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Concepções afirmativas e negativas sobre o ato de ensinar

Affirmative and negative conceptions on teaching

Resumos

O artigo postula a necessidade de uma concepção afirmativa sobre o ato de ensinar e analisa criticamente algumas concepções consideradas negativas em relação ao ensino como transmissão de conhecimento. Nesse sentido, defende que a Escola Nova e o Construtivismo estabelecem uma dicotomia entre a transmissão de conhecimentos pelo professor e a conquista da autonomia intelectual pelo aluno, secundarizando, assim, o ensino e descaracterizando o papel do professor. O artigo analisa, ainda, alguns postulados defendidos por Vigotski e seguidores, que iriam numa direção oposta à das idéias defendidas pela Escola Nova e pelo Construtivismo.

Ensino; construtivismo; Vigotski


The article postulates the necessity of an affirmative conception on teaching and critically analyses some conceptions considered negative according to teaching as transmission of knowledge. In this way, the article supports that the "New School" and Constructivism establish a dichotomy between the transmission of knowledge by the teacher and the effort for intellectual autonomy by the learner, leaving teaching in a secondary place and depriving the teachers role of its characteristics. The article still analyses some postulates defended by Vigotski and his followers, which read to an opposite direction, far from those ideas defended by the "New School" and Constructivism.


Concepções afirmativas e negativas sobre o ato de ensinar

Newton Duarte* * Unesp/Araraquara Unesp/Araraquara

RESUMO: O artigo postula a necessidade de uma concepção afirmativa sobre o ato de ensinar e analisa criticamente algumas concepções consideradas negativas em relação ao ensino como transmissão de conhecimento. Nesse sentido, defende que a Escola Nova e o Construtivismo estabelecem uma dicotomia entre a transmissão de conhecimentos pelo professor e a conquista da autonomia intelectual pelo aluno, secundarizando, assim, o ensino e descaracterizando o papel do professor. O artigo analisa, ainda, alguns postulados defendidos por Vigotski e seguidores, que iriam numa direção oposta à das idéias defendidas pela Escola Nova e pelo Construtivismo.

Palavras-chave: Ensino, construtivismo, Vigotski

Neste texto, além de argumentarmos pela necessidade de uma concepção afirmativa sobre o ato de ensinar, esboçaremos uma análise de algumas concepções que consideramos apresentarem um posicionamento negativo sobre esse ato.

Na medida em que o ato de ensinar é parte integrante do trabalho educativo, entendemos ser necessário iniciar pela análise da concepção de trabalho educativo que adotamos, formulada por Saviani (1995, p. 17):

O trabalho educativo é o ato de produzir, direta e intencionalmente, em cada indivíduo singular, a humanidade que é produzida histórica e coletivamente pelo conjunto dos homens. Assim, o objeto da educação diz respeito, de um lado, à identificação dos elementos culturais que precisam ser assimilados pelos indivíduos da espécie humana para que eles se tornem humanos e, de outro lado e concomitantemente, à descoberta das formas mais adequadas para atingir esse objetivo.

Analisemos mais de perto alguns aspectos desse conceito. O que o trabalho educativo produz? Ele produz, nos indivíduos singulares, a humanidade, isto é, o trabalho educativo alcança sua finalidade quando cada indivíduo singular apropria-se da humanidade produzida histórica e coletivamente, quando o indivíduo apropria-se dos elementos culturais necessários à sua formação como ser humano, necessários à sua humanização. Portanto, a referência fundamental é justamente o quanto o gênero humano conseguiu se desenvolver ao longo do processo histórico de sua objetivação. Está implícita a esse conceito, a dialética entre objetivação e apropriação, que constitui o núcleo fundamental da concepção de Marx do processo histórico de humanização (cf. Duarte 1993, cap. I).

As "forças essenciais humanas", para usar uma expressão de Marx, resultam da atividade social objetivadora dos homens. São, portanto, forças essenciais objetivadas. Assim, não existe uma essência humana independente da atividade histórica dos seres humanos, da mesma forma que a humanidade não está imediatamente dada nos indivíduos singulares. Essa humanidade, que vem sendo produzida histórica e coletivamente pelo conjunto dos homens, precisa ser novamente produzida em cada indivíduo singular. Trata-se de produzir nos indivíduos algo que já foi produzido historicamente.

Note-se que nesse conceito está formulada a necessidade de identificar os elementos culturais necessários à humanização do indivíduo. Existe aí um duplo posicionamento do trabalho educativo. O trabalho educativo posiciona-se, em primeiro lugar, em relação à cultura humana, em relação às objetivações produzidas historicamente. Esse posicionamento, por sua vez, requer também um posicionamento sobre o processo de formação dos indivíduos, sobre o que seja a humanização dos indivíduos. A questão da historicidade faz-se presente nesses dois posicionamentos. Afinal, uma concepção historicizadora da cultura humana não se posiciona sobre aquilo que considera as conquistas mais significativas e duradouras para a humanidade? Igualmente, uma postura historicizadora do indivíduo não estabelece como referência maior aquilo que historicamente já existe como possibilidades de vida humana, para fazer a crítica às condições concretas da vida dos indivíduos e estabelecer diretrizes para o processo educativo desses indivíduos?

Esse conceito do trabalho educativo, tendo como referência o processo de humanização do gênero humano e dos indivíduos, aponta na direção da superação do conflito entre as pedagogias da essência e as pedagogias da existência. Cabe ao pedagogo e filósofo polonês Bogdan Suchodolski (1984), o mérito de ter caracterizado esse conflito como o cerne das disputas históricas entre as várias concepções de educação, de formação dos seres humanos. Saviani (1989), incorporando a contribuição do pedagogo polonês, analisou o conflito entre a pedagogia tradicional e a pedagogia nova como um conflito entre pedagogia da essência e pedagogia da existência, interpretando esse conflito à luz da passagem, da burguesia, de classe revolucionária à classe consolidada no poder e defensora da ordem estabelecida. Nosso objetivo aqui não é o de entrar nos detalhes dessa análise histórica, mas sim verificar quais as implicações desse conceito de trabalho educativo para a construção de uma pedagogia que vá além das pedagogias da essência e das pedagogias da existência.

O conflito entre as pedagogias da essência e as pedagogias da existência, traduzido de forma esquemática, é um conflito entre educar guiado por um ideal abstrato de ser humano, por uma essência humana a-histórica e educar para a realização dos objetivos imanentemente surgidos na vida de cada pessoa, na sua existência. Em Duarte (1993, pp. 203-208), analisamos esse tema sob a ótica do conceito de alienação enquanto distanciamento e conflito entre as forças essenciais humanas, que vão sendo objetivadas em níveis cada vez mais elevados, e as condições concretas da existência da maioria dos indivíduos humanos.

O conceito de trabalho educativo aqui adotado situa-se numa perspectiva que supera a opção entre a essência humana abstrata e a existência empírica. A essência abstrata é recusada na medida em que a humanidade, as forças essenciais humanas, são concebidas como cultura humana objetiva e socialmente existente, como produto da atividade histórica dos seres humanos. Produzir nos indivíduos singulares "a humanidade que é produzida histórica e coletivamente pelo conjunto dos homens", significa produzir a apropriação pelos indivíduos das forças essenciais humanas objetivadas historicamente. Esse conceito de trabalho educativo também supera a concepção de educação guiada pela existência empírica, na medida em que sua referência para a educação é a formação do indivíduo como membro do gênero humano (sobre a categoria de gênero humano numa perspectiva histórico-social vide Duarte 1993, cap. III). Ao adotar a referência da formação do indivíduo como membro da espécie humana (ou gênero humano), esse conceito de trabalho educativo está estabelecendo como um dos valores fundamentais da educação, o do desenvolvimento do indivíduo para além dos limites impostos pela divisão social do trabalho. E isso está explícito também nas críticas feitas por Saviani à pedagogia escolanovista, quando esta, em nome da democracia, do respeito às diferenças individuais, acaba por legitimar desigualdades resultantes das relações sociais alienadas.

Passemos agora a um último aspecto desse conceito: a definição do trabalho educativo como uma produção direta e intencional. Decorre desse aspecto a afirmação de que concomitantemente com o posicionamento perante os elementos da cultura humana historicamente acumulada, é necessária a descoberta das formas mais adequadas de atingir o objetivo de produção do humano no indivíduo.

O trabalho educativo é, portanto, uma atividade intencionalmente dirigida por fins. Daí o trabalho educativo diferenciar-se de formas espontâneas de educação, ocorridas em outras atividades, também dirigidas por fins, mas que não são os de produzir a humanidade no indivíduo. Quando isso ocorre, nessas atividades, trata-se de um resultado indireto e inintencional. Portanto, a produção no ato educativo é direta em dois sentidos. O primeiro e mais óbvio é o de que se trata de uma relação direta entre educador e educando. O segundo, não tão óbvio, mas também presente, é o de que a educação, a humanização do indivíduo é o resultado mais direto do trabalho educativo. Outros tipos de resultado podem existir, mas serão indiretos.

Há um acento de valor positivo nesse conceito de trabalho educativo como produção intencional. Ele assume, enquanto um processo de desenvolvimento do ser humano, o fato de que a formação dos indivíduos seja elevada ao plano de um processo intencionalmente dirigido. Vale aqui assinalar a existência, nesse ponto, de uma decisiva confluência entre a pedagogia histórico-crítica e a psicologia histórico-cultural ("Escola de Vigotski"2), que desenvolveu um grande trabalho teórico e prático, guiado justamente pelo princípio de que cabe ao processo educativo dirigir o desenvolvimento psíquico do indivíduo e não caminhar a reboque de um desenvolvimento espontâneo e natural (cf. Davidov & Shuarev 1987; Leontiev 1978; Shuare 1990; Vygotski 1991 e 1993).

Essa breve análise do conceito de trabalho educativo por nós adotado evidencia que esse conceito implica um posicionamento afirmativo sobre o ato de ensinar, isto é, trata-se de construir uma concepção pedagógica que contenha em seu cerne esse posicionamento afirmativo e que, conseqüentemente, se posicione polemicamente em relação às concepções negativas sobre o ato de ensinar. Citaremos, a seguir, três exemplos dessas concepções.

O primeiro exemplo é o das teorias "crítico-reprodutivistas" (cf. Saviani 1989). É sabido que essas teorias não apresentam propostas relativas ao que-fazer do trabalho educativo, posto que consideram que o trabalho no interior da escola está irremediavelmente condenado a reproduzir as relações sociais de dominação. O objetivo dessas teorias reside em revelar tal reprodução, fazer sua crítica e mostrar que antes da superação, em nível da sociedade como um todo, do modo de produção capitalista, não há possibilidade de se realizar um trabalho no interior da escola que não tenha como resultado objetivo, independentemente das intenções dos educadores, a reprodução da divisão social do trabalho, isto é, das relações sociais de dominação. Assim, sem dúvida, trata-se de um posicionamento negativo quanto às possibilidades de o trabalho educativo assumir um caráter humanizador ainda no interior da sociedade capitalista. Essas teorias sobre a educação não têm como objetivo construir nenhuma pedagogia.

Assim, o desafio a ser enfrentado por qualquer concepção crítica da educação, que pretenda constituir-se numa pedagogia, consiste em manter-se crítica ao mesmo tempo que apresente uma proposta afirmativa sobre a formação dos seres humanos hoje.

Um segundo exemplo de um posicionamento negativo em relação ao ato de ensinar é o de uma pedagogia, a pedagogia da Escola Nova. Contrapondo-se à Escola Tradicional, que tinha como centro do processo educativo a transmissão de conteúdos pelo professor, a Escola Nova propôs a chamada "Revolução de Copérnico da Educação", colocando como centro do processo educativo o aluno e o ato de "aprender a aprender". Aqui já não se trata, como no caso das teorias crítico-reprodutivistas, de uma corrente que se recuse a apresentar uma proposta pedagógica. Trata-se, isto sim, de uma proposta pedagógica em cujo cerne encontra-se uma secundarização do ato de transmissão dos conteúdos escolares pelo professor. Não precisamos repetir aqui todos os argumentos apresentados por Saviani (1989) para mostrar que, na América Latina, os efeitos concretos da Escola Nova foram principalmente os de rebaixamento do nível de ensino destinado às classes populares. O que nos parece mais importante a destacar aqui é o fato de que, paradoxalmente, a Escola Nova, ainda que tenha se concentrado em sua análise da educação nos aspectos intra-escolares, secundarizando a inserção da educação na luta política no sentido amplo do termo, acabou por esvaziar a própria essência do trabalho educativo, transformando o processo de ensino-aprendizagem em algo desprovido de conteúdo. Como disse Saviani (1989, p. 86):

Veja-se o paradoxo em que desemboca a Escola Nova; a contradição interna que atravessa de ponta a ponta sua proposta pedagógica: de tanto endeusar o processo, de tanto valorizá-lo em si e por si, acabou por transformá-lo em algo místico, uma entidade metafísica, uma abstração esvaziada de conteúdo e sentido.

Nesse sentido, julgamos ser legítimo afirmar que apesar de colocar no centro de seu discurso o processo educativo, a Escola Nova assumiu um posicionamento negativo quanto à própria essência histórica e socialmente constituída do trabalho educativo. Como procuramos mostrar ao analisar o conceito de trabalho educativo aqui adotado, não se trata de preconizar que esse trabalho possua uma essência metafísica e a-histórica, mas sim de captar aquilo que no processo histórico, em particular a partir do surgimento do capitalismo, acabou por constituir o núcleo humanizador do trabalho educativo, sem desconsiderar-se que tal núcleo desenvolveu-se no interior das contradições que caracterizam todas as instâncias da prática social nas sociedades alienadas. A Escola Nova não foi capaz de captar esse núcleo, isto é, não foi capaz de captar o que historicamente constitui-se como a função clássica do trabalho educativo. Como disse Saviani (1995, p. 23): "Clássico na escola é a transmissão-assimilação do saber sistematizado."

O terceiro exemplo de um posicionamento negativo em relação ao ato de ensinar seria o das concepções pedagógicas que, como no caso do Construtivismo, respaldam-se em teorias psicológicas que valorizam as aprendizagens que o indivíduo realiza sozinho, como qualitativamente superiores àquelas onde o indivíduo assimila conhecimento através da transmissão de outras pessoas. Dentro do próprio Construtivismo existem muitas variações quanto a essa questão. Algumas posições mais extremadas tendem a considerar o processo de desenvolvimento psíquico do indivíduo como independente da assimilação dos conhecimentos socialmente existentes. Essa posição encontra respaldo na concepção de Piaget sobre as relações entre desenvolvimento e aprendizagem. Como disse Vigotskii (1988, p. 104), acerca da teoria de Piaget:

É claro que esta teoria implica uma completa independência do processo de desenvolvimento e do de aprendizagem, e chega até a postular uma nítida separação de ambos os processos no tempo. O desenvolvimento deve atingir uma determinada etapa, com a conseqüente maturação de determinadas funções, antes de a escola fazer a criança adquirir determinados conhecimentos e hábitos. O curso do desenvolvimento precede sempre o da aprendizagem. A aprendizagem segue sempre o desenvolvimento. Semelhante concepção não permite sequer colocar o problema do papel que podem desempenhar, no desenvolvimento, a aprendizagem e a maturação das funções ativadas no curso da aprendizagem. O desenvolvimento e a maturação destas funções representam um pressuposto e não um resultado da aprendizagem. A aprendizagem é uma superestrutura do desenvolvimento, e essencialmente não existem intercâmbios entre os dois momentos. (grifo no original)

Nesse caso não se trata apenas da secundarização da aprendizagem escolar em termos de suas influências sobre o desenvolvimento intelectual do indivíduo, mas de uma dicotomia mais acentuada, isto é, trata-se de separação dos dois processos e de uma total independência do processo de desenvolvimento, encarado como um processo de maturação do psiquismo individual. É evidente que tal concepção resulta numa desvalorização do processo de ensino. Becker (1993, p. 71), por exemplo, fundamentando-se em Piaget, explicita claramente sua concepção sobre quanto a pretensão de ensinar, isto é, de transmitir o conhecimento, prejudicaria o desenvolvimento cognitivo do aluno:

Quando um professor ensina um conteúdo a seus alunos (...) ele atravessa todo o processo de construção do conhecimento obstruindo o processo de abstração reflexionante. Em nome da transmissão do conhecimento ele impede a construção de estruturas básicas de todo o conhecer, ou o a priori de toda a compreensão. É isto que Piaget quer dizer ao afirmar que toda a vez que ensinamos algo à criança, impedimos que ela invente esta e tantas outras coisas.

Mas existem formulações que procuram atenuar tal dicotomia, apresentando o processo de ensino escolar como um processo de intervenção que visaria propiciar as condições para a construção autônoma, pelo indivíduo, do conhecimento. Salvador (1994, p. 136), assim expressa sua interpretação construtivista da ação educativa escolar:

Numa primeira aproximação, a concepção construtivista da intervenção pedagógica postula que a ação educacional deve tratar de incidir sobre a atividade mental construtiva do aluno, criando as condições favoráveis para que os esquemas de conhecimento — e, em conseqüência, os significados associados aos mesmos — que inevitavelmente o aluno constrói no decurso de suas experiências sejam os mais corretos e ricos possível e se orientem na direção marcada pelas intenções que presidem e guiam a educação escolar. Numa perspectiva construtivista, a finalidade última da intervenção pedagógica é contribuir para que o aluno desenvolva a capacidade de realizar aprendizagens significativas por si mesmo numa ampla gama de situações e circunstâncias, que o aluno "aprenda a aprender". (grifo no original)

Essa passagem reforça, em muito, uma das hipóteses com a qual temos trabalhado em nossos estudos, qual seja, a de que o Construtivismo retoma em outras roupagens muitas das idéias fundamentais da Escola Nova. Mas neste momento não é sobre esse aspecto que nos deteremos e sim sobre a questão da valoração, como objetivo maior da educação escolar, o de "contribuir para que o aluno desenvolva a capacidade de realizar aprendizagens significativas por si mesmo". Em outra passagem, o mesmo autor expõe a mesma idéia de forma ainda mais enfática:

Aprender a aprender, sem dúvida o objetivo mais ambicioso, mas irrenunciável, da educação escolar, equivale a ser capaz de realizar aprendizagens significativas por si só numa ampla gama de situações e circunstâncias. (grifo no original)

Não se trata aqui de questionar a necessidade de a aprendizagem escolar desenvolver nos alunos a capacidade de realizarem aprendizagens de forma autônoma. O que estamos sim questionando é por que esse tipo de aprendizagem deve ser valorado como qualitativamente superior às aprendizagens que decorrem da transmissão de conhecimentos por outra pessoa. Relacionado a essa secundarização da transmissão de conhecimentos está o problema da definição do papel do professor no processo educativo. É interessante notar que no Construtivismo, a despeito das constantes afirmações de que o professor tem um papel importante no processo educativo (seria difícil afirmar-se explicitamente o contrário, posto que normalmente se escreve para professores), esse papel acaba por ser diluído de tal forma que se resume ao de alguém que acompanha o desenvolvimento e a aprendizagem da criança. Vejamos o que diz Freitas (1988, p. 108), acerca do papel da professora no ensino da escrita:

O que questionamos é o papel da professora neste ensino. Entendemos que o processo de aprendizagem da escrita, assim como a aprendizagem de qualquer conteúdo, deve ser conduzido pela criança, cabendo à professora criar situações desafiadoras para que o processo ocorra e, eventualmente, orientando-a no caminho mais rápido, menos dispersivo, mais eficaz e interessante. (grifo nosso)

Diga-se de passagem, que tal posição aproxima-se bastante do que afirmou o próprio Piaget (1984, p. 15), ao analisar o que considerava necessário mudar no terreno do ensino de ciências:

A primeira dessas condições é naturalmente o recurso aos métodos ativos, conferindo-se especial relevo à pesquisa espontânea da criança ou do adolescente e exigindo-se que toda verdade a ser adquirida seja reinventada pelo aluno, ou pelo menos reconstruída e não simplesmente transmitida. Ora, dois freqüentes mal-entendidos reduzem bastante o valor das experiências realizadas até agora neste sentido. O primeiro é o receio (e, para alguns, a esperança) de que se anule o papel do mestre, em tais experiências, e que, visando ao pleno êxito das mesmas, seja necessário deixar os alunos totalmente livres para trabalhar ou brincar segundo melhor lhes aprouver. Mas é evidente que o educador continua indispensável, a título de animador, para criar as situações e armar os dispositivos iniciais capazes de suscitar problemas úteis à criança, e para organizar, em seguida, contra-exemplos que levem à reflexão e obriguem ao controle das soluções demasiado apressadas: o que se deseja é que o professor deixe de ser apenas um conferencista e que estimule a pesquisa e o esforço, ao invés de se contentar com a transmissão de soluções já prontas.

É interessante notar que tanto no Construtivismo como na Escola Nova, assumiram um acento de valor claramente negativo o verbo ensinar e a expressão "transmissão de conhecimentos". O professor é reduzido a um "animador", a alguém que fornece condições para que o aluno construa por si mesmo o conhecimento. Para não ser reduzido a um mero enfeite do processo educativo, pode até, "eventualmente", fornecer alguma orientação para o aluno.

Adotando uma posição polêmica em relação a essas concepções negativas sobre o ato de ensinar e buscando contribuir para a construção de uma concepção educacional que adote um posicionamento afirmativo sobre o ato de ensinar, temos desenvolvido estudos visando a aproximação entre a pedagogia histórico-crítica e a psicologia histórico-cultural, também conhecida como Escola de Vigotski (parte desses estudos é apresentada em Duarte 1996). A essa altura, com certeza alguns estão formulando a seguinte pergunta: Mas se você acabou de afirmar ser o Construtivismo uma concepção negativa sobre o ato de ensinar, o que o leva a buscar na psicologia histórico-cultural elementos para uma concepção afirmativa sobre o ato de ensinar? Afinal, Vigotski não tem sido considerado como pertencente à corrente denominada Construtivismo?

Nossa resposta a essa questão é a de que, a despeito da Escola de Vigotski vir sendo denominada, no Brasil, de socioconstrutivista e sociointeracionista, não concordamos com tais denominações e, mais do que isso, vemos decisivas divergências entre a concepção histórico-social de ser humano contida nos trabalhos da Escola de Vigotski e o paradigma construtivista-interacionista.

Sabemos que essa posição esbarra de frente com a maioria do que tem sido escrito sobre Vigotski no Brasil. Rocco (1990, p. 26-27) diz que:

(...) há muitos pontos em comum entre Vygotsky e Piaget, a começar pela linha cognitivista, construtivista-interacionista que se encontra na base teórica dos trabalhos de ambos.(...) Apesar de o termo (...) vir tradicionalmente ligado à obra de Piaget, acreditamos não ser impertinente, portanto, aplicá-lo às posições teóricas de Vygotsky e Luria, ressalvando tratar-se aqui, evidentemente, de um sócio-interacionismo, cujo enfoque principal é de raiz histórico-dialética, visto sob a luz da teoria marxista.

Posição similar é defendida por Oliveira (1993, pp. 103-104):

Embora haja uma diferença muito marcante no ponto de partida que definiu o empreendimento intelectual de Piaget e Vygotsky - o primeiro tentando desvendar as estruturas e mecanismos universais do funcionamento psicológico do homem e o último tomando o ser humano como essencialmente histórico e portanto sujeito às especificidades do seu contexto cultural - há diversos aspectos a respeito dos quais o pensamento desses dois autores é bastante semelhante. (...) Tanto Piaget como Vygotsky são interacionistas, postulando a importância da relação entre indivíduo e ambiente na construção dos processos psicológicos; nas duas abordagens, portanto, o indivíduo é ativo em seu próprio processo de desenvolvimento: nem está sujeito apenas a mecanismos de maturação, nem submetido passivamente a imposições do ambiente.

Apenas para citar outros dois trabalhos de relativa divulgação, mencionamos Davis e Oliveira (1990) e Rosa (1994), onde também o pensamento de Vigotski é enquadrado no modelo interacionista-construtivista.

Ainda que nossa hipótese não se restrinja à questão da denominação dessa escola, começaremos por essa questão, posto que o nome de uma escola é um dos elementos que definem sua especificidade perante outras.

Além das denominações "socioconstrutivismo", "sociointeracionismo" e "sociointeracionismo-construtivista", a Escola de Vigotski foi chamada no Brasil também de "construtivismo pós-piagetiano" (Grossi e Bordin, 1993).

Diga-se em primeiro lugar que nenhuma dessas denominações aparece nas obras de Vigotski, Leontiev, Luria, Galperin, Elkonin, Davidov, ou qualquer outro membro dessa escola. Esses autores preocuparam-se sempre em caracterizar essa psicologia naquilo que ela tem de diferenciador em relação a outras, ou seja, sua abordagem histórico-social do psiquismo humano. Por essa razão, as denominações que eles mais utilizaram para se autocaracterizarem foram a de teoria histórico-cultural e a de teoria da atividade, sendo esta segunda denominação empregada para caracterizar especificamente o trabalho de Leontiev e seus seguidores. O próprio Leontiev, num texto sobre essa corrente da psicologia, caracterizou como central o paradigma histórico do psiquismo por ela adotado, desde os trabalhos de Vigotski. Assim, acreditamos que não há porque não utilizar a denominação histórico-cultural, isto é, não há por que buscar um critério para a denominação que seja externo ao esforço feito pela própria Escola de Vigotski de autocaracterização.

Sejamos ainda mais claros: o divisor de águas para a Escola de Vigotski, quando da caracterização das correntes da psicologia, residia justamente na abordagem historicizadora ou não-historicizadora do psiquismo humano. Ora, para eles somente uma psicologia marxista poderia abordar de forma plenamente historicizadora o psiquismo humano. E não se trata apenas de uma das possíveis formas de se conceber o psiquismo, mas sim de que ele não pode ser plenamente compreendido se não for abordado como um objeto essencialmente histórico.

Estamos perante a questão do critério de classificação das correntes da psicologia. Quando o critério é a historicização ou não do psiquismo, Piaget, Skinner e Freud estão muito mais próximos um do outro do que da psicologia da Escola de Vigotski.

Procuraremos mostrar aqui que o interacionismo é um modelo epistemológico que aborda o psiquismo humano de forma biológica, ou seja, não dá conta das especificidades desse psiquismo como um fenômeno histórico-social. Com isso, estamos defedendo que a psicologia histórico-cultural não é uma variante do interacionismo-construtivista. Não basta colocarmos o adjetivo social. A questão é a de que a especificidade dessa escola da psicologia perante outras não pode ser abarcada pela categoria de interacionismo nem pela de construtivismo.

Para efeito dessa análise epistemológica, passaremos a empregar a expressão interacionismo-construtivista, como tradução de um mesmo modelo epistemológico, independentemente de ele ser chamado por algum autor através apenas do adjetivo interacionista ou do adjetivo construtivista. Entendemos como legítima essa nossa atitude, pelo fato de que ambos os termos têm a origem de sua utilização na mesma fonte, a obra de Piaget.

São abundantes os trabalhos que fazem referência às origens, na obra de Piaget, do modelo epistemológico interacionista-construtivista. Limitando-nos a algumas obras recentes e de fácil acesso, mencionamos aqui os trabalhos de Azenha (1993), Davis e Oliveira (1990) e Rosa (1994). Com pequenas variações de terminologia, esses três trabalhos mostram que o modelo interacionista-construtivista apresenta-se por oposição a dois outros modelos epistemológicos: o empirismo e o inatismo (ou pré-formismo). Como explica Azenha (1993, pp. 19, 20 e 22):

De um lado, o programa de pesquisa de Locke e seus sucessores, de Condillac a Skinner, conhecido como "empirismo" (...) A interpretação "empirista" do conhecimento supervaloriza o papel da experiência sensível, particularmente da percepção, que inscreveria direta ou indiretamente os conteúdos da vida mental sobre um indivíduo com extrema plasticidade. Essa plasticidade, por sua vez, seria decorrente de uma baixíssima indeterminação mental por ocasião do nascimento. (...) Do outro lado, a segunda resposta clássica à questão naufragaria no extremo oposto, admitindo, na origem, uma forte determinação ou dotação mental desde o nascimento. Dito de outra forma, outros programas de pesquisa partem de um compromisso ontológico com o inatismo ou o pré-formismo. (...) A solução da origem e processo do conhecimento, para Piaget, está numa terceira via, alternativa ao empirismo e ao pré-formismo. O Construtivismo seria solução para o estudo e desenvolvimento da gênese do conhecimento.

De fato, não discordamos que a psicologia histórico-cultural também se oponha tanto às abordagens inatistas quanto às empiristas. Ocorre que há algo que pode unir pré-formistas, empiristas e interacionistas: o modelo biológico, naturalizante, a partir do qual é assumida uma posição perante essa questão. Para a Escola de Vigotski, mais importante do que apenas superar os unilateralismos na análise da relação sujeito-objeto, era buscar compreender as especificidades dessa relação quando sujeito e objeto são históricos e quando a relação entre eles também é histórica. Não é possível compreender essas especificidades quando se adota o modelo biológico da interação entre organismo e meio ambiente. Azenha (1991, p. 24) explicita que o interacionismo-construtivista de Piaget apóia-se nesse modelo biológico:

...a concepção do funcionamento cognitivo em Piaget é a aplicação no campo psicológico de um princípio biológico mais geral da relação de qualquer ser vivo em interação com o ambiente. Ser bem-sucedido na perspectiva biológica implica a possibilidade de conseguir um ponto de equilíbrio entre as necessidades biológicas fundamentais à sobrevivência e as agressões e restrições colocadas pelo meio à satisfação dessas mesmas necessidades.

A autora prossegue mostrando que nesse processo intervém dois mecanismos: a organização do ser vivo e a adaptação ao meio. Explica ainda que a adaptação se realiza através dos processos de assimilação e acomodação (ibidem, p. 25). Freitag (1991, p. 35) sintetiza de forma semelhante as idéias de Piaget sobre essa questão e diz que:

Os mesmos mecanismos de assimilação e acomodação desenvolvidos pelos moluscos dos lagos, em termos puramente orgânicos, são desenvolvidos pelo homem no plano das estruturas cognitivas, destinadas a facilitar a adaptação do organismo humano ao seu meio.

Assim, se empregarmos a categoria de interacionismo (que vimos resultar de um modelo essencialmente biológico) para caracterizar a Escola de Vigotski, estaremos tentando enquadrar essa escola sob um modelo que contraria a pretensão fundamental de construir uma psicologia histórico-cultural do homem.

Além disso, parece-nos que, freqüentemente, essa questão é mal interpretada, pois ela afirma que trazer Vigotski para o interacionismo-construtivista seria trazer o social para essa corrente. O senso comum pedagógico expresso na matéria publicada pela Revista Nova Escola (lagoa 1994) já traduz isso dizendo que Vigotski seria "uma pitada social no Construtivismo". Acrescente-se que a concepção de social expressa nessa matéria não ultrapassa o estar fazendo algo junto com outras pessoas, isto é, não ultrapassa a existência de processos intersubjetivos. Uma leitura atenta de Vigotski revela que, apesar de tratar da questão da intersubjetividade, ele nunca reduziu o social a isso. Até porque a interação entre subjetividades era, para Vigotski, sempre uma interação historicamente situada, mediatizada por produtos sociais, desde os objetos até os conhecimentos historicamente produzidos, acumulados e transmitidos.

Mas a idéia de que Vygotski viria para dar uma pitada social ao Construtivismo aparece também em trabalhos acadêmicos. Na contracapa do livro Construtivismo pós-piagetiano (Grossi e Bordin 1993), aparece o seguinte texto:

Construtivismo pós-piagetiano é um novo e sólido paradigma sobre aprendizagem, o qual acrescenta aos dois pólos clássicos - o sujeito e a realidade - em torno dos quais era pensada a construção de saberes e conhecimentos, "a fascinação do estar juntos", isto é, os outros, o grupo e o social. Trata-se, portanto, da junção enriquecedora dos resultados dos estudos de Piaget, com os de Wallon, de Vygotsky, de Paulo Freire, de Sara Pain, às contribuições de Marx, Freud e da sociologia, da antropologia, da lingüística contemporâneas.

Deixemos de lado a questão do grau de abrangência que está sendo postulado para esse novo paradigma, bem como a questão da absoluta heterogeneidade epistemológica e sociológica dos autores citados. Atenhamo-nos à questão do que define o "pós"-piagetiano nesse paradigma. Seria justamente o acréscimo do social. Do ponto de vista pedagógico, essa questão mistura-se com a do papel da intervenção externa nos processos de aprendizagem do indivíduo. Rosa (1994, pp. 49-50) diz:

(...) é preciso admitir uma dificuldade que decorre da própria formulação teórica construtivista, especialmente da versão piagetiana à qual se tem dado maior ênfase. Ao colocar o sujeito como centro e, principalmente, ao vincular a aprendizagem à maturação biopsicológica, Piaget autoriza a inferência de que o processo de aprendizagem ocorre espontaneamente, isto é, independente da ação ou da "provocação" de um outro sujeito. (...) A esse respeito a teoria de Vygostky, indubitavelmente, se faz mais clara, ao atribuir especial importância ao meio social, ao adulto educador no processo de aprendizagem.

A última autora citada avança nessa questão, pois reconhece que se trata de uma dificuldade decorrente da própria formulação teórica do Construtivismo. O que discordamos é que não se trata de passar a um construtivismo social ou de trazer o social para o Construtivismo, pois entendemos que o construtivismo piagetiano já contêm um modelo do social e esse modelo respalda-se no modelo biológico da interação entre organismo e meio ambiente. Não se trata de que Piaget tenha desconsiderado o social, mas de como ele o considerou. Leontiev (1978, pp. 149-150) expressou essa questão da seguinte forma:

Do ponto de vista que nos interessa, as notáveis investigações de J. Piaget, consagradas ao desenvolvimento psíquico da criança, têm uma significação particular, dupla, na minha opinão. Penso, por um lado, na manutenção, na sua teoria geral do desenvolvimento, dos conceitos de organização, de assimilação e de acomodação como conceitos de base e, por outro lado, no fato de ele considerar o desenvolvimento psíquico como o produto do desenvolvimento das relações do indivíduo com as pessoas que o rodeiam, com a sociedade, relações que transformam e reorganizam a estrutura dos processos de cognição da criança. (...) A dualidade da concepção de Piaget cria uma série de dificuldades maiores, uma das quais encontra expressão no fato de a transformação social em questão não aparecer verdadeiramente a não ser em etapas relativamente tardias do desenvolvimento ontogênico e não concernir senão aos processos superiores.

O problema não reside, portanto, em trazer o social para o construtivismo, mas em buscar outro modelo epistemológico, diferente do modelo biológico que está na base do interacionismo-construtivista.

Os estudos até aqui realizados por nós, dos trabalhos elaborados pela psicologia histórico-cultural, apontam para o fato de que essa corrente adota um postura diferente tanto da Escola Nova quanto do Construtivismo, no que se refere ao ato de ensinar. Parece-nos que tal divergência pode ser encontrada tanto no que se refere ao processo histórico de desenvolvimento da consciência humana, como no que diz respeito à psicologia da aprendizagem. Luria (1979, p. 73) diz o seguinte:

Diferentemente do animal, cujo comportamento tem apenas duas fontes - 1) os programas hereditários de comportamento, subjacentes no genótipo e 2) os resultados da experiência individual - , a atividade consciente do homem possui ainda uma terceira fonte: a grande maioria dos conhecimentos e habilidades do homem se forma por meio da assimilação da experiência de toda a humanidade, acumulada no processo da história social e transmissível no processo de aprendizagem. (...) A grande maioria de conhecimentos, habilidades e procedimentos do comportamento de que dispõe o homem não são o resultado de sua experiência própria, mas adquiridos pela assimilação da experiência histórico-social de gerações. Este traço diferencia radicalmente a atividade consciente do homem do comportamento animal. (grifo no original)

É muito instigante indagar sobre as razões que levariam tantos educadores e psicológos a desvalorizarem algo que constitui a especificidade da atividade humana perante o comportamento animal: a capacidade de acumular e transmitir experiência, conhecimento. Luria é bastante claro ao afirmar que a grande maioria de nossos conhecimentos provém da transmissão da experiência acumulada historicamente. Se é assim, por que a prática pedagógica deveria rejeitar tal transmissão, ou tê-la como um objetivo menor? Tornou-se tabu no meio pedagógico falar em transmissão de conhecimentos já existentes. Aceita-se até que tal transmissão possa existir, desde que seja apenas um momento para se alcançar o mais desejável, a aprendizagem por si só. Não há dúvidas de que tal concepção revela a força que o ideário escolanovista tem até hoje.

Do ponto de vista da psicologia da aprendizagem, na perspectiva da corrente histórico-cultural, também não se justifica essa secundarização da transmissão de conhecimentos. Neste ponto, recorreremos ao conceito de Vygotski, de "zona de desenvolvimento próximo" (essa expressão tem sido traduzida também por "zona de desenvolvimento proximal" ou "área de desenvolvimento potencial").

Vigotski (1993, pp. 238-246) apresenta esse conceito no interior de uma análise das relações entre o ensino e o desenvolvimento intelectual na idade escolar. Ele inicia mostrando que ao analisar-se o desenvolvimento de uma criança é necessário não se deter naquilo que já amadureceu; também é preciso captar aquilo que ainda está em processo de formação. Assim, propõe a existência de dois níveis de desenvolvimento: o nível de desenvolvimento atual (também traduzido por nível de desenvolvimento real ou nível de desenvolvimento efetivo) e a zona de desenvolvimento próximo. Diz que o desenvolvimento atual de uma criança é aquele que pode ser verificado através de testes nos quais a criança resolve problemas de forma independente, autônoma. Já a zona de desenvolvimento próximo abarca tudo aquilo que a criança não faz sozinha, mas consegue fazer imitando o adulto. Vygotski (ibidem, pp. 238-239) apresenta o exemplo de duas crianças que revelaram o mesmo nível de desenvolvimento atual, no caso, ambas com idade mental de 8 anos. Portanto, naquilo que elas conseguiam fazer sozinhas, encontravam-se no mesmo nível de desenvolvimento. Mas, no que se refere aos problemas resolvidos com a ajuda de um adulto, uma das crianças conseguia resolver problemas que atingiam a idade mental de 9 anos, enquanto que a outra conseguia resolver problemas até a idade mental de 12 anos. Diz então Vigotski:

Essa divergência entre a idade mental ou o nível de desenvolvimento atual, que se determina com a ajuda das tarefas resolvidas de forma independente, e o nível que alcança a criança ao resolver as tarefas, não por sua conta, mas sim em colaboração, é o que determina a zona de desenvolvimento próximo. Em nosso exemplo, esta zona se expressa para uma criança com a cifra 4 e para outra, com a cifra 1. Podemos considerar que ambas as crianças têm o mesmo nível de desenvolvimento mental, que o estado do seu desenvolvimento coincide? Evidentemente, não. Como mostra a investigação, na escola se dão muito mais diferenças entre estas crianças, condicionadas pela divergência entre suas zonas de desenvolvimento próximo, que semelhanças devidas a seu igual nível de desenvolvimento atual. Isto se revela em primeiro lugar na dinâmica de sua evolução mental durante a instrução e no relativo êxito desta. A investigação revela que a zona de desenvolvimento próximo tem um valor mais direto para a dinâmica da evolução intelectual e para o êxito da instrução do que o nível atual de seu desenvolvimento. (ibidem, p. 239, grifo no original)

Assim, o nível de desenvolvimento de uma criança é caracterizado por aquilo que ela consegue fazer de forma independente e por aquilo que ela consegue fazer com a ajuda de outras pessoas. Mas o potencial de aprendizagem das duas crianças, no momento analisado pela pesquisa, não era igual. Pode-se dizer que naquele momento uma delas tinha um potencial de aprendizagem maior, posto que sua zona de desenvolvimento próximo era maior. Isso mostra que existem limites para a zona de desenvolvimento próximo, isto é, não é tudo que a criança consegue fazer, mesmo com a ajuda de um adulto. Se formos resolvendo com ela problemas cada vez mais difíceis, chegará um ponto a partir do qual ela não conseguirá mais resolver os problemas, mesmo com nossa ajuda. Isso significa que teremos ultrapassado a zona de desenvolvimento próximo, isto é, teremos saído dos limites do desenvolvimento dessa criança nesse momento. Essa é a razão pela qual Vigotski emprega a palavra zona para caracterizar o segundo nível de desenvolvimento, isto é, trata-se da caracterização da diferente extensão que esse nível tem para cada criança, em cada momento de seu desenvolvimento intelectual.

Um aspecto de fundamental importância é o das conseqüências desse conceito para a relação entre desenvolvimento e aprendizagem escolar. Vigotski critica a aprendizagem que se limite ao nível de desenvolvimento atual e postula que o bom ensino é justamente aquele que trabalha com a zona de desenvolvimento próximo, isto é, aquele que se situa no âmbito daquilo que a criança não consegue fazer sozinha, mas o consegue aprendendo com o adulto.

Assim, temos aqui uma postura radicalmente distinta daquela adotada pelo Construtivismo. Na perspectiva de Vigotski, a grande tarefa do ensino reside em transmitir para a criança aquilo que ela não é capaz de aprender por si só. Ele valora de forma altamente positiva a transmissão à criança dos conteúdos historicamente produzidos e socialmente necessários. As aprendizagens que a criança realiza sozinha não são, evidentemente, descartadas nessa concepção. Mas é preciso ficar claro que tais aprendizagens não produzem desenvolvimento, elas atuam apenas no âmbito daquilo que já se desenvolveu na criança. Vigotski expressa isso de forma bastante clara:

Quando observamos o curso do desenvolvimento da criança durante a idade escolar e no curso de sua instrução, vemos que na realidade qualquer matéria exige da criança mais do que esta pode dar nesse momento, isto é, que esta realiza na escola uma atividade que lhe obriga a superar-se. Isto se refere sempre à instrução escolar sadia. Começa-se a ensinar a criança a escrever quando todavia não possui todas as funções que asseguram a linguagem escrita. Precisamente por isso, o ensino da linguagem escrita provoca e implica o desenvolvimento dessas funções. Esta situação real se produz sempre que a instrução é fecunda (...) Ensinar a uma criança aquilo que é incapaz de aprender é tão inútil como ensinar-lhe a fazer o que é capaz de realizar por si mesma." (ibidem, pp.244-245, grifo nosso)

Para concluir, gostaríamos de frisar que consideramos as idéias aqui expostas apenas uma contribuição para um esforço coletivo, que vem sendo realizado por muitos educadores neste País, de construção de uma concepção afirmativa sobre o ato de ensinar. Esperamos que tais idéias traduzam-se em impulso para a continuidade dessa construção.

Notas

Affirmative and negative conceptions on teaching

ABSTRACT: The article postulates the necessity of an affirmative conception on teaching and critically analyses some conceptions considered negative according to teaching as transmission of knowledge. In this way, the article supports that the "New School" and Constructivism establish a dichotomy between the transmission of knowledge by the teacher and the effort for intellectual autonomy by the learner, leaving teaching in a secondary place and depriving the teachers role of its characteristics. The article still analyses some postulates defended by Vigotski and his followers, which read to an opposite direction, far from those ideas defended by the "New School" and Constructivism.

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  • 1.
    A reflexão apresentada neste texto incorpora parte das análises que vêm sendo desenvolvidas num Projeto Integrado, por nós coordenado, intitulado "Elementos para uma teoria histórico-crítica do trabalho educativo", financiado pelo CNPq.
  • * Unesp/Araraquara
    Unesp/Araraquara
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      29 Abr 1999
    • Data do Fascículo
      Abr 1998
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