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O fortalecimento do patriarcado e a desvalorização do trabalho de cuidado no capitalismo

The strengthenin of patriarchy and the devaluation of care work in capitalism

Resumo:

Este artigo busca compreender como os processos de colonização europeia e de acumulação primitiva do capital estão relacionados à destinação de atividades de cuidado para as mulheres, e a simultânea invisibilidade e desvalorização dessas experiências femininas. À luz de autoras feministas, são discutidos como a expansão do capitalismo e a colonização desencadearam o fortalecimento do patriarcado e a potencialização da divisão sexual do trabalho.

Palavras-chave:
Patriarcado; Trabalho de cuidado; Divisão sexual do trabalho

Abstract:

This article seeks to understand how the processes of European colonization and primitive capital accumulation are related to the allocation of care activities for women and the simultaneous invisibility and devaluation of these female experiences. In the light of feminist authors, it is discussed how the expansion of capitalism and colonization triggered the strengthening of patriarchy and the potentiation of the sexual division of labor.

Keywords:
Patriarchate; Care work; Sexual division of labor

1. Introdução

O presente artigo discute o trabalho feminino de cuidado tendo como base a divisão sexual do trabalho, conceito construído por estudiosas feministas, que possibilitou a ampliação da concepção sobre o trabalho no capitalismo (Kergoat, 2016KERGOAT, D. O cuidado e a imbricação das relações sociais. In: ABREU, Alice Rangel de Paiva; HIRATA, Helena; LOMBARDI, Maria Rosa. Gênero e trabalho no Brasil e na França: perspectivas interseccionais. São Paulo: Boitempo, 2016.). Dessa maneira, a destinação de atividades de cuidado às mulheres é analisada por meio de autoras que estudam a colonização europeia e a acumulação primitiva do capitalismo com lentes feministas, abordando como esses processos fortaleceram o patriarcado e potencializaram a divisão sexual do trabalho, além de se constituírem simultaneamente racializados.

Como Kergoat (1996KERGOAT, D. Relações sociais de sexo e divisão sexual do trabalho. In: LOPES, M. J. M.; MEYER, D. E.; WALDOW, V. R. (org.). Gênero e saúde. Porto Alegre: Artes Médicas, 1996., p. 20) destaca, “a divisão sexual do trabalho está no centro (no coração) do poder que os homens exercem sobre as mulheres”. Há uma hierarquização entre o que é socialmente considerado trabalho masculino e feminino, utilizando-se da percepção de que o trabalho reprodutivo assumido pelas mulheres é oriundo da natureza, ou seja, não necessita de qualificação. Assim, não é reconhecido como trabalho, mas como “amor” (Federici, 2019FEDERICI, S. O ponto zero da revolução: trabalho doméstico, reprodução e luta feminista. São Paulo: Elefante, 2019.). Essa concepção repercute na dificuldade de se valorizar o trabalho reprodutivo e monetizá-lo.

Federici (2019FEDERICI, S. O ponto zero da revolução: trabalho doméstico, reprodução e luta feminista. São Paulo: Elefante, 2019., p. 204) destaca a importância do feminismo ao possibilitar a compreensão de que a reprodução da força de trabalho não se restringe ao consumo de mercadorias, mas diz respeito a uma amplitude de atividades. Ela ressalta que as feministas estabeleceram “[...] o reconhecimento da importância da reprodução e do trabalho doméstico realizado pelas mulheres para a acumulação de capital [...]” (Federici, 2019FEDERICI, S. O ponto zero da revolução: trabalho doméstico, reprodução e luta feminista. São Paulo: Elefante, 2019., p. 204).

A responsabilização da esfera do cuidado às mulheres precisa ser compreendida no contexto da sociedade capitalista, patriarcal e racista. Conforme constata Saffioti (1997SAFFIOTI, H. Violência de gênero: o lugar da práxis na construção da subjetividade. Revista Lutas sociais 2, São Paulo, Programa de Pós-graduação em Ciências Sociais PUC-SP, p. 56-79, 1997., p. 61), a sociedade brasileira é atravessada pelas contradições de classe social, gênero e raça/etnia, sendo que “[...] estes três antagonismos fundamentais se entrelaçam de modo a formar um nó”.

Nesse sentido, a análise da divisão sexual do trabalho deve ter como base a estruturação dessas relações potencializadas pelo capitalismo. Esse modo de produção econômico utiliza-se do patriarcado para explorar a divisão sexual do trabalho e desvalorizar as atividades realizadas pelas mulheres, destinando a elas as condições mais precárias de vida e trabalho. Desse modo, como discute Ávila (2013ÁVILA, M. B. de M. A dinâmica do trabalho produtivo e reprodutivo: uma contradição viva no cotidiano das mulheres. In: GODINHO, T.; VENTURI, G. (org.). Mulheres brasileiras e gênero nos espaços público e privado: uma década de mudanças na opinião pública. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2013. p. 231-245., p. 232):

Mesmo partindo do pressuposto de que o patriarcado é um sistema anterior ao capitalismo, o qual se mantém e se reestrutura no processo de formação social desse sistema, e de que houve, anteriores ao capitalismo, outras formas de divisão do trabalho entre homens e mulheres, essa divisão estava, necessariamente, marcada por outra concepção ou relação entre produção e reprodução, pois a divisão que se expressa neste sistema está diretamente relacionada à sociedade salarial, na qual a força de trabalho é vendida como uma mercadoria e o trabalho produtivo se autonomiza com espaço e tempo próprios e se impõe sobre a organização da vida cotidiana, e o trabalho reprodutivo é estabelecido como aquele que se realiza no espaço doméstico, que passa a ser uma unidade familiar e não mais uma unidade familiar e produtiva.

Entendendo que o patriarcado implica determinações sobre a divisão sexual do trabalho, a destinação de atividades de cuidado às mulheres é problematizada pelo conceito do patriarcado e estudo sobre as mudanças trazidas pela modernidade às relações de gênero. Sabe-se que há diferentes perspectivas teóricas e conceituais entre as feministas, o que é compreensível e possibilita uma pluralidade de debates. A utilização do conceito do patriarcado e ainda a apreensão histórica dele possuem diferentes posições, no entanto, são vigorantes a atualidade e a capacidade desse conceito para o entendimento das raízes das desigualdades que permeiam as relações de gênero. Assim, para a compreensão do patriarcado, cabe dialogar com os debates de autoras feministas descoloniais que, por meio de uma leitura histórica, abordam as repercussões da intervenção colonial na vida das mulheres.

2. Gênero e modernidade a partir de leituras descoloniais

O desenvolvimento do capitalismo trouxe substanciais alterações nas vidas dos indivíduos, com a separação entre produção e reprodução em decorrência da privatização da terra em todo o mundo, processo crucial na acumulação primitiva do capital.

De acordo com Marx (1996MARX, K. A assim chamada acumulação primitiva. In: MARX, K. O capital: crítica da economia política. São Paulo: Nova Cultural, 1996. Livro I, cap. XXIV., p. 340),

O processo que cria a relação-capital não pode ser outra coisa que o processo de separação de trabalhador da propriedade das condições de seu trabalho, um processo que transforma, por um lado, os meios sociais de subsistência e de produção em capital, por outro, os produtores diretos em trabalhadores assalariados. A assim chamada acumulação primitiva é, portanto, nada mais que o processo histórico de separação entre produtor e meio de produção.

Federici afirma que os cercamentos de terras aconteceram com a justificativa de uma maior eficiência da produção de alimentos. Ela diz que “no século XVI, cercamento era um termo técnico que indicava o conjunto de estratégias usadas pelos lordes ingleses e pelos fazendeiros ricos para eliminar o uso comum da terra e expandir suas propriedades” (Federici, 2017FEDERICI, S. Calibã e a bruxa: mulheres, corpo e acumulação primitiva. São Paulo: Elefante, 2017., p. 133).

No entanto, o que aconteceu, apesar da ampliação da produção agrícola, foi o empobrecimento dos/as trabalhadores/as e a sujeição à fome, tendo em vista o processo de extinção da agricultura de subsistência e a agricultura instaurada voltada para o mercado. Os cercamentos dilaceraram as iniciativas de relações cooperativas nas terras comunais, impondo à população camponesa a saída das terras, assim, restando como única alternativa “[...] se unir à crescente quantidade de vagabundos ou trabalhadores itinerantes [...]” (Federici, 2017FEDERICI, S. Calibã e a bruxa: mulheres, corpo e acumulação primitiva. São Paulo: Elefante, 2017., p. 139).

A autora discute sobre a importância que tinham as terras comunais, não somente para a agricultura de subsistência, mas também para a socialização, pois eram espaços férteis para o coletivo e construções de relações solidárias, em que aconteciam reuniões, festivais, jogos. Ela destaca que eram, particularmente, ainda mais importantes para as mulheres, que eram “[...] mais dependentes das terras comunais para a autonomia e a sociabilidade” (Federici, 2017FEDERICI, S. Calibã e a bruxa: mulheres, corpo e acumulação primitiva. São Paulo: Elefante, 2017., p. 138).

Marx (1996MARX, K. A assim chamada acumulação primitiva. In: MARX, K. O capital: crítica da economia política. São Paulo: Nova Cultural, 1996. Livro I, cap. XXIV.) fala sobre o processo chamado de “clarear” na expropriação de terras. Isso significava clarear as terras de seres humanos, acarretando que os/as agricultores/as ficassem sem possibilidade de moradias nas propriedades usurpadas, que foram, crescentemente, destinadas a pastagens de ovelhas.

Os/as trabalhadores/as, além de terem suas terras usurpadas e, crescentemente, tornarem-se “vagabundos” pela incapacidade de a nova manufatura absorver todo o novo proletariado, foram punidos/as pela miséria que foi imposta. A partir do final do século XV, surgiu em toda Europa “uma legislação sanguinária contra a vagabundagem” que previa duras penalidades (Marx, 1996MARX, K. A assim chamada acumulação primitiva. In: MARX, K. O capital: crítica da economia política. São Paulo: Nova Cultural, 1996. Livro I, cap. XXIV., p. 356).

As mulheres foram as mais prejudicadas com a expropriação das terras, pois se configurava como mais complexa a possibilidade de se tornar uma trabalhadora nômade ou “vagabunda”, considerando a exposição a violências em uma conjuntura em que o patriarcado se fortalecia. Além disso, devem-se reconhecer os limites de mobilidade das mulheres em decorrência de gravidezes e cuidado com os filhos (Federici, 2017FEDERICI, S. Calibã e a bruxa: mulheres, corpo e acumulação primitiva. São Paulo: Elefante, 2017.).

Nesse contexto, Federici (2017FEDERICI, S. Calibã e a bruxa: mulheres, corpo e acumulação primitiva. São Paulo: Elefante, 2017.) sinaliza que a separação entre produção e reprodução acarretou a concepção hierárquica delas, em que somente a produção voltada para o mercado é valorizada, enquanto a reprodução é invisibilizada e passou a não ser percebida como trabalho, mas como da natureza feminina.

Desse modo, há um confinamento das mulheres ao âmbito doméstico, a exclusão delas de muitas ocupações e a submissão aos salários mais baixos. Federici afirma que as mulheres passaram a ter mais dificuldade ainda de encontrar empregos com a restrição de possibilidades de inserção mesmo em ocupações que anteriormente ocupavam. Assim, restavam às mulheres somente os empregos mais subalternos e com as piores remunerações.

Como Federici (2017FEDERICI, S. Calibã e a bruxa: mulheres, corpo e acumulação primitiva. São Paulo: Elefante, 2017., p. 146) ressalta:

O que é mais importante, a separação entre produção e reprodução criou uma classe de mulheres proletárias que estavam tão despossuídas como os homens, mas que, diferentemente deles, quase não tinham acesso aos salários.

O salário destinado ao homem se tornou um instrumento de submissão das mulheres ao trabalho reprodutivo. Dessa maneira, a dependência econômica contribuiu para impor às mulheres o trabalho reprodutivo gratuito, mas invisibilizada a sua importância para o capitalismo. Esses processos construíram a “figura da dona de casa” e o surgimento da família como espaço privilegiado de reprodução da força de trabalho. (Federici, 2017FEDERICI, S. Calibã e a bruxa: mulheres, corpo e acumulação primitiva. São Paulo: Elefante, 2017., p. 145)

Apesar das diferenças das mulheres em decorrência dos contextos econômicos de suas famílias, as relações capitalistas se combinaram ao patriarcado para a submissão feminina, pois, como Federici (2017FEDERICI, S. Calibã e a bruxa: mulheres, corpo e acumulação primitiva. São Paulo: Elefante, 2017., p. 194) aponta,

[...] enquanto na classe alta era a propriedade que dava ao marido poder sobre sua esposa e seus filhos, a exclusão das mulheres do recebimento de salário dava aos trabalhadores um poder semelhante sobre suas mulheres.

Nesse mesmo sentido, Davis (2016DAVIS, A. Mulheres, raça e classe. São Paulo: Boitempo, 2016.) fala que, com a industrialização, houve a transferência da produção econômica para a fábrica, sendo a produção doméstica desvalorizada, já que na fábrica, com a produção em massa, as mercadorias possibilitavam o lucro. A separação da produção da vida doméstica teve como consequência a separação acentuada da vida pública e privada.

Assim,

Um importante subproduto ideológico dessa transformação econômica radical foi o surgimento da “dona de casa”. As mulheres começaram a ser redefinidas ideologicamente como as guardiãs de uma desvalorizada vida doméstica (Davis, 2016DAVIS, A. Mulheres, raça e classe. São Paulo: Boitempo, 2016., p. 230).

No entanto, como destaca Federici (2017FEDERICI, S. Calibã e a bruxa: mulheres, corpo e acumulação primitiva. São Paulo: Elefante, 2017.), no período da transição capitalista, devido às condições miseráveis em que se encontravam os/as trabalhadores/as, não era possível a realização integral do trabalho reprodutivo, pois as mulheres também precisavam se submeter a trabalhos remunerados de longas jornadas. Desse modo, como a autora observa, não se concretizou a existência da mulher como exclusivamente dona de casa até o século XIX.

Foi somente no século XIX - como resposta ao primeiro ciclo intenso de lutas contra o trabalho industrial - que a “família moderna”, centrada no trabalho reprodutivo, em tempo integral e não remunerado da dona de casa, se generalizou entre a classe trabalhadora, primeiro na Inglaterra e, mais tarde, nos Estados Unidos (Federici, 2017FEDERICI, S. Calibã e a bruxa: mulheres, corpo e acumulação primitiva. São Paulo: Elefante, 2017., p. 196).

O sistema colonial foi fundamental para a acumulação primitiva, já que o escoamento de riquezas para a Europa contribuiu para a concentração de capital. “O maior processo de privatização e cercamento de terras ocorreu no continente americano, onde, no início do século XVII, os espanhóis tinham se apropriado de um terço das terras comunais indígenas” (Federici, 2017FEDERICI, S. Calibã e a bruxa: mulheres, corpo e acumulação primitiva. São Paulo: Elefante, 2017., p. 130).

Portanto,

A descoberta das terras de ouro e da prata, na América, o extermínio, a escravização e o enfurnamento da população nativa nas minas, o começo da conquista e pilhagem das Índias Orientais, a transformação da África em um cercado para a caça comercial às peles negras, marcaram a aurora da era de produção capitalista (Marx, 1996MARX, K. A assim chamada acumulação primitiva. In: MARX, K. O capital: crítica da economia política. São Paulo: Nova Cultural, 1996. Livro I, cap. XXIV., p. 370).

Assim, a expansão do capitalismo com a colonização ampliou, mundialmente, as mudanças nas relações sociais. Cabe enfatizar o impacto dessas alterações na vida das mulheres com a dicotomização da produção e reprodução, pois, como Davis (2016DAVIS, A. Mulheres, raça e classe. São Paulo: Boitempo, 2016.) ressalta, no período colonial, o trabalho delas era bem diferente do que se entende atualmente como afazeres domésticos, pois elas eram responsáveis pela produção de tudo o que era necessário para a subsistência.

Na economia agrária pré-industrial da América do Norte, uma mulher realizando seus afazeres domésticos era, portanto, fiadeira, tecelã, costureira e também padeira, produtora de manteiga, fabricante de velas e de sabão (Davis, 2016DAVIS, A. Mulheres, raça e classe. São Paulo: Boitempo, 2016., p. 228).

A autora discute como a configuração da mulher “serva do homem” relaciona-se com a história do capitalismo. Todavia, esse modelo constituído de mulher exclusivamente “dona de casa” era de fato uma realidade somente para as famílias privilegiadas economicamente. Esse modelo ideológico de mulher impactava nas vidas das que eram assalariadas, pois eram submetidas a condições mais precárias e salários mais baixos do que os homens, já que não estavam no lugar que a elas era destinado socialmente. Trabalhar fora de casa era realidade para as mulheres brancas trabalhadoras assalariadas das fábricas e para as negras que eram trabalhadoras forçadas da escravidão (Davis, 2016DAVIS, A. Mulheres, raça e classe. São Paulo: Boitempo, 2016.).

As relações de gênero na modernidade são marcadas pelo projeto intrusivo de colonização protagonizado pela Europa no mundo com esquemas de opressão junto ao racismo e ao capitalismo. Esses processos construíram hierarquias em relação a percepções de humanidade em que “[...] a população mundial era diferenciada em dois grupos: superior e inferior, racional e irracional, primitivo e civilizado, tradicional e moderno” (Lugones, 2015LUGONES, M. Colonialidad e gênero. In: MUNOZ, K.; CORREAL, D.; MIÑOSO, Y. Tejiendo de outro modo: feminismo, epistemología y apostas descoloniales. Santiago: Editorial UC, 2015. p. 57-74., p. 61, tradução nossa). Assim, a colonização conduziu-se a partir da concepção de poder como sendo macho, branco e europeu, sendo esse o modelo de padrão imposto às pessoas não europeias.

Lugones (2014LUGONES, M. Rumo a um feminismo descolonial. Estudos Feministas, Florianópolis, v. 22, n. 3, 2014.), que considera gênero como uma “imposição colonial”, defende que o dimorfismo biológico, a heterossexualidade e o patriarcado são características do que ela denomina “sistema moderno/colonial de gênero”. A autora considera que a colonização introduziu desigualdades de gênero que não existiam. Essas mudanças construíram a inferiorização das mulheres colonizadas e desencadearam a deterioração das relações comunais e igualitárias, conforme discute a autora:

Proponho o sistema moderno colonial de gênero como uma lente através da qual aprofundar a teorização da lógica opressiva da modernidade colonial, seu uso de dicotomias hierárquicas e de lógica categorial. Quero enfatizar que a lógica categorial dicotômica e hierárquica é central para o pensamento capitalista e colonial moderno sobre raça, gênero e sexualidade (Lugones, 2014LUGONES, M. Rumo a um feminismo descolonial. Estudos Feministas, Florianópolis, v. 22, n. 3, 2014., p. 935).

A colonização europeia impôs a mulher branca burguesa como o modelo universal de mulher, e a que estivesse fora, como animal primitivo. As mulheres europeias brancas foram caracterizadas como frágeis em oposição às mulheres colonizadas vistas como fortes, sendo submetidas a trabalhos pesados. Lugones (2014LUGONES, M. Rumo a um feminismo descolonial. Estudos Feministas, Florianópolis, v. 22, n. 3, 2014.) enfatiza a necessidade de uma abordagem interseccional de gênero e raça, colocando sobre o equívoco do feminismo hegemônico branco que tratou as questões da mulher branca como universais.

Nesse sentido, conforme Lugones (2014LUGONES, M. Rumo a um feminismo descolonial. Estudos Feministas, Florianópolis, v. 22, n. 3, 2014.), o feminismo descolonial pode se constituir como resistência à colonialidade do gênero na diferença colonial. Isso pressupõe negar o conceito de mulher universal e aprender com as diferenças. Implica desnaturalizar a colonialidade de gênero e resistir de forma compartilhada.

Segato (2015SEGATO, R. Colonialidad y patriarcado moderno: expansion del frente statal, modernizacion, y la vida de las mujeres. In: MUNOZ, K.; CORREAL, D.; MIÑOSO, Y. Tejiendo de outro modo: feminismo, epistemología y apostas descoloniales. Santiago: Editorial UC, p. 75-90. 2015.) destaca gênero como categoria central no estudo da ordem colonial moderna e aponta três posições dentro do pensamento feminista: o feminismo eurocêntrico, que a autora considera ter um posicionamento a-histórico ao tratar a dominação de gênero de forma universal, sem reconhecer as diferenças entre as mulheres brancas, negras, indígenas, entre outras. A segunda posição é a partilhada por autoras, com destaque para Lugones (2014LUGONES, M. Rumo a um feminismo descolonial. Estudos Feministas, Florianópolis, v. 22, n. 3, 2014.), que afirmam a inexistência do gênero no mundo pré-colonial. Enquanto a terceira, que é a manifestada pela própria Segato, pensa que “[...] a existência de nomenclaturas de gênero nas sociedades tribais e afro-americanas é incontestável” (Segato, 2015SEGATO, R. Colonialidad y patriarcado moderno: expansion del frente statal, modernizacion, y la vida de las mujeres. In: MUNOZ, K.; CORREAL, D.; MIÑOSO, Y. Tejiendo de outro modo: feminismo, epistemología y apostas descoloniales. Santiago: Editorial UC, p. 75-90. 2015., p. 77, tradução nossa), mas percebe estruturada por um patriarcado de baixa intensidade, diferentemente do gênero ocidental.

Conforme a posição de Segato (2015SEGATO, R. Colonialidad y patriarcado moderno: expansion del frente statal, modernizacion, y la vida de las mujeres. In: MUNOZ, K.; CORREAL, D.; MIÑOSO, Y. Tejiendo de outro modo: feminismo, epistemología y apostas descoloniales. Santiago: Editorial UC, p. 75-90. 2015.), no mundo tribal há posições de gênero hierárquicas, porém, abertas ao trânsito e à circulação:

Isso indica, por um lado, que o gênero existe, mas de forma diferente do que na modernidade. E, por outro lado, que quando essa modernidade colonial se aproxima do gênero da aldeia, ela o modifica perigosamente. A estrutura das relações da aldeia intervém, capta e reorganiza a partir de dentro, mantendo a aparência de continuidade, mas transformando os sentidos, introduzindo uma ordem agora regida por normas diferentes (Segato, 2015SEGATO, R. Colonialidad y patriarcado moderno: expansion del frente statal, modernizacion, y la vida de las mujeres. In: MUNOZ, K.; CORREAL, D.; MIÑOSO, Y. Tejiendo de outro modo: feminismo, epistemología y apostas descoloniales. Santiago: Editorial UC, p. 75-90. 2015., p. 78, tradução nossa).

Dessa forma, Segato (2015SEGATO, R. Colonialidad y patriarcado moderno: expansion del frente statal, modernizacion, y la vida de las mujeres. In: MUNOZ, K.; CORREAL, D.; MIÑOSO, Y. Tejiendo de outro modo: feminismo, epistemología y apostas descoloniales. Santiago: Editorial UC, p. 75-90. 2015.) sinaliza que essas mudanças, no mundo aldeia, ocorrem em meio ao discurso igualitário da modernidade, que escamoteia o acirramento de relações desiguais. Houve o trânsito do que a autora denomina de patriarcado de baixa intensidade para o patriarcado de alta intensidade. No patriarcado de alta intensidade, as mulheres passam a ter um valor residual e suas questões passam a ser vislumbradas como do âmbito privado, de pouca relevância.

A posição masculina na aldeia é promovida ao mesmo tempo que há a castração desses homens pelos homens brancos. Em contraponto, os homens da aldeia se satisfazem com a elevação de status perante as mulheres “[...] para restaurar a virilidade prejudicada [...]” (Segato, 2015SEGATO, R. Colonialidad y patriarcado moderno: expansion del frente statal, modernizacion, y la vida de las mujeres. In: MUNOZ, K.; CORREAL, D.; MIÑOSO, Y. Tejiendo de outro modo: feminismo, epistemología y apostas descoloniales. Santiago: Editorial UC, p. 75-90. 2015., p. 81, tradução nossa).

Sendo assim, houve um pacto entre os homens brancos e os colonizados no processo de dominação das mulheres colonizadas. Como discute Mendoza (2010MENDOZA, B. La epistemología del sur, la colonialidad del género. 2010. Disponível em: Disponível em: http://porelpanylasrosas.weebly.com/libros/la-epistemologia-del-surla-colonialidad-del-genero-y-el-feminismo-latinoamericano-breny-mendoza . Acesso em: 20 nov. 2018.
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),1 1 Disponível em: http://porelpanylasrosas.weebly.com/libros/la-epistemologia-del-surla-colonialidad-del-genero-y-el-feminismo-latinoamericano-breny-mendoza. as mulheres foram “reinventadas” a partir dos padrões discriminatórios europeus de gênero e raça. As condições para a imposição desse processo de colonização opressivo sobre as mulheres constituíram-se com a parceria dos homens colonizados. “A subordinação de gênero foi o preço que os homens colonizados fizeram para manter algum controle sobre suas sociedades” (Mendoza, 2010MENDOZA, B. La epistemología del sur, la colonialidad del género. 2010. Disponível em: Disponível em: http://porelpanylasrosas.weebly.com/libros/la-epistemologia-del-surla-colonialidad-del-genero-y-el-feminismo-latinoamericano-breny-mendoza . Acesso em: 20 nov. 2018.
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, p. 23, tradução nossa).

Mendoza (2010MENDOZA, B. La epistemología del sur, la colonialidad del género. 2010. Disponível em: Disponível em: http://porelpanylasrosas.weebly.com/libros/la-epistemologia-del-surla-colonialidad-del-genero-y-el-feminismo-latinoamericano-breny-mendoza . Acesso em: 20 nov. 2018.
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), a partir de uma análise de gênero, raça e classe, discute também o pacto social que estabeleceu o trabalho assalariado como voltado aos homens brancos, liberando-os da escravidão e do trabalho doméstico. As mulheres brancas foram tratadas de forma diferente, com menos direitos, sem as mesmas condições que os homens para acesso ao trabalho remunerado, sendo a elas destinado o trabalho doméstico.

Portanto, embora o trabalho assalariado masculino estivesse sujeito à exploração capitalista, o pacto serviu para lançar as bases para a figura do cidadão masculino: um indivíduo livre, que tem o controle de seu corpo e que tem o direito e o tempo de participação; direitos legais, civis, individuais e políticos que excluem mulheres e escravos (Mendoza, 2010MENDOZA, B. La epistemología del sur, la colonialidad del género. 2010. Disponível em: Disponível em: http://porelpanylasrosas.weebly.com/libros/la-epistemologia-del-surla-colonialidad-del-genero-y-el-feminismo-latinoamericano-breny-mendoza . Acesso em: 20 nov. 2018.
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, p. 26, tradução nossa).

Nesse contexto da modernidade colonial, acontece a privatização do espaço doméstico, sendo marginalizado em relação ao âmbito público e das deliberações políticas. No mundo aldeia, apesar da hierarquia masculina, há participação política das mulheres. No entanto, no mundo colonial moderno, as relações comunais e os vínculos femininos de reciprocidade são dilacerados com o isolamento do espaço doméstico. Dessa maneira, o confinamento das mulheres ao âmbito doméstico propiciou uma maior precarização da vida delas e a vulnerabilidade perante a violência masculina. Com a intervenção colonial, as questões vivenciadas pelas mulheres não se configuraram como de interesse público geral, sendo entendidas como do âmbito privado e da intimidade, desse modo, a mulher passou a ser tratada como tema minoritário (Segato, 2016SEGATO, R. La guerra contra las mujeres. Madrid: Traficantes de Suenos, 2016.).

Essa construção colonial moderna do valor residual do destino das mulheres é o que precisamos desmontar, opor e redirecionar, pois é desse esquema binário e minorizante que derivam não só os danos que afetam a vida das mulheres, mas também expressam os males que afetam a sociedade contemporânea como um todo (Segato, 2016SEGATO, R. La guerra contra las mujeres. Madrid: Traficantes de Suenos, 2016., p. 95, tradução nossa).

De acordo com Segato, no mundo aldeia havia uma dualidade hierárquica, enquanto na modernidade não há dualidade, mas binarismo. Na “[...] dualidade a relação é de complementariedade [...]”, entretanto no binarismo não há complementariedade (Segato, 2016SEGATO, R. La guerra contra las mujeres. Madrid: Traficantes de Suenos, 2016., p. 82). Assim, a autora adverte que, com o binarismo, não há circulação de posições, pois, nessa lógica, o que não se enquadra ao padrão universal é uma anomalia.

Nesse esquema binário, acontece a desvalorização do espaço doméstico e é intensificada a sua subordinação à esfera pública. Tal processo está relacionado à transição ao patriarcado de alta intensidade. Desse modo, o sujeito central da esfera pública é masculino, branco, burguês e heterossexual.

Portanto, apesar de seus atributos particulares, todos os enunciados do sujeito paradigmático da esfera pública serão considerados de interesse geral e terão valor universal (Segato, 2016SEGATO, R. La guerra contra las mujeres. Madrid: Traficantes de Suenos, 2016., p. 94, tradução nossa).

Assim, o entendimento da história do patriarcado está entrelaçado com a história da esfera pública e do Estado (Segato, 2016SEGATO, R. La guerra contra las mujeres. Madrid: Traficantes de Suenos, 2016.).

3. O cuidado como atividade feminina na modernidade

A colonização a partir da valorização do homem branco europeu, voltado para a vida pública e de prestígio, traz elementos para a compreensão de questões concretas relacionadas ao patriarcado. Nesse mesmo processo, a privatização do espaço doméstico e o confinamento das mulheres a esse âmbito possibilitaram o tratamento das questões das mulheres como minoritárias e o simultâneo reforço da divisão sexual do trabalho com a desvalorização das atividades destinadas socialmente às mulheres, como o cuidado.

O conceito de patriarcado de alta intensidade utilizado pela Segato (2016SEGATO, R. La guerra contra las mujeres. Madrid: Traficantes de Suenos, 2016.) permite elucidar o acirramento das desigualdades de gênero que as mulheres passaram a vivenciar em comparação com o patriarcado de baixa intensidade estabelecido no mundo aldeia. O reforço das hierarquias entre os gêneros e a destruição dos vínculos comunais trouxeram repercussões perversas às mulheres.

Esse debate possibilita a compreensão da naturalização com que, socialmente, é destinado às mulheres o cuidado de pessoas. E, consequentemente, a invisibilidade da sobrecarga de trabalho que esse contexto implica na vida das mulheres. O desinteresse do Estado e da sociedade com essa e entre muitas outras opressões vivenciadas pelas mulheres é reflexo da forma como o projeto colonial isolou o âmbito privado e tornou as questões femininas excluídas do interesse geral. A sobrecarga, a vida precarizada, as opressões, as violências, entre outras questões relacionadas ao mundo feminino são banalizadas e despolitizadas.

A percepção que o cuidado de pessoas se remete ao âmbito da família, sendo, majoritariamente, assumido por mulheres, é fruto da dicotomia do público e do privado imposta com o projeto intrusivo colonial. Esse processo se caracterizou com a privatização do espaço doméstico, e, desse modo, não é de responsabilidade do Estado garantir o cuidado, pois é visto como uma questão da esfera privada, da intimidade. Essas questões acontecem nessa sociedade que teve os laços comunais de reciprocidade dilacerados com a ordem colonial, repercutindo de forma devastadora nas vidas das mulheres que cuidam de crianças, pessoas idosas, com deficiências, doentes e saudáveis.

Porque o Estado, com sua estrutura patriarcal, captura muito mais do que somos capazes. É concebido e pensado para ser apropriado pelas elites ou para entronizar novos segmentos da sociedade e elitizá-los quando se tornarem governantes. E, sobretudo, manter a matriz binária que estabeleceu que há temas do sujeito universal, sempre com H maiúsculo que liga o Humano ao Homem, e temas de domesticidade enviesada, reduzida, minorizada (Segato, 2016SEGATO, R. La guerra contra las mujeres. Madrid: Traficantes de Suenos, 2016., p. 105, tradução nossa).

A leitura da questão do cuidado necessita ser à luz do que Saffioti (1997SAFFIOTI, H. Violência de gênero: o lugar da práxis na construção da subjetividade. Revista Lutas sociais 2, São Paulo, Programa de Pós-graduação em Ciências Sociais PUC-SP, p. 56-79, 1997., p. 61) denominou de “nó”, pois as categorias de gênero, raça e classe estruturam as relações sociais. O padrão universal de mulher sendo burguesa, branca, heterossexual, construído com a colonização, torna ainda mais invisível as opressões das mulheres da classe trabalhadora e negras. A desumanização a que as mulheres não incluídas no padrão universal são submetidas reverbera na vida delas com condições de vida mais precarizadas, assumindo o trabalho de cuidado não remunerado em contextos socioeconômicos bastante desfavoráveis.

Combes e Haicault (1986COMBES, D.; HAICAULT, M. Produção e reprodução. Relações sociais de sexos e de classes. In: KARTCHEVSKY-BULPORT, Andrée et al. O sexo do trabalho. São Paulo: Paz e Terra, 1986., p. 27) apontam que “a reprodução no modo de produção capitalista é, desde o início, uma das forças em jogo da luta de classes e, ao mesmo tempo, da luta de sexos”. Elas sinalizam que, no início do capitalismo, houve uma acentuada hierarquização da produção em detrimento da reprodução. Homens, mulheres e crianças estavam em condições muito duras de trabalho, com longas jornadas, implicando risco à reprodução da força de trabalho.

Nessa perspectiva, a família na sociedade burguesa surge como uma necessidade do capital em organizar o espaço que pudesse garantir a estabilidade e a reprodução da força de trabalho.

Longe de ser uma estrutura pré-capitalista, a família, como a conhecemos no “Ocidente”, é uma criação do capital para o capital, como uma instituição que deveria garantir a quantidade e a qualidade da força de trabalho e o seu controle (Federici, 2019FEDERICI, S. O ponto zero da revolução: trabalho doméstico, reprodução e luta feminista. São Paulo: Elefante, 2019., p. 72).

Federici (2019FEDERICI, S. O ponto zero da revolução: trabalho doméstico, reprodução e luta feminista. São Paulo: Elefante, 2019.) afirma que a família é responsável por, além de disciplinar as mulheres, também os homens, pois a condição das mulheres de trabalho não remunerado implica que os homens precisem se sujeitar ao emprego, tendo em vista a responsabilidade de se manter a subsistência da família.

4. O racismo e o trabalho de cuidado

Gonzales (1984GONZALES, L. Racismo e sexismo na cultura brasileira. Revista Ciências Sociais Hoje, Anpocs, p. 223-244, 1984., p. 235) ressalta que o duplo fenômeno do racismo e do sexismo na sociedade brasileira “[...] produz efeitos violentos sobre a mulher negra”. Esses efeitos, ela analisa através das noções naturalizadas de mulata, doméstica e mãe preta. Nesse debate, percebe-se, socialmente, a destinação do trabalho doméstico ainda mais arraigado às mulheres pretas, com a confluência da divisão racial e sexual do trabalho.

Quanto à doméstica, ela nada mais é do que a mucama permitida, a da prestação de bens e serviços, ou seja, o burro de carga que carrega sua família e a dos outros nas costas. Daí ela ser o lado oposto da exaltação; porque está no cotidiano. E é nesse cotidiano que podemos constatar que somos vistas como domésticas (Gonzales, 1984GONZALES, L. Racismo e sexismo na cultura brasileira. Revista Ciências Sociais Hoje, Anpocs, p. 223-244, 1984., p. 235).

A “mãe-preta”, a partir das reflexões da autora, revela uma construção social em que a mulher negra é, naturalmente, vocacionada ao cuidado e ao afeto.

As reflexões de Gonzales (1984GONZALES, L. Racismo e sexismo na cultura brasileira. Revista Ciências Sociais Hoje, Anpocs, p. 223-244, 1984.) também sinalizam uma maior sobrecarga das mulheres negras arcando sozinhas com as responsabilidades de sobrevivência da família, tendo em vista que seus familiares homens sofrem violências, muitas vezes letais,2 2 “Em 2016, por exemplo, a taxa de homicídios de negros foi duas vezes e meia superior à de não negros (16,0% contra 40,2%). Em um período de uma década, entre 2006 e 2016, a taxa de homicídios de negros cresceu 23,1%. No mesmo período, a taxa entre os não negros teve uma redução de 6,8%. Cabe também comentar que a taxa de homicídios de mulheres negras foi 71% superior à de mulheres não negras” (IPEA, 2018, p. 40). Disponível em: http://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/relatorio_institucional/180604_atlas_da_violencia_2018.pdf. advindas do racismo.

Mas é justamente aquela negra anônima, habitante de periferia, nas baixadas da vida, quem sofre mais tragicamente os efeitos da terrível culpabilidade branca. Exatamente porque é ela que sobrevive na base da prestação de serviços, segurando a barra familiar praticamente sozinha. Isto porque seu homem, seus irmãos ou seus filhos são objeto de perseguição policial sistemática (esquadrões da morte, mãos brancas estão aí matando negros à vontade; observe-se que são negros jovens, com menos de trinta anos. Por outro lado, que se veja quem é a maioria da população carcerária deste país) (Gonzales, 1984GONZALES, L. Racismo e sexismo na cultura brasileira. Revista Ciências Sociais Hoje, Anpocs, p. 223-244, 1984., p. 231).

Igualmente, a caracterização, oriunda do projeto colonial, do modelo universal de mulher remetido à fragilidade, não é real na vida das mulheres negras, que sobrevivem cotidianamente a condições duras, sendo, desde sempre, submetidas a trabalhos exaustivos.

Crenshaw (2004CRENSHAW, K. A intersecionalidade na discriminação de raça e gênero. In: VV.AA. Cruzamento: raça e gênero. Brasília: Unifem, 2004.), que discute a partir do conceito de interseccionalidade na discriminação de raça e gênero, alerta que mulheres negras sofrem discriminações específicas de gênero em relação aos homens negros, assim como sofrem discriminações raciais além das de gênero que as mulheres brancas experimentam. Entretanto, ela menciona como desafio tanto pelos movimentos feministas, como pelos antirracistas, a superação de uma visão de raça e gênero como problemas mutuamente exclusivos.

A autora aponta que a visão tradicional entende que, ao se trabalhar com discriminação de categorias, como gênero, raça/etnia e classe, estivesse abordando três grupos diferentes de pessoas. No entanto, “a intersecionalidade sugere que, na verdade, nem sempre lidamos com grupos distintos de pessoas e sim com grupos sobrepostos” (Crenshaw, 2004CRENSHAW, K. A intersecionalidade na discriminação de raça e gênero. In: VV.AA. Cruzamento: raça e gênero. Brasília: Unifem, 2004., p. 10).

5. Considerações finais

Cabe, na análise do trabalho de cuidado, enfatizar a permanência dos efeitos do pacto social de consentimento dos homens colonizados com a opressão das mulheres, que se constituiu com profundas raízes, potencializando o patriarcado. A subordinação das mulheres traz como contrapartida privilégios aos homens, tornando bastante utilitário se beneficiarem do trabalho doméstico gratuito realizado pelas mulheres e não se solidarizarem com a situação de jornadas exaustivas, múltiplas e intermináveis delas.

Igualmente, o feminismo descolonial coloca-se como uma perspectiva vigorosa de resistência ao patriarcado por meio do enfrentamento da colonialidade,3 3 “Ao usar o termo colonialidade, minha intenção é nomear não somente uma classificação de povos em termos de colonialidade de poder e de gênero, mas também o processo de redução ativa das pessoas, a desumanização que as torna aptas para a classificação, o processo de sujeitificação e a investida de tornar o/a colonizado/a menos que seres humanos” (Lugones, 2014, p. 939). e conjugando análises das desigualdades oriundas do capitalismo, patriarcado e racismo.

A partir da leitura descolonial, a compreensão, trazida pela Segato (2016SEGATO, R. La guerra contra las mujeres. Madrid: Traficantes de Suenos, 2016.), acerca da transição do patriarcado de baixa intensidade para o de alta intensidade, subsidia o entendimento das relações de cuidado na atualidade e a centralidade que as mulheres ocupam nesse âmbito. Tendo em vista que a captura colonial-moderna no mundo aldeia estabeleceu o esquema binário das “esferas” pública e doméstica, a divisão sexual do trabalho tornou-se de pouca mobilidade em relação ao que diz respeito ao feminino e masculino, além de terem sido as hierarquias acentuadas.

A responsabilização direcionada às mulheres no âmbito das atividades domésticas, em um contexto de relações de reciprocidade dilaceradas, trouxe condições de vida precárias ao universo feminino. Destaca-se o caminho proposto por Segato (2016SEGATO, R. La guerra contra las mujeres. Madrid: Traficantes de Suenos, 2016.) que enfatiza a necessidade de se desmontar a construção colonial moderna de que o doméstico diz respeito ao privado e ao íntimo, considerando as repercussões perversas na vida das mulheres e da sociedade. Tal construção dilacerou as relações comunais, tornando as mulheres desprotegidas em relação a violências, assim como acentuou a naturalização delas na condução de atividades domésticas, repercutindo em sobrecarga ainda mais acentuada quando possuem pessoas doentes necessitando de cuidados.

Desse modo, um dos caminhos é a reconstrução dos vínculos fortes, das formas de viver comunitárias, dos afetos e relações que se opõem ao projeto individualista do capital (Segato, 2016SEGATO, R. La guerra contra las mujeres. Madrid: Traficantes de Suenos, 2016.).

Lugones aponta a resistência como uma possibilidade da luta política em face da colonialidade do gênero. Ela conceitua a resistência como sendo a

[...] tensão entre a sujeitificação (a formação/informação do sujeito) e a subjetividade ativa, aquela noção mínima de agenciamento necessária para que a relação opressão-resistência seja uma relação ativa, sem apelação ao sentido de agenciamento máximo do sujeito moderno (Lugones, 2014LUGONES, M. Rumo a um feminismo descolonial. Estudos Feministas, Florianópolis, v. 22, n. 3, 2014., p. 940).

À vista disso, não se pode negar a resistência dos/as colonizados/as e que possibilidades de resistência se renovam, assim como Lugones enfatiza, a colonialidade do gênero não pode ser tratada como algo já dado e congelado. O caminho é a resistência compartilhada. “Comunidade, mais que indivíduos, torna possível o fazer; alguém faz mais com alguém, não em isolamento individualista” (Lugones, 2014LUGONES, M. Rumo a um feminismo descolonial. Estudos Feministas, Florianópolis, v. 22, n. 3, 2014., p. 949).

Correal (2015CORREAL, D. Feminismo y modernidad/colonialidad: entre retos de mundos posibles y otras palavras. In: MUNOZ, K.; CORREAL, D.; MIÑOSO, Y. Tejiendo de outro modo: feminismo, epistemología y apostas descoloniales. Santiago: Editorial UC, 2015. p. 353-369.) ressalta que a imposição colonial se inseriu em diferentes âmbitos, entretanto, houve também resistências que possibilitaram as diferenças. Ela também critica algumas feministas que adotaram uma ideia universal de mulher sem trabalhar as diferenças. Aponta como desafio combinar o reconhecimento das diferenças com uma posição mais coletiva e organizada de lutas das mulheres.

Entretanto, é preciso ressaltar as dificuldades de tornar visíveis as questões vivenciadas pelas mulheres, tendo em vista como a história colonial estruturou o Estado a tratar questões de forma binária: de um lado, questões de interesses gerais, e, do outro, as que são vistas como parciais e particulares. As experiências relacionadas às mulheres, sendo tratadas como do âmbito privado/da intimidade, possuem valor residual e irrelevante.

A história e a estrutura deste Estado tornaram-no apropriado para aqueles que possuem as chaves de suas instituições. E a destruição das comunidades com sua lógica retirou formas de política dos espaços domésticos e entronizou os homens como operadores por excelência de toda política, embora excepcionalmente possamos ter figuras femininas em cargos. O que ocorreu foi uma masculinização das instituições e uma despolitização dos vínculos que emergem do espaço doméstico, uma negação do doméstico da vida e de toda a política (Segato, 2016SEGATO, R. La guerra contra las mujeres. Madrid: Traficantes de Suenos, 2016., p. 103, tradução nossa).

Apesar de as mulheres estarem, amplamente, executando ações relacionadas à reprodução da vida social em serviços públicos, as suas demandas são incorporadas de forma insuficiente pelo Estado. Isso é fruto da construção colonial do Estado, que não o estruturou voltado a todas as pessoas, mas se apresentando como exterior às relações domésticas, reflexo da separação e hierarquização da produção e reprodução no capitalismo.

No entanto, as resistências à colonialidade do gênero sempre existiram e permanecem e, como reitera Lugones (2014LUGONES, M. Rumo a um feminismo descolonial. Estudos Feministas, Florianópolis, v. 22, n. 3, 2014., p. 942), “em vez de pensar o sistema global capitalista colonial exitoso em todos os sentidos na destruição dos povos, relações, saberes e economias, quero pensar o processo sendo continuamente resistido e resistindo até hoje”.

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  • 2
    “Em 2016, por exemplo, a taxa de homicídios de negros foi duas vezes e meia superior à de não negros (16,0% contra 40,2%). Em um período de uma década, entre 2006 e 2016, a taxa de homicídios de negros cresceu 23,1%. No mesmo período, a taxa entre os não negros teve uma redução de 6,8%. Cabe também comentar que a taxa de homicídios de mulheres negras foi 71% superior à de mulheres não negras” (IPEA, 2018IPEA. Atlas da Violência 2018. Disponível em: Disponível em: http://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/relatorio_institucional/180604_atlas_da_violencia_2018.pdf . Acesso em: 23 fev. 2019.
    http://www.ipea.gov.br/portal/images/sto...
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  • 3
    “Ao usar o termo colonialidade, minha intenção é nomear não somente uma classificação de povos em termos de colonialidade de poder e de gênero, mas também o processo de redução ativa das pessoas, a desumanização que as torna aptas para a classificação, o processo de sujeitificação e a investida de tornar o/a colonizado/a menos que seres humanos” (Lugones, 2014LUGONES, M. Rumo a um feminismo descolonial. Estudos Feministas, Florianópolis, v. 22, n. 3, 2014., p. 939).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    11 Dez 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    12 Out 2022
  • Aceito
    28 Ago 2023
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