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Memórias do Terreiro da Gomeia: entre a materialidade e a oralidadez1 1 Dados resultantes da Tese em Arqueologia intitulada Análise do espaço e da cultura material no extinto Terreiro da Gomeia (Duque de Caxias/RJ): um estudo etnoarqueológico. Atualmente, está em fase final de elaboração junto ao Programa de Pós-Graduação em Arqueologia do Museu Nacional da Quinta da Boa Vista (UFRJ). O autor agradece a CAPES e FAPERJ pelas bolsas de estudo e pesquisa.

Memories of Terreiro da Gomeia: between the materiality and the orality

Resumo

A partir das escavações arqueológicas empreendidas nos remanescentes do Terreiro da Gomeia (Duque de Caxias/RJ) e de narrativas recolhidas com ex-membros do local acerca de seu funcionamento e crise sucessória, o presente artigo visa debater a disputa por memória na construção de narrativas sobre o local, seu funcionamento, crise sucessória e destruição. A Gomeia foi um dos candomblés fluminenses com trajetória singular, tendo funcionado de 1951 até 1971, quando seu dirigente faleceu e iniciou-se uma crise sucessória. A formação de três vertentes sobre esses fatos demonstra como a memória é política e visa justificar determinados pontos de vista e posições. As memórias recolhidas por entrevistas serão utilizadas como suporte para a construção da interpretação arqueológica sobre o término do terreiro.

Palavras-chave:
Arqueologia; Candomblé; Memória; Conflito Sucessório; Terreiro da Gomeia

Abstract

From the archaeological excavations undertaken in the remnants of Terreiro da Gomeia (Duque de Caxias/RJ) and narratives collected with former members of the site about its operation and succession crisis, this article aims to discuss the memory dispute in the construction of narratives about the place, its operation, crisis of succession and destruction. Gomeia was one of the candomblés of Rio de Janeiro with a singular trajectory, having worked from 1951 until 1971, when its leader passed away and an inheritance crisis began. The formation of three strands on these facts demonstrates how memory is political and aims to justify certain points of view and positions. The recollections collected by interviews will be used as support for the construction of the archaeological interpretation about the end of the terreiro.

Keywords:
Archeology; Candomble; Memory; Succession Conflict; Terreiro da Gomeia

Introdução

Na década de 1940, um babalorixá baiano migrou para o Rio de Janeiro. João Alves Torres Filho, com a alcunha de Joãozinho da Gomeia, saiu de Salvador e dirigiu-se para a então Capital Federal. Tata Londirá, seu nome religioso, é identificado como pertencente à tradição religiosa dos Candomblés Angola e de Caboclo soteropolitanos (Chevitarese & Pereira 2016CHEVITARESE, André Leonardo; PEREIRA, Rodrigo. (2016), “O desvelar do candomblé: a trajetória de Joãozinho da Gomeia como meio de afirmação dos cultos afro-brasileiros no Rio de Janeiro”. Revista Brasileira de História das Religiões, nº 9: 43-65.). Esta vertente deste culto foi considerada como espúria pela inteligentícia dos estudos das religiões afro-brasileiras da década de 1930 e 1940 (por exemplo: Bastide 1989BASTIDE, Roger. (1989), As religiões africanas no Brasil. São Paulo: Pioneira, 3ª ed.; Landes 2002LANDES, Ruth. (2002), A cidade das mulheres. Rio de Janeiro: UFRJ, 2ª ed.) devido a uma conceituação de que o Candomblé Angola seria sincrético em relação a uma pretensa pureza ritual da tradição Nagô e também devido ao que Landes (2002) definiu como “Matriarcado Nagô” - o comando exclusivo de mulheres no culto. Isso gerou perseguição ou mesmo diminuição da importância da vertente Angola. Consideramos essa situação um dos motivos para a transferência do dirigente para o Rio de Janeiro. Capone (1996CAPONE, Stefania. (1996), “Lê pur et lê degenere: lê candomblé de Rio de Janeiro ou lês oppositions revisités”. Journal de la Société dês Americanistes, nº 82: 259-292. ) defende que ele estava incluído em uma “marcha religiosa” de pais/mães de santo que deixavam a Bahia e se instalavam em solo fluminense em busca de um mercado religioso não dominado pelas ialorixás de Salvador.

Em artigo anterior, apontou-se que outro motivo possível para a marcha residia no preconceito que o babalorixá2 2 No presente artigo, o termo babalorixá é sinônimo de Pai de Santo. Ambos significam a liderança masculina exercida em terreiros de candomblé. sofria por ser homossexual, dançarino e músico, o que pode ter sido decisivo para que o Rio de Janeiro fosse visto como um local que permitisse uma nova trajetória (Chevitarese & Pereira 2016CHEVITARESE, André Leonardo; PEREIRA, Rodrigo. (2016), “O desvelar do candomblé: a trajetória de Joãozinho da Gomeia como meio de afirmação dos cultos afro-brasileiros no Rio de Janeiro”. Revista Brasileira de História das Religiões, nº 9: 43-65.). Em 1951, Joãozinho da Gomeia inaugurava seu terreiro em meio a uma ampla cobertura da imprensa, como o Jornal Correio da Manhã, de 9 de dezembro de 1951JORNAL CORREIO DA MANHÃ . 9 dez. 1951.. O dirigente não era apenas pai de santo, também atuava no carnaval carioca. Nos carnavais da década de 1950 e 1960, apresentava-se em festas em clubes da Zona Sul, desfilava nas escolas de samba da cidade e atuava ainda como um dos coreógrafos do Cassino da Urca e Teatro João Caetano, todos na então capital do Brasil.

O Manso Bantuqueno Ngomenssa Kat’espero Gomeia ou Terreiro da Gomeia iniciou suas atividades instalando-se na cidade de Duque de Caxias - região Metropolitana do Rio de Janeiro. A casa tornou-se ponto referencial para artistas e políticos que buscavam mais que conselhos religiosos; a amizade com Joãozinho da Gomeia rendia recomendações a estes e trabalhos3 3 Gama (2014), por exemplo, indica que políticos recorriam ao dirigente para ganharem eleições ou verem se determinadas situações lhe eram ou não favoráveis. para facilitar situações políticas e econômicas.

Em 1971, a descoberta de um tumor cerebral, seguido de uma operação para sua extração, levou o dirigente a falecer. A sua morte colocou seus filhos de santo diante de questões sucessórias do terreiro e, como consequência, não houve um consenso sobre quem deveria ser o/a novo/a líder do local. Mesmo após a escolha, por meio de consulta ao jogo de búzios, de uma criança de 10 anos (Seci de Angorô4 4 As fontes orais e os jornais divergem quanto à sua idade. Assim, a idade real é incerta e aproximada. ), instalou-se um conflito sobre a legitimidade dessa nova liderança, o que ocasionou a formação de grupos que questionaram a escolha e desejavam que o local tivesse outras lideranças (Pereira 2015PEREIRA, Rodrigo. (2015), “Sucessão e Liminaridade: o caso do Terreiro da Gomeia”. Tessituras: Revista de Antropologia e Arqueologia, nº 3: 372-402.).

A sucessão é acirrada quando a mãe carnal do dirigente falecido opta por vender o terreno e mudar-se para Salvador (BA). Como foi verificado entre as fontes orais, esse ato levou um determinado grupo de filhos de santo a conseguir a posse legal do terreiro, possibilitando a continuidade do local. As querelas sucessórias são exponenciadas devido a uma acusação de “roubo” por parte de grupos de oposição ao que adquiriu o terreiro e suas dependências.

O Terreiro da Gomeia entrará em desuso ou abandono total apenas no final da década de 1980. A data aproximada para isso é o período compreendido entre os anos de 1985 até 1988, pois não há consenso nas fontes quanto ao fato. Contudo, os dados orais indicam que o local continuou a iniciar filhos de santo por meio de Mametu Kitala (uma filha de santo do dirigente) e outros que permaneceram no local neste ínterim da década de 1980. Porém, a grave crise e o fechamento definitivo impediram a continuidade dessas atividades.

Até a década de 2000, o terreno foi utilizado pela população do entorno como um espaço recreativo e para a realização de festas juninas. Na década seguinte, foi erguida uma pequena mureta para a acomodação do “Gomeia Sport Clube” - time de futebol dos moradores da rua -, o que não durou muito tempo, pois o local passou a ser usado como estacionamento de caminhões (Pereira et al. 2012PEREIRA, Rodrigo; MOURÃO, Tadeu; CONDURU, Roberto; GASPAR, Anderson; RIBEIRO, Maíra. (2012), Inventário nacional de registro cultural do candomblé no Estado do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Musas Projetos Culturais/IPHAN.). O destino da área da Gomeia foi definido em 2003, quando a Prefeitura de Duque de Caxias desapropriou o local para a construção de uma creche (Gama 2014GAMA, Elizabeth Castelano. (2014), Mulato, homossexual e macumbeiro: que rei é este? Trajetória de Joãozinho da Gomeia (1941-1971). Duque de Caxias/RJ: APPH-CLIO. (Série Recôncavo da Guanabara, vol. 2).). Contudo, o projeto não foi executado, ficando o terreno sem uso até a atualidade.

Destaca-se que os eventos de sucessão foram decisivos para a instauração de um processo que levou à desagregação dos espaços erigidos do terreiro. O conflito, ou mesmo o descaso, podem ter sido fatores que desencadearam o processo de sua destruição, seja pela subtração de elementos construtivos e objetos do uso cotidiano e ritual, seja pela inexistência de manutenção. Como não existe uma “verdade” sobre o destino do terreiro, mas versões dos grupos que o disputavam, optou-se neste artigo analisá-las sob a noção de que houve uma série de ações que levaram à desagregação e/ou destruição dos espaços erguidos por Joãozinho da Gomeia.

Após o conflito instaurado, cujo tempo cronológico não é consensual entre as fontes orais, havendo uma intervenção judicial que impediu a criança escolhida pelos búzios, Sandra ou Seci Caxi, de assumir o comando total do terreiro5 5 Conforme notícia do Correio da Manhã de 3 de abril de 1971, Sandra ou Seci Caxi foi a escolhida pelos búzios para subir ao comando da Gomeia. Contudo, foi proibida pelo Juiz de Menores da Comarca de Duque de Caxias de assumir o cargo devido à idade. O mesmo jornal, publicado no dia 5 daquele mês, indica que o Juiz de Menores era filho de santo da Gomeia, o que poderia passar ao público falta de lisura quanto ao processo ou mesmo que este era direcionado para que Sandra não assumisse o cargo. , um filho de santo da casa, por meio de consulta ao grupo, incumbe-se da tarefa da compra do terreno, pois a mãe carnal de Joãozinho optara por retornar à Bahia após a morte de seu filho. Há consenso nos relatos em afirmar que os filhos de santo, cada um à sua maneira, contribuíram para a aquisição do local, sempre expressando a ideia de que ele permanecesse aberto. Ao que tudo indica, esse fato ocorreu, mas neste ponto as consequências dessa ação variam. Foi possível identificar três versões narradas pelos/as entrevistados/as.

Na primeira, a compra foi seguida da expulsão do grupo litigante, que via em Sandra a sucessora de Joãozinho. Esta ação teria ocorrido com o auxílio de forças policiais, que fecharam o acesso à rua onde se localiza a Gomeia para que os assentamentos de santo desse grupo fossem retirados do terreiro e colocados na rua. Quando os litigantes conseguiram chegar em frente ao terreiro, só puderam recolher seus assentamentos, roupas e demais objetos rituais e não foram mais permitidos acessar o espaço. A propriedade foi comprada e fechada, e, com isso, parte da cultura material da Gomeia foi transferida para outro terreiro fora do Rio de Janeiro. Para lá teriam sido transferidos, conforme relatos, os assentamentos da casa e do dirigente (incluindo o ariaxé6 6 O ariaxé pode ser um sulco construído no solo, uma pilastra que se aproxima do teto ou mesmo um poste unido ao telhado do terreiro e que tem por função ligar os planos material e religioso para as trocas de energia e presentificação das entidades em festas no terreiro. É, ainda, um dos centros de energia que tem por função manter o terreiro em funcionamento. Ele possui, via de regra, um assentamento de orixá/nikisi implantado pelo dirigente do local. do terreiro dedicado a Oyá/Matamba), o trono do dirigente e objetos pessoais deste7 7 Alguns objetos pessoais de João Alves estão sob a posse do Instituto Histórico de Duque de Caxias. .

Outra versão indica que a instabilidade da sucessão foi a responsável pelo fato de que, após a compra, os filhos de santo não chegassem a um acordo sobre quem deveria governar. O trio indicado pela justiça para tal fim - Ogã Valentim, Mametu Kitala e Mametu Ileci - não teve comando político e religioso para manter o terreiro aberto. Este funcionou por mais alguns anos, inclusive com iniciações posteriores à morte do dirigente, sendo fechado por falta de recursos e membros, entre os anos de 1985 e 1987.

Por fim, uma terceira leitura defende que a casa se manteve aberta, mas passara por um processo de subtração de telhas, de portas e louças do banheiro, o que foi dilapidando a casa até impossibilitar seu funcionamento. As entrevistas8 8 A pedido dos entrevistados, no intuito de manter o seu anonimato, não serão citados seus nomes e, da mesma forma, os de seus terreiros. e escavações realizadas indicam que possa ter ocorrido um incentivo ao roubo da cultura material por parte do grupo possuidor do terreno, como forma de acelerar a destruição do local. Ou, de forma concomitante, que a população do entorno, a partir da necessidade de construir suas residências, tenha atuado nessa subtração. Em ambos os casos, o resultado foi o mesmo: a retirada de material do local e sua dilapidação. É bom ressaltar que as escavações não identificaram, por exemplo, portas ou janelas no registro arqueológico, o que é indiciático de que eles já não compusessem a casa no momento de seu fechamento e destruição. Não contando com verbas para as reformas, a casa teria sido abandonada ao seu novo dono, o que, nesta versão, não impediu seu funcionamento.

O artigo problematiza essas três versões baseando-se nos campos teórico-metodológicos da memória coletiva9 9 Adota-se aqui o conceito de memória como propriedade de conservar certas informações, sentimentos e vivências que permitem ao indivíduo atualizar impressões ou informações passadas ou reinterpretadas como passadas (Silva & Silva 2006). , da história oral10 10 A História Oral está “envolvida com as questões da memória humana, tanto coletiva quanto individual. E, nesse sentido, passou a ser um relevante meio de valorização das identidades de grupos sem escrita, por meio da coleta de seus depoimentos e da análise de sua memória, de sua versão do mundo e dos acontecimentos” (Silva & Silva 2006:186). Ver também Alberti (1989). e da arqueologia11 11 Ciência que visa elucidar e debater os comportamentos humanos pretéritos a partir da análise da materialidade deixada pelos grupos humanos. , para analisar o processo de arruinamento do local, ou seja, como o terreiro foi destruído, abandonado ou transferido.

Coleta de dados etnográficos, entrevistas, atividades de campo e escavações

A pesquisa arqueológica na Gomeia deu-se entre os anos de 2015 e 2016 em um total de 30 dias de escavações e 240 dias de pesquisa de campo (com entrevistas e etnografias). As escavações ocorreram em dois campos, de quinze dias, com a participação de arqueólogos, estudantes de arqueologia da UFRJ, estudantes e pós-graduandos de história da mesma universidade, voluntários e de afro-religiosos que se prontificaram a contribuir com a ação. A escavação teve o apoio logístico da Prefeitura Municipal de Duque de Caxias e da Secretaria de Cultura e Turismo do mesmo município. Com esse apoio, pudemos não apenas limpar o terreno para as escavações, mas também nos utilizar de maquinário para a implementação das atividades de verificação do solo.

Previamente uma planta baixa do terreiro foi produzida a partir de relatos de ex-membros da Gomeia. O intuito das entrevistas era fazer com que os entrevistados relatassem como era a disposição dos cômodos que caracterizavam todos os espaços edificados. Após o cruzamento dos dados dessas informações, foi elaborada a planta (figura 1), utilizada como base para os estudos do espaço e da arqueologia do local.

Além das entrevistas, a busca por imagens em revistas12 12 Tais como O Cruzeiro e Manchete. e jornais do período13 13 Foram escolhidos o Jornal do Brasil e o Correio da Manhã. O primeiro por ser alinhado com a direita política e por defender o catolicismo. O segundo por ser alinhado à esquerda do país e pelo seu tom populista. em que o terreiro funcionou auxiliou na alocação dos espaços erigidos dentro da referida planta. As fontes imagéticas permitiram a confirmação de determinadas estruturas e suas posições dentro do local. Desta maneira, a pesquisa adotou, para além das técnicas de Arqueologia, a História Oral como metodologia arqueológica para a obtenção de dados para a escavação. Tal ação nos indica a necessidade de que essa vertente da História seja considerada sempre como ferramenta de extrema valia na composição de estudos arqueológicos e, em especial, para casas de candomblé, pois permite o acesso a dados que, em muitos casos, não são registrados em fontes escritas ou bibliográficas disponíveis. Permite também o acesso a apropriações ou subjetivações do espaço perceptíveis apenas aos adeptos do candomblé.

Após a análise dos dados orais, a pesquisa realizou duas medidas que permitiram o aperfeiçoamento das escavações e da planta obtida: primeiramente, georreferenciamos o terreiro, com a finalidade de obter não apenas imagens aéreas a partir de programas de localização por satélite, mas também uma localização do espaço que possa ser compartilhada academicamente - deixando de lado a confusão quanto ao nome da rua e bairro que atualmente existem. Em seguida, procedeu-se o caminhamento pelo terreno onde se situa a Gomeia, antes das escavações, com os antigos membros desta, no intuito de identificar as estruturas edificadas do Terreiro por meio da lembrança dos participantes. Vale destacar que entre o que foi lembrado pelos interlocutores e a localização da estrutura realizada pela escavação houve apenas a diferença de 50 centímetros de distância.

Neste ponto da pesquisa, foi definido ouvir o máximo possível de “vozes” de como era a Gomeia (fisicamente) e de como foram as suas experiências religiosas14 14 Para o presente artigo, adoto a noção de experiências religiosas de Thompson (1978), entendida como o conjunto de informações, de contatos e mesmo de circulações que os entrevistados tiveram durante sua vida dentro do Terreiro da Gomeia. no local. Assim, foram selecionadas dez pessoas para serem entrevistadas. O universo de escolha iniciou-se com a seleção de ex-membros da Gomeia, sendo duas mulheres e um homem, com idade entre 65 a 85 anos. Estes são, na atualidade, dirigentes e ogãs de terreiros de candomblé no estado do Rio de Janeiro. Destaca-se que, destes, apenas uma mulher e um homem se mantém em locais que se identificam como pertencentes à tradição Angola de candomblé de Joãozinho da Gomeia. Ainda na amostra, dois outros dirigentes homens foram entrevistados e, apesar de se autoidentificarem como Angola e da descendência da Gomeia, seus terreiros caracterizam-se pelo uso de termos e ritos nagôs para as divindades e por se utilizarem ainda de festas para Pomba-gira e Exus Catiços, como o Zé Pelintra e Tata Caveira. A idade de cada um é 65 e 80 anos.

Figura 1
Planta baixa do Terreiro da Gomeia

Foram realizadas ainda entrevistas com dois homens, descendentes de casas pertencentes à tradição da Gomeia. Ambos possuem todas as obrigações rituais do culto realizadas, estando aptos a ser novos dirigentes. Ambos não residem no Rio de Janeiro, sendo um morador de Recife (PE) e outro de São Paulo (SP). Devido à distância, estas entrevistas deram-se por meio de videoconferência com o envio prévio de um roteiro. A filmagem foi transcrita em momento posterior à sua realização e, como as demais entrevistas, seguida de liberação de utilização através de termo de cessão de imagem e áudio.

A pesquisa ouviu também duas mulheres e um homem, moradores do entorno do terreno onde se situa a Gomeia, todos com mais de 60 anos de idade. Residem no local desde a década de 1960 e tiveram contato com Joãozinho da Gomeia e com o terreiro em funcionamento.

As entrevistas realizadas não seguiram planejamento prévio. Solicitou-se que falassem a respeito da relação com a Gomeia e o que achavam importante sobre o tema. Quando um assunto, tal como a edificação do terreno, necessitava de mais informações, o pesquisador intervinha na fala, solicitando aprofundamento no tema. Cada entrevista durou, em média, 60 minutos, sendo transcrita posteriormente.

O pesquisador passou longos períodos dentro dos terreiros de alguns dos entrevistados (os que hoje são dirigentes no estado do Rio de Janeiro) com a finalidade de aprender termos, ritos e a dinâmica dos terreiros da tradição Angola. Além de permitir a compreensão das cosmologias e ritualística, essas imersões permitiram ainda o aprofundamento das entrevistas, o acesso a fotos e a compreensão dos fatos associados à destruição da Gomeia.

Esta estratégia de pesquisa baseia-se na premissa teórica da Etnoarqueologia adotada para a sua realização. Esse ramo da Arqueologia é definido pelos arqueólogos Colin Renfrew e Paul Bahn (2007RENFREW, Colin; BAHN, Paul. (2007), Archaeology: theories, methods and pratice. London: Thames & Hudson, 3ª ed.): “O estudo das sociedades vivas para ajudar a interpretar o passado, com uma ênfase específica no uso e significância de artefatos, construção e estruturas, e como essas coisas materiais podem se incorporar ao registro arqueológico” (Renfrew & Bahn 2007:137, tradução nossa)15 15 No original: “ The study of living societies in order to help interpret the past, with a specific emphasis on the use and significance of artifacts, building and structures, and how these material things might become incorporated into the archaeological record”. ; “[…] Os arqueólogos nas últimas décadas desenvolveram a etnoarqueologia. Assim como os etnógrafos, vivem entre as comunidades contemporâneas, mas com o propósito específico de entender como essas sociedades usam a cultura material - como elas fazem suas ferramentas e armas, por que eles constroem seus assentamentos e onde fazem” (Renfrew & Bahn 2007:11, grifo dos autores, tradução nossa)16 16 No original: “Archeologists in recent decades have developed ethnoarchaeology, where like ethonographers they live among contemporary communities, but with the specific purpose of understanding how such societies use material culture - how they make their tools and weapons, why they build their settlements where they do”. .

Para a etnoarqueologia, de forma bem concisa quanto à sua aplicabilidade, importa ouvir o grupo para o desenvolvimento de hipótese sobre o funcionamento da cultura pretérita. Mas esta é avaliada no confronto com o registro arqueológico, sendo este último o mais importante para a verificação de comportamentos a partir do registro arqueológico.

As escavações arqueológicas centraram-se na área considerada mais proveitosa17 17 Foram áreas onde o maquinário e os pesquisadores possuíam maior espaço para a realização das escavações, descartando áreas em que havia a contaminação por fezes de animais ou próximas ao riacho localizado nos fundos do terreno. para analisar a presença ou ausência de material arqueológico na sedimentologia da Gomeia. Após a primeira intervenção, detectou-se a presença de quatro camadas arqueológicas (vide figura 6). A primeira refere-se ao solo atual do terreno e apresenta-se formada por aterro e elementos que não mantêm correlação com a Gomeia. A segunda foi interpretada como sendo um selamento que “apagou” a presença do terreiro após a sua destruição, processo analisado mais adiante, pois a sua composição é totalmente diferente das demais: consiste em uma tabatinga de cor amarelada que não possui material arqueológico em seu interior. A terceira camada apresenta um misto de solo com a presença de material arqueológico da Gomeia. Compreendeu-se que ela é resultante dos eventos de destruição da Gomeia sendo resultado direto da ação intencional no local. A camada quatro é considerada como aquela formada pelo piso em cimento e concreto dos cômodos edificados, sendo, portanto, possível concluir que, abaixo dela, o horizonte ocupacional não se refere às atividades do terreiro, mas sim data de período anterior à implantação deste.

Após as atividades de escavação, a pesquisa arqueológica na Gomeia obteve uma cultura material que pode ser classificada em três grandes eixos: objetos de uso religioso (referentes ao Candomblé), de usos seculares (aplicados às práticas do cotidiano não religioso) e os mistos (classificados assim pela dubiedade de estarem em contextos religiosos ou nas práticas do dia a dia). Essa clivagem permitiu observar que um terreiro é também espaço de moradia, de alimentação e de outros elementos que, apesar de conhecidos na atualidade, não se sabia se deixariam vestígios no registro arqueológico.

Por fim, a cultura material obtida foi classificada nas seguintes categorias de materiais: objetos metálicos, vítreos, orgânicos, cerâmicos (faianças e barrarias), tecidos, plásticos e rochosos, conforme a tabela 1, abaixo, e os gráficos 1 e 2. Isso permitiu inferir formas de utilização, ritos, práticas do cotidiano, além de averiguar a utilização de alguns elementos, como o plástico, por exemplo.

Pelo obtido, fica claro que as práticas religiosas do Candomblé deixaram vestígios no registro arqueológico. A amostra contém 278 peças de materiais identificados como seculares (42,7% da amostra), 177 referentes aos religiosos (27,2%), 166 considerados como mistos (26%) e 30 peças sem identificação (4,1%). Se somarmos os valores mistos aos religiosos, obteremos um valor de 455 peças que indicam práticas religiosas (53,2% do escavado). Ou seja, pela soma realizada, mais de 50% de nossa cultura material escavada representa práticas, ritos e objetos de cunho religioso no registro arqueológico do sítio da Gomeia. Isso demonstra como a Arqueologia tem uma alta capacidade de analisar e identificar práticas religiosas pretéritas em contextos arqueológicos de terreiros de candomblé18 18 Este ponto é uma das conclusões da tese em elaboração e pode ser parcialmente consultado no artigo de Pereira (2017). .

Tabela 1
Listagem geral de materiais escavados no Sítio Arqueológico do Terreiro da Gomeia

Gráfico 1
Classificação geral das peças escavadas no Sítio Arqueológico do Terreiro da Gomeia

Gráfico 2
Classificação por usos das peças escavadas no Sítio Arqueológico do Terreiro da Gomeia

Assim, nossa amostra arqueológica permite-nos inferir comportamentos relacionados às práticas do candomblé, mas também analisar o cotidiano, nem sempre religioso, de hábitos de alimentação, higiene, consumo de bebidas alcóolicas, sociabilidade, diversão e outros campos da vida e do funcionamento de um terreiro.

Memórias sobre a Gomeia

Antes de abordar especificamente sobre as memórias da destruição, é interessante destacar as nominações do Terreiro da Gomeia, recolhidas entre as fontes orais, em dialeto kimbundo: Manso Bantuqueno Ngomenssa Kat’espero Gomeia ou Atim Mossó Candengó Ingomessa Catispero. A primeira forma é passível de tradução - Manso: Aldeia; Bantuqueno: Antigo e correlato aos Bantos na África; Ngomenssa: tambores; Kataspero: Casa de origem de Joãozinho na Bahia; e Gomeia refere-se à localização do terreiro na Bahia. Ou seja, poderíamos traduzir como “Aldeia Antiga dos bantos [dos] tambores de Kataspero da Gomeia”. O segundo nome não se encontrou tradução, pois esta não fazia sentido nas tentativas realizadas pelos ex-membros do local19 19 Apesar da referida tradução, Nicolau Parés (2007) fornece-nos outra origem para o termo Gomeia: estaria relacionado a um terreiro, da tradição Jeje, denominado de “Agomé” que se situava na região onde João Alves abriu sua roça em Salvador: “O nome do terreiro deriva seguramente de Agbomé, atual Abomey, capital do antigo reino de Daomé […] Testemunhas oculares das festas daquela casa lembram que ‘tinha muitas pessoas jejes, era angola, mas tocava candomblé jeje, fazia muito Omolu, Oxumarê, Nanã’” (Parés 2007:154). .

A presença de dois nomes, antes de ser um problema relacionado às fontes, é tido neste artigo como um dado a ser trabalhado pelo conceito de memória coletiva (Pollak 1989POLLAK, Michel. (1989), “Memória, esquecimento e silêncio”. Estudos Históricos, vol. 2, nº 3: 3-15.; Halbwachs 2006HALBWACHS, Maurice. (2006), A Memória Coletiva. São Paulo: Centauro.). O caso da Gomeia permite refletir sobre como as lembranças emergem dos contatos entre os membros e entre as vertentes de memória individual e coletiva. As memórias da destruição estão truncadas, por exemplo, e tenderam a uma apropriação e ressignificação dos fatos ocorridos. Lembrar ou esquecer um evento relaciona-se aos lugares que os indivíduos ocupam ou deixam de ocupar como membros de um determinado grupo. Halbwachs (2006) relaciona a memória à participação em um grupo social ou em uma comunidade afetiva20 20 Para este ponto, adotamos a perspectiva de Pollak (1989) em que é determinante para o estudo da Memória o protagonismo dos sujeitos na construção da narrativa histórica. Assim, dá-se ênfase às suas subjetividades no processo narrativo do fato. Para que esses agentes da memória sejam compreendidos, não se deve olvidar da relação dominador-dominado quanto à posição de quem fala. .

As duas nomeações conferidas à Gomeia inscrevem-se no processo de construção da memória, incluindo sua seletividade, que depende dos valores dos indivíduos, do momento histórico e dos interesses do grupo social, que sempre se remetem a conflitos de definição das identidades (Pollak 1989POLLAK, Michel. (1989), “Memória, esquecimento e silêncio”. Estudos Históricos, vol. 2, nº 3: 3-15.). A ausência de unicidade quanto ao nome do local pode relacionar-se ao estabelecimento de vertentes em disputa. A dinâmica de lembrar, esquecer ou omitir os nomes relaciona-se a processos de construção da memória coletiva, no sentido de valorizar o passado do local ou de apagar, por exemplo, a lembrança de um dirigente e espaço visto como espúrio. Em outra leitura acerca da memória, conforme defende Schwarzstein (2001SCHWARZSTEIN, Dora. (2001), “História Oral, memoria e historias traumáticas”. Revista História Oral, nº 4: 73-83. :80), “esquecer” também pode se relacionar a sofrimento/dor que as memórias acessadas causam. Não “lembrar” é uma forma de não acessar o trauma.

Assim, dois processos distintos quanto às memórias da Gomeia podem ser observados, dependendo dos posicionamentos de cada grupo ou pessoas envolvidas na disputa: o esquecimento do local (e uma consequente dessacralização) e a manutenção de uma memória positiva, que se liga à permanência do sagrado naquele espaço, mesmo após a retirada dos objetos sagrados. Neste artigo, este axioma nos interessa: na atualidade, o terreno, onde repousam os restos edificados da Gomeia e a cultura material remanescente, permanece ou não sacro para os que ali transitaram?

Como se elabora a dinâmica da memória sacra e não sacra nas narrativas dos entrevistados? Na Gomeia, as memórias relacionam-se, primeiramente, com um determinado tempo: em que o terreiro funcionou e quando ele já não funcionava. Contudo, a separação é mais um instrumental que visa dar conta de dois momentos da trajetória do local do que, de fato, uma separação de períodos - seja ele o presente, seja o passado das querelas religiosas. A partir das entrevistas, observou-se que “lembrar” e “esquecer” determinado fato indicavam um mecanismo de reconstrução de um tempo passado, ressignificado no presente: para alguns, o terreiro não possui sacralidade alguma; já para outros, ela permanece. Para as fontes orais consultadas, estar, observar ou transitar nos remanescentes do terreiro, na atualidade, pode significar “reviver” o trauma de sua destruição ou a memória do trauma (Schwarzstein 2001SCHWARZSTEIN, Dora. (2001), “História Oral, memoria e historias traumáticas”. Revista História Oral, nº 4: 73-83. ; Seligmann-Silva 2005SELIGMANN-SILVA, Márcio. (2005), O local da diferença: ensaios sobre memória, arte, literatura e tradução. São Paulo: Editora 34.), mas também denota atualizar o debate sobre as ações empreendidas.

Para uma parte dos entrevistados, a Gomeia mantém-se terreiro, sacro, ao qual se deve obediência e reverência. Permanece como a concretização material da memória de João Alves. Para outros, ele não significa mais nada, pois o que era considerado sagrado foi transferido dali. Passa a ser um lugar sem referência, sem sentido, um lugar de passagem e sem fixação. Estabelece-se, portanto, o que o antropólogo Marc Augé define como “não lugar” (Rieth 1995RIETH, Flávia. (1995), “Augé, Marc. Não-lugares: introdução a uma antropologia da supermodernidade. Campinas: Papirus, 1994. (Coleção Travessia do Século)”. Revista Horizontes Antropológicos, nº 1, vol. 2: 270-271. ; Lencioni 2009LENCIONI, Sandra. (2009), Região e Geografia. São Paulo: EDUSP.).

Podemos analisar a perspectiva da dessacralização da Gomeia da seguinte forma: se nada mais naquele espaço é sagrado, seu solo também não é, as estruturas não são e, por fim, até mesmo a memória não é mais sacra, pois esta se apagou com o processo de arruinamento do local. Parte dos entrevistados não acredita que o terreno seja sacro, pelo fato de não haver mais o assentamento de fundação (ariaxé) que permita ao terreno fazer a intermediação entre o plano espiritual e o material. Se não existem mais assentamentos de nikisis e caboclos, da mesma forma, nada mais ali se remete ao plano dos deuses21 21 No Candomblé Angola, os deuses são, via de regra, nominados de Nkisis (Nikisi, no singular). Os Orixás são as divindades do culto Nagô/Ketu e os Voduns da tradição Jêje. Contudo, para alguns religiosos, há uma suposta equivalência entre os nomes, mas não há consenso sobre esse fato (ver a obra de Parés [2007], A formação do candomblé: história e ritual da nação jeje na Bahia, para esse fim). Assim, a grafia “deuses” responde a essa incerteza e, além disso, coloca nesta categoria entidades como Pombas-gira, Exus (Zé Pelintra, entre outros), Babá Éguns e Caboclos, que não são orixás, voduns ou nikisis. . Igualmente, apagou-se ou se extinguiu o caráter sagrado também com a morte do dirigente.

Conforme a cosmologia do candomblé (Santos 1984SANTOS, Juana Elbin. (1984), Os nagô e a morte: Padê, Asèsè e o culto Égun na Bahia. Petrópolis: Vozes. ; Rocha 2000ROCHA, Agenor Miranda. (2000), As nações Kêtu: ritos e crenças: os Candomblés antigos do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Mauad. ), se todos os ritos de retirada e transferência do sagrado foram realizados e a nova casa que recebeu esse material deu continuidade à Gomeia, ela está viva em outro local. A descendência de João Alves foi mantida. O que ficou no terreno lembra um determinado passado, mas este se encontra, na verdade, vivo em outro terreiro. Nada em Duque de Caxias remete ao plano dos deuses. Se eles não moram mais ali, o terreno perdeu seu sentido sagrado. Esta vertente baseia-se no que denominamos de uma “crença oficial”, ritos religiosos formais de transferência dos elementos sagrados.

A pesquisa evidenciou que a dessacralização da Gomeia foi um ato intencional do grupo que transferiu os objetos sagrados e de uso cotidiano para outro terreiro, no sentido de dar continuidade à obra de Joãozinho, expressando o rompimento e a oposição àqueles que defendiam a sucessora escolhida em 1971, disputa que ainda hoje tem ressonância. A dessacralização ocorreu pela perda de elementos que compunham a ligação entre o mundo físico e o mundo espiritual.

Para outro grupo, ao contrário, o terreno da Gomeia permaneceu sagrado, pois nunca deixou de acessar o Orum (plano espiritual), perspectiva que permite aos adeptos, ainda hoje, se conectar com suas divindades e com as memórias das festas e ritos ocorridos ali. Uma vez tocado pelos deuses, aquele espaço mantém-se sacro eternamente. Não importam justificativas “oficiais” da cosmologia do Candomblé, sua “crença vivida” opõe-se a estes argumentos e mantém a sacralidade da Gomeia. Essa posição baseia-se nas experiências religiosas vividas, mantidas e atualizadas pela memória do grupo. O que importa é o que se sente e o que se expressa, e não as querelas sucessórias, arruinamento ou transferência dos materiais. Se houve uma intencionalidade de um grupo em comprar o terreno e impedir a continuidade do terreiro, a Gomeia mantém-se viva nas memórias das iniciações, no respeito ao terreno e nas rememorações da figura do dirigente. Como relatou uma entrevistada:

Isso aqui [o terreiro] ainda tem axé, meu filho. Tem gente que vê o Caboclo [Pedra Preta] aqui de noite. Venha aqui na Quaresma, você mesmo vai vê-lo andando à noite. Não é porque Joãozinho morreu que isso não tem mais valor. Aqui ele plantou o seu caboclo que trouxe da Bahia. Mesmo que ele [o Caboclo] não more mais aqui, aqui ainda é o Terreiro da Gomeia. É aqui que fui feita, é aqui que bato minha cabeça. Tudo aqui tem axé e não é o que houve que muda isso.

Sobre este ponto, é interessante indicar outro aspecto da manutenção da sacralidade, narrado pelas fontes e observado in loco pela pesquisa: o terreno não foi invadido por pessoas para morarem no local, fato comum na Baixada Fluminense quando se tem um terreno vacante22 22 Para este ponto, ver o texto de Mota (2009). . Concomitantemente, a creche prevista para ser construída pela prefeitura de Duque de Caxias nunca foi erigida, nada se desenvolveu no local após a destruição das áreas edificadas e o aterramento. A não ocupação humana nos é indicativa de que a população do entorno do terreiro ainda hoje reconhece o terreno como sacro e por isso é um tabu ou impeditivo à sua ocupação. Morar ou construir ali poderia levar à cólera de Joãozinho sobre quem realizasse tal ação.

Pode-se inferir que, no nível pessoal (o das experiências religiosas), o sagrado está presente no terreno. Ele nunca foi extinto e, analisando as falas, não o será, como expressou uma mãe de santo entrevistada em um momento de visita ao local: “enquanto a memória de Joãozinho estiver viva, a Gomeia também estará”. É esta rememoração que mantém a sacralidade do espaço. Visitá-lo aciona o “lembrar” sobre a iniciação, as vivências de festas e confraternizações. Isso atualiza e reelabora o sentido de pertencimento ao local, independentemente de estar conservado ou não.

Durante as escavações arqueológicas empreendidas em 2016, recebemos alguns ex-membros da Gomeia que foram visitar as atividades. Uma senhora, com 80 anos, que foi iniciada por Joãozinho da Gomeia há mais de cinquenta anos, forneceu argumentos que validam a perspectiva da permanência do caráter sagrado do local. Com dificuldades de locomoção, ao chegar na área que estava sendo escavada, retirou as sandálias e prestou reverência às estruturas. Ela nos informou que a deferência era necessária, pois a Gomeia nunca havia sido extinta, ela estava ali naquelas estruturas. A “crença vivida” dessas pessoas atualiza e mantém operante a sacralidade do local.

O exemplo do relato dessa senhora permite-nos avaliar que a memória e as crenças vividas se conservam sagradas, pois geram um sentido de pertencimento, de vida e de identidade (Zumthor 1997ZUMTHOR, Paul. (1997), Tradição e esquecimento. São Paulo: HUCITEC. :14). Cria-se uma memória coletiva que não apenas mantém viva a memória do dirigente, mas “luta contra a inércia do cotidiano, captura os fragmentos que sente significantes ou úteis e trabalha por dinamizá-los” (Zumthor 1997:27). A memória sacra não anula as querelas passadas na sucessão, mas as reelabora, excluindo elementos que destoam de um passado que se deseja lembrar e manter. A ampla visitação de dirigentes políticos e dirigentes de cultos afro-brasileiros durante a execução da pesquisa arqueológica, que buscavam por notícias desta ou mesmo pela realização de ritos que nos permitissem escavar o local23 23 Em respeito ao Candomblé, em especial aos denominados éguns (espíritos dos dirigentes falecidos de uma casa), realizamos algumas oferendas de alimentos para solicitar a autorização da intervenção no solo, pois ele está sob seus cuidados. , indica a permanência do sagrado ali. Para alguns visitantes, o ato de escavação e estudo foi concebido como uma missão, no sentido de preservar aquela memória e aquele lugar24 24 Pereira (2017) afirma que a Arqueologia tem papel relevante no estudo das religiões afro-brasileiras, embora ainda seja um campo não reconhecido pela área. No entanto, a ideia da Gomeia como patrimônio arqueológico afro-religioso tem sido bem recebida pelos interessados na preservação dessa memória. Sobre esta defesa, ver o artigo de Pereira (2017). .

Leitura Arqueológica do processo de arruinamento no Terreiro da Gomeia, algumas conclusões

Do ponto de vista material o que significou a morte de João Alves, o Joãozinho da Gomeia, em 1971? Como vimos, houve uma disputa em torno da sucessão. O que isto impactou na manutenção da Gomeia até meados dos anos de 1985 ou 1988, quando o terreiro fechou? Invariavelmente, os dados arqueológicos e orais indicam um processo de arruinamento da casa. Obtivemos três vertentes orais sobre o fim da Gomeia e este processo: a depauperação das estruturas, a depredação dos espaços erigidos (seguido de uma subtração de elementos) e a transferência dos objetos de Duque de Caxias para outro terreiro.

Pode-se pensar que, se uma leitura é verdadeira, as outras não seriam. Se houve um abandono em uma das visões, como seria possível que ele tenha sido contemporâneo a uma transferência de cultura material, por exemplo? As versões soam desconexas. Contudo, atrelando os dados arqueológicos às fontes orais, a pesquisa arqueológica concluiu que cada um dos grupos de interesse narrou um dos elementos que levou ao fim da Gomeia. Eles não se opõem, mas são, na verdade, complementares.

Assim, para o caso da destruição, é plausível inferir que houve um abandono parcial do terreiro após alguns anos de continuidade da Gomeia. Um dos grupos que assumiu o poder não deve ter conseguido manter a ordem e o funcionamento da casa, já que a sucessão era questionada. Concomitante a este fato, com a ausência de um dirigente aceito por todos os grupos de interesse e o parcial abandono das dependências, que só eram utilizadas durante as festas, eventos de subtração de elementos estruturais (portas, janelas, etc.) devem ter ocorrido por membros de grupos rivais que desejassem macular a imagem dos que regiam o terreiro.

Nesse interregno, ocorreu o evento da compra do terreno da genitora de Joãozinho da Gomeia por um desses grupos de interesse entre os membros da Gomeia. Essa compra tinha por função manter o terreiro em funcionamento, mas percebemos que o resultado não foi esse, pois acirrou os embates. O grupo que adquiriu o terreno optou por transferir os materiais religiosos mais importantes do local para outro terreiro, permitindo que os demais membros retirassem os seus assentamentos. Assim, transferiam-se elementos do dirigente. Mantinha-se uma continuidade do terreiro não mais na Gomeia de Duque de Caxias, mas em um terreiro que se assumiu como continuação da tradição do dirigente fora do estado do Rio de Janeiro. Com a transferência dos materiais, a casa tendeu a encerrar suas atividades definitivamente, e os membros contrários a essa ação se transferiram para outras casas. Neste momento, os grupos de interesse arrefeceram suas atuações, pois não havia mais nada pelo que brigar, tudo estava encerrado e transferido.

E como se deu o a destruição do local? Cruzando os dados arqueológicos e os orais, pode-se concluir que, com a morte de João Alves, os recursos para a manutenção da casa diminuíram drasticamente, pois não havia mais, por exemplo, o dinheiro vindo da mesa de jogo (uma das principais fontes de recursos de qualquer terreiro), fazendo com que a renda para financiar a compra de insumos tendesse a diminuir. Ao mesmo tempo, após sua morte, as querelas políticas avolumaram-se e tornaram assuntos, como a manutenção das estruturas, secundários. A partir dos dados da escavação, é possível interpretar que a direção da casa utilizou cotas ou mensalidades para a manutenção dos espaços. Vale destacar que essa estratégia podia não suprir a manutenção do terreiro.

Por um período, não houve dirigente residindo na Gomeia, ocorrendo a expressiva ausência populacional. As fontes orais indicam que os adeptos só se dirigiam ao local em dias de ritos e festas. Esse esvaziamento pode ter possibilitado a ocorrência de furtos de elementos construtivos, como já exposto.

Neste processo em que o local ia se arruinando, uma das soluções encontradas foi, então, transferir os elementos religiosos para outro terreiro, pois a devastação e/ou destruição da Gomeia encontrava-se em curso e era necessário salvaguardar a memória de João Alves. Se houve interesses religiosos de manter o legado de Joãozinho, como relatam os entrevistados, ou se foi uma ação que visava dar notoriedade e uma ideia de continuidade do terreiro em outro local, também expresso pelas fontes, não é possível determinar.

As análises arqueológicas realizadas indicam que os espaços erigidos passaram por outro processo: houve destruição das estruturas com o uso de maquinário (possivelmente um trator, não há como definir o tipo utilizado). A leitura desses dados infere que, uma vez transferida a cultura material, houve a intenção de inutilizar o espaço. Como ocorriam ainda “vozes” e posições que tencionavam mantê-lo aberto, fazia-se necessário impedi-las. A proibição da entrada no local foi seguida de sua destruição, baseada na ideia de que nada mais havia de religioso ali. A destruição deu-se com a utilização de um maquinário que adentrou o terreiro, no sentido norte-sul (do portão para dentro do terreno), e destruiu as paredes do barracão, as pilastras que o sustentavam, além das casas de santo e demais estruturas. A análise das estruturas de ferragem que compunham as vigas de sustentação das edificações identificou que se encontravam retorcidas e destruídas neste sentido (norte-sul), o que indica um evento único e violento de destruição. As figuras 2 a 5, a seguir, apresentam essa questão.

Figura 2
Vigas de sustentação das pilastras do barracão contorcidas no sentido norte-sul (indicado pela seta vermelha), demonstrando como houve uma ação mecânica de destruição da Gomeia

Figura 3
No círculo em vermelho, a viga que sustentava o palanque retorcida no mesmo sentido norte-sul, o que denota um evento único de destruição

Figura 4
Uma das pilastras de sustentação do teto do barracão

Observar que há uma linha de quebra do lado esquerdo que só poderia ser feita por máquina devido à grossura da estrutura (seta em vermelho)


Figura 5
Pilastra encontrada no contexto do Roncó

Observa-se que a sua quebra em ponta só poderia ter sido realidade por meio de maquinário, já que um marrete ou martelo não quebraria o cimento de forma a gerar essa ponta


Esta situação também foi analisada e corrobora a teoria condutora da pesquisa durante a escavação do Ariaxé do Terreiro. Na camada superior da estrutura, havia uma enorme quantidade de telhas quebradas que encobriram a estrutura associada a um sedimento arenoso, o que defendo ser a camada com a presença de material arqueológico. A disposição de telhas de amianto que compunham o teto de forma tão quebradiça deve ter se dado pelo uso do maquinário para a destruição do telhado do barracão.

O arruinamento da Gomeia, então, deu-se por uma sucessão de eventos de desmonte/furto seguido por uma destruição mecânica? Ficou claro para nós que, para barrar a possibilidade da manutenção do terreiro, após a transferência de sua cultura material religiosa para outro axé, foi efetuada a destruição de suas estruturas, o que impediria uma reocupação do local (se ela já não estivesse impedida pela posse do terreno por um dos membros litigantes que realizaram a referida transferência)25 25 Na atualidade, o terreno da Gomeia não possui a mesma área da época de sua fundação. Lotes foram vendidos pelo dono do terreno, que o adquiriu no contexto do conflito sucessório, presumivelmente na década de 1990. Os moradores que divisam com o terreiro são os mesmos desde a década de 1970. . Assim, destruir significava inutilizar os espaços. Para esse grupo, o espaço não era mais sagrado, em consequência, passível de destruição.

O processo de arruinamento não foi responsável apenas pela destruição da Gomeia, mas também por seu apagamento na paisagem de Duque de Caxias. Nesta perspectiva, se o que não é visto não é lembrado, destruir a presença física do terreiro é apagar a sua presença e, de certa maneira, as suas memórias. Essa afirmação faz-se com a constatação de que, após a destruição, se implementou uma camada de aterros com uma grossa camada de barro, que visava, em nossa leitura, apagar a presença do terreiro (vide figura 6, a seguir). Conforme visualizado na figura abaixo, essa camada encontra-se sobre os remanescentes da destruição com a clara intenção de aterrá-los. Tal ação poderia visar a venda futura do terreno, pois o descaracterizaria como um terreiro.

Uma vez soterrada a Gomeia, sua memória e sacralidade não seriam mais visíveis e só poderiam ser acessados na outra casa em que os objetos transferidos se encontram. Esta ação também pode ser entendida como a vitória de um dos grupos litigantes sobre os demais, pois o ato de soterrar aciona o signo do apagamento das memórias constantes na materialidade.

O processo de arruinamento da Gomeia caracterizou-se por uma sequência de eventos que se iniciaram ainda com o terreiro em funcionamento, nos eventos pós-falecimento do dirigente, mas foi rapidamente finalizado com a ação de um maquinário que destruiu as estruturas edificadas do local como forma de impedir sua continuidade. Esta foi uma ação política cara ao grupo que a empreendeu, pois apagou da paisagem de Duque de Caxias um dos terreiros referenciais para a formação do candomblé carioca e paulista, segundo Silva (1995SILVA, Vagner Gonçalves da. (1995), Orixás na metrópole. Petrópolis/RJ: Vozes. ). Para o autor, ao descrever a formação do candomblé em São Paulo, a primeira fase seria marcada pela inserção de casas de origem Angola entre as décadas de 1950 a 1960, sendo Joãozinho da Gomeia, seguido por Samba Diamongo, os principais vetores de abertura de casas26 26 As demais fases são: Segunda Fase (Rito Efón, 1950-1960) – há o contato de casas paulistas com baianas, em especial o Terreiro de Oloroquê de Cristóvão dos Anjos (que se mudará para Duque de Caxias e abrirá o Axé Pantanal), além da presença de Pai Waldomiro de Xangô e Alvinho de Omolu; Terceira Fase (Rito Ketu, 1960-1980) – predomina a influência das casas tradicionais de Salvador (Casa Branca e Gantois); Quarta Fase (Rito Ketu e reafricanização do culto com a influência da África e dirigentes de Ifá e outras nações como a Jeje) – marcada pela africanização do culto, os conceitos de sincretismo são criticados e há uma busca na África e no culto de Ifá de um Candomblé mais “puro” e não sincrético. Destaca-se a presença de casas de origem Jeje do Recôncavo da Bahia de Todos os Santos. .

Figura 6
Perfil estratigráfico da área escavada na Gomeia

O número 1 indica a Camada 1 (± 100 cm) onde não houve a presença de material arqueológico e consiste no nível atual do solo; o número 2, a Camada 2 (Selamento) (± 100 cm) que se difere das demais pela cor e ausência de material arqueológico; o número 3, a Camada 3 que consideramos como positiva para o material arqueológico (± 100 cm); por fim, a Camada 4, que identifica o piso das estruturas da Gomeia.


Os dados arqueológicos obtidos com as campanhas de escavação mostraram-nos que não havia no registro arqueológico portas, janelas ou outros elementos similares, o que pode ser indicativo de que estes já não compunham a Gomeia no evento final de destruição. A quantidade de telhas quebradas, também presentes no solo e de impossível contabilização, fornece a leitura de que estas não foram totalmente subtraídas, mas também destruídas pelo maquinário. Da mesma forma, a ausência de louças sanitárias no mesmo registro reforça ainda mais a hipótese de que foram retiradas antes da destruição.

Assim, as memórias da destruição, quando reunidas, apresentam um contexto tanto de dilapidação da memória física do terreiro como também a tentativa de uma dessacralização do local. Contudo, mesmo a ação física não apaga as experiências e vivências do sagrado pelo qual parte das fontes orais viveram. A sacralidade do terreiro não se desfez para todos, talvez pela suspensão repentina das querelas com a destruição, mas sobretudo pela ação da memória que “teima” ou ressignifica constantemente o que foi vivido. Isto gera um sentido de continuidade e de pertencimento, tal como expresso por parte das fontes ouvidas.

Pelo contexto observado, como analisar a crise sucessória que ocorreu no Terreiro da Gomeia? Muitos dos biógrafos do dirigente se eximem do contexto sucessório ou lhe dão um valor secundário em relação à continuidade da casa (Cossard 1970COSSARD, Gisèle. (1970), Contribution à l’Étude des Candomblés du Brésil. Le Rite Angola. Paris: Tese de Doutorado em Antropologia Social, Faculté des Lettres et Science Humaines, Sorbonne.; Siqueira 1971SIQUEIRA, Paulo. (1971), Vida e morte de Joãozinho da Gomeia. Rio de Janeiro: Nautilus. ; Nobre 2017NOBRE, Carlos. (2017), Gomeia João: a arte de tecer o invisível. Rio de Janeiro: Centro Portal Cultural. ). A pesquisa realizada observou que versões “lembradas” pelas fontes orais variam quanto ao ocorrido e às consequências obtidas. Porém, todas são unânimes em afirmar que houve um processo que arruinou o local. Se as versões são díspares, o resultado tendeu a ser um só: a Gomeia foi sendo destruída, transferida ou mesmo dilapidada em etapas sucessivas e nem sempre lineares até seu fechamento total entre os anos de 1985-1989, conforme os dados analisados do material arqueológico datável.

O processo de arruinamento e destruição do terreiro pode ser compreendido como um drama social, de acordo com Turner (1974TURNER, Victor W. (1974), O Processo Ritual: estrutura e anti-estrutura. Petrópolis: Vozes . ). Para este, o rito caracteriza-se pela mudança de um estado culturalmente reconhecido para outro ou para uma condição estável e recorrente. O sujeito ritual passa, portanto, a ter características que não o permitem ser o que era e muito menos ser o que virá a ser; ele se encontra suspenso ou em fase de aprendizagem de um novo estado social.

Em outra ocasião, no entanto, indiquei que cabe questionar se a teoria de Turner seria capaz de contemplar “a fragmentação das relações, o inacabamento das coisas, a dificuldade de significar o mundo” e se o “modelo de drama social também pode suprimir os ruídos [dos diversos atores envolvidos na situação]” (Pereira 2015PEREIRA, Rodrigo. (2015), “Sucessão e Liminaridade: o caso do Terreiro da Gomeia”. Tessituras: Revista de Antropologia e Arqueologia, nº 3: 372-402.:37). Sugeri que a instauração da reintegração não põe fim aos conflitos que emergem na sociedade ou grupo durante o período da liminaridade. Assim, o rito não possui, em si, esta capacidade totalizante de encerramento dos embates entre sujeitos rituais, conforme analiso o caso da Gomeia. A capacidade agencial dos sujeitos durante a liminaridade é aumentada ou se mantém após a reintegração. Portanto, tensões iniciadas antes da reintegração tendem a manter-se após esta e perpetuar uma situação de inacabamento das relações sociais.

Com a morte de Joãozinho da Gomeia, os conflitos deveriam ser solucionados com o rito do axexê e o assentamento de seu égun27 27 Espírito do/da membro de um terreiro de candomblé. Conforme a cosmologia dessa religião, tal espírito passa a zelar pelo terreiro que frequentou em vida. Para maiores informações acerca desse rito, ver Pereira (2015). como ancestre divinizado na casa, rito que ocorreu um mês depois28 28 Segundo os jornais consultados, a crise de sucessão teria se iniciado no ínterim desse rito, expandindo-se para além de seu término. Para dados completos sobre esse fato, ver Pereira (2015). . Como observado por meio das fontes analisadas, a subversão foi além da fase de liminaridade e manteve-se atuante até com a escolha de um novo sucessor. Mesmo após as disputas e a assunção da nova dirigente da casa, o embate pela direção ainda ocorria de forma clara, sendo o fato noticiado amplamente pelos jornais do período. Assim, o rito de inserção de Joãozinho da Gomeia no plano espiritual não conseguiu restituir o terreiro à sua normalidade. O que se vê no caso da Gomeia é antes uma continuidade das discordâncias emergentes na fase liminar. A agência dos sujeitos envolvidos nas tramas inerentes ao limem não foi encerrada com rito. Longe de terem suas inquietações resolvidas com a assunção de nova liderança, os membros da Gomeia puderam manter e “inflamar” a discordância do fato, mesmo a retomada (esperada) da normalidade do terreiro com o fim do rito.

O que esta situação ocorrida na Gomeia nos permite refletir é que o que se colocava “em jogo” não eram apenas questões religiosas de continuidade do local, mas também a capacidade de liderança de quem o deveria conduzir. A destruição material ocorrida é resultado direto do impasse sobre a falta de unicidade dos grupos políticos presentes. Sem uma liderança capaz de unificá-los ou ainda os conduzir a um acordo para o governo do local, a Gomeia manteve a crise de sucessão que resultou no processo de seu arruinamento. O resultado mais direto disso é a confirmação de que pontos de vista discordantes sobre a Gomeia e seu legado permanecem até a atualidade.

Vivência, experiências religiosas, amizades e construções de novos arranjos na família de santo da Gomeia foram interrompidas quando o tecido religioso não conseguiu solucionar seus conflitos. O “inacabado” do conflito - indicado por Pereira (2015PEREIRA, Rodrigo. (2015), “Sucessão e Liminaridade: o caso do Terreiro da Gomeia”. Tessituras: Revista de Antropologia e Arqueologia, nº 3: 372-402.) - manteve-se (e mantém-se), dando origem a uma polifonia de versões sobre a permanência ou não da sacralidade do terreiro29 29 A pesquisa conseguiu averiguar que centros e terreiros de umbanda utilizam o local como espaço de descarte de elementos religiosos e para a realização de ritos, aos quais não tivemos acesso. .

Do ponto de vista arqueológico, o processo de arruinamento da Gomeia pode ser entendido como uma questão micropolítica não solucionada, que culminou em uma sequência de ações - abandono, transferência de cultura material ou subtração desta - regimentadas por grupos de interesse diversos quanto à continuidade do local e sua liderança. A desagregação da Gomeia não ocorreu apenas no plano material, mas igualmente no conjunto dos indivíduos que compunham o terreiro. O dado arqueológico comprova que houve uma rememoração seletiva, que seleciona fatos e atores para dar sentido a determinados acontecimentos, posições políticas, relações afetivas, nunca isentas de sentido e orientadas pela posição do ator no contexto de conflito ocorrido. A materialidade dos estudos arqueológicos vem congregar mais uma forma de analisar como esta “edição” tende a ser seletiva e se atualiza no presente.

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  • RIETH, Flávia. (1995), “Augé, Marc. Não-lugares: introdução a uma antropologia da supermodernidade. Campinas: Papirus, 1994. (Coleção Travessia do Século)”. Revista Horizontes Antropológicos, nº 1, vol. 2: 270-271.
  • ROCHA, Agenor Miranda. (2000), As nações Kêtu: ritos e crenças: os Candomblés antigos do Rio de Janeiro Rio de Janeiro: Mauad.
  • SANTOS, Juana Elbin. (1984), Os nagô e a morte: Padê, Asèsè e o culto Égun na Bahia Petrópolis: Vozes.
  • SCHWARZSTEIN, Dora. (2001), “História Oral, memoria e historias traumáticas”. Revista História Oral, nº 4: 73-83.
  • SELIGMANN-SILVA, Márcio. (2005), O local da diferença: ensaios sobre memória, arte, literatura e tradução São Paulo: Editora 34.
  • SILVA, Vagner Gonçalves da. (1995), Orixás na metrópole Petrópolis/RJ: Vozes.
  • SILVA, Kalina Vanderlei; SILVA, Maciel Henrique. (2006), Dicionário de Conceitos Históricos São Paulo: Contexto.
  • SIQUEIRA, Paulo. (1971), Vida e morte de Joãozinho da Gomeia Rio de Janeiro: Nautilus.
  • THOMPSON, Edward P. (1978), The poverty of theory and other essays London: Merlin.
  • TURNER, Victor W. (1974), O Processo Ritual: estrutura e anti-estrutura Petrópolis: Vozes .
  • ZUMTHOR, Paul. (1997), Tradição e esquecimento São Paulo: HUCITEC.

Jornais consultados

  • JORNAL CORREIO DA MANHÃ . 9 dez. 1951.
  • ______. 3 abr. 1971.
  • ______. 5 abr. 1971.

Notas

  • 1
    Dados resultantes da Tese em Arqueologia intitulada Análise do espaço e da cultura material no extinto Terreiro da Gomeia (Duque de Caxias/RJ): um estudo etnoarqueológico. Atualmente, está em fase final de elaboração junto ao Programa de Pós-Graduação em Arqueologia do Museu Nacional da Quinta da Boa Vista (UFRJ). O autor agradece a CAPES e FAPERJ pelas bolsas de estudo e pesquisa.
  • 2
    No presente artigo, o termo babalorixá é sinônimo de Pai de Santo. Ambos significam a liderança masculina exercida em terreiros de candomblé.
  • 3
    Gama (2014), por exemplo, indica que políticos recorriam ao dirigente para ganharem eleições ou verem se determinadas situações lhe eram ou não favoráveis.
  • 4
    As fontes orais e os jornais divergem quanto à sua idade. Assim, a idade real é incerta e aproximada.
  • 5
    Conforme notícia do Correio da Manhã de 3 de abril de 1971 ______. 3 abr. 1971., Sandra ou Seci Caxi foi a escolhida pelos búzios para subir ao comando da Gomeia. Contudo, foi proibida pelo Juiz de Menores da Comarca de Duque de Caxias de assumir o cargo devido à idade. O mesmo jornal, publicado no dia 5______. 5 abr. 1971. daquele mês, indica que o Juiz de Menores era filho de santo da Gomeia, o que poderia passar ao público falta de lisura quanto ao processo ou mesmo que este era direcionado para que Sandra não assumisse o cargo.
  • 6
    O ariaxé pode ser um sulco construído no solo, uma pilastra que se aproxima do teto ou mesmo um poste unido ao telhado do terreiro e que tem por função ligar os planos material e religioso para as trocas de energia e presentificação das entidades em festas no terreiro. É, ainda, um dos centros de energia que tem por função manter o terreiro em funcionamento. Ele possui, via de regra, um assentamento de orixá/nikisi implantado pelo dirigente do local.
  • 7
    Alguns objetos pessoais de João Alves estão sob a posse do Instituto Histórico de Duque de Caxias.
  • 8
    A pedido dos entrevistados, no intuito de manter o seu anonimato, não serão citados seus nomes e, da mesma forma, os de seus terreiros.
  • 9
    Adota-se aqui o conceito de memória como propriedade de conservar certas informações, sentimentos e vivências que permitem ao indivíduo atualizar impressões ou informações passadas ou reinterpretadas como passadas (Silva & Silva 2006SILVA, Kalina Vanderlei; SILVA, Maciel Henrique. (2006), Dicionário de Conceitos Históricos. São Paulo: Contexto. ).
  • 10
    A História Oral está “envolvida com as questões da memória humana, tanto coletiva quanto individual. E, nesse sentido, passou a ser um relevante meio de valorização das identidades de grupos sem escrita, por meio da coleta de seus depoimentos e da análise de sua memória, de sua versão do mundo e dos acontecimentos” (Silva & Silva 2006SILVA, Kalina Vanderlei; SILVA, Maciel Henrique. (2006), Dicionário de Conceitos Históricos. São Paulo: Contexto. :186). Ver também Alberti (1989ALBERTI, Verena. (1990), História oral: a experiência do CPDOC. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas.).
  • 11
    Ciência que visa elucidar e debater os comportamentos humanos pretéritos a partir da análise da materialidade deixada pelos grupos humanos.
  • 12
    Tais como O Cruzeiro e Manchete.
  • 13
    Foram escolhidos o Jornal do Brasil e o Correio da Manhã. O primeiro por ser alinhado com a direita política e por defender o catolicismo. O segundo por ser alinhado à esquerda do país e pelo seu tom populista.
  • 14
    Para o presente artigo, adoto a noção de experiências religiosas de Thompson (1978THOMPSON, Edward P. (1978), The poverty of theory and other essays. London: Merlin.), entendida como o conjunto de informações, de contatos e mesmo de circulações que os entrevistados tiveram durante sua vida dentro do Terreiro da Gomeia.
  • 15
    No original: “ The study of living societies in order to help interpret the past, with a specific emphasis on the use and significance of artifacts, building and structures, and how these material things might become incorporated into the archaeological record”.
  • 16
    No original: “Archeologists in recent decades have developed ethnoarchaeology, where like ethonographers they live among contemporary communities, but with the specific purpose of understanding how such societies use material culture - how they make their tools and weapons, why they build their settlements where they do”.
  • 17
    Foram áreas onde o maquinário e os pesquisadores possuíam maior espaço para a realização das escavações, descartando áreas em que havia a contaminação por fezes de animais ou próximas ao riacho localizado nos fundos do terreno.
  • 18
    Este ponto é uma das conclusões da tese em elaboração e pode ser parcialmente consultado no artigo de Pereira (2017).
  • 19
    Apesar da referida tradução, Nicolau Parés (2007PARÉS, Luís Nicolau. (2007), A formação do candomblé: história e ritual da nação jeje na Bahia. São Paulo: Editora da UNICAMP. ) fornece-nos outra origem para o termo Gomeia: estaria relacionado a um terreiro, da tradição Jeje, denominado de “Agomé” que se situava na região onde João Alves abriu sua roça em Salvador: “O nome do terreiro deriva seguramente de Agbomé, atual Abomey, capital do antigo reino de Daomé […] Testemunhas oculares das festas daquela casa lembram que ‘tinha muitas pessoas jejes, era angola, mas tocava candomblé jeje, fazia muito Omolu, Oxumarê, Nanã’” (Parés 2007PARÉS, Luís Nicolau. (2007), A formação do candomblé: história e ritual da nação jeje na Bahia. São Paulo: Editora da UNICAMP. :154).
  • 20
    Para este ponto, adotamos a perspectiva de Pollak (1989POLLAK, Michel. (1989), “Memória, esquecimento e silêncio”. Estudos Históricos, vol. 2, nº 3: 3-15.) em que é determinante para o estudo da Memória o protagonismo dos sujeitos na construção da narrativa histórica. Assim, dá-se ênfase às suas subjetividades no processo narrativo do fato. Para que esses agentes da memória sejam compreendidos, não se deve olvidar da relação dominador-dominado quanto à posição de quem fala.
  • 21
    No Candomblé Angola, os deuses são, via de regra, nominados de Nkisis (Nikisi, no singular). Os Orixás são as divindades do culto Nagô/Ketu e os Voduns da tradição Jêje. Contudo, para alguns religiosos, há uma suposta equivalência entre os nomes, mas não há consenso sobre esse fato (ver a obra de Parés [2007], A formação do candomblé: história e ritual da nação jeje na Bahia, para esse fim). Assim, a grafia “deuses” responde a essa incerteza e, além disso, coloca nesta categoria entidades como Pombas-gira, Exus (Zé Pelintra, entre outros), Babá Éguns e Caboclos, que não são orixás, voduns ou nikisis.
  • 22
    Para este ponto, ver o texto de Mota (2009MOTA, Maria Sarita Cristina. (2009), Nas terras de Guaratiba: uma aproximação histórico-jurídica às definições de posse e propriedade da terra no brasil entre os séculos XVI - XIX. Rio de Janeiro: Tese de Doutorado em Ciências Sociais, CPDA/UFRRJ. ).
  • 23
    Em respeito ao Candomblé, em especial aos denominados éguns (espíritos dos dirigentes falecidos de uma casa), realizamos algumas oferendas de alimentos para solicitar a autorização da intervenção no solo, pois ele está sob seus cuidados.
  • 24
    Pereira (2017______. (2017), “Contribuições da arqueologia para a defesa do patrimônio e memória afro-brasileira”. Revista de Arqueologia Pública, vol. 11: 18-34.) afirma que a Arqueologia tem papel relevante no estudo das religiões afro-brasileiras, embora ainda seja um campo não reconhecido pela área. No entanto, a ideia da Gomeia como patrimônio arqueológico afro-religioso tem sido bem recebida pelos interessados na preservação dessa memória. Sobre esta defesa, ver o artigo de Pereira (2017______. (2017), “Contribuições da arqueologia para a defesa do patrimônio e memória afro-brasileira”. Revista de Arqueologia Pública, vol. 11: 18-34.).
  • 25
    Na atualidade, o terreno da Gomeia não possui a mesma área da época de sua fundação. Lotes foram vendidos pelo dono do terreno, que o adquiriu no contexto do conflito sucessório, presumivelmente na década de 1990. Os moradores que divisam com o terreiro são os mesmos desde a década de 1970.
  • 26
    As demais fases são: Segunda Fase (Rito Efón, 1950-1960) – há o contato de casas paulistas com baianas, em especial o Terreiro de Oloroquê de Cristóvão dos Anjos (que se mudará para Duque de Caxias e abrirá o Axé Pantanal), além da presença de Pai Waldomiro de Xangô e Alvinho de Omolu; Terceira Fase (Rito Ketu, 1960-1980) – predomina a influência das casas tradicionais de Salvador (Casa Branca e Gantois); Quarta Fase (Rito Ketu e reafricanização do culto com a influência da África e dirigentes de Ifá e outras nações como a Jeje) – marcada pela africanização do culto, os conceitos de sincretismo são criticados e há uma busca na África e no culto de Ifá de um Candomblé mais “puro” e não sincrético. Destaca-se a presença de casas de origem Jeje do Recôncavo da Bahia de Todos os Santos.
  • 27
    Espírito do/da membro de um terreiro de candomblé. Conforme a cosmologia dessa religião, tal espírito passa a zelar pelo terreiro que frequentou em vida. Para maiores informações acerca desse rito, ver Pereira (2015).
  • 28
    Segundo os jornais consultados, a crise de sucessão teria se iniciado no ínterim desse rito, expandindo-se para além de seu término. Para dados completos sobre esse fato, ver Pereira (2015).
  • 29
    A pesquisa conseguiu averiguar que centros e terreiros de umbanda utilizam o local como espaço de descarte de elementos religiosos e para a realização de ritos, aos quais não tivemos acesso.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Dez 2017

Histórico

  • Recebido
    19 Out 2017
  • Aceito
    27 Fev 2018
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