Resumos
Este artigo procura recuperar a figura do jesuíta flamengo Jacob Roland que, na América Portuguesa, foi missionário e, depois, apoio paulista na solicitação de administração direta do índio.
Jacob Roland; Paulistas; Contenda
This article brings up the Fleming jesuit Jacob Roland who, in the Portuguese America, was first a missionary and then a supporter of the request for direct administration of the indian peoples.
Jacob Roland; Paulistas; Request
DOSSIÊ
Jacob Roland: um jesuíta flamengo na América Portuguesa1
Juarez Donizete Ambires2 2 Doutorando em Literatura Brasileira na Universidade de São Paulo; professor de Língua e Literatura Portuguesas no Centro Universitário Fundação Santo André; fafil.cursos@fsa.br.
Professor da Fundação Santo André
RESUMO
Este artigo procura recuperar a figura do jesuíta flamengo Jacob Roland que, na América Portuguesa, foi missionário e, depois, apoio paulista na solicitação de administração direta do índio.
Palavras-chave: Jacob Roland; Paulistas; Contenda.
ABSTRACT
This article brings up the Fleming jesuit Jacob Roland who, in the Portuguese America, was first a missionary and then a supporter of the request for direct administration of the indian peoples.
Keywords: Jacob Roland; Paulistas; Request.
O personagem em referência desenvolveu sua atuação como membro da Companhia de Jesus, na América Portuguesa, e seu ingresso na Ordem deu-se ainda na adolescência, em idade em que muitos outros, à época, procediam da mesma forma, apesar da pouca vivência e não apenas na religião (como se dizia àquela altura) fundada por Inácio de Loyola. Seu ingresso no mundo ultramarino português fez-se pela metrópole, e será no Estado do Brasil que o jesuíta passará a maior parte dos seus dias, vindo a se destacar no trabalho missionário. Entre a mudança de atitude (ao menos aparente mudança) ante essa opção fato que o trouxe, como dissemos, às paragens da América Portuguesa e sua morte em África, em 1684 ano em que também está deixando o Brasil torna-se membro de um grupo de jesuítas que, sediado no Colégio da Bahia, desenvolve e defende a prerrogativa de que a atividade missionária não é da incumbência única e exclusiva da Companhia, questão que o leva e a seus parceiros de procedimento a enfrentar a oposição de um outro grupo inaciano, na mesma Bahia, liderado por Antônio Vieira que, havia pouco, retornara da Europa (agosto de 1681), vestindo a armadura da ardorosa defesa do trabalho missionário que, de sua parte, recebera, um ano antes, forte incremento com a luta que empreendera na metrópole, associado a Cadaval e séqüito, para a aprovação da lei de libertação dos índios de 1680 ("Regimento de 1º de Abril de 1680 e leis anexas").
A contenda que então se instala acaba por se tornar uma das mais importantes, em nossa opinião, da dinâmica de existência da Companhia na América Portuguesa e chega à metrópole, onde, por sua vez, se formam grupos de partidários de ambas as facções que, à mesma época, também tomam conhecimento de que um pedido de parte do colonato local reivindicação paulista reforça o pensamento e o procedimento do grupo a que pertence Roland. Estão os mesmos paulistas (os mais mercantilizados certamente) a solicitar a administração direta de seus índios, reivindicação que, se obtida, afastará o jesuíta de um posto já tradicionalmente seu, dará ao colono a situação de catequizador e abrirá a prerrogativa de que a mesma solicitação venha a ser repetida por outros colonatos dependentes de mão-de-obra índia.
O fato em questão mobiliza os grupos a ele diretamente ligados. O de Roland travará contato direto com o paulista e, em visita à Capitania (mais propriamente à Vila de São Paulo), estipulará as vias do acordo que concederá, na década seguinte, ao paulista o que ele reivindicou. Alexandre de Gusmão, o Provincial da Ordem no Estado do Brasil, torna-se, à época, partidário paulista, e seus assessores diretos são os que visitam, a seu pedido, São Paulo de Piratininga para ouvir aos reivindicantes. Roland é, a nosso ver, um desses acólitos, e sua presença em terras paulistas inspira-o (ainda em nosso entendimento) a produzir um documento de defesa do paulista como administrador. O escrito, na sintonia da ocasião, não sem razão de ser chamar-se-á, em título reduzido, Apologia pro paulistis testemunho teológico e jurídico a defender, na indução do grupo a que está associado Jacob, a legitimidade da reivindicação do paulista que, no documento, ao contrário do que reza a lenda negra, é prestador de importantes serviços à Coroa e, na extensão, à Igreja; é fiel vassalo.
Assim e por isso, a recuperação de Roland e de seu escrito pareceram-nos procedimento de alguma necessidade, na medida em que neles personagem e documento somos remetidos a episódio importante da história da Companhia na América Portuguesa e da história da Capitania meridional, cujas ações muito se fazem sentir nesses fins de século XVII, posto que a liberdade de escravização plena do índio é o trampolim, em nossa leitura, para a mudança do ciclo econômico com os achamentos auríferos e o verdadeiro atrelamento do interior da colônia ou sua anexação ao domínio português.
O resgate da figura de Roland, contudo, se é fato que se faz necessário, pede, sempre em nossa indução, seu desatrelamento de certa interpretação contida na História da Companhia de Jesus no Brasil, de Serafim Leite jesuíta e historiador que, no registro das atividades da Ordem no Brasil, torna-se tendencioso quanto a Roland e a seu grupo, procedimento que revela o compromisso ideológico de sua obra (ou ao menos de parte dela) que vê nos gestos de Vieira o grandioso e o correto e, por esta medida, mensura o todo mais, mormente os jesuítas que lhe fizeram a oposição referida. Roland, com isto, passa a ser apresentado à sombra de Vieira e como ser decaído, fato do qual suspeitamos, pois tendenciosamente conduzido, nesta aproximação que tentamos efetuar da figura do jesuíta flamengo.
1.
Jacob Roland é, em nossa indução, personagem cujo resgate na história da Companhia de Jesus no Brasil está sendo solicitado. Os informes, porém, que temos sobre sua vida e práticas são, parece-nos, insuficientes e mesmo tendenciosos. A fonte que se nos abre para que o conheçamos é Serafim Leite,
Em nossa opinião, as posturas de Serafim Leite seriam, salvo engano, as da exaltação de um Portugal imperialista, cuja superioridade manifestou-se na ação de seus filhos, entre eles os membros da Companhia saídos da freguesia de Portugal para o espraiamento da fé, baluarte da colonização.
2.
Na pequena biografia que de Roland ele apresenta na História da Companhia de Jesus no Brasil, temos notícias de que o jesuíta nasceu em Amsterdã e (agora em inferência nossa) no ano de 1643. Em 1658, entra para a Ordem e, em 1664, temo-lo em Lisboa,13 13 A estadia em Lisboa, sabemo-la obrigatória para todo o pretendente a missionário em terras coloniais. Quando se trata de trabalho missionário na América Portuguesa, a estadia é para aprendizagem da língua geral. embarcando para a Bahia, onde completa seu curso de Teologia (três anos) e profere seus votos solenes em 1675. Em Salvador, ocupou-se nos cargos de ministro do Colégio e auxiliar de Provincial por dois anos e meio. No sertão baiano, desenvolveu trabalho missionário junto aos Tapuias, cuja língua o Quiriri aprendeu. Ao fim de sua apresentação, Serafim Leite di-lo "homem de zelo, mas um tanto versátil e aferrado ao próprio juízo". Nesses dizeres, lemos muito da ironia com pitadas de mordacidade que o historiador dispensa ao jesuíta, pois o que, com precisão, se pode apreender do adjetivo "versátil" e, ainda, da sentença "e aferrado ao próprio juízo", se conhecemos os fatos, a história?
Em seqüência, para ainda caracterizar Roland, o historiador lança mão de um qualificativo que a ele deitou Vieira, na aludida carta, a citada em parágrafo anterior: alioquin santo, expressão que, traduzida, equivale a "outro santo", "mais um santo" e não apenas, pois, no contexto em que fora empregada, pulsa o fel da amarga ironia que é, na situação, a arma do Vieira que fala ao mestre de cânones do Colégio de Santo Antão padre Manuel Luís , sabendo-o pessoa douta e, em possibilidade, uma voz que poderia ser ouvida por D. Pedro, apesar de seu veredito favorável (mas, na circunstância, não o final) à solicitação paulista, já também por duas vezes aprovada por Provincial da Companhia em visita a São Paulo.14 14 O Provincial nas duas ocasiões (1685 e 1694) é Alexandre de Gusmão, membro do grupo de opositores a Vieira. Para cf., busque-se: Ata de 08.03.1685 (CMSP Atas 7, p.275-6) e Ata de 27.01.1694 (CMSP Atas 8, p.447-54). Na circunstância da carta, então, o "mais um santo" estaria para "mais um inimigo", "mais um enganador", porque "mais um desvinculado do ideário da missão", até mesmo porque gente que não sabe língua de índio, como é o caso de Benci. O contundente da expressão de Vieira, contudo, não resolve a refrega a seu favor. Por cartas régias,15 15 No caso, trata-se de duas que são respectivamente de 26.01 e 19.02.1696. o rei ratifica a vitória paulista na apregoada solicitação. Entretanto, se ela não convence a província brasílica, a congregação metropolitana e, por extensão, ao rei, traz, no século XX, para o seu grêmio um partidário Serafim Leite que faz do qualificativo de Vieira sua última palavra biográfica acerca de Roland: alioquin santo.
Esta tentativa de redescoberta de Roland ficaria, entretanto, reduzida, em meio ao que já é parquíssimo a seu respeito, se não nos referíssemos ao missionário que também foi o jesuíta flamengo. A este seu aspecto dedicar-nos-emos na parte seguinte.
3.
O missionário Roland16 16 Os dados que, desta nota à seguinte, mencionamos estão relacionados à leitura de Serafim Leite. Para cf., busque-se: LEITE, S. (S.J.), 1947, cit., v.IX, p.102-4. inicia seus trabalhos no sertão baiano ainda na primeira metade de 1666. Nessa atividade, terá como companheiro e apoio o irmão teólogo João de Barros, cuja imagem de missionário exemplar Serafim Leite veiculará como contraponto à figura de Roland que, se a princípio se destaca por seu apego ao trabalho, da lide missionária no interior da Bahia depois se desvincula (final da década de 1660), dando sempre mostras, segundo o historiador, de insatisfação quanto à permanência no Brasil. Assim, no contraponto anunciado, João de Barros será o "apóstolo dos Quiriris" e aquele de quem, na década de 1670, o Padre Visitador José de Seixas escreverá: in primis modestus, pius, zelo salutis Indorum fervens et disciplinae domesticae observans, sentença que por si se explica, já que muito próxima da Língua Portuguesa. Ainda para reforço da distância entre os dois espíritos missionários, Serafim Leite dirá de João de Barros que, à época da visitação de José de Seixas, pedirá ele o missionário "as Missões do Maranhão e Pará, por serem consideradas mais difíceis" que aquelas em que, obviamente, ele e Roland estão, cujo sítio é o cáustico sertão baiano, às margens do São Francisco, nas dimensões da atual Jacobina.
No didático e piedoso processo de estabelecer, no caso, as distinções ou diferenças entre uma verve missionária e outra, de Roland, na construção do contraponto, será dito que sobre ele também se expressa o mesmo Visitador (1677), dizendo que "é um fervor a necessitar de freio e condução, mas para ele não houve de bom grado quem o fizesse ou censurasse" (eius ardor fraeno indiget et monitore quem non libenter audit); a sentença, por sua vez, exprime com exatidão o caráter de Roland, segundo Serafim Leite, que ainda sugere, na extensão, estar nesta perspectiva "tão bem captada por José de Seixas", o que explicaria no futuro a variação de posições: se agora Roland está para o índio e contra o curraleiro, adiante estará pro paulistis. O que não nos convence, porém, é que se pudesse explicar a mudança de postura constatação com a qual concordamos apenas com a idéia de que tudo se deve a um caráter que oscila ou, noutra expressão, caráter que não tem verve ou fibra suficiente para manter-se aferrado ao ideário da missão, a grande e maior verdade, segundo a opção de Serafim Leite ao reavaliar e contar as questões desse passado, em um presente de narrativa que é o século XX. No texto do eminente historiador, faltam a vez e a voz não apenas para todo o grupo que, segundo o mesmo Serafim, posicionou-se, no contato com o paulista, contrário ao projeto das missões, já em andamento à época por mais de um século em toda a América Portuguesa e projeto a que Vieira quererá por todo o modo dar alento, dizendo-o, no seu retorno definitivo ao Brasil (1681), o distintivo da Companhia. Assim, mesmo compreendendo a filiação espiritual do historiador, falta-lhe a já apregoada isenção, pois motivos históricos deve haver para que Roland mudasse de postura. A questão que o rodeia não se explica apenas pelo termo "oscilação de caráter". Mesmo que a isto a princípio aceitássemos, viria em seqüência a indagação indubitável do porquê de tal mudança. Os caminhos que levam a essa justificativa, Serafim Leite, salvo engano em nossa leitura, não os trilha, mormente no caso de Roland. Mesmo que aqui se arbitrasse com o argumento de ser o padre um estrangeiro e estrangeiro advindo de país não colonizador à moda de Portugal, isto não seria, pensamos, justificativa que plenamente aclarasse toda a abrangência do procedimento de Roland, visto que sua ação missionária de fato existiu e com fortes graus de envolvimento, como a nosso ver revela sua correspondência, ao menos aquela elencada pelo próprio Serafim Leite como sua e, nesta discriminação, mormente aquela que se explicita da letra B à letra K.17 17 Para cf., busque-se: LEITE, S. (S.J.), 1947, cit., v.IX, p.102-4. Também por essa circunstância, fica para nós explícito que não se pudesse associar a Roland as justificativas que outros autores associarão a outros membros do grupo dos estrangeiros, para justificar-lhes a aversão ao trabalho das missões. A Roland, parece-nos, não se coadunaria a hipótese de ser, para exemplo, homem de vida mais contemplativa, de gosto pelo sedentário e, por extensão, gosto por vida em colégios, como se sugere para homens como Benci, Andreoni e Gusmão.
Ainda quanto a Roland dele sabemos, na interpretação de Hoornaert,25 25 Para cf., busque-se: HOORNAERT, E. (Coord.), 1992, cit., t. 11/1, p.71-5. que vem, devido obviamente a seu envolvimento com o trabalho nas missões da Jacobina a encargo de jesuítas (Santo Inácio, São Francisco Xavier, Santa Cruz, para exemplo, que viu destruídas pela guerrilha dos Ávila e onde, antes, missionara) um dos questionamentos centrais da ação missionária na América Portuguesa: em que espaço o trabalho catequético deve se realizar? O índio deve ser levado ou não ao litoral para ser iniciado nos mistérios cristãos? Este seu questionamento faz-se presente na sua missiva de 15 de janeiro de 1667, cujo título em latim é Quaestio: Ultrum Tapuiae et Mediterraeis propius littora adducendi sint ut christianis inicientur sacris, an non?,26 26 Para cf., busque-se: LEITE, S. (S.J.), 1947, cit., v.IX, p.102. No que tange a essa carta, temos a dizer ainda que ela é a expressão de jesuíta que escreve a jesuítas. O seu próprio título o revela. Por seu intermédio, lembramo-nos do modelo jesuítico de ensino que é o resultado da fusão de dois outros: o método escolástico e o parisiense, os quais dividiam a aula em dois momentos a saber a lectio e a questio, consistindo esta segunda divisão nas perguntas do professor aos alunos e destes ao mestre. Assim, parece-nos, agiu Roland nessa carta de 15.01.1667 a seus pares. e nela o seu parecer de que a catequese se faça no sertão27 27 Para cf., busque-se: LEITE, S. (S.J.), 1947, cit., v.IX, p.102: "É de parecer que se catequizem no sertão". é o fato que se revela em sintonia com uma consciência já há muito estruturada em meio a grupos de jesuítas missionários: a proximidade entre aldeias e centros coloniais leva o trabalho catequético ao fracasso, uma vez que aguça a cobiça dos colonos por mão-de-obra. Assim, em tese, a distância e o isolamento seriam as possibilidades para o sucesso e esta preceptiva ainda está em Roland e, com isto, em nossa percepção, o espaço missionário é, ao menos em parte da ótica jesuítica desse momento e, na seqüência de uma tradição, o geograficamente de difícil acesso, o protegido, fato que permitirá a construção, em leitura de pósteros, da idéia de que o aldeamento é o espaço da utopia,
4.
De algumas referências a impressão que nos fica é a de que Roland teve seus primeiros contatos com paulistas ainda na região da Jacobina que, apesar de espaço de curraleiros e índios missionados, foi zona também trilhada por forasteiros em busca de metais e pedras preciosas. Se bem correlacionados os fatos, veremos que, por algumas décadas do século XVII, as margens do São Francisco e outras partes do Nordeste sertanejo foram com constância visitadas por bandeiras paulistas e também baianas à procura de ouro, pois, mesmo com as práticas agrícolas e o gado, o ouro é, de fato, o elemento cobiçado.32 32 Para cf., busque-se: HOORNAERT, E. (Coord.), 1992, cit., t. II/1, p.74. Essa busca do metal é certamente, antes do criatório de gado, a justificativa para a instalação de ramificações do clã dos Ávila e, como já o dissemos, um processo que precede os missionários jesuítas na região.33 33 Ibidem, p.74. De São Paulo, por sua vez, acorreram diversas bandeiras, buscando o São Francisco e provavelmente aportando à Jacobina que acabou por ficar com alguma fama de região aurífera, mas de produção, na realidade, pequenina.34 34 Ibidem, p.74. A hipótese da prata também foi intuito perseguido ali por exploradores.
5.
A Apologia pro paulistis é importante documento ligado à história da Companhia de Jesus na América Portuguesa e, neste circuito, sua razão de ser está intimamente vinculada a um contexto já mencionado: o pedido paulista de administração direta do índio. A partir desta explicitação, que no caso desse documento é a de maior peso, outras, em correlação, surgem e ajudam a explicar a mesma Apologia. A primeira delas é, em nosso julgamento, o anúncio do poder e abrangência da articulação paulista, nessa segunda metade do século XVII. Ela a articulação é resposta concreta e consciente de um grupo que observa e conhece a realidade que o circunda, ao ponto de perceber que, nessa segunda metade do XVII, a Companhia de Jesus em tese o grande rival ante sua solicitação não é grupo uníssono, coeso, e, em outros termos, nem todos os seus membros são os mais acirrados partidários da tópica da missão (e, por conseguinte, tutela exclusiva do índio) como justificativa para o existir da Ordem. Em nossa indução, já se faz sentir em meio a esses dissidentes o sentimento de que vão longe os tempos em que o surgimento do Protestantismo provocara tão grande comoção que levara muitos a se integrarem às hostes do Catolicismo e lançarem as idéias de criação de uma Cristandade nova, obediente ao papa e isenta das marcas de uma Europa maculada pela heresia, pelas fontes luterana e calvinista da corrupção. Um desses engajados será o fundador da Ordem Inácio de Loyola cuja proposição é trazer todo o gentio para o rebanho de Cristo e seu Evangelho e garantir a empresa da fé como baluarte de toda a colonização e a prática distintiva da Companhia. Em oposição ao grupo jesuíta dissidente há, na mesma contingência, o de Vieira que, na figura do, já à época, grande orador, representa o ideal da fundação, sua defesa e, obviamente, o repúdio à reivindicação paulista nesse último quartel de século. Assim, se tomarmos por base que o dissidente é o atualizado, ele Vieira representa, então e também, o antigo e, pelo visto e mesma sintonia, o anacrônico, pois os tempos são comprovadamente os de mercantilização, fato que apenas o braço escravo pode garantir e, no caso paulista, esse braço é o índio. Em meio a essa circunstância, porém, há ainda outros aspectos ligados à significação da Apologia?
Ela é uma representação do grupo jesuíta de dissidência ao de Vieira e é, por conseguinte, uma expressão em termos teológicos de defesa dos interesses paulistas. Já o seu título, em sua existência contraída, o declara: louvor ou defesa dos paulistas (Apologia pro paulistis).
Ainda quanto à Apologia, nela está que, em São Paulo, os recursos para a compra dos negros são escassos, declinando por isto em dignidade e nobreza o habitante local, se não lançar mão do recurso ao índio, mesmo que seja, em casos raros, para apoio ao braço etíope.49 49 Ibidem, p.210. Desse modo, apesar das poucas e rápidas menções ao conteúdo do documento, não nos parece de modo algum que estivesse incorreto dele inferir-se que se trata de documento único, de defesa dos interesses do paulista e aceitação de suas práticas e representações, conhecidas pelo autor, ao que tudo indica, por observação direta.50 50 Ibidem, p.106.
NOTAS
Artigo recebido em 12/2003. Aprovado em 10/2005
- 1 O presente artigo está associado ao sentido de pesquisa maior já encerrada: AMBIRES, J. D. Os jesuítas e a administração dos índios por particulares em São Paulo, no último quartel do século XVII Dissertação de mestrado, FFLCH/USP, 2000.
- 3 Para cf., busque-se: LEITE, S. (S.J.). História da Companhia de Jesus no Brasil (v.V, VI e IX). Rio de Janeiro: Imprensa Nacional/INL, 1945 (v.V e VI) e 1947 (v.IX).
- 4 Quanto aos intuitos que teriam norteado a feitura da obra de Serafim Leite, busquem-se: AMBIRES, J D., 2000, cit., p.6-7; HANSEN, J. A. Serafim Leite. História da Companhia de Jesus no Brasil (resenha). In: MOTA, L. D. (Org.) Introdução ao Brasil. Um banquete no trópico (v.II). São Paulo: Ed. Senac, 2001, p.43-73.
- 8 Para cf., busque-se: BOSI, A. Dialética da colonização São Paulo: Companhia das Letras, 1992, p.150.
- 9 Para cf., busque-se: AZEVEDO, J. L. Cartas de Pe. Antônio Vieira (t. III). Coimbra: Imprensa da Universidade, 1928, p.665-70.
- 18 Para cf., busque-se: HOORNAERT, E. (Coord.) História da Igreja no Brasil (tomo II/1). Rio de Janeiro: Vozes/Paulinas, 1992, p.52.
- 21 Acerca do papel histórico da Casa da Torre na formação e exploração do território interiorano nordestino, remetemos o leitor a Pedro Calmon. Alertamos, contudo, para o tom apologético das ações dos representantes da Casa da Torre no escrito do historiador. Para cf., busque-se: CALMON, P. História da Casa da Torre Rio de Janeiro: J. Olympio, 1939, 210p.
- 28 Os temas "utopia" e "catequese indígena" são assuntos proficuamente entrelaçados pela professora Cristina Pompa em seu artigo "O lugar da utopia: os jesuítas e a catequese indígena" (Revista Novos Estudos Cebrap, São Paulo, n.64, nov. 2002, p.83-95).
- 31 A idéia do irreconciliável que aqui se explicita, recuperamo-la em Darcy Ribeiro. Para cf., busque-se: RIBEIRO, D. O povo brasileiro São Paulo: Companhia das Letras, 1997, p.66.
- 35 Para cf., busque-se: CALMON, P. História da Casa da Torre Rio de Janeiro: J. Olympio, 1939, p.84.
- 40 "Apologia pro paulistis in qua probatur D. Pauli et adiacentium oppidorum incolas etiamsi non desistant ab Indorum Brasiliensium invasivne, neque restituta iisdem indiis mancipiis suis libertate, esse nihilominus sacramentalis confessionis et absolutionis capaces." ("Apologia a favor dos Paulistis, na qual se prova que os habitantes de São Paulo e das cidades adjacentes ainda que não desistam da invasão dos Índios Brasileiros nem restituam aos mesmos Índios a liberdade todavia estão aptos a receber a confissão sacramental e absolvição.") O texto que aqui se apresenta em título completo e em latim e português é um dos escritos centrais da contenda a envolver paulistas e jesuítas, quanto à administração do índio no planalto. Dele recebemos cópia da Biblioteca Vittorio Emanuele, de Roma (Jacob Roland, S.J. "Apologia pro paulistis", s.d., 1249/3 Fondo Gesuìtico).
- 44 Para cf., busque-se: LEITE, S. (S.J.). As raças do Brasil perante a ordem teológica, moral e jurídica portuguesa nos séculos XVI a XVIII. Revista Brotéria, Lisboa, v.75, 1962, p.550.
- 45 Para cf., busque-se: AMBIRES, J. D., 2000, cit., p.130. Vieira também fará menção ao paulista escravizador de cristãos em seu Voto.. Para cf., busque-se: CIDADE, H. e SÉRGIO, A. (Org., Pref. e Notas). Pe. Antônio Vieira. Obras escolhidas (v.V). Lisboa: Sá da Costa, 1951, p.340-58.
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
17 Mar 2006 -
Data do Fascículo
Dez 2005
Histórico
-
Recebido
Dez 2003 -
Aceito
Out 2005