trimestre de 2008, desencadeou um fenômeno com múltiplas dimensões e distinto da crise financeira em si, chamado Grande Recessão. Nesse cenário, as economias dos países centrais saem da normalidade e passam a ser regidas por comportamentos induzidos pela incerteza, medo, pânico etc., nos quais prevalece a lógica da desalavancagem, da balance sheet recession, da aversão ao risco e da demanda de ativos com sinais trocados, gerando instabilidades persistentes nesses mercados. Do ponto de vista político e social, o consenso desaparece e o sistema econômico, suas instituições e a ideologia que as justifica tornam-se disfuncionais, exigindo constante intervenção do Estado. O paradigma liberalizante que vigorava desde 1980 entra em crise e passa a ser questionado pelos fatos e pela crescente insatisfação da população.

Como entender o que acontecerá com a economia global nesse contexto? Quais as consequências para o Brasil? A Grande Recessão representa uma ameaça ou uma oportunidade para nós? Neste texto, vamos utilizar paralelos históricos recorrendo a experiências similares, como a Grande Depressão de 1890 e a Grande Depressão de 1930. Com base nesses paralelos históricos, vamos fazer algumas conjecturas e levantar hipóteses sobre o que poderá acontecer nos próximos anos no Brasil.

Origens da crise atual

A liberalização financeira iniciada nos anos 1980 desencadeou uma onda de inovações financeiras e uma enorme expansão de crédito em escala global, desencadeando um acúmulo monumental de dívidas, seguido de crises, para culminar na grande crise financeira que atinge o próprio centro financeiro global.

A crise atual decorreu de uma longa sequência de bolhas de crédito, iniciada nos anos 1980. Cada bolha gerava uma crise financeira, que era socorrida com novas expansões de crédito, que, por sua vez, geravam novas bolhas, e assim sucessivamente. Esse processo teve início ainda no começo da década de 1980, com a crise bancária nos Estados Unidos, seguida da crise japonesa, crise do México, crise da Ásia, crise da Rússia, crise do Brasil, estouro da bolha Nasdaq, crise da Argentina e Turquia etc.

A bolha acaba estourando quando os credores dessas dívidas começam a desconfiar de que, se todos eles quisessem realizar o seu valor, simultaneamente, teriam o direito de apropriar-se de muitos PIBs, o que é impossível. Quando a bolha estoura, grande parte da riqueza financeira revela-se fictícia, sem lastro real na produção ou renda, ainda que futura. E, por isso, todos correm para a liquidez e, nesse processo, destrói-se grande parte dos ativos financeiros.

A crise financeira em si refere-se ao problema dos credores que veem seus ativos virarem pó. Entretanto, é preciso lembrar, também, que toda crise financeira afeta tanto os credores/emprestadores como os devedores/tomadores de empréstimos. Como, em regra, os credores são mais poderosos do que os devedores, os governos, em regra, socorrem os credores, e não os devedores.

A reação dos governos à crise

É por isso que, até o momento, o FED aumentou brutalmente a oferta de moeda e reduziu a taxa de juros para próximo de zero, isto é, proporcionando crédito à taxa real negativa, subsidiando os credores. Evitou-se que trilhões de dólares de ativos virassem pó. Mais ainda, assumindo a função de emprestador em última instância, absorveu parte dos ativos problemáticos do setor privado no seu balanço. Até o momento, não houve ações específicas voltadas para socorrer os devedores que perderam seu emprego, tiveram sua riqueza financeira (valor dos imóveis e ações) destruída pela crise e, agora, têm que consumir menos para pagar as dívidas. Portanto, o FED resolveu o problema de liquidez dos credores/emprestadores, e não o problema de solvência.

A rigor, o FED camuflou o problema de solvência expandindo crédito, permitindo que os bancos carregassem seus balanços pelo seu valor histórico financiado com juro zero e comprando ativos problemáticos. Quando a bolha estoura e os ativos que vinham se valorizando, de repente, ficam sem mercado, a liquidez dada pelo mercado desaparece, isto é, os ativos, mesmo desvalorizados, não têm preço e não há também funding. É a preferência pela liquidez de Keynes. O que o FED está permitindo, com oferta infinita de recursos com juro zero, é que as instituições financeiras continuem carregando esses mesmos ativos problemáticos e depreciados, pelo seu valor histórico. Assim poderá mascarar o problema de solvência e, com o tempo suficientemente prolongado, até resolver o problema de insolvência, no sentido de que algumas instituições serão capazes de absorver gradualmente os prejuízos.

E essa foi a reação inicial de todos os governos. Mas, ao executar essa política, o deficit público aumenta e, em países sem dinamismo econômico, isto é, sem um setor manufatureiro forte e competitivo, e já com dívida pública elevada, esta se transformou em problemática, e daí as crises de dívida soberana. É o caso da Grécia, Islândia e demais países do sul da Europa.

Na Europa, apesar da resistência da Alemanha, o Banco Central Europeu acabou agindo da mesma forma. Com a ascensão do novo presidente italiano, o Banco Central Europeu transformou-se também num emprestador em última instância e vem ampliando fortemente o crédito aos bancos e a taxa de juros menores.

Do lado do devedor, tanto as famílias como as empresas que se endividaram excessivamente durante o boom de crédito têm que desalavancar. As famílias, aumentando a poupança e deixando de consumir, e as empresas, deixando de investir produtivamente, para pagar as dívidas acumuladas. Com a destruição de riqueza financeira e perda de emprego, as famílias têm que consumir menos e pagar as dívidas, reduzindo permanentemente a demanda agregada. As empresas também priorizam pagar as dívidas e, mesmo que tenham lucros, não têm estímulo para investir produtivamente, diante da queda na demanda agregada e elevado desemprego persistente.

A Grande Recessão é um problema do lado dos devedores/tomadores de empréstimos. Estamos na armadilha da liquidez; a política monetária, mesmo reduzindo a taxa de juros para zero, não consegue estimular a demanda agregada. Ninguém está disposto a se endividar mais para consumir ou investir. Somente uma política fiscal ativa pode recolher o aumento de poupança privada e reinjetá-la no sistema econômico como demanda, para reanimar a economia.

A resposta da sociedade

Como o governo norte-americano socorreu os credores, isto é, os banqueiros, deixando que milhões de famílias de trabalhadores ficassem inadimplentes e perdessem as suas residências hipotecadas, está se desenvolvendo uma crescente oposição política. Certamente assistiremos, nos próximos anos, a um lento e gradual declínio de poder da plutocracia financeira norte-americana e seus aliados, que exerceram plenamente o poder, particularmente, a partir dos anos 1980.

Nesse quadro, inicia-se a reação política da sociedade contra a classe dirigente. Num contexto de elevado desemprego e famílias perdendo as suas residências, socorrer banqueiro não encontra aprovação na massa da população. A classe dirigente está perdendo tanto a credibilidade como a legitimidade, abrindo espaço para a ação de grupos radicais, tornando praticamente impossível manter uma política fiscal para tentar sustentar o nível de atividade econômica.

Há uma forte pressão de quem detém o poder político real, a plutocracia financeira, junto aos governantes de plantão, por um ajuste fiscal, deixando de financiar os seus deficits e desfazendo-se dos títulos públicos, com consequente elevação da taxa de juros. É um jogo de sobrevivência. Com isso, a política fiscal, que poderia recuperar a atividade econômica e o desemprego, fica travada, tornando-se pró-cíclica, daí a grande probabilidade de podermos ter uma nova contração no nível de atividade, agravando ainda mais o problema de deficit público. Assim, somente quando essa segunda contração for suficientemente profunda e prolongada, a ponto de piorar a situação fiscal devido à queda de receita, a trava sobre a política da política fiscal anticíclica será removida.

Enfrentamento da crise no Brasil

A quebra do Lehman Brothers e o pânico causado no mercado financeiro internacional no último trimestre de 2008 tiveram um efeito drástico no Brasil, e revelou tanto a capacidade de reação do governo como da própria economia. A crise financeira veio para o Brasil, inicialmente, pelo contágio existente no canal financeiro, gerando pânico nos bancos. Imediatamente, todos os bancos no País fecharam as suas operações de crédito, gerando um quadro de incerteza muito grande para as empresas, que também paralisaram cerca de metade dos investimentos produtivos, e o PIB deu um mergulho.

Somente em 2009, a crise afetou o canal comercial, com a queda nas exportações. É bom lembrar que por esse tradicional canal, que afetou dramaticamente os países exportadores, como o Japão e a Coreia, não teve o mesmo efeito no Brasil, porque ainda era um dos países mais fechados do mundo, do ponto de vista de comércio exterior.

O mais surpreendente foi a reação posterior da economia brasileira. O governo reagiu acionando os bancos públicos, não só para socorrer os pequenos bancos, mas aumentando a oferta de crédito, destravando o circuito de transações econômicas, e, em seguida, estimulou o consumo, reduzindo impostos de bens de consumo duráveis. A ação inicial do Banco Central foi desastrosa, pois elevara a taxa de juros na véspera da crise, mantendo juros altos em plena crise de liquidez. Entretanto, corrigiu o erro, ainda que com atraso, reduzindo a taxa de juros em dezembro de 2008.

Atendo-se ao que é relevante, devemos observar que a produção industrial despencou no último trimestre de 2008, mas a demanda dos consumidores sofreu apenas uma leve flutuação, para crescer aceleradamente com os estímulos dados pelo governo. A contração de crédito provocou uma forte freada nos investimentos e na produção, mas a demanda final de consumo foi muito pouco afetada. Em outras palavras, o pânico financeiro, ao chegar ao Brasil, bateu do lado da oferta, via forte restrição de crédito, mas não chegou a afetar os consumidores. Aquele evento confirmou que temos, hoje, um mercado doméstico extremamente dinâmico, e, mais importante, esse dinamismo era gerado endogenamente.

A Grande Recessão

A atual Grande Recessão não deverá ser tão profunda quanto a Grande Depressão de 1929 a 1939, afinal aprendemos alguma coisa com ela, mas será tão abrangente e duradoura quanto.

Será abrangente no sentido de ser uma crise global, diferentemente da crise japonesa; com a integração comercial e a globalização financeira, todos os países estão interligados. A Grande Recessão está centrada nos Estados Unidos e Europa. Os BRICs, os países emergentes e os países em desenvolvimento foram pouco afetados pela crise financeira e, de repente, passaram a liderar o crescimento da economia mundial. Nações muito dependentes das exportações para crescer sofrerão mais, ou seja, terão que reestruturar suas economias, voltando-se mais para o mercado doméstico, como a China, mas países como o Brasil e a Índia, cujo crescimento pouco depende das exportações e cujo grande potencial de crescimento está no dinamismo do mercado doméstico, poderão transformar a ameaça da crise financeira em oportunidade histórica. Dessa forma, o declínio dos Estados Unidos e Europa e a ascensão dos BRICs e emergentes trará uma grande transformação no equilíbrio do poder global.

A Grande Recessão será abrangente também no sentido de ser uma crise social, política e ideológica. Como causa mais profunda e indireta da crise financeira, tivemos o enfraquecimento dos sindicatos dos trabalhadores e da classe média tradicional norte-americana, que teve a sua participação na distribuição de renda nacional fortemente reduzida, tanto com a desindustrialização e deslocamento das fábricas para a China e outros países com mão de obra mais barata como pela política tributária pró-ricos implantada desde Ronald Reagan (1980-1989). Na realidade, a eleição de Reagan significou a ascensão da ideologia liberalizante e marcou o início do predomínio da plutocracia financeira no establishment detentor de poder político e econômico. Desde então, houve uma grande redistribuição de renda dos salários para lucros e, nessa última, do setor real da economia para o financeiro. Nos últimos 10 anos, a renda média das famílias norte-americanas teve uma redução de mais de 10%. É nesse quadro que a política de forte expansão de crédito permitiu que as famílias pudessem aumentar o consumo e investimento residencial, sustentáculo do crescimento econômico. O resultado foi o endividamento excessivo e a consequente crise financeira.

A Grande Recessão será duradoura como a crise dos anos 1930 e a crise japonesa dos anos 1990. Talvez mais, pois a atual contração econômica decorre do estouro de uma superbolha, isto é, uma sucessão de bolhas cujo estouro foi evitado ampliando-se o crédito, gerando novas bolhas. É importante lembrar que a crise financeira é sempre precedida por um boom de crédito, que acaba gerando bolhas, e a crise financeira é o seu estouro, com consequências terríveis para o lado real da economia.

Significado histórico

A Grande Recessão deverá ter significado histórico similar ao da Grande Depressão do final do século XIX, que marcou o início do declínio da hegemonia inglesa e ascensão dos Estados Unidos.

Qual o significado histórico da Grande Recessão? Essa é uma crise centrada nos Estados Unidos e na Europa, portanto, como vimos, é uma crise do próprio centro do sistema global de poder, com todas as suas implicações. O que está em jogo é uma variedade de capitalismo que chegou ao seu limite e a provável ascensão de um novo tipo de capitalismo e globalização. A ascensão da plutocracia significou a retração do Estado-nação na sua função reguladora e controladora com domínio de doutrinas como a de mercado eficiente, sempre em equilíbrio e capaz de se autorregular. Foi sob o domínio da doutrina de mercado livre que se acelerou a globalização. O mercado transformou-se no princípio de organização da economia capitalista, em contraposição ao Estado-nação.

Hoje, mesmo figuras como Alan Greenspan, ex-presidente do FED, que promoveram essas doutrinas, reconhecem o absurdo diante do poder destrutivo que o mercado desregulado se transformou, detonando a crise financeira e a Grande Recessão. Se não fosse a massiva intervenção e socorro prestado pelo Estado, o mercado financeiro desregulado teria adquirido um poder autodestrutivo tão grande que o sistema financeiro teria praticamente desaparecido. Por razões de sobrevivência do próprio capitalismo, o Estado-nação está retomando a sua função reguladora e controladora dos mercados num processo adaptativo.

Certamente, esse processo adaptativo entre mercado e Estado será longo, pois a plutocracia financeira é ainda o poder hegemônico e resistirá ao avanço da regulação. Mas, quanto maior for a resistência e quanto maior for o período de dominância do mercado livre como princípio de organização da economia, maior será a crise necessária para que

o princípio adaptativo funcione. Evidentemente, esse processo é complexo, e as regras do jogo desse processo podem sofrer mudanças até súbitas, pois, em grande parte, dependem do jogo político. De qualquer forma, o que estamos sugerindo é que, de uma fase em que o ator que comandava o crescimento e a globalização era o mercado (bancos e instituições financeiras e empresas multinacionais), deverá oscilar na direção do Estado-nação.

Nos próximos anos, tanto os Estados Unidos como a Europa deverão ter, como prioridade absoluta, a revitalização das suas economias, voltando-se para dentro, eventualmente com medidas protecionistas, para enfrentar a ascensão da China e dos emergentes. Somada a isso a perda de credibilidade e de legitimidade da sua classe dirigente a que nos referimos acima, a governança global mudará radicalmente. Viveremos, nas próximas décadas, um interregno, com a ausência de um centro que dite as regras do jogo, exerça liderança política e ideológica e imponha um pensamento econômico.

Internamente, nestes países, foi a ascensão da plutocracia financeira, com a aliança do setor industrial, no início dos anos 1980 que trouxe a desregulamentação do sistema financeiro e a introdução de uma variedade de capitalismo organizado sob o princípio de livre mercado, em que a expansão de crédito e a valorização de ativos financeiros comandavam o crescimento da economia. Externamente, a hegemonia financeira desencadeou o processo de liberalização do movimento de capitais, com a abertura das economias e a sua integração ao sistema da globalização. É esse modelo, ditado pela plutocracia financeira, que entrou em crise com a Grande Recessão.

A Grande Recessão possui, assim, dois significados históricos. De um lado, início de um processo de declínio da hegemonia política americana, conquistada na Segunda Guerra Mundial, com redistribuição de poder e liderança na economia mundial. De outro, o declínio de um paradigma econômico que prevaleceu nas últimas três décadas e ascensão de uma nova ordem ainda em construção. Entretanto, vamos ter um longo período de transição; o PIB da China, em dólar corrente, só será maior do que o dos Estados Unidos em 2018, e ainda estamos nos preparativos do jogo de poder global. Podemos, assim, definir os próximos anos como período de interregno hegemônico global, em que vamos ter um crescente vácuo de poder dominante, com degelo da sua ideologia, seu pensamento econômico e dos consensos de políticas. Novas regras do jogo deverão emergir, mas nada disso tem uma evolução contínua e linear.

Um novo interregno

No nível global, vamos viver, nas próximas décadas, um longo interregno, com o declínio dos Estados Unidos e Europa e ascensão da China e dos países emergentes. Tanto os Estados Unidos como a Europa terão que concentrar suas energias para recuperar e revitalizar suas economias, num contexto de crescente oposição e polarização política. Somente com a ascensão de nova coalizão de forças políticas é que será construída uma nova ordem internacional. Isso significa que o modelo de globalização liberalizante, comandado pelos interesses financeiros, entrará gradualmente em declínio. Nesse quadro de Grande Recessão, será perfeitamente possível que conceitos como soberania, Estado-nação e nacionalismo venham adquirir força política e movimentem as massas, pois serão alimentados pelo crescente protecionismo, em pleno andamento, e pelo fato de o problema de desemprego ser sempre um problema nacional.

Com a ascensão da China, temos um candidato natural para ser gradualmente o modelo econômico dominante nas próximas décadas, um novo capitalismo de Estado, em substituição ao modelo da liberalização global. Se isso acontecer, o mercado livre será substituído pelo Estado-nacional como princípio dominante de organização e controle das economias nacionais como da nova fase da globalização. Em países em que a liberalização avançou excessivamente e em crise financeira, o Estado ampliará seu foco de regulação e controle sobre os mercados. Os países somente se recuperarão da Grande Recessão com maior intervenção do Estado. Aos poucos, aqueles que acreditam no mercado livre como princípio de organização, diante dos fatos, deixarão de prever o próximo colapso da China, como vêm fazendo há muitos anos, e adaptar-se-ão ao novo mundo, com novos princípios e novo pensamento econômico dominante. Nos países onde o poder do Estado é o agente e princípio organizador e controlador da economia, o mercado, enquanto princípio organizador, deverá ser ampliado.

Paralelos históricos

Para entender o impacto da Grande Recessão no Brasil, vamos analisar as mudanças contemporâneas olhando para similaridades históricas existentes com o período posterior à grande crise financeira de 1873 e a subsequente Grande Depressão dos anos 1890, seguida pela Grande Depressão dos 1930.

A Grande Depressão dos 1890 marcou o início do declínio da hegemonia inglesa, com a ascensão dos Estados Unidos como potência mundial. Nesse longo período de interregno hegemônico, assistimos também a um longo declínio da plutocracia financeira inglesa e ascensão do poder industrial norte-americano, que se manifestou plenamente na Segunda Guerra Mundial.

Nesse período entre a Grande Depressão dos 1890, com início do declínio da hegemonia britânica, a Grande Depressão de 1929 a 1939 e o estabelecimento da hegemonia norte-americana com a Segunda Guerra Mundial, o Brasil passou por profundo processo de mudança e iniciou o projeto de construção de uma sociedade moderna urbana e industrial.

Vale relembrar alguns fatos históricos. Com a abolição da escravidão, em 1888, liberamos o trabalho da "mancha negra", para usar uma expressão da época, e formou-se o mercado de trabalho livre, que permitiu a vinda de uma imigração massiva da Europa, empurrada pela Grande Depressão, o que deu grande impulso ao crescimento econômico no Brasil. Com a proclamação da República, iniciamos a constituição do Estado nacional moderno, com a devolução, ainda que tímida e controlada, dos direitos políticos e civis. E, com a expansão da produção cafeeira, saímos da longa estagnação econômica que marcou o fim do século XVIII e a primeira metade do século XIX, e, no seu interior, iniciamos um incipiente processo de industrialização. Nesse interregno hegemônico, abriu-se também espaço para que alguns intelectuais começassem a se liberar da mentalidade colonial e pensar o Brasil com a própria cabeça, voltando os olhos para a nossa realidade. Foi nesse contexto que surgiram alguns dos mais importantes intérpretes do Brasil: Oliveira Vianna, Manuel Bonfim, Sérgio Buarque de Holanda, Caio Prado Jr. etc. Depois de um grande debate sobre se o Brasil seria um país essencialmente agrícola ou se deveríamos industrializar-nos para nos desenvolvermos, ao longo dos anos, vingou o último pensamento, que passou ser elemento central de um projeto nacional de desenvolvimento, o qual deslanchou com a Grande Crise de 1929.

Tudo isso ocorreu exatamente nesse período de interregno, em que o poder hegemônico tem que se voltar para dentro, gerando um vácuo de poder e de pensamento ditado do centro. Nesse período, o Brasil passou a pensar com a própria cabeça, descobrir o seu potencial e, então, construir um projeto de desenvolvimento. A construção desse projeto iniciou-se nas últimas décadas do século XIX e amadureceu com a Grande Depressão de 1930. Foi a partir de 1930 que, com a Grande Depressão, o polo dinâmico da economia foi deslocado de fora (exportação de café) para dentro do País (industrialização substituindo as importações).

Oportunidades para o Brasil

É nesse panorama que cabe colocar se a Grande Recessão é uma ameaça ou oportunidade para o desenvolvimento brasileiro. Que futuro podemos conjecturar para o Brasil? E o que acontecerá no Brasil no próximo interregno? Estamos preparados para aproveitar novamente um período de vácuo de poder e deslanchar um novo projeto de desenvolvimento sustentado?

Um interregno abre brechas e espaços e, com as regras do jogo em mudança, países como o Brasil poderão agir estrategicamente para alcançar seus objetivos. Para países dependentes e com forte herança colonial, o processo de globalização implicou uma abertura para o exterior e aumento da sua importância relativa vis-à-vis setor interno da economia. Essa importância relativa não se refere apenas às condições econômicas e financeiras, mas principalmente ideológicas e dominância do pensamento econômico hegemônico. Com o interregno, a autonomia com que países podem perseguir objetivos nacionais de política econômica muda substancialmente.

A industrialização foi a locomotiva do processo de desenvolvimento desde os anos 1930 até a crise da dívida externa, em 1980. A partir de então, ficamos totalmente dependentes do setor financeiro e, com a abertura da conta de capitais e a integração financeira, voltou a dominar a mentalidade colonial na qual passamos a priorizar o fluxo de capitais do exterior, o regime de taxa de câmbio flexível, a estabilidade macroeconômica em detrimento do crescimento e as reformas orientadas para o mercado, tais como a reforma econômica, reduzindo a restrição ao capital estrangeiro e à privatização, com flexibilização da legislação trabalhista e liberalização do mercado financeiro.

Até 2004, a economia brasileira estava dominada por aquilo que Celso Furtado chamava de "insuficiência dinâmica" da estrutura produtiva brasileira. Apesar da sua indústria de transformação relativamente desenvolvida, a economia brasileira era caracterizada por uma oferta ilimitada de trabalho. Com excesso de trabalhadores, os salários da grande massa eram extremamente deprimidos e a grande maioria ocupava empregos informais. Isso explica por que o Brasil tinha um perfil de distribuição de renda e de salários dos piores do mundo.

Com a forte queda na taxa de natalidade, em meados da década de 1980, a população jovem parou de crescer, em 2004, e tem declinado desde então. Naquele momento, a economia brasileira sofreu uma transformação estrutural da maior importância do ponto de vista do crescimento econômico autossustentado.

Isso significou uma dramática mudança na dinâmica do mercado de trabalho. Exatamente na base da pirâmide salarial, com o encolhimento em número absoluto de jovens que buscam seu primeiro emprego, os salários da base começaram a aumentar em termos reais e a parcela dos que conseguiam empregos formais também voltou a crescer. Pela primeira vez, desde a grande onda de imigração, nas primeiras décadas do século XX, começamos a enfrentar uma situação em que mão de obra passou a ser um fator relativamente escasso.

O mais importante é que, nesse quadro, as empresas reagiram, aumentando a produtividade para compensar os aumentos de salários, gerando um círculo virtuoso e dinâmico. Como a nossa indústria e os serviços, sobretudo, estão longe da fronteira tecnológica, há um espaço imenso para aumentar a produtividade do trabalho com simples processo de catch-up. Trata-se apenas de copiar e trazer bens de capital da última geração para que a produtividade do trabalho dê grandes saltos. Não se trata de inovação, mas apenas atualização tecnológica. E, de fato, os dados mostram que, a partir daquela data, a trajetória de produtividade sofreu uma inflexão e deslanchou no Brasil.

Assim, geramos um círculo virtuoso dinâmico em que a redução da oferta de trabalho na base da pirâmide pressiona os salários e estes, por sua vez, primeiro obrigam os empresários à atualização tecnológica e aumento de produtividade e, segundo, ampliam a demanda de bens de consumo que estimula os investimentos produtivos. Esses investimentos têm sido autofinanciados pelas próprias empresas, pois, com o aumento de produtividade, o custo unitário do trabalho não aumenta, mantendo ou até ampliando a margem de lucro das empresas. A rigor, os dados do IBGE mostram que, nos últimos anos, as empresas brasileiras poupam muito mais do que investem produtivamente, isto é, os lucros retidos são maiores do que os investimentos.

O fim da oferta ilimitada de trabalhadores e criação desse círculo virtuoso dinâmico tem um paralelo na nossa história econômica. Corresponde ao deslocamento, para dentro do País, do polo dinâmico em 1930, com a introdução do processo de substituição de importações, que permitiu implantar a indústria brasileira, o que gerou efeitos dinâmicos autossustentados até 1980.

Em seguida, tivemos um quarto de século de semiestagnação, com a crise da dívida externa, ampliação da dependência externa e tentativa de deslocamento da dinâmica para o exterior, com a liberalização das contas de capitais, a privatização e a transferência de importantes setores para o capital estrangeiro. A partir de 2004, tivemos um novo deslocamento do polo dinâmico para dentro do País, com a criação de um mercado doméstico capaz de crescer de maneira autossustentada.

Se tivermos um mínimo de competência, que já tivemos no passado, a história poderá repetir-se com meio século de crescimento, ainda que moderado, e completaremos o projeto, iniciado nas últimas décadas do século XIX, de ter uma sociedade moderna democrática e rica.

Para concluir, devemos mencionar que, no curto prazo, estamos ainda sob restrição de algumas heranças, tais como o nível muito elevado de taxa de juros, taxa de câmbio apreciada e poupança negativa do governo, que mantém o crescimento da economia brasileira no seu limite inferior. A inovação torna-se vital quando aproximarmos a nossa estrutura produtiva da fronteira tecnológica. Removidas aquelas restrições, podemos caminhar para o limite superior de potencial de crescimento da economia brasileira e, em menos de três décadas, atingir o nível de renda per capita atual dos países desenvolvidos.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    15 Maio 2012
  • Data do Fascículo
    Abr 2012
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