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Reflexões sobre a prática e o ensino da cirurgia

EDITORIAL

Reflexões sobre a prática e o ensino da cirurgia

Augusto Paulino Netto, TCBC-RJ

Membro Titular da Academia Nacional de Medicina

O Professor Augusto Paulino Soares de Souza formou-se em Medicina pela Faculdade Nacional de Medicina em 1899. Completam-se este ano, 100 anos de cirurgia em minha família.

"Uma qualidade ou virtude essencial ao cirurgião (como ao clínico) e que o aluno precisa, desde o começo de seu tirocínio clínico, habituar-se a exercer e a aperfeiçoar, é a bondade. O Prof. Leon Lefort disse que assim como Quintiliano definira o orador, o: vir bonus loquendi peritus (o homem bom perito na eloqüência), o cirurgião deve ter por definição o: vir bonus operandi peritus, isto é o homem bom e perito na arte de operar. A bondade deve ser completa, constante e universal. Isto é, absoluta, total, em relação a tudo e todos, sem exceção. Até com os próprios inimigos? Sim, até com os próprios inimigos. O homem pode ter inimigos, mas o médico, não. Quantos casos curiosos e comoventes poderia eu citar, que presenciei, que se passaram comigo!..."

"Deve ser constante: que pensar de cirurgiões que um dia estão com uma paciência evangélica e no dia seguinte com uma insensibilidade e uma irritabilidade que escandalizam? Estão errados. A continuidade da bondade caracteriza o bom cirurgião. Apesar das fadigas, das insônias, do desconforto, do trabalho fatigante, das decepções e das injustiças, o cirurgião permanece sempre igual a si mesmo. E não é isso um sinal de superioridade? O aluno de cirurgia deve se exercitar na bondade e na paciência com os doentes. É um verdadeiro exercício de ascese, que é um esforço para a perfeição."

“... A bondade do cirurgião deve se manifestar de diversas maneiras e adaptar-se ao meio. Assim, viril com os homens, paterna com os moços, cortês e respeitosa com as mulheres, materna com as crianças e condescendente com os velhos, que geralmente têm preconceitos e idéias médicas preestabelecidas e desconfiam sempre da terapêutica moderna..."

Prof. Augusto Paulino, TCBC

Aos alunos de clínica

MedicinaUniversitária-1941-Ano V -N. 2 págs. 12-17

"A defesa intransingente da vida humana que nos compete exercer, diariamente, no decorrer das grandes intervenções, constitui, a meu ver, um dos aspectos humanos mais relacionados com o ensino e a formação dos jovens cirurgiões."

Infelizmente, Augusto Paulino Filho morreu moço, antes de completar quarenta anos de cirurgia, e não tenho nenhuma citação filosófica sua para complementar a de seu pai e seu irmão. Já completei meus quarenta anos de cirurgião e sempre me guiei pela diretriz que pode ser resumida acima, de comportamento para com os pacientes, colegas e alunos.

O título desse editorial é o mesmo do escrito por Fernando Paulino em 1969. Tenho hoje quarenta anos de experiência, como meu avô e meu tio tinham quando escreveram o que se lê acima. Entretanto, as mudanças, não só na tecnologia, mas também na burocracia da medicina, tornaram o diagnóstico mais fácil em certo sentido, assim como o tratamento de alguns pacientes. Mas o relacionamento entre o médico e o paciente, que deveria ser cada vez mais aperfeiçoado, está cada dia mais difícil, devido principalmente ao fato de que os monitores e os burocratas, citados por Fernando Paulino, profeticamente, estão cada vez mais se colocando entre nós e os pacientes.

Mas "a fase evolutiva que se aproxima", também profetizada por Fernando Paulino, e que já está instalada, deve cada vez mais ser absorvida pelos médicos, no sentido de manter a bondade, incentivar o humanismo, respeitando os princípios básicos do respeito à vida humana, tão fundamental para o exercício da cirurgia. A máquina já domina o diagnóstico, está iniciando o domínio da terapêutica, e o doente, muitas vezes, é um número em um computador, tendo um mínimo de contato com seu médico, que freqüentemente passa a ser um digitador de teclado de computador, tendo pouco tempo para conversar com seu paciente, confortá-lo, discutir com ele em detalhes sua doença, suas possibilidades de tratamento, sua morte, etc. E, ultimamente, mal tem tempo para examiná-lo cuidadosamente, tomar uma história adequada e precisa, condição sine qua non para um diagnóstico bem feito.

O estudo, não só da medicina, mas de humanidades, em geral, de línguas, filosofia, o exercício do respeito ao ser humano, da bondade constante, do caráter profundamente humanista da medicina, deve ser cultivado por todos os médicos, a fim de manter viva a característica única de nossa profissão: o respeito aos nossos irmãos doentes, a dedicação total que devemos a eles, o carinho especial que somos obrigados a dar, sem esperar recompensa. Ela virá. O trabalho médico deve ser exercido porque é necessário e correto. A recompensa deve ser considerada sempre como decorrência desse trabalho adequado, e nunca como finalidade.

As palavras iniciais do Prof. Augusto Paulino, em 1942, ainda são verdadeiras hoje. A máquina nos possibilita facilidade de diagnóstico e tratamento, mas não transmite a bondade e o carinho, exercitando somente a atenção para que nós médicos analisemos com inteligência suas informações. E a atenção deve ser dirigida aos nossos pacientes, e não somente à máquina...

Após quarenta e dois anos de cirurgia, procuro incutir em meus alunos e residentes essas idéias, que não são minhas, mas universais, pois é a única maneira de nos livrarmos da burocracia e da máquina. Elas só existem porque nós, homens, as criamos. Devemos utilizar-nos delas com inteligência, mas nunca permitir que elas se utilizem de nós, pois sem bondade, carinho e atenção, não existe boa medicina.

"Na sala de operações o sentido de cooperação, de igualdade, respeito mútuo e disciplina atingem o extremo. A pessoa mais respeitada e pela qual todos se sacrificam mantém-se inerte e alheia aos acontecimentos que se desenrolam. Que exemplo sublime de solidariedade humana, de ética e de espírito hipocrático."

"Por enquanto, a profissão não está automatizada, sua atividade não está dominada pelos monitores eletrônicos nem os princípios éticos regulados pelos burocratas,"

"Nesse sentido é necessário lembrar a palavra autorizada de um médico-filósofo, Cid dos Santos, que resumiu, recentemente, na forma seguinte a essência de nossa profissão:

1° - A profissão médica atem a seu cargo a conversação e o estabelecimento da Saúde de todos os entes humanos. É universal no verdadeiro sentido da palavra.

2° - Perante a Medicina todos os doentes são iguais, e a qualidade do tratamento não pode variar.

3° - No exercício da Medicina, o tempo não tem valor nem os horários têm grandes significados, visto que a atividade do médico abrange 24 horas do dia.

4° - O trabalho profissional não tem estimativa possível, visto ele se realizar indiferentemente por nada ou por remuneração variável.

5° - A posição do médico, as necessidades e os deveres humanitários da profissão exigem um espírito de desinteresse que pode ir até à despesa pessoal com doentes ou com a profissão.

6° - Enfim, e como prêmio disto tudo, a posição de cada profissional é instável porque depende de três fatores caprichosos: o doente, a sociedade e, até certo ponto, o próprio médico. Não há garantias.

Minha experiência de quarenta anos de convívio com jovens médicos e cirurgiões permite confiar que uma profissão com base filosófica e as obrigações morais que acabo de referir será sempre escolhida, na sua maioria, por indivíduos com vocação profundamente humanística e há de perdurar estável em seus princípios eternos desde que os jovens que a escolherem sejam instruídos, cada vez melhor, na parte científica e técnica, mas recebam também, da geração atual, o exemplo, a mensagem e o estímulo que os há de guiar na fase evolutiva que se aproxima."

Fernando Paulino, TCBC

"Reflexões sobre a prática e o ensino da cirurgia"

Editorial - Revista do Colégio Brasileiro de Cirurgiões

Fevereiro 1969:3,3-6

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    26 Jan 2010
  • Data do Fascículo
    Jun 1999
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