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Spivak, pós-colonialismo e antropologia: pensar o pensamento e o colonialismo-em-branco dos nossos conceitos

Spivak, postcoloniality and anthropology: think the thought and colonialism-in-white of our concepts

RESUMO

Partindo de uma leitura reversa do texto “Pode o subalterno falar?”, este ensaio busca recuperar e torcer os argumentos de Spivak para encontrar os fundamentos de um pensamento pós-colonial como medida de precaução e como treino imaginativo. A intenção é apresentar a necessidade de pensar o pensamento, o lugar em que, seguindo a Derrida, Spivak argumenta localizar-se o colonialismo-em-branco do pensamento europeu. Por fim, aproximaremos o problema de Spivak com as intenções do ontologismo antropológico, mostrando de que forma uma exploração ontológica na Antropologia depende de uma crítica epistemológica. Pretendemos, com isso, recolocar a vigência da teoria pós-colonial de Spivak para a antropologia, atualizando seus termos e seguindo seus argumentos.

PALAVRAS-CHAVE:
Ontologia; epistemologia; subalternidade; desconstrucionismo; reflexividade

ABSTRACT

Starting from a reverse reading of the text “Can the subaltern speak?”, this essay seeks to recover and twist Spivak’s arguments to find the foundations of a postcolonial thought as a precautionary measure and as an imaginative training. The intention is to present the need to think the thought, the place in which, following Derrida, Spivak argues is the location of the colonialism-in-white of European thought. Finally, we will approach Spivak’s problem with the intentions of anthropological ontology, showing how an ontological exploration in Anthropology depends on an epistemological critique. We intend, with this, to reclaim the validity of Spivak’s postcolonial theory for Anthropology, updating its terms and following its arguments.

KEYWORDS:
Ontology; epistemology; subalternity; deconstructionism; reflexivity

Gayatri Chakravorty Spivak é uma autora complexa. O seu pensamento, formado a partir de um amplo domínio sobre teorias dos mais diversos campos das ciências sociais e humanas, é de uma força recursiva intrincada e multiforme. Ainda que claramente feminista e desconstrucionista, sua obra reinventa uma crítica marxista do capitalismo enquanto teoria da subjetivação pós-colonial e aponta para a divisão internacional do trabalho como um mecanismo epistemológico para pensar e desconstruir, tanto a crítica do imperialismo, quanto o itinerário do discurso colonial, revelando a profundidade pré-discursiva da sua configuração.

Neste ensaio, nossa intenção é a de revisitar alguns dos pontos centrais do brilhante e polêmico “Pode o subalterno falar?”, originalmente publicado em inglês em 1988 e traduzido ao português em 20101 1 A tradução brasileira foi feita por Sandra Regina Goulart de Almeida, Marcos Pereira Feitosa e André Pereira Feitosa, e publicada pela Editora da UFMG. , buscando operar torções aos argumentos de Spivak para recolocá-los à luz da antropologia contemporânea. Em especial, trataremos de apontar para precauções que se desdobram do trabalho da autora e que devem interessar à antropologia ontológica. Esta, por sua vez, deve ser entendido como um dos efeitos da chamada “virada ontológica” (Henare et al., 2007HENARE, Amiria; HOLBRAAD, Martin; WASTELL, Sari. 2007 “Introduction: Thinking Through Things”. In HENARE, Amiria; HOLBRAAD, Martin; WASTELL, Sari. (org). Thinking Through Things: Theorising Artefacts Ethnographically. London and New York, Routledge, pp. 1-31.) sobre o proceder antropológico, especialmente no que diz respeito à metodologia, enfatizada por seus proponentes como o eixo central da proposta (Holbraad e Pedersen, 2017HOLBRAAD, Martin; PEDERSEN, Morten A. 2017. The Ontological Turn: An Anthropological Exposition. Cambridge, Cambridge University Press.).

Muito brevemente, o efeito a que nos referimos se relaciona com a intenção de superar o paradigma representacional que fragmenta significado e significante em duas esferas distintas, concentrado o esforço antropológico em dar conta do primeiro à revelia do segundo, seja como interpretação, seja como explicação. Na proposta ontológica externada por Henare e seus colaboradores (2007HENARE, Amiria; HOLBRAAD, Martin; WASTELL, Sari. 2007 “Introduction: Thinking Through Things”. In HENARE, Amiria; HOLBRAAD, Martin; WASTELL, Sari. (org). Thinking Through Things: Theorising Artefacts Ethnographically. London and New York, Routledge, pp. 1-31.: 6), os esquemas analíticos devem emergir do encontro etnográfico ao passo em que se assume uma relação de identidade entre coisas e significados. Ao mesmo tempo, os autores afirmam que os conceitos antropológicos são, de entrada, inadequados para traduzir a experiência da diferença - concebida como “alteridade radical”2 2 A ideia de que essa alteridade radical não seja assim tão radical, pelo menos no que diz respeito à natureza da diferença no interior de algumas propostas ontológicas é demonstrada por Heywood (2020). Blaser (2018) também levanta algumas considerações importantes sobre isso. -, de modo que a proposta passa a ser a de tratar as coisas como condutos para a produção e a proliferação conceitual, a partir das quais se enunciem mundos diferentes ou, em outros termos, diferenças que são de mundo3 3 De modo geral, diz-se que as coisas não representam, mas são. “O pó é o poder”, e não o representa, é o exemplo, extraído das descrições de Holbraad, que Henare et al. (2007) escolhem para demonstrar o ponto. A propósito de como formas de enunciação entendidas como ontológicas têm se proliferado nas descrições etnográficas e o tipo de problemas que elas nos colocam, conferir o artigo de Cesarino (2018). . A “experimentação conceitual” é tida, aqui, como um mandato metodológico: um modo tanto de questionar os pressupostos do pensamento antropológico, quanto um caminho para gerar novos instrumentos conceituais para pensar a partir do material etnográfico (Holbraad e Pedersen, 2017HOLBRAAD, Martin; PEDERSEN, Morten A. 2017. The Ontological Turn: An Anthropological Exposition. Cambridge, Cambridge University Press.: 14). Nesse sentido, a alteridade passa a ser vista como uma propriedade das coisas e, assim sendo, dos conceitos. Em resumo, a proposta afirma que as coisas carregam mundos de diferença e que vislumbrá-los requer a criação conceitual enquanto transtorno ou torção das categorias antropológicas4 4 Adicionalmente, vale a pena mencionar a proposta de Holbraad (2003: 44) de uma antropologia enquanto exercício ontográfico, isto é, “[...] de mapear as premissas ontológicas do discurso nativo”. Ou, ainda, a de uma “antropologia ontológica” (Holbraad et al., 2014): da antropologia como ontologia, apontando para a conciliação de diferenças enquanto uma derivação ontológica. .

Tendo a antropologia ontológica como ponto de interlocução, as torções aos argumentos de Spivak que aqui nos interessam produzir exigirão uma leitura inversa do “Pode o subalterno falar?”. Começando pelo final do texto, levantaremos os pontos principais enfatizados pela parte IV, em que a autora explora as disputas ao redor do sacrifício da viúva no hinduísmo indiano, bem como do suicídio de Bhuvaneswari Bhaduri, para nelas ancorarmos as discussões que Spivak levanta nas partes II e III, em que se debruça sobre as condições de um pensamento pós-colonial e as potencialidades de um projeto desconstrucionista. A parte I, em que a autora argumenta o etnocentrismo contido nas concepções pós-estruturalistas do papel do intelectual no debate entre Foucault e Deleuze (1992), aparecerá apenas de forma muito breve, uma vez que o problema requereria uma exploração mais cuidadosa e detalhada.

Nosso objetivo com essa leitura reversa é encontrar os elementos de uma teoria de subjetivação pós-colonial segundo Spivak, atentando para o modo em que ela desdobra tal compreensão do suicídio de Bhuvaneswari, evento que se inscreve numa gramática patriarcal e colonial em torno da condição da mulher no hinduísmo. Nosso foco é entender como, para a autora, sujeitos subalternos são produzidos por mecanismos de representação e de que forma os constrangimentos próprios de países do Sul Global implicam a necessidade de pensar o pensamento, aquilo que Derrida (1973DERRIDA, Jacques. 1973. Gramatologia. São Paulo, Perspectiva, Edusp.: 118) chama de “branco textual”, uma clausura epistêmica que contém a marca da diferença ainda por vir. Veremos que em sua crítica pós-colonial, Spivak entende o sujeito como a configuração de uma virtualidade que o antecede, o leque de plausibilidades que dá plasticidade conceitual ao sujeito. O argumento da autora é simétrico à noção de texto em Derrida (1973DERRIDA, Jacques. 1973. Gramatologia. São Paulo, Perspectiva, Edusp.), que o entende como uma inscrição que se ergue de um branco textual que o pré-configura como possível.

Ao fazê-lo, veremos como a crítica nativa e feminista de Spivak, uma mulher hindu de casta alta, tanto ao colonialismo britânico, quanto ao nacionalismo hindu, contém uma precaução fundamental para o intelectual pós-colonial, elemento que entenderemos como uma indicação ética do fazer antropológico. No auge da sua conformação e aposta pela ontologia, uma antropologia informada pelas ideias póscoloniais de Spivak produz um horizonte de preocupações que levam a princípios análogos àqueles que delineiam a necessidade de uma “ontologia política” (Blaser, 2014BLASER, Mario. 2014. “Ontology and indigeneity: on the political ontology of heterogeneous assemblages”.Cultural Geographies, v. 21, n. 1: 49-58.) ou de um proceder onto-epistêmico (de la Cadena, 2015DE LA CADENA, Marisol. 2015. Earth Beings: Ecologies of Practice across Andean Worlds. Durham & London, Duke University Press.) que trate dos conflitos em que mundos se excedem. Nossa intenção ao recorrer a Spivak é somar esforços para pensar métodos que se direcionem para uma antropologia não apenas colonial (de la Cadena, 2017DE LA CADENA, Marisol. 2017. “Matters of method; Or, why method matters toward a not only colonial anthropology”. HAU: Journal of Ethnographic Theory, v. 7: 1-10.).

Neste sentido, trataremos de acompanhar a proposta desconstrucionista da autora indiana buscando nela a trajetória discursiva que, ao denunciar a falácia da transparência do conhecimento, reinventa, na década de oitenta, a tarefa historiográfica dos Estudos Subalternos da Índia e coloca o problema pós-colonial em outros termos, como uma medida de precaução e como uma plataforma criativa. Chamamos de pós-colonialismo um conjunto de ideias políticas, ações criativas, reflexões teóricas e posturas éticas que, além de lidar com as consequências (históricas, culturais, sociais, epistêmicas e ontológicas) do colonialismo, formula respostas de distintas ordens a ele. Assim, ainda que o grosso das reflexões de Spivak se posicione frente aos Estudos Subalternos da Índia, as consequências de suas elaborações impactaram a crítica pós-colonial para além do esforço desses autores indianos, razão pela qual propomos entender suas propostas em uma chave mais geral.

Veremos como a autora transforma a crítica ao etnocentrismo europeu no problema geral de investigação do pensador pós-colonial. A fabricação de um sujeito europeu às custas da produção da alteridade como negação é, nos termos de Spivak, a parte em branco do pensamento ocidental, aquilo que está nas entrelinhas dos arquivos coloniais e nas teorias do sujeito sobre o qual os textos analíticos se erguem. É no fundo em branco que o sujeito do texto produz o outro, de tal modo que este último é, no eurocentrismo, a condição de existência e pensamento daquele, um argumento que remete a Said (2007SAID, Edward W. 2007 Orientalismo: o oriente como invenção do ocidente. São Paulo, Companhia de Bolso.): a invenção do Oriente como um fenômeno que faz emergir, por contraste, um nós ocidental e europeu. É do eurocentrismo “em branco” que se projetam os primeiros esforços da historiografia pós-colonial sobre a Índia e é dela que Spivak pretende se distanciar.

Nas palavras da autora,

[...] aquilo que é pensado, mesmo em branco, ainda está no texto e deve ser confiado ao Outro da história. Esse espaço em branco inacessível, circunscrito por um texto

interpretável, é o que a crítica pós-colonial do imperialismo gostaria de ver desenvolvida, no espaço europeu como o lugar da produção de teoria. Os críticos e intelectuais pós-coloniais podem tentar deslocar sua própria produção apenas pressupondo esse espaço em branco inscrito no texto. Tornar o pensamento ou o sujeito pensante transparente ou invisível parece, por contraste, ocultar o reconhecimento implacável do Outro por assimilação. É no interesse de tais precauções que Derrida não invoca que se ‘deixe o(s) outro(s) falar por si mesmo(s)’, mas, ao invés, faz um ‘apelo’ ou ‘chamado’ ao ‘quase-outro’ (tout-autre em oposição a um outro autoconsolidado), para ‘tornar delirante aquela voz interior que é a voz do outro em nós’ (Spivak, [1988] 2014: 107-108).

Enquanto postura crítico-analítica, a proposta de Spivak torna mais produtiva a exploração e a desconstrução da mecânica da constituição do outro (pelo sujeito da teoria ocidental) do que a reconstituição da sua (inalcançável) autenticidade. O trabalho do pensador pós-colonial não é falar pelo outro ou recuperar a sua voz perdida, mas buscar a condição de um quase-outro, de alguém que, aceitando a impossibilidade da sua própria transparência, faz ver a transformação de si através das alterações do branco textual que dá plasticidade ao seu texto. Assim, se, como argumenta Spivak, seguindo a Derrida, o sujeito está no texto e este se ergue a partir de um fundo em branco que é o próprio pensamento, de tal modo que um texto depende de um esquema de plausibilidade que o antecede e a partir do qual ele se escreve, isso corresponde a dizer que o pensamento é anterior ao próprio sujeito, ou, em outro sentido, que o pensamento é um fundo de virtualidade que dá condição à subjetivação. Esta asseveração é, em muitas medidas, uma questão para a qual a antropologia contemporânea se volta (Cesarino, 2018CESARINO, Pedro de Niemeyer. 2018. “Virtualidade e equivocidade do ser nos xamanismos ameríndios”. Revista Do Instituto de Estudos Brasileiros, v. 69: 267-288.).

O problema que se delineia é, então, o de pensar o fazer antropológico frente àquilo que Almeida (2013ALMEIDA, Mauro W. B. de. 2013. “Caipora e outros conflitos ontológicos”. R@u: Revista de Antropologia Da UFSCar, v. 5, n. 1: 7-28.) chama de acervos de pressupostos sobre a realidade. Nesta discussão, e retomando o léxico de Spivak, poderíamos dizer que o texto em branco, o pensamento no argumento desconstrucionista, é o fundo virtual que permite a plasticidade dos conceitos que dão lugar a pessoas, a agentes e a possibilidades de leitura, determinando um esquema prático de possibilidades. Daí a afinidade do problema com a chamada “virada ontológica” na antropologia e o nosso interesse em retomar a leitura de Spivak. No entanto, um alerta deve ser feito: à autora indiana parece interessar menos uma concepção de “alteridade radical” do que uma gramática colonial e patriarcal que regula possíveis através de assimetrias interseccionais. Veremos de que modo isso se dá tendo em vista o caso de Bhuvaneswari. É importante reter, não obstante, que é uma crítica pós-colonial e de gênero que sustenta o argumento da autora; um ponto de vista que, vale mencionar, dificilmente poderíamos reduzir à simples constatação de uma dominação masculina e colonial. Depois de acompanhar o argumento de Spivak, encerraremos discutindo as similitudes entre a noção desconstrucionista do pensamento pós-colonial da autora e uma propensão atual da antropologia por operar transformações conceituais (Strathern, 2004STRATHERN, Marilyn. 2004. Partial connections. Oxford, AltaMira Press.) e proliferar conceitos (Viveiros de Castro, 2015VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. 2015. Metafísicas canibais: elementos para uma antropologia pós-estrutural. São Paulo, Cosac Naify., 2016VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. 2016. Metaphysics as Mythophysics: Or, Why I Have Always Been an Anthropologist. In: CHARBONNIER, Pierre; SALMON, Gildas; SKAFISH, Peter (org.), Comparative Metaphysics: Ontology After Anthropology, London & New York: Rowman & Littlefield, pp. 249-274.), procedimentos que, como vimos, têm sido encarados como o fundamento metodológico da “virada ontológica” (Holbraad e Pedersen, 2017HOLBRAAD, Martin; PEDERSEN, Morten A. 2017. The Ontological Turn: An Anthropological Exposition. Cambridge, Cambridge University Press.).

PODE FALAR O SUBALTERNO?

A mulher subalterna não pode falar [speak]. Mesmo que ela escreva com seu corpo e fale de forma afirmativa através da sua própria morte, ainda assim, não somos capazes de completar sua mensagem, de entendê-la em seus termos. Nesse sentido, ela não pode falar. Através de “Pode o subalterno falar?”, Spivak argumenta o caráter do imperialismo colonial enquanto “violência epistêmica”: um fator que, em termos freudianos, habita o espaço pré-originário e antecede à subjetivação; um fenômeno que habita o pensamento e que constitui sujeitos. Ou, para ser mais preciso, um tipo de fenômeno que constitui textos sociais, que se inscrevem neles, mas que são pensados em branco, que não aparecem no texto em si, mas através dele, como o fundo virtual que dá plasticidade aos conceitos sobre o qual o texto roda.

O problema de Spivak é, portanto, o de desenhos conceituais que dão os marcos de plausibilidade de um texto social. As perguntas centrais que animam a empreitada seriam, então: o que é possível ler e/ou ouvir num determinado contexto de possibilidades? É possível ouvir e/ou ler mensagens que se constroem sobre outro fundo de plasticidade conceitual? Como podemos ouvir o subalterno? Como ele pode nos interpelar de forma eficaz? Ou, desde que lugar se coloca o agenciamento de um sujeito tendo, como ponto de partida, a escuta do intelectual pós-colonial, um privilegiado e um detentor dos conceitos que engendram comunicação efetiva, isto é, que se comunicam a partir da plasticidade hegemônica?

Em 1926, na cidade de Calcutá, na Bengala Ocidental, Bhuvaneswari Bhaduri, uma jovem de 16 ou 17 anos, se enforcou no apartamento do seu pai. Como a residência pósmarital no contexto hindu é virilocal, que Bhuvaneswari estivesse ali era um indicativo importante da sua condição de celibato. Antes de suicidar-se, a jovem esperou que estivesse menstruada. Inicialmente, o ato foi entendido como um mero delírio da garota. Uma década depois, no entanto, se soube que Bhuvaneswari era membro de um grupo de resistência armada à administração colonial britânica, e que, ademais, teria sido exigido dela que cometesse um homicídio em benefício da luta anticolonial. Incapaz de comer tal ato, ela se enforcou. Mas se enforcou menstruada. Que tenha sido assim, diz Spivak (2014SPIVAK, Gayatri C. 2014 Pode o subalterno falar? Belo Horizonte, Editora UFMG.: 162-163), aparta o caso de Bhuvaneswari de um tipo de suicídio recorrente, cometido por garotas acometidas por uma gravidez ilícita. Para Spivak, o suicídio de Bhuvaneswari é uma torção da gramática textual e dos termos em que se produz e se marca a relação entre o imperialismo colonial e o patriarcado hindu no processo de subjetivação das mulheres, o lugar de precaução desde o qual Spivak se coloca para evitar a profusão de sujeitos chapados, homogêneos ou donos-senhores dos seus desejos. A mulher subalterna é, diz ela, o limite das teorias ocidentais do sujeito.

RANI DE SIRMUR

Ao longo de toda a sua obra, Spivak enfatiza o modo em que um foco historiográfico exclusivo em termos de classe ou de exploração econômica eclipsa as práticas materiais e o papel histórico das mulheres na transição da administração colonial britânica para a independência nacional. Sua preocupação, mais do que ser crítica a uma teoria ocidental da subjetivação, é aprofundar os mecanismos através dos quais um grupo de historiadores indianos e pós-coloniais pretende reescrever a história da resistência dos grupos subalternos ao imperialismo britânico (Morton, 2003MORTON, Stephen. 2003. Gayatri Chakravorty Spivak. London & New York, Routledge.), refletindo sobre os alcances epistemológicos do projeto historiográfico do Grupo dos Estudos Subalternos.

Em um artigo chamado “The Rani of Sirmur”, Spivak (1985SPIVAK, Gayatri C. 1985 “The Rani of Sirmur: An Essay in Reading the Archives”. History and Theory, vol. 24, n. 3: 247-272.) explora como uma mulher de casta alta é produzida através dos arquivos coloniais britânicos dos anos 1840, momento em que a Índia transitava entre estar sob controle econômico da Companhia das Índias Orientais para a administração direta do império britânico. Segundo Spivak, Rani emerge dos arquivos como uma personagem produzida pelos interesses econômicos que o império e a companhia tinham em relação aos territórios que sua família governava: Sirmur era uma conexão importante nas rotas comerciais do império (Morton, 2003MORTON, Stephen. 2003. Gayatri Chakravorty Spivak. London & New York, Routledge.: 60). No contexto de ocupação do norte da Índia, os britânicos depuseram o rei, Karma Prakash, e, em seu lugar, colocaram Rani Prakash, a esposa de Karma, como a tutora do herdeiro infante, seu filho Fatteh Prakash (Spivak, 1985SPIVAK, Gayatri C. 1985 “The Rani of Sirmur: An Essay in Reading the Archives”. History and Theory, vol. 24, n. 3: 247-272.: 265-266). Sua colocação se deu sobre dois argumentos: (1) o de que não havia homens confiáveis na linhagem real; e (2) de que Rani, como esposa de um rei deposto, era um receptáculo mais fraco [weaker vessel é o termo que Spivak retoma dos arquivos] para as políticas coloniais.

O interessante neste caso é a forma em que o governo britânico lê o estatuto de Rani frente, tanto ao poder colonial, quanto ao contexto hindu em que ela se inseria. O seu lugar social, político e econômico de mulher privilegiada da realeza é, no contexto dos arquivos, subordinado à sua condição de gênero, tanto como mãe do futuro rei, quanto viúva do rei deposto. Para o governo colonial, Rani não oporia, por ser mulher, as mesmas condições de resistência aos interesses coloniais que os homens da família real. No entanto, Rani é foco dos arquivos porque os administradores britânicos estavam preocupados com a sua condição ambígua de mulher viúva e de mãe. A inquietação era em torno da possibilidade de que Rani decidisse participar do ritual da queima da Sati (ou o sacrífico da boa esposa), autoimolando-se na pira do seu marido. Se isso acontecesse, continuam os arquivos, Rani deixaria o herdeiro ao trono sem guardião e Sirmur, sem um líder que pudesse ser mais facilmente manipulado pelos britânicos (Morton, 2003MORTON, Stephen. 2003. Gayatri Chakravorty Spivak. London & New York, Routledge.: 61). Uma vez que essa ansiedade é superada, Rani desaparece dos arquivos coloniais. Essas condições históricas específicas levam Spivak a concluir que Rani, como uma personagem que emerge dos arquivos, só existe quando ela é requerida no contexto da produção colonial. Isto é, Rani não é tomada como um sujeito em seus termos, mas como um elemento que responde à verdade da necessidade colonial (Spivak, 1985SPIVAK, Gayatri C. 1985 “The Rani of Sirmur: An Essay in Reading the Archives”. History and Theory, vol. 24, n. 3: 247-272.: 270). O discurso colonial dos arquivos a representa, portanto, na produção do imperialismo como uma verdade inquestionada, o branco textual sobre o qual os arquivos são produzidos.

O problema para Spivak (1985SPIVAK, Gayatri C. 1985 “The Rani of Sirmur: An Essay in Reading the Archives”. History and Theory, vol. 24, n. 3: 247-272.: 247) estaria na forma em que a Europa se consolida como sujeito soberano da narrativa histórica, produzindo as colônias como outros. Mais do que uma crítica do imperialismo, uma narrativa histórica alternativa requereria, para a autora, um esquadrinhamento do itinerário da consolidação da Europa como o sujeito soberano da história. Neste sentido, seria necessário abandonar a premissa historiográfica, pretensamente universal, de que os arquivos seriam repositórios de fatos. Para Spivak, os arquivos são repositórios de fatos produzidos pela verdade colonial, isto é, traços de um modo de produção da realidade que se assenta na Europa como sujeito. Inexistiria, assim, um texto que pudesse responder sobre a alteridade que é representada pela violência epistêmica do projeto imperialista (Spivak, 1985SPIVAK, Gayatri C. 1985 “The Rani of Sirmur: An Essay in Reading the Archives”. History and Theory, vol. 24, n. 3: 247-272.: 251). O colonialismo ao qual se refere a autora não é apenas um processo de administração imperial, mas o modo em que o pensamento europeu, transformado em empreitada colonial, imprime um sentido histórico como necessário (Claros, 2011CLAROS, Luis. 2011. Colonialidad y violencias cognitivas. Ensayos político-epistemológicos. La Paz, Muela del Diablo Editores.).

Valendo-se do caso de Rani, Spivak deflagra um alargamento da noção de subalternidade que era utilizada pelos membros do Grupo dos Estudos Subalternos:

a inclusão da mulher como a subalterna entre os subalternos complica a definição estreita que estava sendo usada, fundamentada na noção de classe. A partir de Spivak, a subalternidade deixa de ser, nos Estudos Subalternos, um fenômeno de classe para se tornar uma posição relativa em que está implicada a condição de silenciamento. Não se trata de uma questão metafísica, mas de uma situação que decorre do fato de que sua voz não seja ouvida, de tal modo que o subalterno não existe senão na relação de subalternidade. “Se o projeto do imperialismo é o de unir violentamente a episteme que ‘significará’ (para os outros) e que ‘conhecerá’ (para si) o sujeito colonial como o outro quase-da-história”, argumenta Spivak (1985SPIVAK, Gayatri C. 1985 “The Rani of Sirmur: An Essay in Reading the Archives”. History and Theory, vol. 24, n. 3: 247-272.: 255, minha tradução), então o caso de Rani de Sirmur mostra que todo significado e conhecimento está perpassado pelo poder, sendo este último irremediavelmente relacional (Foucault, 1979FOUCAULT, Michel.1979. Microfísica do poder. Rio de Janeiro, Edições Graal.).

Recorramos ao caso de Bhuvaneswari. Através do seu suicídio, ela inscreve sobre o corpo uma fala, um texto. No entanto, isso não significa que ele será lido nos termos de sua consciência. Spivak nos fala de uma familiar de Bhuvaneswari, pertencente à segunda geração posterior a ela própria, que, questionada sobre o suicídio da sua tiaavó, teria dito que ela se suicidou em razão de uma gravidez ilícita. Para Spivak, o fato de que estivesse menstruada era evidência de que não se tratava disso. Então, diz a autora, Bhuvaneswari emerge como subalterna porque suas afirmações enquanto texto social não são ouvidas/lidas pela sua sobrinha-neta. Ainda que as duas mulheres ocupem, no contexto de segmentação social hindu, uma mesma posição de casta alta, a gramática feminista da tia-avó é incompreensível para a sobrinha-neta, mesmo se tratando esta última de uma filósofa e um estudiosa de sânscrito altamente educada (Spivak, 2014SPIVAK, Gayatri C. 2014 Pode o subalterno falar? Belo Horizonte, Editora UFMG.: 164). Ao dizer que a tia-avó se suicidou por uma gravidez ilícita, a sobrinha-neta reinscreve uma imagem silenciada, uma representação subalternizada da tia-avó, na gramática hegemônica do colonialismo e do patriarcado hindu. Uma é subalterna em relação à outra. Neste caso, como no de Rani de Sirmur, o problema é como representações fabricadas desde um lugar determinado, os arquivos coloniais, por exemplo, se tornam realidades históricas. Para Spivak (1985SPIVAK, Gayatri C. 1985 “The Rani of Sirmur: An Essay in Reading the Archives”. History and Theory, vol. 24, n. 3: 247-272.: 272), uma crítica do imperialismo que assume o ponto de vista do colonizado é insuficiente porque, ao se colocar no outro polo da oposição colonial entre colonizado e colonizador, mantém intacta a própria oposição enquanto um branco textual em que se sustenta o trajeto discursivo que produz a essencialização dos sujeitos. Em seu lugar, a autora propõe a desconstrução como um método para tomar em conta a cumplicidade do pensador pós-colonial que, operando uma mudança no interior do discurso colonial, ainda se mantém enclausurado pelas representações que ele engendra.

SATI, A BOA ESPOSA

Em “Pode o Subalterno falar?”, Spivak retoma e aprofunda a discussão sobre a subjetivação da mulher subalterna a partir das disputas entre a tradição védica e a legislação colonial britânica em torno do sacrifício da viúva. Segundo a autora, nos textos religiosos hindus (Dharmasastra e Rg-Veda), o sacrifício da viúva aparece como prática sagrada de peregrinação, e não como um suicídio, ato estritamente proibido em termos das leis tradicionais do hinduísmo (Spivak, 2014SPIVAK, Gayatri C. 2014 Pode o subalterno falar? Belo Horizonte, Editora UFMG.: 129). Tradicionalmente, a autoimolação só é permitida quando, pela performance formular do ato auto-sacrificial que produz um contexto de sacralidade, se perde a identidade fenomenológica de suicídio para que a ação se torne outra coisa; peregrinação, por exemplo. Isso pode se dar em dois casos: (1) a partir do momento em que se atinge e se passa a conformar um conhecimento da verdade que por si mesmo esfacela o sujeito, de tal modo que o suicídio não é um assassinato do ser; ou (2) em determinados lugares sagrados aos quais se chega pela peregrinação. Não obstante, ambas as situações são restritas aos homens. Como mostra Spivak (2014SPIVAK, Gayatri C. 2014 Pode o subalterno falar? Belo Horizonte, Editora UFMG.: 132), uma exceção é feita, no entanto, para a prática de autoimolação da viúva porque tal sacrifício figuraria, não um suicídio, mas uma repetição da morte do marido.

Vejamos como isso se dá na inversão do mito de Sati, a manifestação da deusa Durga como uma boa esposa. Em determinado ponto da narrativa, Sati chega de forma inesperada à corte de seu pai, sem que ela ou seu marido, Siva, tivessem sido convidados. O pai começa a ofender Siva, e Sati, a boa esposa, morre de dor. Tomado por um estado de fúria, Siva toma o corpo de Sati em seus ombros e dança com ele sobre o universo. Visnu desmembra o corpo de Sati e os pedaços são distribuídos pelo mundo, tornando-se relíquias que marcam lugares sagrados de peregrinação. No mito, uma série de mediações entre deuses homens (pai que causa a morte, marido que vinga, Visnu que desmembra o corpo) transforma o corpo feminino de Sati em índices produtores de uma geografia do sagrado (Spivak, 2014SPIVAK, Gayatri C. 2014 Pode o subalterno falar? Belo Horizonte, Editora UFMG.: 158-159).

No caso do sacrifício das viúvas, a estrutura é a mesma, mas com relações inversas no que diz respeito as relações de gênero. Em primeiro lugar, não qualquer mulher pode se autoimolar na pira de qualquer homem. Só a viúva é quem pode fazê-lo na pira do próprio marido; existe um vínculo necessário entre eles, produzido pelo casamento, que autoriza o ritual. Em segundo lugar, há uma série de sobre-determinações que produzem o estatuto da viúva, operando como verdadeiros constrangimentos à emersão do sujeito feminino. A lei que rege a condição de viúva é a brahmacarya, a mesma que rege o tipo de celibato que é anterior à inscrição do parentesco por casamento (Spivak, 2014SPIVAK, Gayatri C. 2014 Pode o subalterno falar? Belo Horizonte, Editora UFMG.: 140-141). Na viuvez masculina, o homem pode avançar a um estágio de celibato pós-marital; para que isso aconteça, no entanto, ele precisa ter passado pela experiência da domesticidade, na qual a mulher é indispensável.

De acordo com a sanção brâmica, somente os homens podem avançar para o último estágio da biografia reguladora do hinduísmo, da qual o casamento é um axioma fundamental. A viuvez feminina, ao contrário, faz a mulher retornar e estagnar-se na condição de anterioridade celibatária, sem parentes por casamento. Para Spivak (2014SPIVAK, Gayatri C. 2014 Pode o subalterno falar? Belo Horizonte, Editora UFMG.: 142), esta regulação engendra uma assimetria na constituição do sujeito sexuado. Nela, a mulher é um objeto do marido, uma parte dele, tanto na constituição do estatuto final, exclusivamente masculino na medida em que é acessível somente aos homens através do casamento, como no próprio sacrifício da viúva.

A tradição afirma que a mulher, na condição de viúva que se sacrifica, poderá acompanhar o marido ao céu, onde será devota a ele e, por esta razão, será louvada por dançarinas divinas. Mais fundamental ainda, o ato sagrado de autoimolação da mulher permitiria que ela se libertasse do corpo feminino no ciclo de encarnações (Spivak, 2014SPIVAK, Gayatri C. 2014 Pode o subalterno falar? Belo Horizonte, Editora UFMG.: 143). Sob esta perspectiva, o conhecimento da mulher sobre si estaria necessariamente mediado pelo autoconhecimento do marido; ela só é capaz de se conhecer enquanto mulher sendo a boa esposa de um homem, sati. Mais ainda, a liberação do corpo feminino através do sacrifício parece indicar que a boa esposa se torna, na próxima vida, um homem, de tal modo que sua subjetivação enquanto mulher que se imola é a afirmação antecipada de uma subjetividade masculina por vir; ou será que, podemos nos perguntar, subjetividade e masculinidade são dois lados de um mesmo fenômeno, de tal modo que o corpo masculino (do marido ou da própria esposa nas próximas vidas) é a condição da subjetividade na tradição hindu?

No próprio rito da queima da boa esposa, a pira do marido se torna, por metonímia, o lugar sagrado para o qual a esposa pode peregrinar e se autoimolar, rompendo, pela performance formular que sacraliza o ato, da constituição de um suicídio, e garantindo, ademais, uma passagem ao céu como acompanhante do marido, isto é, ainda como titular de parentesco por casamento. Se no mito de Sati as partes do corpo desmembrado dessa deusa se tornam as marcas de uma geografia do sagrado, no sacrifício da viúva, é o corpo do marido que se torna a única possibilidade de sacralização, de se dirigir a uma geografia do sagrado que, para a viúva, começa e termina com a pira; antes e depois dela, essa possibilidade se esfumaça (Spivak, 2014SPIVAK, Gayatri C. 2014 Pode o subalterno falar? Belo Horizonte, Editora UFMG.: 158-159). A única exceção prevista, e é importante que ela seja ressaltada para que entendamos o caso do suicídio de Bhuvaneswari, é a da viúva menstruada, que deve esperar que a menstruação passe e que ela esteja “pura”, nos termos do hinduísmo, para realizar o ritual de autoimolação. De forma geral, Spivak lê o sacrifício como um deslocamento da subjetividade da mulher na medida em que ela está desprovida, em termos dos textos hinduístas, de responsabilidade legal pelas suas próprias vidas (Morton, 2003MORTON, Stephen. 2003. Gayatri Chakravorty Spivak. London & New York, Routledge.: 63).

Segundo Spivak (2014SPIVAK, Gayatri C. 2014 Pode o subalterno falar? Belo Horizonte, Editora UFMG.: 159), a possibilidade de subjetivação da mulher na tradição hindu está dada na constituição da boa esposa: é através do corpo do marido que ela se livra do corpo feminino que a sanciona. O rito é, neste sentido, uma repetição estrutural que inverte as condições de gênero dos mitemas, mas que conserva o papel mediador dos corpos masculinos do homem e dos deuses. No entanto, diz a autora, a “escolha” da mulher de morrer na pira, como um significante excepcional da condição de boa esposa, é uma abdicação da sua livre escolha. Não está em operação, aqui, um desejo do subalterno. E mais, se por um acaso ela tivesse decidido operar o ritual mas voltasse atrás, exercendo, agora sim, sua livre escolha, diz Spivak, ela então deveria ser punida nos termos das leis hindus.

ENTRE O PATRIARCADO HINDU E O COLONIALISMO BRITÂNICO

Para Spivak (2014SPIVAK, Gayatri C. 2014 Pode o subalterno falar? Belo Horizonte, Editora UFMG.: 152), a elite nativa e o seu discurso sobre o sacrifício da viúva exerceriam violência sobre as mulheres no passo em que, entre outras coisas, romantizam o ritual de autoimolação como um símbolo nacionalista de pureza, força e amor da “valente livre escolha” dessas mulheres, sem que, para isso, reconheçam o contexto de enormes constrangimentos à subjetivação feminina. Assim sendo, desde que lugar cabe falar de agenciamento no ritual de sacrifício da viúva? Qual é o sujeito que pode emergir quando sua condição mínima é a autoimolação? Como pode falar a mulher numa estrutura em que ela é uma objetificação da subjetivação do homem?

O problema de Spivak se coloca justamente aqui. Na querela entre a proibição britânica (sacrifício como crime) e a tradição hindu (sacrifício como ritual e pureza), recolocados pela historiografia colonial e pós-colonial, não há espaço para a consciência da mulher. Por um lado, os britânicos viram o sacrifício das viúvas como um ato brutal, símbolo de violência e resultado da dominação de homens sobre mulheres. Proibir a autoimolação era, então, um tropo: uma “missão social” que, entre outras coisas, legitimava a empresa imperial como produtora de boas sociedades no além mar. “Homens brancos que salvam mulheres de pele escura de homens de pele escura”, resume Spivak (2014SPIVAK, Gayatri C. 2014 Pode o subalterno falar? Belo Horizonte, Editora UFMG.: 152), é o fundamento civilizatório do discurso colonial. Por outro lado, o discurso do nacionalismo hindu representava as viúvas que se autoimolavam como heroínas da tradição, símbolos de pureza ritual e lealdade à cultura erudita tradicional: mulheres que desejavam morrer com seus maridos. “As mulheres realmente queriam morrer”, sintetiza Spivak sobre isso.

O que as sentenças têm em comum é que ambas estão vazias da voz-consciência das mulheres: são estruturalmente simétricas na produção da mulher como um outro subalterno representado por um enunciado hegemônico (em relação à própria mulher). Na narrativa colonial, a mulher é uma dominada, forçada a se sacrificar, enquanto que na narrativa hindu, ela é uma autônoma, capaz de exercer livre escolha sobre o assunto. Para Spivak (2014SPIVAK, Gayatri C. 2014 Pode o subalterno falar? Belo Horizonte, Editora UFMG.: 134-136), a disputa entre os discursos é um caso de différend, termo utilizado por Lyotard (1984LYOTARD, Jean-François. 1984 Le Différend. Paris, Minuit.) para indicar a intraduzibilidade e a inacessibilidade de um modo de discurso em disputa com um outro. Mais claramente, a différend está, aqui, na irredutibilidade da querela discursiva entre pureza ritual e crime em torno da categorização do sacrifício da viúva. Nesta série de arremessos entre os dois polos, nenhum deles defende a agência das mulheres, mas transformam seus corpos num campo de batalha entre discursos.

Em suas palavras,

Entre o patriarcado e o imperialismo, a constituição do sujeito e a formação do objeto, a figura da mulher desaparece, não em um vazio imaculado, mas em um violento arremesso que é a figuração descolada da ‘mulher do Terceiro Mundo’, encurralada entre a tradição e a modernização (Spivak, 2014SPIVAK, Gayatri C. 2014 Pode o subalterno falar? Belo Horizonte, Editora UFMG.: 157).

Não há espaço a partir do qual a mulher subalterna possa falar. A conclusão é, portanto, evidente: por estar constrangida pelo código de conduta moral do patriarcado hindu e pela representação colonial britânica da mulher como vítima da “bárbara cultura hindu”, a voz-consciência da mulher subalterna é impossível de ser recuperada. Portanto, ela não pode falar, de tal forma que pretender reconstruir as suas histórias não é um ato realizável.

GRAMSCI E A SUBJETIVAÇÃO SUBALTERNA

O ponto central do trabalho da Spivak é que a pergunta “pode o subalterno falar?” não pode ser evadida pelos Estudos Subalternos justamente porque, na différend, cada um dos polos discursivos (elite nativa e governo colonial) produz uma representação distinta e que se assenta em apenas uma das duas características intrínsecas e produtivas do subalterno enquanto categoria, segundo Gramsci. De cara é preciso pontuar que subalterno não é um equivalente de oprimido ou de dominado, na mesma medida em que seu aparecimento tem como horizonte pluralizar as grandes noçõeschave (trabalhador, proletário) em que rodavam a teoria marxista (Rivera Cusicanqui e Barragán, 2007).

A subalternidade diz respeito, em Gramsci, a um tipo de subjetivação política: é uma espoliação da qualidade subjetiva operada através da subordinação (Modonesi, 2010MODONESI, Massimo 2010 Subalternidad, antagonismo, autonomía. Marxismo y subjetivación política. Buenos Aires, CLACSO.: 26). Em outros termos, a subordinação não é um lugar na estrutura de dominação, mas uma relação e uma experiência de uma condição social e política que marca a produção de determinada subjetividade. Esse é um tema que, ademais, remonta à preocupação de Marx pela constituição de um sujeito transformador, marcado originalmente pela sua condição de dominação estrutural, mas cujo aparecimento depende da superação dos constrangimentos que atrasam e impedem sua formação histórica.

Segundo Modonesi (2010MODONESI, Massimo 2010 Subalternidad, antagonismo, autonomía. Marxismo y subjetivación política. Buenos Aires, CLACSO.: 27), importante comentador de Gramsci e cujo argumento seguiremos, esse autor, antes de se voltar para a subalternidade, estava interessado na exploração de outros processos de subjetivação: o antagonismo e a autonomia. Para Gramsci, a emergência de sujeitos transformativos (da ordem da pragmática) se daria a partir da experiência de insubordinação (antagonismo) e do gerenciamento de âmbitos independentes de emancipação da classe trabalhadora (autonomia). A subjetivação seria, portanto, da ordem da ruptura e do autogoverno. Esta aposta diz respeito a uma reflexão sobre um contexto específico de disputas políticas no norte da Itália no momento em que o autor escreve: a existência de um emergente movimento de conselhos de trabalhadores, os chamados “Conselhos de Fábrica”, que, apostava Gramsci, organizariam a revolução. Segundo o autor, os Conselhos surgem de forma antagônica, mas é através da experiência da sua autonomia que o movimento forma o trabalhador como um sujeito político (Modonesi, 2010MODONESI, Massimo 2010 Subalternidad, antagonismo, autonomía. Marxismo y subjetivación política. Buenos Aires, CLACSO.: 27-29).

Essa teoria da subjetivação perde força no pensamento de Gramsci no momento em que o Movimento dos Conselhos de Fábrica é derrotado e a Itália se vê tomada pelo estabelecimento da hegemonia fascista. A partir daí, Gramsci passa a assumir um posicionamento historicista em defesa da centralidade da práxis, fator que ele traduzirá, ademais, como uma crítica ao economicismo e ao voluntarismo do marxismo ortodoxo (Modonesi, 2010MODONESI, Massimo 2010 Subalternidad, antagonismo, autonomía. Marxismo y subjetivación política. Buenos Aires, CLACSO.: 30). É aqui que aparece a categoria do subalterno como a expressão da experiência e da condição subjetiva do subordinado, determinado por um lugar produzido tanto pela hegemonia quanto pela autonomia. Por hegemonia Gramsci quer denotar uma série de instituições ideológicas dominantes que jogam um papel central na manutenção das relações de dominação. Contra a noção clássica de ideologia como uma falsa consciência, propõe o conceito mais flexível e complexo de hegemonia para tratar do modo em que a vida cotidiana e as identidades das pessoas são definidas na e através das estruturas sociais dominantes que são relativamente independentes das relações econômicas.

É justamente desdobrando as análises em torno do poder de direção, a relação assimétrica de mando e obediência, que Gramsci dá origem ao conceito de subalterno, remontando à nota 14 (“História da classe dominante e história das classes subalternas”) dos Cadernos do Cárcere (Modonesi, 2010MODONESI, Massimo 2010 Subalternidad, antagonismo, autonomía. Marxismo y subjetivación política. Buenos Aires, CLACSO.: 31). Ali, ele diz que:

A história das classes subalternas é necessariamente desintegrada e episódica: na atividade dessas classes há uma tendência à unificação, ainda que seja em plano provisório, mas esta é a parte menos visível e que só é demonstrável após a sua consumação. As classes subalternas sofrem a iniciativa da classe dominante, inclusive quando se rebelam; estão em estado de defesa alarmada. Por isso, qualquer surto de iniciativa autônoma é de inestimável valor (Gramsci, 2000GRAMSCI, Antonio. 2000. Cuadernos de la cárcel. Tomo 2. México, Ediciones Era.: 27, minha tradução).

Conforme à noção de hegemonia, o uso do poder que está aqui pressuposto é o de tipo consenso e não de tipo coerção (Modonesi, 2010MODONESI, Massimo 2010 Subalternidad, antagonismo, autonomía. Marxismo y subjetivación política. Buenos Aires, CLACSO.: 31). É através das estruturas que organizam a sua vida e a sua identidade que a classe dominante continua exercendo certo controle sobre as classes subalternas. Estas são plurais, desintegradas, de atuar episódico, de débil tendência à unificação e estão intimamente vinculadas aos efeitos da hegemonia. Mais adiante, no entanto, o autor abandona o uso mais estrito de classes para optar pelo termo grupo: “grupos subalternos”.

O fundamental está, no entanto, na “duplicidade constitutiva” da categoria subalterno. O elemento central da experiência subalterna é a assimilação da subordinação por imposição: “a internalização dos valores propostos pelos que dominam ou conduzem moral e intelectualmente o processo histórico” (Modonesi, 2010MODONESI, Massimo 2010 Subalternidad, antagonismo, autonomía. Marxismo y subjetivación política. Buenos Aires, CLACSO.: 34). Isso se deve ao fato de que no capitalismo a história do Estado é a história das classes dominantes. Assim, uma possível sobreposição que leva a identificar totalmente o Estado e a sociedade civil a partir dos mesmos critérios seria o resultado de uma realização hegemônica. Em outros termos, a totalidade da sociedade civil, agora hegemonizada, passa a se ver nos termos colocados pelas classes dominantes. Os grupos subalternos seriam, no entanto, a periferia da sociedade civil (Gramsci, 2000GRAMSCI, Antonio. 2000. Cuadernos de la cárcel. Tomo 2. México, Ediciones Era.). Ao mesmo tempo em que são partes integrantes dela, não estão totalmente integradas nas relações de dominação hegemônica que ali se produzem. Institucionalmente, parecem reproduzir a lógica da hegemonia. No campo da experiência, no entanto, gestam autonomia (Modonesi, 2010MODONESI, Massimo 2010 Subalternidad, antagonismo, autonomía. Marxismo y subjetivación política. Buenos Aires, CLACSO.: 36). Este é o ponto inovador de Gramsci. Daí em diante continua o chavão marxista: a autonomia é condição da emancipação e do confronto com a hegemonia. Assim sendo, o subalterno, que escapa constantemente à hegemonia pela experiência, poderia chegar a compor um novo bloco histórico (Portelli, 1987PORTELLI, Hugues. 1987. Gramsci y el bloque histórico. México, Siglo XXI Editores.). A autonomia é, portanto, a passagem da subalternidade para a nova hegemonia.

Outra característica importante, em Gramsci, é a espontaneidade que marca a história dos grupos subalternos. Não detentores de uma consciência de classe “por si mesma”, ele diz, os subalternos não suspeitam da importância da história e nem que seja de valor produzir rastros documentais dela. Apesar dessa construção ser nocivamente falaciosa, ela é importante para Gramsci porque a história, como relato e como experiência, marca a produção da consciência de classe. Sem rastros históricos, diz Gramsci, é importante investir em áreas como o folklor, que é um dos canais pelos quais circulam os elementos culturais importantes dos grupos subalternos (Modonesi, 2010MODONESI, Massimo 2010 Subalternidad, antagonismo, autonomía. Marxismo y subjetivación política. Buenos Aires, CLACSO.: 36-38). Não é nem preciso dizer o quanto a antropologia contemporânea e os autores pós-coloniais, como Spivak, recusam essa premissa.

Em resumo, a ambiguidade constitutiva do subalterno transcorre entre ser hegemonizado mas também autônomo; um sujeito da dominação e da autonomia relativas, portanto. A experiência subalterna é, tanto a incorporação e aceitação relativa da relação de mando-obediência, quanto, ao mesmo tempo, sua contrapartida de resistência e de negociação permanente.

De forma sucinta, a conclusão da teoria da subordinação é a de que as teias da hegemonia não podem ser desmanteladas por um simples e repentino ato voluntarista (uma revolução em sentido estrito), mas requer seu reconhecimento e desmantelamento paulatino, descobrindo o terreno subjetivo que eclipsam (Modonesi, 2010MODONESI, Massimo 2010 Subalternidad, antagonismo, autonomía. Marxismo y subjetivación política. Buenos Aires, CLACSO.: 38). É evidente o quanto a teoria da subalternidade nega os esquemas fáceis de oposição, como entre consciência e falsa consciência, para propor um problema que é tanto de ordem sincrônica (na esfera do antagonismo) quanto diacrônica (na produção da autonomização). Há, entre Gramsci e Spivak, uma diferença importante. Em ambos os subalternos são silenciados, mas, em Gramsci, ele deixa de sê-lo somente quando se torna Estado ou quando consegue estabelecer nova hegemonia. Para Spivak, no entanto, o sujeito já não é subalterno quando passa a comungar de determinada plasticidade conceitual que permite que sua voz seja escutada (Modonesi, 2010MODONESI, Massimo 2010 Subalternidad, antagonismo, autonomía. Marxismo y subjetivación política. Buenos Aires, CLACSO.: 38-39). Em Spivak, isso não corresponderia a dizer que o subalterno se torna completamente hegemonizado, utilizando-se da plasticidade conceitual dos grupos dominantes, mas que certo nível de tradução se faz efetiva e, com ela, certo transtorno da própria plasticidade conceitual da hegemonia se leva a cabo. Que o subalterno passe, em algum nível de plausibilidade, a falar é um indicativo de que a hegemonia começa a se desquebrar. Esta leitura é uma aproximação desconstrucionista da teoria da subalternidade, uma reconfiguração de Gramsci a partir da Gramatologia de Derrida, que discutiremos a seguir.

A SUBALTERNIDADE DOS AUTORES INDIANOS

A retomada do conceito de subalterno pelos Estudos Subalternos da Índia se dá num marco de guinada da produção historiográfica indiana. Constituída por uma primeira geração de intelectuais pós-coloniais, seu objetivo principal era colocar no centro da narrativa histórica o ponto de vista dos subalternos, suas vozes-consciência que, até então, teriam sido negadas pelos estatismos que dominaram, tanto a cultural colonial, quanto o nacionalismo hindu. Tal proposta implicaria, nos termos de Ranajit Guha, ler as histórias de rebeliões camponesas a contrapelo das teses dominantes e da perspectiva historiográfica estatista, isto é, no contra-fluxo do ponto de vista da hegemonia do Estado e das classes dominantes (Guha, 1997aGUHA, Ranajit. 1997a “Prefacio a los estudios de la subalternidad. Escritos sobre la historia y sociedad sudasiática” In RIVERA CUSICANQUI, Silvia; BARRAGÁN, Rossana. (org.), Debates PostColoniales: una introducción a los Estudios de la Subalternidad. La Paz, Editorial Historias/ Ediciones Aruwiyiri/SEPHIS, pp. 23-24.; 1997bGUHA, Ranajit. 1997b. “Sobre algunos aspectos de la historiografía colonial de la India”. In RIVERA CUSICANQUI, Silvia; BARRAGÁN, Rossana. (org.), Debates PostColoniales: una introducción a los Estudios de la Subalternidad. La Paz, Editorial Historias/ Ediciones Aruwiyiri/SEPHIS, pp. 25-32.; 2002). A inspiração é claramente gramsciniana no conteúdo e na metodologia.

Guha propõe que a história se ocupe de uma noção estendida de política que inclua fenômenos que, nas historiografias tradicionais-hegemônicas, não eram considerados políticos por não se tratarem de processos que interessassem ao Estado. Dedicando-se ao estudo das rebeliões de Santal, ocorridas durante o século dezenove, Guha (1988GUHA, Ranajit. 1988 “The Prose of CounterInsurgency”. In GUHA, Ranajit; SPIVAK, Gayatri C. (org.), Selected Subaltern Studies. New York, Oxford University Press, pp. 45-86.) argumenta pela inclusão e reconhecimento dos deuses e dos espíritos como sujeitos de agenciamento histórico, refutando uma série de análises que haviam interpretado a participação dessas entidades nos movimentos insurgentes como mera invenção das suas lideranças para garantir o suporte popular. Dando maior rendimento a esta discussão, Chakrabarty (2000CHAKRABARTY, Dipesh. 2000. Provincializing Europe: postcolonial thought and historical difference. Princeton, Princeton University Press.) argumenta que a participação de deuses e espíritos na esfera política denota a heterogeneidade do tempo histórico. Para os dois autores, a história é social porque ela é produzida por agentes que antecedem o que compreendemos como “social”, tais como as pessoas, os deuses e os espíritos. As tradições não-modernas e não-ocidentais da Índia emergem, então, como âmbitos de políticas próprias, com termos e objetivos diferentes. Para os teóricos dos Estudos Subalternos, apostar nessa tradição permitiria traçar uma linha de separação com o pensamento ocidental e, eventualmente, poder deslocá-lo. O ponto principal é que, para Guha e Chakrabarty, abrir a história para a heterogeneidade política das rebeliões subalternas livraria o pensamento historiográfico do eurocentrismo ocidental.

Para Chatterjee (1997CHATTERJEE, Partha. 1997. “La nación y sus campesinos”. In RIVERA CUSICANQUI, Silvia; BARRAGÁN, Rossana. (org.), Debates PostColoniales: una introducción a los Estudios de la Subalternidad. La Paz, Editorial Historias/Ediciones Aruwiyiri/SEPHIS, pp. 195-210), também um dos fundadores do Grupo dos Estudos Subalternos, a consciência subalterna dos camponeses indianos é, como em Gramsci, fruto de uma unidade contraditória entre dois aspectos: de um lado, ele está subordinado, aceita a realidade imediata das relações de poder que o dominam e o exploram, mas, do outro, recusa essas condições de subordinação e afirma a sua autonomia. O lugar da subjetivação política é, mais uma vez, o do equilíbrio instável entre conservação e transformação, de tal modo que a subalternidade implicaria um caráter relacional que excluiria a possibilidade de autonomia plena, completamente alheia à dominação (Modonesi, 2010MODONESI, Massimo 2010 Subalternidad, antagonismo, autonomía. Marxismo y subjetivación política. Buenos Aires, CLACSO.: 44).

É na transformação dessa autonomia relativa em um tropo que a categoria se torna produtiva para os Estudos Subalternos, no sentido em que os autores dessa escola operarão um giro (malsucedido, segundo Spivak) por cima do conceito de subalternidade no marxismo de Gramsci. Para os autores indianos, se nem tudo que produz a subjetivação do subalterno é imposto e controlado unilateralmente pela hegemonia das classes dominantes, então existiriam âmbitos, saberes e recursos que não nascem da subordinação enquanto imposição e que, neste sentido, são instrumentalizados como lugares de transformação. É daí que emergem as rebeliões camponesas. Até aqui, Spivak parece não se diferenciar das ideias do grupo. No entanto, para eles seria importante entender como esses âmbitos se tornam recursos para a formação da resistência num campo de autonomia relativa que oscila entre a lógica da obediência (dominação) e a lógica do conflito (antagonismo).

O giro sobre Gramsci estaria, então, no fato de que os Estudos Subalternos entendessem, no evento das rebeliões camponesas, que se efetivava uma suspensão da duplicidade interna, constitutiva da subalternidade, entre dominação e autonomia. Ao se rebelarem contra a elite colonial e nacionalista, dizem os autores indianos, os subalternos se mostram como sujeitos efetiva e não relativamente autônomos (Modonesi, 2010MODONESI, Massimo 2010 Subalternidad, antagonismo, autonomía. Marxismo y subjetivación política. Buenos Aires, CLACSO.: 45-46). Para Spivak (2014SPIVAK, Gayatri C. 2014 Pode o subalterno falar? Belo Horizonte, Editora UFMG.), o problema é transitar de uma situação de teoria da subjetivação (o modo em que se dá a constituição subjetiva do subalterno no campo da analítica ou da descrição) para uma esfera de conflito e antagonismo (um tipo de ação em que o subalterno confronta a elite no campo da pragmática) esperando que a segunda transforme a primeira de forma mecânica. A confusão entre as duas esferas, argumenta Spivak, se deve à influência pós-estruturalista na leitura que os historiadores indianos realizam da teoria da subalternidade de Gramsci.

O mais grave, argumenta Spivak, é que essa transformação se dá na ordem da retomada analítica de um evento pragmático a partir de um discurso que é incapaz de remontar à voz-consciência dos camponeses que se rebelaram. A forma em que os Estudos Subalternos apontam para autonomia do subalterno não é uma verdade do evento (esfera da pragmática), irrecuperável em si mesma, mas um efeito da verdade em que o discurso do próprio intelectual pós-colonial é produzido (é a verdade produzida na analítica). Tanto nos casos dos arquivos coloniais e do discurso nacionalista, quanto no da historiografia dos pós-coloniais, o subalterno é um efeito de um discurso em que ele é objeto de conhecimento; sua subjetividade está perdida. Assim, afirmar sua pureza de uma ou outra forma é transtornar a sua própria condição. Como a sua voz-consciência é irrecuperável em si mesma, o trabalho do historiador deveria ser o de desconstruir as representações produzidas sobre o subalterno e reconhecer seu lugar distinto na história, deslocando as sínteses historiográficas sem pressupor poder substituí-las por outra, totalmente outra, em que a voz não escutada do subalterno pretensamente poderia falar.

Fundamentando-se na ideia de que o subalterno diz respeito à posição daquele cuja voz não pode ser ouvida, Spivak é crítica, tanto da forma em que o texto dos Estudos Subalternos toma a subalternidade de forma chapada e monolítica para produzir uma autonomia subalterna igualmente chapada e monolítica, quanto da pretensão de que o subalterno possa ser tomado como um sujeito transparente cuja autonomia (o pensamento que habita as estruturas de fundo) seja apreensível pela gramática do privilégio. Em outros termos, não pode falar o subalterno neste caso específico quando cerceado pelo texto hegemônico da autonomia, criado como verdade pelo discurso dos Estudos Subalternos.

Isso significa que a noção de subalternidade é colonial quando entendida como algo metafísico. Nenhuma tradição não-moderna e não-ocidental é essencialmente subalterna, como se isso preexistisse à empreitada imperial e ao Sujeito como Ocidente que produz a razão da história estatista (Estado como instituição mas também como forma de pensamento). O não-moderno só é subalterno sob o olhar do imperialismo. Para Spivak, então, a categoria subalterno é da ordem da analítica e da descrição; não da pragmática e da transformação. Daí que seja importante separar as duas formas de representação que são suplantadas pela teoria do sujeito em Foucault e em Deleuze, mas também nos Estudos Subalternos. No limite, o sujeito da microfísica do poder inexiste fora da gramática do privilégio da mesma forma que o subalterno.

DESCONSTRUÇÃO COMO PRECAUÇÃO

A crítica tecida por Spivak ao intelectual pós-colonial se coloca sobre o fato de que a afirmação da resistência se dá não no conjunto de ideias e conceitos que produzem a realidade do subalterno como um efeito do discurso, mas a partir daqueles que dão plasticidade e engendram eficácia ao discurso hegemônico. O papel do intelectual pós-colonial não é, portanto, falar pelo outro ou tratar de emular seu discurso, traduzindo mensagens subalternas em termos hegemônicos, mas desconstruir a própria plasticidade que produz o texto hegemônico que silencia o subalterno. Reconhecer que se é parte do esquema hegemônico permite que o intelectual pós-colonial questione sua condição e a torne produtiva, anti-subalterna (no sentido de que a subalternidade é um efeito relacional da hegemonia), para ser um quase-outro que transtorna a plasticidade hegemônica, restando-lhe capacidade de captura do texto dos outros enquanto sujeitos em discurso e não como objetos do discurso.

É aqui que a Gramatologia se mostra, na proposta de Spivak, uma aliada do intelectual pós-colonial. O uso que a autora faz da desconstrução é muito menos instrumental do que uma ferramenta de precaução. Esta é, aliás, a proposição de Derrida (1973DERRIDA, Jacques. 1973. Gramatologia. São Paulo, Perspectiva, Edusp.): que a desconstrução seja, enquanto procedimento de leitura, uma estratégia atenta e desconfiada de pensamento (desconfiar de si mesmo é, ademais, a crítica de Derrida ao etnocentrismo do nosso pensamento logocêntrico). A desconstrução seria uma forma de desmontagem de ideias tidas como absolutamente verdadeiras. Através da decomposição dos elementos da escrita, Derrida sugere que a desconstrução permite encontrar as partes do texto que estão dissimuladas e que interditam certas condutas no discurso. Não se trataria propriamente de uma destruição textual na medida em que não se pretende reduzir a verdade do texto a um nada, mas de mostrar como a verdade do texto perde seu efeito. O problema da desconstrução é, então, o de como verdades são produzidas.

Segundo Derrida, as palavras não têm a capacidade de expressar tudo o que se deseja com elas exprimir. As palavras, e também conceitos, não comunicam o que prometem. Esta situação conduz ao surgimento de lacunas na escrita (e na fala) que são incontornáveis. Para que se tornem completos, as palavras e os conceitos requerem um preenchimento operado pelo pensamento, fala, escuta, escrita e leitura. O significado de determinado texto é o resultado da diferença entre as palavras usadas e preenchidas, e não entre os referentes que elas pretendem representar. A diferença entre as palavras é produzida, no entanto, a partir do significado diferencial de cada uma delas em relação às demais das quais se difere. Daí decorre o conceito de dif férance, diferir na diferença, isto é, uma diferença que rompe com o culto da essência (em que uma palavra é sempre ela mesma em termos de conteúdo), mas também das unidades de identidade e dominância previamente coesas entre um Eu e um Outro. No texto, essas pretensas unidades originárias podem se confundir e produzir um Eu-quase-outro.

Para Derrida, os diferentes significados de um texto podem ser descobertos decompondo a estrutura da linguagem dentro do qual ele é escrito, de tal forma que, em suma, a desconstrução é uma prática de leitura que investiga as condições de possibilidade dos sistemas conceituais que animam o texto. Disso decorrem duas condições importantes, que produzem o texto como um elemento de duas camadas. Em primeiro lugar, o desconstrucionismo implica que nenhum texto pode ser apreendido em sua totalidade, dado que toda formulação de uma totalidade supõe outra totalidade virtual possível, que pode ser formulada a partir de uma nova desconstrução. O texto não é, portanto, um sistema fechado. Em segundo lugar, toda construção de sentido é alegórica e, assim sendo, carece de univocidade e de obviedade; nega-se, portanto, a denotação pura.

Poderíamos imaginar o texto, então, como um elemento formado pela relação entre duas camadas: uma que é da ordem das palavras e da mensagem e outra que é da ordem da plasticidade e da corporalidade dos conceitos que organizam e estruturam a possibilidade da mensagem, isto é, que a tornam plausível. Forma-se, portanto, uma crítica ao logocentrismo que é retomada por Spivak como uma precaução epistemológica: o fato de que existe uma série de conceitos e ideias que dão ao ser humano uma espécie de realidade, e que dominam e hierarquizam a possibilidade textual. Esses conceitos e ideias existem antes que as palavras e o texto, e os preenchem para que uma mensagem emerja. Frente a isso, a desconstrução não funda nenhum tipo de programa político. Enquanto sugestão de que construtos-chave da analítica e da descrição como “a classe trabalhadora”, “o subalterno” e “a mulher” não tem referentes pragmáticos, a desconstrução é, no sentido do que viemos dizendo, uma precaução política.

Isso é fundamental para a proposta de leitura desconstrucionista de Paul de Man, um crítico literário belga que foi o orientador de doutorado de Spivak. Para Man (2002MAN, Paul de. 2002 The Resistance to Theory. Minneapolis, University of Minnesota Press.), desconstruir implica uma leitura marcada pela ênfase em como o significado de um texto literário não é estável ou transparente, mas radicalmente indeterminado e aberto a novos questionamentos. Man (1983MAN, Paul de. 1983. Blindness and insight: essays in the rhetoric of contemporary criticism. London, Routledge.) argumenta que todo texto contém uma série de pontos cegos que conduzem a diferentes interpretações. Esses pontos requerem, para que passemos por eles de forma inquestionada ao longo da leitura, que comunguemos de certos pressupostos. O autor é uma influência inicial importante para o pensamento de Spivak, que, nos estudos dos arquivos coloniais, demonstra o valor político da desconstrução ao focar nos pontos cegos retóricos que estabilizam determinadas noções de verdade e realidade através do texto. Trata-se, portanto, de uma crítica do texto, mas também do edifício de pressupostos sobre o qual o texto se fabrica. Assim que, em sua crítica literária, o procedimento seguido por Spivak é o de buscar os elementos textuais que moldam nosso entendimento do mundo social, examinando o modo em que uma ideia de mundo real é constituída por uma rede de textos; não necessariamente como produto direto do texto, mas dos supostos sobre os quais suas linhas se assentam.

Ao transladar a proposta desconstrucionista do campo da crítica literária para o do discurso político, Spivak produz uma afirmação da qual não podemos nos furtar: não existe linguagem transparente que seja capaz de falar pela subalternidade. Em outro sentido, a própria subalternidade é um produto desta linguagem que se pretende transparente. O que ela faz, no entanto, é eclipsar, passar por alto e apagar realidades outras e assimétricas ao passar a lê-las e inscrevê-las com conceitos hegemônicos.

BHUVANESWARI BHADURI

Voltemos ao caso de Bhuvaneswari Bhaduri, a jovem que se suicidou menstruada na casa de seu pai. Para Spivak, o que Bhuvaneswari faz ao se suicidar é uma declaração através do corpo. Para tanto, ela reorganizou as relações entre os termos que dão lugar à estrutura do mito de Sati e ao ritual do sacrifício da viúva. Ao se sacrificar menstruada, a garota nega um discurso da pureza que a associa, como objeto, à subjetividade masculina. Estar menstruada a separa dos suicídios que se cometiam em caso de gravidez ilícita, mas também a desassocia de um homem, renunciando ao lugar da viúva que se autoimola para se subjetivar através do marido. Em termos da plasticidade dos conceitos hinduístas reescritos por uma ação feminista, diz Spivak, Bhuvaneswari escreve no corpo que não se identifica, enquanto sujeito que comete suicídio, com aquelas mulheres que se autoimolavam na pira do marido. Não é essa, pois, a condição de subjetivação de Bhuvaneswari. Ela recusa a mediação masculina que é compartilhada no rito e no mito. Ela falou de forma explícita através do corpo sobre uma autoimolação que é, no momento em que se livra das condições masculinas de produção da mulher produzidas pelo patriarcado da tradição hindu, fruto da sua livre escolha enquanto sujeito.

Duas gerações mais tarde, a sobrinha-neta diz, no entanto, que ela se suicidou por conta de um romance ilícito e, no discurso, reinscreve a possibilidade de que o ato de Bhuvaneswari seja entendido a partir da mediação de um homem e da condição de boa esposa. O patriarcado contido na plasticidade dos conceitos que animam a tradição hindu desvia a mensagem, e a sobrinha-neta é incapaz de ler o corpo-texto de sua tia-avó. A mulher subalterna pode falar na morte através do corpo, mas ainda assim, nós não somos capazes de completar sua mensagem, e a reinscrevemos, como representação, à gramática da hegemonia. Neste sentido, ela não pode falar.

INTELECTUAL PÓS-COLONIAL: ATIVISTA IMAGINATIVO

De forma sucinta, Spivak chama a atenção para a impossibilidade de pretender que o subalterno fale através do discurso do intelectual pós-colonial. Pensar que é possível recuperar sua autonomia em seus próprios termos significaria supor que a identidade do subalterno é algo que se autocontém e que, assim sendo, pode ser pensada à margem de toda relação (Claros, 2011CLAROS, Luis. 2011. Colonialidad y violencias cognitivas. Ensayos político-epistemológicos. La Paz, Muela del Diablo Editores.: 24). Tal empreitada configuraria, nos termos de Spivak, um retorno ingênuo e infrutífero ao essencialismo5 5 Daí que não surpreenda a desconfiança que perguntas ontológicas feitas em termos de “o que são as coisas”, como sugerem Holbraad e Pedersen (2017: 14), podem ocasionar. Ou, ainda, a ideia de que a conceitualização, tida como eixo da proposta dos autores, se dê de algum modo produzindo a emersão de um terceiro conceito a partir do encontro e do deslocamento que as categorias da diferença produzem sobre as dos etnógrafos. Cabe perguntar-nos: são os conceitos dos outros que transformam os conceitos antropológicos, como se os primeiros fossem de fato recuperáveis em seus termos para, então, transformar os segundos e conduzir a emersão de um terceiro? Que tipo de transparência da diferença - e de si, por tabela - se imagina possível quando assumimos, partindo de uma noção de “alteridade radical”, que perguntas ontológicas resolvem de passo problemas epistemológicos? . Em seu lugar, a autora evidencia a relacionalidade absoluta do fenômeno, depositando uma ênfase na subalternidade que implica menos a recuperação de uma consciência à qual se atribui uma posição metafísica (o subalterno é) do que a necessidade de operar deslocamentos nas formas de conhecimento enquadradas pela epistemologia moderno-ocidental (o que acontece com o “nós” quando pensamos a natureza da nossa diferença com o “outro”).

Quando insiste sobre a relevância estratégica da subalternidade, Spivak aponta para o fato de que os subalternos são uma medida de precaução contra a violência epistêmica da empreitada colonial, mostrando os limites do conhecimento eurocêntrico para, então, empurrá-lo para fora de si, transtornando-o. Assim sendo, o póscolonialismo de Spivak não quer denotar simplesmente o período histórico posterior aos processos de independência nacional, mas a necessidade ética da produção de discursos de deslocamento que, ao reescreverem as trajetórias das relações de poder que se inscrevem no conhecimento ocidental (Said, 2011SAID, Edward W. 2011. Cultura e imperialismo. São Paulo, Companhia de Bolso .), recodificam as formas em que o colonialismo se desdobra em uma política do ser que fixa lugares (se é subalterno em relação ao colonialismo, afinal). O lugar da crítica pós-colonial de Spivak é, portanto, o da descolonização do conhecimento ocidental tomando a sério outros tipos de conhecimentos. Neste processo, não há lugar para essencialismos.

Como argumenta Claros (2011CLAROS, Luis. 2011. Colonialidad y violencias cognitivas. Ensayos político-epistemológicos. La Paz, Muela del Diablo Editores.: 28),

[...] a singularidade de tal crítica [pós-colonial] é que o questionamento da superioridade do conhecimento ocidental não conduz a um relativismo cultural, mas as próprias concepções de diferença cultural são submetidas a crítica, colocando ênfase nos processos de hibridação e insistindo sobre a origem colonial da produção discursiva das diferenças, negando deste modo a ideia de autenticidades culturais.

A crítica ao essencialismo se desdobra, então, numa política do ecletismo, da mistura, da hibridez, do variegado, do manchado e do sintético mas disjuntivo. O fundamento dessa ação é deslocamento e tradução, de tal modo que o híbrido se configura como uma crítica epistemológica que produz um idioma do entre-meio, do quase-outro, que, mais do que manter separadas as condições ontológicas de colonizador e colonizado, as confunde, abrindo espaço para a tradução, isto é, “um lugar de hibridez, figurativamente falando, em que a construção de um objeto político que é novo, nem um nem outro, aliena nossas expectativas políticas, e transforma, como deve fazê-lo, as próprias formas do nosso reconhecimento do momento da política” (Bhabha, 2013BHABHA, Homi K. 2013. El lugar de la cultura. Buenos Aires, Manantial.: 45, minha tradução).

Assim, se a violência epistêmica à qual se refere Spivak silencia e impossibilita, no contexto colonial, os momentos em que os sujeitos irrompem como novidade radical, o trabalho da tradução, como política do manchado, é a produção das condições de possibilidade, explorando as limitações e potencialidades das nossas compreensões. Por isso aqui, e à diferença do que fazem parecer Holbraad e Pedersen (2017HOLBRAAD, Martin; PEDERSEN, Morten A. 2017. The Ontological Turn: An Anthropological Exposition. Cambridge, Cambridge University Press.: 12) no esforço de positivar sua proposta de conceitualização, a desconstrução assume o papel de um método propositivo. Parece se tratar de uma forma de implicar-se com o colonialismo em branco do nosso pensamento não para descartá-lo (na medida em que se cria uma terceira coisa enquanto conceito) mas para enfrentá-lo. A intenção de Spivak não parece ser a de resolver tais problemas através da proliferação de novos conceitos (o que do ponto de vista da desconstrução implicaria novos problemas), mas o de implicar-se nele para respondê-lo e imaginar possíveis com aquilo que podemos fazer através ou apesar dele - talvez algo que poderíamos chamar de um pensamento não apenas colonial, para retomar a expressão de Marisol de la Cadena (2017DE LA CADENA, Marisol. 2017. “Matters of method; Or, why method matters toward a not only colonial anthropology”. HAU: Journal of Ethnographic Theory, v. 7: 1-10.).

Neste contexto, toda tarefa epistemológica é, por definição, política. Não da política como querela pelo Estado, mas como o momento de disputa pelo que merece ser tomado em conta (Rancière, 2018RANCIÈRE, Jacques. 2018. O desentendimento. São Paulo, Editora 34.). Nos termos em que Spivak coloca a questão, toda disputa pela produção do mundo é uma luta política porque toda violência epistêmica é, na mesma medida, um recorte violento de possibilidades, que apaga plausibilidades e as retira da disputa em torno da constituição do mundo e de como ele pode ser mobilizado. A epistemologia, como crítica das formas de conhecer e narrar mundos, é parte da luta política porque não há ontologia que prescinda de epistemologia, dado que mundos só podem ser acessados e minimamente compreendidos através da negociação das categorias através das quais eles podem ser conhecidos (de la Cadena, 2015DE LA CADENA, Marisol. 2015. Earth Beings: Ecologies of Practice across Andean Worlds. Durham & London, Duke University Press.).

Assim, toda exploração ontológica que pretenda tratar dos estatutos das coisas e dos conceitos em mundos de alteridade, bem como produzir conexões parciais através de controles de equívoco, deve ser, concomitantemente, uma crítica epistemológica no sentido que se desdobra da proposta pós-colonial de Spivak, isto é, um marco de contingência radical que mostre os limites de uma enunciação em relação às possibilidades de montagem de mundos. Toda desestabilização do que é depende, nos termos de nossa própria epistemologia, de uma transformação do que se conhece; não há texto que não suponha seu branco, o leque de plausibilidade sobre o qual ele roda. Daí que, na mesma medida em que não existe mundos sem sujeitos (Lima, 1996LIMA, Tânia Stolze. 1996. “O dois e seu múltiplo: reflexões sobre o perspectivismo em uma cosmologia tupi”. Mana Estudos de Antropologia Social, v. 2, n. 2: 21-47.), de tal forma que ontologias se formam de modo pronominal (Viveiros de Castro, 1996VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. 1996. “Os pronomes cosmológicos e o perspectivismo ameríndio”. Mana Estudos de Antropología Social, v. 2, n. 2: 115-144.), tampouco existe narrativa sem um sujeito que se forme a partir de determinado pensamento (Derrida, 1973DERRIDA, Jacques. 1973. Gramatologia. São Paulo, Perspectiva, Edusp.; Spivak, 2014SPIVAK, Gayatri C. 2014 Pode o subalterno falar? Belo Horizonte, Editora UFMG.). Quando uma narrativa transparente pretende se erigir, reclamando a objetividade do mundo a partir de um discurso descentrado, o resultado é uma purificação do outro: tanto uma faxina ontológica (Almeida, 2013ALMEIDA, Mauro W. B. de. 2013. “Caipora e outros conflitos ontológicos”. R@u: Revista de Antropologia Da UFSCar, v. 5, n. 1: 7-28.), quanto uma objetivação epistemológica (Das, 1997DAS, Veena. 1997 “La subalternidad como perspectiva”. In: RIVERA CUSICANQUI, Silvia; BARRAGÁN, Rossana. (org.), Debates PostColoniales: una introducción a los Estudios de la Subalternidad. La Paz, Editorial Historias/Ediciones Aruwiyiri/SEPHIS, pp. 279-292.) que, como bem argumenta Spivak, reduz o outro a um efeito do discurso.

Neste sentido, o lugar do intelectual pós-colonial, segundo Spivak, deve incluir não só a empreitada da reflexividade do pesquisador (Asad, 1973ASAD, Talal. 1973. Anthropology and the colonial encounter. London, Ithaca Press.; Rabinow, 1977RABINOW, Paul. 1977. Reflections on Fieldwork in Morocco. Berkeley, University of California Press.) ou da hiper-reflexividade da relação entre ele e o nativo (Swancutt e Mazard, 2016SWANCUTT, Katherine; MAZARD, Mireille. 2016 “Introduction. Anthropological knowledge making, the reflexive feedback loop, and conceptualizations of the soul”. Social Analysis, v. 60, n. 1: 1-17.), mas também uma forma de pensar e atuar de modo precavido. Daí a importância da desconstrução como medida de precaução, como vimos. Isto significa que o/a intelectual pós-colonial deve atentar para os detalhes epistemológicos do conhecimento que produz. Nestes termos, o problema da epistemologia é que aquilo que sabemos não está desconectado do modo em que sabemos, isto é, do modo em que as coisas que conhecemos se tornam conhecíveis. Assim, não basta explorar um problema, é preciso atentar para o modo em que o fazemos e como o produzimos e o cerceamos com nossa linguagem. O desafio é atentar para a genealogia das categorias e para o esforço de reinvenção. De onde vem as noções de classe e consciência, por exemplo? O que elas implicam em termos de tornar algo um elemento conhecível?

Atentar para nossa linguagem conceitual, dando conta de sua plasticidade e do seu branco textual, implica levá-la ao limite, como também argumenta Strathern (1999STRATHERN, Marilyn. 1999 No limite de uma certa linguagem. Mana Estudos de Antropologia Social, v. 5, n. 2: 157-175.), e, a rigor, transtorná-la e torcê-la para recriá-la. Para Spivak (2012), o ato de escrever é uma forma de criação. Assim, o intelectual pós-colonial deve ser um “ativista imaginativo” que se vale da escrita não para oferecer definições e, portanto, produzir afirmações metafísicas, ainda que tidas como recursos metodológicos e/ou heurísticos, como em “o pó é poder” (Henare et al., 2007HENARE, Amiria; HOLBRAAD, Martin; WASTELL, Sari. 2007 “Introduction: Thinking Through Things”. In HENARE, Amiria; HOLBRAAD, Martin; WASTELL, Sari. (org). Thinking Through Things: Theorising Artefacts Ethnographically. London and New York, Routledge, pp. 1-31.: 6), mas para criar possíveis a partir da experiência. Essa é uma postura ética que, na trajetória da autora, emerge da figura da mulher subalterna enquanto precaução e, de certo modo, do gênero como cláusula para a teoria social. Essa é uma precaução para a qual os principais proponentes da “virada ontológica” dispensam pouca atenção, insistindo em apresentar a transformação das suas descrições etnográficas enquanto uma substituição de perguntas e enunciados sobre representação (a coisa representa) por enunciações e questões ontológicas (a coisa é). A teoria pós-colonial deve ser tanto uma crítica epistemológica e desconstrucionista como uma prática inventiva da experiência. Aquele que produz definições simplesmente entrega princípios que serão, hora ou outra, excedidos ou desmantelados pelas especificidades da experiência, tornando-se, em seguida, uma afirmativa encapsuladora, para não dizer normativa.

Como bem argumentam Rivera Cusicanqui (2010: 62) e Nahuelpán (2013NAHUELPÁN, Hector. 2013. “El lugar del ‘indio’ en la investigación social. Reflexiones en torno a un debate político y epistémico aún pendiente”. Revista Austral de Ciencias Sociales, n. 24: 71-91.: 78), não existe produção conceitual com efeito descolonizador sem uma prática descolonizadora. Isto é, toda teoria da descolonização é, na mesma medida, uma ação que resulta da força e da criatividade histórica das lutas de interpelação do colonialismo. Neste sentido, se a antropologia se torna, como argumentam de la Cadena, (2017DE LA CADENA, Marisol. 2017. “Matters of method; Or, why method matters toward a not only colonial anthropology”. HAU: Journal of Ethnographic Theory, v. 7: 1-10.), Lima (2011LIMA, Tânia Stolze. 2011. “Por uma cartografia do poder e da diferença nas cosmopolíticas ameríndias”. Revista de Antropologia, v. 54, n. 2: 601-646.) e Viveiros de Castro (2016VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. 2016. Metaphysics as Mythophysics: Or, Why I Have Always Been an Anthropologist. In: CHARBONNIER, Pierre; SALMON, Gildas; SKAFISH, Peter (org.), Comparative Metaphysics: Ontology After Anthropology, London & New York: Rowman & Littlefield, pp. 249-274.), entre outros, uma teoria-prática de descolonização do pensamento, é porque a atividade de criação das antropólogas está em torcer o pensamento em branco através da criatividade conceitual da alteridade enquanto mote para implicar-se em seu branco textual, isto é, em seus pressupostos ontológicos. Assim, se conceitos como “perspectivismo ameríndio” são belíssimos esforços de criação e síntese teórico-etnográficos, sua produção depende, antes disso, do fato de que se constitua como a expressão de um mecanismo de criação e especulação através do qual os ameríndios criam e se relacionam com a alteridade (Kopenawa e Albert, 2015KOPENAWA, Davi; ALBERT, Bruce. 2015. A queda do céu: palavras de um xamã yanomami. São Paulo, Companhia das Letras.; Lima, 2018LIMA, Tânia S.. 2018 “A planta redescoberta: um relato do encontro da ayahuasca com o povo Yudjá”. Revista Do Instituto de Estudos Brasileiros , vol. 69: 118-136.).

É neste sentido que, para Spivak (2012), o esforço de produção teórica deve ser indicativo. Abandonando a necessidade de solidificar prerrogativas sobre o mundo, a intenção é que a teorização seja uma “educação estética”, um treino imaginativo para uma performance epistemológica que transforme o modo em que se sabe, produzindo o acesso a novos objetos de conhecimento e a mundos em constante transformação (Spivak, 2012). Treinar a imaginação para conhecer e produzir é oferecer, a nós mesmas, uma abertura ontológica; trata-se da busca de novas formas de pensar e novos problemas sobre os quais pensar. Isto implicaria, no limite, mudar a forma como entendemos as coisas e a forma que as coisas assumem para nós, buscando a comensurabilidade e a tradução recíproca que altera o esquema de plausibilidade, transformando o branco do texto a partir do qual o nosso mundo ganha forma e se atualiza.

Nos termos de Derrida, a proposta continua sendo a de pensar o pensamento, a condição de existência de sujeitos. É aqui que se insere a necessidade do pós-colonial: se o colonialismo é o texto em branco do pensamento europeu, como argumenta Spivak, o esforço é respondê-lo e transformá-lo onde ele se coloca, em sua virtualidade (Cesarino, 2018CESARINO, Pedro de Niemeyer. 2018. “Virtualidade e equivocidade do ser nos xamanismos ameríndios”. Revista Do Instituto de Estudos Brasileiros, v. 69: 267-288.). Para isso, o trabalho da antropologia é claro: transtornar a nossa plasticidade conceitual com a criatividade que se experimenta e que afeta através da diferença como forma de reconhecermos e enfrentarmos o colonialismo-em-branco do nosso pensamento e para que se opere, com todos os limites que tal empreitada supõe, algum nível de dissolução da subalternidade. Não se pode falar pelo subalterno, mas pode-se trabalhar contra a produção de subalternidade.

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  • 1
    A tradução brasileira foi feita por Sandra Regina Goulart de Almeida, Marcos Pereira Feitosa e André Pereira Feitosa, e publicada pela Editora da UFMG.
  • 2
    A ideia de que essa alteridade radical não seja assim tão radical, pelo menos no que diz respeito à natureza da diferença no interior de algumas propostas ontológicas é demonstrada por Heywood (2020HEYWOOD, Paolo. 2020 “’All the Difference in the World’: the Nature of Difference and Different Natures”. Philosophy of the Social Sciences, v. 50, n. 6: 543-564.). Blaser (2018BLASER, Mario. 2018. “Uma Outra Cosmopolítica é Possível?” R@u: Revista de Antropologia Da UFSCar , v. 10, n. 2:14-42.) também levanta algumas considerações importantes sobre isso.
  • 3
    De modo geral, diz-se que as coisas não representam, mas são. “O pó é o poder”, e não o representa, é o exemplo, extraído das descrições de Holbraad, que Henare et al. (2007HENARE, Amiria; HOLBRAAD, Martin; WASTELL, Sari. 2007 “Introduction: Thinking Through Things”. In HENARE, Amiria; HOLBRAAD, Martin; WASTELL, Sari. (org). Thinking Through Things: Theorising Artefacts Ethnographically. London and New York, Routledge, pp. 1-31.) escolhem para demonstrar o ponto. A propósito de como formas de enunciação entendidas como ontológicas têm se proliferado nas descrições etnográficas e o tipo de problemas que elas nos colocam, conferir o artigo de Cesarino (2018CESARINO, Pedro de Niemeyer. 2018. “Virtualidade e equivocidade do ser nos xamanismos ameríndios”. Revista Do Instituto de Estudos Brasileiros, v. 69: 267-288.).
  • 4
    Adicionalmente, vale a pena mencionar a proposta de Holbraad (2003HOLBRAAD, Martin. 2003. “Estimando a necessidade: os Oráculos de Ifá e a verdade em Havana”. Mana Estudos de Antropologia Social, v. 9, n. 2: 39-77.: 44) de uma antropologia enquanto exercício ontográfico, isto é, “[...] de mapear as premissas ontológicas do discurso nativo”. Ou, ainda, a de uma “antropologia ontológica” (Holbraad et al., 2014HOLBRAAD, Martin; PEDERSEN, Morten; VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. 2014. “The Politics of Ontology: Anthropological Positions.” Cultural Anthropology, Theorizing the contemporary, Fieldsights 13.): da antropologia como ontologia, apontando para a conciliação de diferenças enquanto uma derivação ontológica.
  • 5
    Daí que não surpreenda a desconfiança que perguntas ontológicas feitas em termos de “o que são as coisas”, como sugerem Holbraad e Pedersen (2017HOLBRAAD, Martin; PEDERSEN, Morten A. 2017. The Ontological Turn: An Anthropological Exposition. Cambridge, Cambridge University Press.: 14), podem ocasionar. Ou, ainda, a ideia de que a conceitualização, tida como eixo da proposta dos autores, se dê de algum modo produzindo a emersão de um terceiro conceito a partir do encontro e do deslocamento que as categorias da diferença produzem sobre as dos etnógrafos. Cabe perguntar-nos: são os conceitos dos outros que transformam os conceitos antropológicos, como se os primeiros fossem de fato recuperáveis em seus termos para, então, transformar os segundos e conduzir a emersão de um terceiro? Que tipo de transparência da diferença - e de si, por tabela - se imagina possível quando assumimos, partindo de uma noção de “alteridade radical”, que perguntas ontológicas resolvem de passo problemas epistemológicos?
  • FINANCIAMENTO:

    Agradeço à Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP) pela bolsa de doutoramento que torna possível esta pesquisa (Processo 2018/00894-5).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    20 Ago 2021
  • Data do Fascículo
    2021

Histórico

  • Recebido
    26 Jul 2018
  • Aceito
    08 Abr 2021
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