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A construção da personagem mãe: considerações teóricas sobre identidade e papel materno

The construction of mother's personage: theoretical considerations about identity and maternal role

Resumos

O trabalho traz uma reflexão sobre a construção do papel materno na identidade da mulher que vivencia o processo da maternidade. Para isso, resgatouse da literatura construtos teóricos defendidos por alguns autores, traçando paralelos e contrapontos entre eles e as implicações que acarretam, ao se eleger ou adotar referenciais teóricos ou conceitos, no processo de cuidar.

Maternidade; Identidade; Papel materno; Enfermagem materno-infantil


This work is a reflection about the construction of the maternal role into the identity of the woman's identity who experiences the maternity process. Therefore, it sought from literature, theoretical frameworks of some authors, outlining parallels and confronts among them and the implications which they bring about, in the care process when we choose or adopt one theoretical references or concepts.

Maternity; Identity; Maternal role; Maternal child nursing


ARTIGO ORIGINAL

A construção da personagem mãe: considerações teóricas sobre identidade e papel materno

The construction of mother's personage: theoretical considerations about identity and maternal role

Amélia Fumiko Kimura

Enfermeira. Docente. Assistente do Departamento de Enfermagem Materno-Infantil e Psiquiátrica da Escola de Enfermagem da Universidade de São Paulo. Aluna do Doutorado Interunidades da Escola de Enfermagem da USP e Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto,USP

RESUMO

O trabalho traz uma reflexão sobre a construção do papel materno na identidade da mulher que vivencia o processo da maternidade. Para isso, resgatouse da literatura construtos teóricos defendidos por alguns autores, traçando paralelos e contrapontos entre eles e as implicações que acarretam, ao se eleger ou adotar referenciais teóricos ou conceitos, no processo de cuidar.

Unitermos: Maternidade. Identidade. Papel materno. Enfermagem materno-infantil.

ABSTRACT

This work is a reflection about the construction of the maternal role into the identity of the woman's identity who experiences the maternity process. Therefore, it sought from literature, theoretical frameworks of some authors, outlining parallels and confronts among them and the implications which they bring about, in the care process when we choose or adopt one theoretical references or concepts.

Uniterms: Maternity. Identity. Maternal role. Maternal child nursing.

O parto é considerado um processo social, porque afeta a relação entre o marido e a mulher, o grupo em que ambos estão inseridos, levando, também, a uma redefinição da identidade da mulher que passa, agora, a assumir o papel de mãe (KITZINGER, 1978).

A redefinição dessa identidade é decorrente dos novos papéis sociais vividos pela mulher e está condicionada às modificações que ocorrem nos aspectos biológicos.

Segundo RUBIN (1984), autora que introduziu os conceitos "identidade materna e aquisição do papel materno" na ciência da enfermagem em meados da década de 60, a incorporacão da identidade materna relaciona-se, implicitamente, ao fato da mulher dar à luz o filho. Para ela, a gravidez é um período de preparação para a mulher tornar-se mãe no contexto psicossocial.

Para RUBIN (1984) o núcleo da identidade materna reside nos conceitos do EU - mãe e VOCÊ - filho e como ambos relacionam-se e influenciam-se. Durante a gestação, a identidade materna é construída por meio de uma imagem idealizada de si como mãe e, também, do bebê como filho. No período pós-parto, a identidade materna implica mudança no relacionamento consigo e com filho, que passa de uma imagem idealizada para uma realidade concreta. Portanto, a identidade materna implica construir um relacionamento baseado na sua vinculação com o filho. Essa autora, cita, ainda, que, a despeito da forte natureza cognitiva. a identidade materna tem um componente afetivo expresso pela empatia e responsabilidade materna em relação ao filho.

Apesar de, rigorosamente, estar relacionada à identidade materna, a aquisição ou incorporação do papel materno envolve representações culturalmente definidas de comportamentos associados com o papel materno (RUBIN, 1984).

A concepção epistemológica utilizada por CIAMPA (1984), para estudar a questão da identidade, difere da utilizada por RUBIN (1984) e está fundamentada na dialética. Para CIAMPA (1984), não existe uma identidade dada pela natureza. A identidade é um processo que é construído e conhecido pela ação, ou seja, através da atividade do indivíduo.

FRIEDMAN (1992), baseando-se nos conceitos de Ciampa, define a identidade como "um processo contínuo de produção de si mesmo, composto a partir da rede de relações que se estabelece entre o indivíduo e o mundo, determinado pelos conteúdos que definem essas relações, de onde se despregam as representações que a formam".

A identidade é composta por articulações de vários personagens e ela é posta sob a forma de personagem. A personagem é um momento da identidade que expressa as diversas formas que esta pode assumir, particularmente através dos papéis sociais atribuídos ao indivíduo - mãe, filho,etc. Nessa perspectiva, é necessário ver o indivíduo não mais isolado, mas entendê-lo numa relação. Portanto, identidade é a articulação da diferença e da igualdade, (CIAMPA 1984; 1993).

Desse modo, ao atribuir a alguém o papel de filho, implica, ao mesmo tempo, que alguém assume o papel de mãe, pressupondo que ambos se manifestarão de acordo com os respectivos papéis.

Ao se contrapor os referenciais teóricos de identidade propostos por Rubin e Ciampa, pode-se constatar que os pressupostos de Rubin para definir "identidade materna", são os mesmos em Ciampa para o termo personagem, embora ambos acreditem que a construção da identidade faça-se na relação do indivíduo com um outro ou outros.

Para FRIEDMAN (1992) a identidade é expressa através da personagem, ao qual subjaz um componente representacional que a determina. Portanto, por trás da produção de uma personagem está a pressuposição dessa personagem que garante a possibilidade de sua representação.

CIAMPA (1993) coloca que não se pode isolar e separar, de um lado, todo um conjunto de elementos biológicos, psicológicos e sociais, que podem caracterizar um indivíduo, e da representação desse indivíduo, porque há uma interpenetração desses dois aspectos, ou seja, não há como separar a identidade pressuposta e a representação desse indivíduo.

No caso da mulher, quando vivencia o processo da gravidez, ela se identifica com uma identidade pressuposta de mãe, o que posteriormente como representação será interiorizado e objetivado socialmente. Existe uma identidade pressuposta, que é reposta a cada momento. Nesse contexto, a maternidade é um fenômeno social.

Quando ocorre reposição da identidade pressuposta, através de rituais sociais ou, ainda, pela reposição das personagens estereotipadas, retirando-se o caráter de historicidade, e gerando-se, a identidade mito; e tem-se o processo chamado de mesmice (CIAMPA 1984; 1993).

RUBIN (1984) afirma que a " identidade materna" é construída durante a gravidez, por meio de uma imagem idealizada que a mulher tem de si como mãe e do bebê como filho. Essa perspectiva leva-nos a concluir que, para essa autora, a construção da personagem mãe, durante a gestação, vai-se dando pela reposição de uma identidade pressuposta. No período pós-parto, há um reforço do próprio grupo social, no qual a mulher está inserida, em identificá-la no seu papel de mãe, já que, agora, há a materialidade do bebê - filho, além das atividades (ações) relacionadas ao papel maternal, que a mulher passa a assumir. Tais atividades podem ser, apenas, reposições dos papéis socialmente determinados ou manifestações criativas e singulares, diferentes daquelas estabelecidas, socialmente, para as mães.

CIAMPA (1994) utiliza o termo metamorfose, quando o indivíduo age sendo sujeito da sua própria história.

Para que a mesmice não se reproduza ou manifeste-se de forma continua, é necessário que se elimine a identidade pressuposta e surja o outro "outro", que também sou eu, havendo a negação da negação de mim, superando, então, minha identidade pressuposta, desenvolvendo uma identidade posta como metamorfose constante. Neste sentido, havendo possibilidades de toda a humanidade contida em mim concretizar-se (CIAMPA, 1994).

Nesse sentido, MERCER (1981), propõe que a mulher, ao tornar-se mãe, vivencie, desde o inicio, os vários estágios na aquisição das tarefas e papéis maternos, incluindo, entre estas, as rígidas regras e diretrizes externas estabelecidas, até evoluir, finalmente, para a interpretação própria do papel materno; isso ocorre, concomitantemente, com o desenvolvimento da sua auto confiança e autonomia e da produção de um estilo próprio de atividade a ser desempenhada pela mãe.

Fica evidenciado, pela proposição de MERCER (1981) que, na construção da personagem mãe, os aspectos da cognição, afetividade, motor e social estão implícitos, e que a personagem mãe, a princípio, necessita apropriar-se de uma identidade pressuposta (papel pré-estabelecido socialmente). E, na medida em que vai dominando esses papéis, adquire possibilidades de imprimir um caráter próprio à sua atividade, superando a simples reposição da identidade pressuposta.

Há uma imagem da maternidade aderida na mentalidade dos indivíduos do grupo social em geral e, portanto também, na da mulher que vivencia o processo gravídico-puerperal. Como bem lembra MALDONADO (1989), "quando a mulher se torna mãe, tem como tarefa principal forjar uma imagem de mãe que lhe seja própria". No contexto concreto, objetivado na vivência da mulher expressa em seu comportamento no desempenho do papel materno, há um processo de "identificação" com o modelo de ser mãe, o mais familiar para cada um de nós - a nossa própria mãe, ou a pessoa que preencheu a função maternal. No caso de haver identificação, as atividades maternas são reproduzidas, ou repetidas de maneira semelhante ao modo de cuidar recebido. Quando não, ocorre uma identificação às avessas, reações comportamentais compensatórias que evitam o modelo recebido, por contestar ou criticar o modelo de "maternagem" ao qual foi submetida; convertendo-se em nova forma de rigidez, para se diferir ou contrastar-se do modelo recebido (MALDONADO, 1989).

No plano psíquico da puérpera, além da identificação com a figura materna, há, ainda, a identificação com o filho. A mulher revivencia sensações da sua própria experiência infantil de dependência e fragilidade, o que a qualifica para identificar-se com as sensações experimentadas pelo seu recém-nascido. Essa situação não a impede de exercer a função materna, que é sinalizada quando há um predomínio do desejo de conhecer e cuidar do filho.

Esse exercício de repensar os aspectos teóricos, que envolvem a construção da identidade materna, é necessário e deve-se dar de uma forma continua, particularmente junto aos profissionais que lidam com a mulher que vivencia o processo de maternidade.

Continuar cuidando ou dispor-se a cuidar de mães, numa perspectiva de olhar o indivíduo como um ser em metamorfose, exige, também, que os profissionais visualizem não mais uma imagem idealizada e cristalizada do papel materno e, portanto, abandonar a avaliação do processo de aquisição deste papel dentro da polaridade adequado versus inadequado. Assumir o paradigma de que o homem é um ser em constante mudança, que imprime e expressa sua criatividade e singularidade em sua atividade é, também, assumir formas de cuidar compatíveis com essa visão, de processo continuo de construção de identidade e que traz, no seu interior, as personagens, dentre elas a de ser mãe. Nesse movimento, o cuidar profissional transforma-se, qualitativamente, ora recriando os modelos já conhecidos, ora exigindo formas inovadoras na dependência da interação entre o cuidador e a mulher/mãe (e seus significantes), que se torna participante ativa do processo de cuidar. Dessa forma, o cuidar deixa de ser algo repetitivo, massificante ou alienador para todos os que estão envolvidos nesse processo.

  • CIAMPA, A. C. A estória do Severino e a história da Severina São Paulo, Brasiliense, 1993.
  • CIAMPA, A. C. Identidade. In: LANE,S.T.M.: CODO,W. (org.) Psicologia Social: o homem em movimento. São Paulo, Brasiliense, 1984. cap.2, p.58-75.
  • FRIEDMAN, S. A construção do personagem bom falante São Paulo, 1992. 218p. Tese (Doutorado) - Pontificia Universidade Católica de São Paulo.
  • KITZINGER,S. Mães: um estudo antropológico da maternidade. Lisboa, Editorial Presença, 1978. cap.5, p.85-112: 0 parto - um acto social.
  • MALDONADO, M. T. Maternidade e paternidade Petrópolis, Vozes, 1989. cap.2, p.28-34: Vicissitudes da relação mãe/filha no ciclo grávido-puerperal.
  • MERCER, R.T. A theoretical framework for studying the factors that impact on the maternal role. Nurs. Research, v.30 ,n.2, p.73-77, 1981.
  • RUBIN, R. Maternal identity and the maternal experience New York, Springer, 1984.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    15 Mar 2010
  • Data do Fascículo
    Ago 1997
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