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Ergonomia, cognição e trabalho informatizado

Ergonomics, cognition and informatizated job

Resumos

Este artigo apresenta uma discussão crítica da problemática da navegabilidade em aplicativos e sítios da internet, adotando como referencial a perspectiva antropocêntrica. Procede-se à discussão conceitual de usabilidade como elemento de avaliação e proposição, apontando seus limites. A articulação entre as diferentes dimensões da interação homem-artefato se constitui pela via dos conceitos navegabilidade e competência para ação e integra o usuário com a interface num nível micro de interação. A dialética entre usabilidade e navegabilidade permite a (re)concepção por meio da lógica de quem usa, ao invés da lógica de quem concebe.

ergonomia cognitiva; navegabilidade; competência; usabilidade


This article presents a critical discussion about the navigability on applicatives and websites from an anthropocentric perspective and it assumes that the final user is a co-participant of the graphic interface conception. The usability concept is discussed, as well as its role as an evaluating and propositional element. It is demonstrated its limitations when is considered only the internal logic of the artifact. The concept of navigability and competence for action are proposed integrating the user in an interactive micro level with the graphic interface. The proposed dialectic between usability and navigability allows the (re)conceptualization from the user logic rather than from the designer logic.

cognitive ergonomics; navigability; competence; usability


Ergonomia, cognição e trabalho informatizado

Ergonomics, cognition and informatizated job

Júlia Issy AbrahãoI,1 1 Endereço: SQS 202 Bloco H ap. 602, Brasília, DF, Brasil 70232-080. E-mail: abrahao@unb.br ; Alexandre Magno Dias SilvinoII; Maurício Miranda SarmetII

IUniversidade de Brasília

IIInstituto de Ciências do Trabalho

RESUMO

Este artigo apresenta uma discussão crítica da problemática da navegabilidade em aplicativos e sítios da internet, adotando como referencial a perspectiva antropocêntrica. Procede-se à discussão conceitual de usabilidade como elemento de avaliação e proposição, apontando seus limites. A articulação entre as diferentes dimensões da interação homem-artefato se constitui pela via dos conceitos navegabilidade e competência para ação e integra o usuário com a interface num nível micro de interação. A dialética entre usabilidade e navegabilidade permite a (re)concepção por meio da lógica de quem usa, ao invés da lógica de quem concebe.

Palavras-chave: ergonomia cognitiva; navegabilidade; competência; usabilidade.

ABSTRACT

This article presents a critical discussion about the navigability on applicatives and websites from an anthropocentric perspective and it assumes that the final user is a co-participant of the graphic interface conception. The usability concept is discussed, as well as its role as an evaluating and propositional element. It is demonstrated its limitations when is considered only the internal logic of the artifact. The concept of navigability and competence for action are proposed integrating the user in an interactive micro level with the graphic interface. The proposed dialectic between usability and navigability allows the (re)conceptualization from the user logic rather than from the designer logic.

Key words: cognitive ergonomics; navigability; competence; usability.

Imagine uma pessoa que decide pagar a fatura do cartão de crédito em uma grande loja de departamentos. Ao chegar, dirige-se ao Atendimento ao Cliente e se defronta com o seguinte cenário: à sua esquerda, uma fila de mais ou menos 20 pessoas aguardando atendimento do único caixa aberto; e à sua direita um terminal de auto-atendimento, disponível, e um grande cartaz que anuncia: "é rápido e fácil". Incentivada pelo cartaz ela se encaminha até o terminal e tenta efetuar o pagamento. Lê as instruções iniciais, opta por um comando, lê novamente as instruções, passa o cartão, digita a senha e não consegue atingir o seu objetivo. Ela não desiste. Reinicia a operação, desta vez, sob os olhares das pessoas da fila, insere o cartão, escolhe a opção, digita a senha, lê as instruções e não consegue. Tenta mais uma ou duas vezes e, após novos insucessos, desiste e entra na fila aumentando o número de usuários que o único caixa deve atender.

Esta situação é mais comum do que se pode inicialmente supor. Por que um terminal de auto-atendimento que se intitula "rápido e fácil" não consegue atender aos clientes da loja? Ou, por outro lado, por que os clientes da loja não conseguem executar suas tarefas nesta máquina? Por que alguns clientes sequer tentam novamente usar o terminal, apesar do mesmo se encontrar disponível e ele ter que se submeter a uma fila?

A resposta mais evidente é que para o usuário a tarefa não é tão fácil quanto aparentava e o custo de lidar com esta tecnologia acaba sendo maior do que a permanência na fila. Ou talvez, porque o "medo" do fracasso o impeça de tentar e se descobrir incompetente para lidar com essas "coisas modernas". Assim, pode-se hipotetizar que o modelo subjacente à concepção destas novas tecnologias não contemplou as competências dos seus usuários exigindo que se adaptem a elas independente do custo e/ou do sucesso.

Os benefícios da introdução tecnológica na sociedade são indiscutíveis. No entanto, em face à realidade acima descrita, é pertinente indagar se é possível que os progressos tecnológicos resultem em facilidades de uso, favorecendo a interação e evitando atribuir aos usuários a "eterna função de variável de ajustamento".

Na interação homem artefato deve-se considerar que esse homem possui recursos percepto-cognitivos limitados (por exemplo, em relação à quantidade e tamanho das letras que ele pode perceber e à quantidade e qualidade das informações que ele pode tratar simultaneamente). Estas limitações são diferenciadas entre os indivíduos devido à sua formação, experiência, idade e familiaridade com a tecnologia. Enfim, a maioria desses artefatos podem produzir constrangimentos por não terem sido projetados incorporando a lógica e as características do usuário ou quando o fazem, a sua participação é incipiente. Cabe ressaltar, que o termo constrangimento assume, aqui, um duplo significado: em primeiro lugar refere-se aos limites que a interface impõe aos sujeitos no que tange as operações possíveis e, em segundo ao sentimento de frustração diante da máquina.

Esse papel do homem, como "eterna variável de ajustamento", vem sendo debatido desde a Segunda Guerra Mundial. Essa é a mesma problemática que perpassa, de forma critica, o processo de implantação de novas tecnologias na atualidade.

Uma das primeiras demandas nessa direção surgiu, nos anos 1940, com o objetivo de explicitar porque um equipamento extremamente moderno, que deveria facilitar a conduta dos pilotos da aviação, não era operado com a eficiência e a eficácia esperadas (Wisner, 1994). Para responder a esta demanda, foi constituída uma equipe interdisciplinar. O resultado das análises apontava, dentre outras questões, para a incompatibilidade entre a percepção humana, a localização e a forma dos mostradores e controles. Assim, originou-se a especialidade denominada Ergonomia, cujo objeto de estudo, em 1949, era similar à situação que levou o cliente da loja, em 2004, a desistir de utilizar o terminal de auto-atendimento e entrar na fila para pagar sua fatura.

Este artigo busca, na perspectiva da ergonomia, apontar o papel dos processos cognitivos na (re)concepção de artefatos tecnológicos tais como os Sistemas Informatizados – SIs e propor o conceito de competência como eixo de análise, agregando o usuário ao processo. Para tanto, articula conceitualmente as representações para ação e as estratégias operatórias na conformação das competências, identificando os processos cognitivos envolvidos e sua importância para a concepção destes artefatos. Finalmente, aponta a função destes conceitos e como a sua incorporação pode facilitar a interação dos homens com os artefatos informatizados.

A Ergonomia e os Sistemas Informatizados

A Ergonomia possui um caráter essencialmente aplicado. Constituiu-se, enquanto área do conhecimento, com o propósito de responder a uma demanda específica, e historicamente sua evolução é conseqüente às transformações da atividade humana.

Com base nesta premissa, e nas conseqüências da introdução da informática nas situações cotidianas, a Ergonomia tem sido requisitada a avançar na elaboração de um corpo teórico e metodológico que contemple a análise tanto dos sistemas informatizados quanto do seu impacto para os usuários.

A abordagem ergonômica encontra na interdisciplinaridade um de seus pilares, fazendo uso de conhecimentos produzidos em diversas áreas do saber. Essa interdisciplinaridade, de acordo com Pacaud (conforme citado por Wisner, 1996), favorece não somente o diálogo entre áreas distintas, mas também a evolução de cada uma delas. A análise em situação real constitui a sua principal ferramenta, norteando a ação ergonômica e delimitando os instrumentos e procedimentos mais adequados para a análise (Abrahão & Pinho, 1999; Guérin, Laville, Daniellou, Duraffourg & Kerguelen, 1991/2001).

A Ergonomia aplicada aos sistemas informatizados busca estudar como ocorre a interação entre os diferentes componentes do sistema a fim de elaborar parâmetros a serem inseridos na concepção de aplicativos que orientem os usuários e que contribuam para a execução da tarefa. No exemplo acima, ao tentar interagir com o terminal de auto-atendimento, o cliente tinha um objetivo que, aparentemente, era claro e simples: pagar o carnê. Para tanto ele deveria buscar nas opções de interface da máquina (a tela como fonte de informações e o teclado para inserção de dados), uma lógica que lhe permitisse efetivar uma ação. Nesse sentido, esperar-se-ia uma linguagem inteligível, uma seqüência de ações claras e com as opções de entrada de dados que lhe permitisse o controle do processo e o feedback para as suas ações. No entanto, algumas destas condições, aparentemente, não foram contempladas. O que levou este usuário a fracassar na sua tarefa?

O que se pode depreender desta situação é que, atualmente, o usuário é convidado a assumir um papel mais ativo em situações do seu cotidiano. Este papel, mediado por aparatos e não por pessoas, exige do usuário do sistema uma capacidade de abstração e representação da ação que, mesmo sem ter acesso a todos os componentes e às informações, permita que as tarefas sejam executadas de forma eficiente e eficaz. Nesta perspectiva, as exigências são, principalmente, de atividades que envolvem os processos e operações cognitivas, tais como monitoração, interpretação, tratamento de informações, resolução de problemas e memória (Sperandio, 1984). Rasmussen (2000), corrobora este pressuposto ao afirmar que a inserção tecnológica aumenta as exigências de natureza cognitiva, solicitando freqüentemente do usuário um processo de resolução de problemas e de criatividade.

A Ergonomia no estudo dos SIs analisa diferentes variáveis, tais como a utilidade e a usabilidade do sistema e, especialmente, a dimensão cognitiva envolvida neste tipo de tarefa. Dois eixos principais norteiam a análise de sistemas informatizados. O primeiro refere-se à utilidade do sistema, ou seja, se este possui os recursos (funcionais e de performance) necessários à realização das tarefas para as quais ele foi concebido. Um exemplo de utilidade pode ser ilustrado pelos Sistemas Centralizados de Informação – ERPs, adotados cada vez mais por empresas, visando agilizar processos e a tomada de decisões, considerando que estes permitem acessar informações de diferentes setores em diversos níveis. Por motivo de controle, segurança e até mesmo de confidencialidade, estas informações nem sempre são disponibilizadas para leitura ou inserção de dados a todos na empresa. Neste sentido, o sistema informatizado cumpre o seu papel de centralizar as informações da empresa e disponibilizá-las aos diferentes atores.

O segundo eixo enfoca a usabilidade, relacionada à análise da qualidade do sistema em facilitar o seu manuseio e sua aprendizagem pelo usuário (Senach, 1993). Apesar da importância da estética na navegação (Lavie & Tractinsky, 2004), não se trata somente de torná-lo mais atrativo ou agradável. Tomando o exemplo dos ERP's, há pouca discussão sobre sua utilidade para a execução da tarefa. Entretanto, a sua interface e lógica de funcionamento podem dificultar ou até impedir a ação dos usuários, quando são de difícil interpretação ou quando são desenhados a partir de uma compreensão distante da realidade de trabalho.

Nesta perspectiva, a literatura é rica em exemplos que apontam os riscos de se conceber os sistemas informatizados sem incorporar as características, as necessidades e os limites de seus usuários, na execução de tarefas específicas (Cybis, 2001; Ferreira, 1998; Scapin, 1988, 1993). É oportuno acrescentar que os sistemas são utilizados por usuários comuns e não somente por especialistas, e que os SIs tendem a se tornar cada dia mais interativos. Um exemplo é dado por Kim, Han, Yang e Cho (2004) quando propõem que no futuro as interfaces serão baseadas no corpo, modificando as formas de inserção e acesso às informações e evoluindo as interfaces hoje existentes.

A visão antropocêntrica, na qual o usuário passa a ter um papel fundamental, não desconsidera a visão técnica necessária à concepção dos sistemas informatizados, mas legitima que as características da população devem guiar as decisões de cunho técnico, resultando em uma interface mais adaptada aos seus usuários. Neste enfoque, a usabilidade seria determinada pela tarefa a ser executada. Segundo Nielsen (1993), a usabilidade é composta por cinco atributos principais: facilidade de aprendizado, eficiência, facilidade de memorização, baixa taxa de erros e satisfação do usuário. Estes atributos são avaliados à luz da tarefa a ser executada e pelo custo dos mecanismos cognitivos ativados pelos usuários. Para Senach (1993), a usabilidade deve ser avaliada em função de suas propriedades intrínsecas (referentes à lógica estrutural do sistema), de suas propriedades extrínsecas (relacionadas à sua adequação à situação, às exigências das tarefas e aos seus usuários). Não faz sentido, portanto, analisar um sistema informatizado fora do seu contexto de uso.

Scapin (1993) aprofunda a noção de usabilidade salientando que os problemas mais comuns observados na concepção de interfaces podem ser associados não somente à falta de conhecimentos prévios sobre a tarefa, mas também a não inserção dos usuários, revelando uma lógica mais funcional do que operacional, remetendo mais uma vez a um modelo tecnocêntrico de concepção. O autor ressalta que homogeneizar as interfaces não garante a usabilidade, uma vez que elas são concebidas para diferentes tarefas e usuários, com objetivos distintos. Daí a dificuldade em se estabelecer parâmetros universais bem definidos para a análise de todas as interfaces gráficas e evidencia a necessidade de uma metodologia que se ajuste às suas especificidades.

Um exemplo ilustrativo desta problemática foi descrito por Castello-Branco (2002) na avaliação e implantação de um sistema informatizado em um Restaurante Universitário – RU. A autora analisou a interface gráfica deste sistema e identificou inadequações tais como: a linguagem adotada (incluindo termos técnicos de informática, uso da língua inglesa e ícones pouco representativos das suas funções); a população usuária (indivíduos com ampla experiência no seu trabalho, baixo nível de escolaridade e nenhuma prática com SIs) e; a tarefa a ser desempenhada (já que o software servia a diferentes setores do RU). A incompatibilidade, observada na implantação do sistema, resultou em diferentes tipos de erros na operação. Constatou-se que, na concepção do sistema do RU, não foram consideradas as características dos usuários e a possibilidade de transferir para a interface os conhecimentos e a experiência dos mesmos. Tal procedimento impôs aos usuários do sistema a necessidade de reestruturação de sua representação sobre o trabalho e, conseqüentemente, do seu fazer. A discrepância entre os procedimentos adotados anteriormente à informatização e os atuais sugere que não foi considerada a possibilidade de transferência do conhecimento do fazer antigo para o novo, exigindo dos trabalhadores, já não tão jovens, a aquisição de novas competências para realizar uma atividade que eles dominavam há mais de uma década.

Os sistemas informatizados solicitam aos usuários uma modelização dinâmica da situação (representações), e a utilização de estratégias heurísticas que minimizem o custo cognitivo e o tempo necessário para sua resolução. Esses procedimentos, no entanto, podem aumentar a probabilidade de erros de julgamento. A introdução de sistemas informatizados pode auxiliar o cotidiano dos indivíduos, mas, para tanto, é necessário incorporar na sua estrutura a lógica do funcionamento cognitivo humano e compatibilizar o sistema informatizado com este funcionamento.

A utilização dos preceitos da usabilidade, aliada à análise da situação real dos usuários, tal como proposta pela Ergonomia, permite compreender as relações estabelecidas entre o sistema informatizado e a situação, bem como o impacto destas na ação dos usuários do sistema. Trata-se de uma estratégia para envolver o usuário que realiza uma tarefa específica e, portanto, observá-lo em ação a fim de compreender a sua lógica e, assim, incorporar ao SI elementos que facilitem a ação. Esse é o desafio teórico e metodológico colocado à Ergonomia Cognitiva.

Ergonomia Cognitiva

A Ergonomia Cognitiva – EC é um campo de aplicação da ergonomia que tem como objetivo explicitar como se articulam os processos cognitivos face às situações de resolução de problemas nos seus diferentes níveis de complexidade. É importante salientar que a EC não tem como meta elaborar teorias gerais sobre a cognição humana (Green & Hoc, 1991; Hollnagel, 1997). O seu papel é compatibilizar as soluções tecnológicas com as características e necessidades dos usuários (Marmaras & Kontogiannis, 2001). Nesta perspectiva, ela é solicitada a contribuir com um referencial teórico e metodológico que permita analisar como o trabalho afeta a cognição humana e, ao mesmo tempo, é afetado por ela (Hollnagel, 1997).

Os processos cognitivos, segundo Weill-Fassina (1990) e Weill-Fassina, Rabardel e Dubois (1993), não são estáveis; eles se adaptam ao que deve ser realizado, nas condições existentes. Weill-Fassina (1990) propõe, como um dos objetivos da análise dos processos cognitivos, compreender como os indivíduos regulam a situação de trabalho, ao solucionar os problemas decorrentes da discrepância entre o que é prescrito (tarefa) e a realidade encontrada. Nessa relação, trabalho/cognição humana, subjaz o pressuposto de que cada novo artefato altera a natureza da tarefa a ser realizada e exige dos usuários competências diferenciadas para ação (Marmaras & Kontogianis, 2001; Marmaras & Pavard, 1999). Da mesma forma, novos artefatos são concebidos no intuito de solucionar problemas de desempenho humano. É nessa perspectiva que a EC busca compreender a cognição humana de forma situada e finalística, ou seja, em um contexto de ação e voltada para um objetivo específico.

A EC investiga esses processos para compreender como um indivíduo gerencia o seu trabalho e as informações disponibilizadas para, assim, apreender a articulação que ele constrói e que o leva a realizar determinada ação. Da mesma forma, por exemplo, que a Ergonomia não estuda o funcionamento do olho, do músculo, mas sim, a expressão desse funcionamento por meio do olhar das posturas, dos gestos, dos movimentos, à EC interessa a expressão da cognição humana. O procedimento de análise e intervenção adotado nessas circunstâncias considera as capacidades e os limites, tanto os de natureza fisiológica quanto cognitiva do ser humano e, por essa via consegue, muitas vezes, explicar a gênese dos erros e dos incidentes imputados à falha humana. Nesse sentido, para a EC interessa compreender o "porquê" desta "falha humana"; assim, os processos de aquisição, processamento e recuperação de informações constituem um importante objeto de estudo (vide Figura 1).


Estes processos, em última instância, dão suporte às competências dos indivíduos. Tais competências são constituídas a partir da sua ação em uma situação articulando: (a) as representações que ele utiliza para compreender a situação e (b) as estratégias de ação em um determinado contexto. A relação entre estas variáveis (representações e estratégias) não é seqüencial e/ou linear. Dito de outra forma, os processos cognitivos envolvidos em cada uma delas, ao interagirem, agregam informações e delimitam a quantidade e qualidade dos conhecimentos evocados. A seguir, apresenta-se o conceito de competência, representação para a ação, estratégias operatórias, ressaltando a interação existente entre eles e a dinâmica dos processos cognitivos envolvidos.

As competências

O conceito de competências é definido por Montmollin (1990) como sendo a articulação de conhecimentos (declarativos e procedimentais), representações, tipos de raciocínios e estratégias cognitivas que o sujeito constrói e modifica no decorrer da sua atividade. Elas formam, na opinião do autor, uma estrutura que permite dar significado e propiciar a ação humana no contexto real. Assim, só é coerente falar de competências quando relacionadas a uma tarefa a ser cumprida.

Para a EC, as competências não estão relacionadas à noção de excelência do desempenho. Portanto, é inadequado afirmar que só é competente aquele que realiza com perfeição a sua tarefa. Em última instância, como afirma Montmollin (1995), as competências são inerentes a todos os indivíduos. Apreender sobre em que bases se constroem as competências do usuário é fundamental para que a EC possa sugerir alterações no contexto da situação e até mesmo na concepção de interfaces informatizadas mais adaptadas.

Leplat (1991) aponta como características principais das competências: são construídas e desenvolvidas com o objetivo de executar uma tarefa específica (logo, não são competências gerais); são aprendidas no decorrer da atividade; são organizadas de forma a se atingir um objetivo; e são noções abstratas e hipotéticas, uma vez que só o resultado de sua utilização pode ser observado. É por meio dessas competências que os usuários são capazes de realizar suas tarefas, e principalmente de antecipar os possíveis erros, disfuncionamentos e aprimorar o seu procedimento na situação (Montmollin, 1986).

Um exemplo de construção de competências é apresentado no estudo de Sarmet (2003) em que ele analisa a atividade de tutores em um curso de Educação a Distância via internet. Para realizar suas tarefas, os tutores utilizam diferentes aplicativos, que guardam entre si semelhanças percepto-cognitivas (ícones, cores, barras de menus). Esses mesmos ícones nem sempre são semelhantes do ponto de vista funcional nos aplicativos (por exemplo, as teclas de atalho "control+N" podem acionar a função "negrito" em um aplicativo e a função "novo documento" em outro), solicitando constantemente o uso da memória e da atenção. Pode-se apreender as competências construídas pelos tutores na medida em que eles utilizam seus conhecimentos e experiências com o intuito de minimizar o efeito dos custos (erros, "retrabalho") da solicitação constante da memória e da atenção em seu desempenho.

As competências dos indivíduos, pelas características apresentadas, são fundamentadas nas representações que eles constroem a partir da sua ação para poder agir. Ou seja, são formadas a partir de suas representações pela e para ação.

As representações pela e para ação

Le Ny (conforme citado por Montmollin, 1995) discute as representações sob duas perspectivas: uma psicológica, como um conjunto de características e valores relacionados a um objeto; e a outra técnica, como sendo a expressão de um conhecimento por meio de um conjunto de signos. Ambas atribuem às representações o papel de armazenar as informações sobre o mundo, seja na forma de modelos mentais, esquemas, scripts, mapas ou imagens, dependendo da especificidade da informação armazenada.

As representações para a ação são abordadas por Teiger (1993), a partir da noção de "processo" e de "objeto das representações". A primeira, diz respeito à sua elaboração, a partir dos elementos disponíveis na atividade. As representações são criadas pelo usuário no contexto da ação. É um processo continuo e dinâmico. É a ação que as definem e as modificam, estão condicionadas às variações na natureza da atividade nas situações reais (Weill-Fassina & cols., 1993).

A segunda refere-se às representações, criadas para alcançar um objetivo, expresso na forma de uma ação. Essas representações para a ação são entendidas como um conjunto de crenças, conhecimentos e habilidades, estruturado pela experiência do sujeito (Teiger, 1993). As representações são constituídas pela e para a ação, funcionando como mediador entre a ação (última) e a cognição (Ochanine, 1966). É por meio das representações que os indivíduos selecionam as informações relevantes e os procedimentos mais adequados para se realizar uma tarefa.

Teiger (1993) e Weill-Fassina (1990) conceituam as representações como um construto dinâmico: flexível, adaptativo, situado – na medida em que são elaboradas e utilizadas no decorrer da ação, com um objetivo específico, agregando elementos oriundos de novas experiências; e, sobretudo econômico, uma vez que são compostas somente pelas informações mais relevantes. Esta noção remete ao conhecimento que é representado na memória, e que é central para o conceito de representações para ação.

Silvino e Abrahão (2002) demonstraram, a partir de um estudo em uma organização pública de caráter jurídico, a influência das representações dos trabalhadores na utilização de um sistema informatizado de autuação. O estudo sugere, considerando o tempo gasto para a realização e pelos modos operatórios adotados na execução da tarefa, que a representação dos usuários mais experientes mostra-se mais eficaz.

O fato da representação para ação agregar somente as informações mais relevantes, o que constitui uma forma de gestão dos recursos cognitivos (economia), é apontado também por Amalberti (1991) em seus estudos sobre os modelos mentais, cujas características apontadas pelo autor são a incompletude, a falta de limites claros, a pessoalidade, a instabilidade e a não cientificidade.

A luz das teorias produzidas pela Psicologia Cognitiva, a representação é por vezes discutida como o resultado de um processo de memória que pressupõe a codificação da informação, o seu armazenamento e a sua evocação.

Os estudos sobre memória buscam compreender como o conhecimento é mantido e recuperado, bem como os fatores que podem auxiliar ou dificultar esse processo. O modelo tradicional de memória propõe uma estruturação em três níveis: memória sensorial responsável pela manutenção, em um curtíssimo espaço de tempo, dos estímulos captados pelos órgãos sensoriais, memória de curto prazo – manutenção dos estímulos relevantes por um período curto de tempo, e memória de longo prazo, na qual as informações são armazenadas sem uma limitação temporal (Best, 1995).

Um modelo desenvolvido mais recentemente e com suporte empírico, enfatiza a estrutura da memória em termos de "memória de trabalho" e de "memória de longo prazo", a primeira como uma parte ativada da segunda. A memória de trabalho funciona como um gestor da memória, e as informações recuperadas são reconstruídas nela, a partir do material existente na memória de longo prazo (Anderson, 2000; Best, 1995; Sternberg, 2000).

Cabe ressaltar, que este modelo é uma "evolução" teórica do anterior, o da estrutura do modelo tradicional da memória. Assim, a memória de trabalho não perde a característica de manutenção e troca de informações por um curto espaço de tempo de acordo com o contexto. Isso é importante já que o contexto gera pistas que permitem a "reconstrução" da memória a cada evocação, o que lhe atribui um caráter dinâmico.

É relevante salientar que este modelo trata da estrutura geral da memória (Sternberg, 2000). Enquanto processo, Anderson (1983) sugere que a memória pode ser compreendida atuando por uma distribuição em redes, sugerindo que a informação é armazenada em traços (nós) que estão ligados entre si, e que podem ser ativados ou não. Neste sentido, pode-se pressupor que as representações para ação constituem-se em um conjunto de traços de informação recuperados na memória de longo prazo e ativados na memória de trabalho. Se, as representações estão estreitamente associadas ao processo de memória como os conhecimentos representados se articulam para a construção das competências dos indivíduos?

Uma forma integrativa das representações pode ser apreendida no modelo Cognitive Architecture Process – CAP proposto por Anderson (1983). Este modelo agrega o conceito de redes semânticas para o conhecimento declarativo e de regras de produção para o conhecimento procedimental, que são organizados, conectados e apoiados em relações de significado e freqüência de utilização. Não são cópias fiéis do objeto representado; ao invés disso, tratam-se de (re)construções conseqüentes à ativação de um padrão de conexões na rede a partir dos conhecimentos que a compõe.

Neste modelo integrativo, a ativação da rede obedece à disseminação de um padrão de ativação que é limitado. Assim, quanto mais freqüente é a ativação de um "caminho" entre dois nós, mais forte ele se torna e maior a probabilidade de ser ativado novamente, quando o conceito for estimulado outra vez, fortalecendo o processo de aprendizagem. No entanto, o padrão de ativação se modifica constantemente, já que em um determinado contexto, os padrões se enfraquecem ou fortalecem por meio do uso (evocação). Quanto à flexibilidade inerente a esse modelo, ela guarda similitudes com as características atribuídas pela EC às representações para ação, seu caráter: a) incompleto (uma vez que nem todas as informações referentes ao objeto são recuperadas); b) econômico (pois tende a estruturar a informação agregando traços freqüentemente recuperados em conjunto, bem como transformando conhecimentos declarativos em procedimentais, reduzindo o custo associado ao processo), e; c) voltado e construído pela ação (pois se modifica a cada recuperação, elevando ou reduzindo a probabilidade de evocação, adequando-se ao contexto).

Em EC, é interessante compreender como as representações são (re)constituídas e utilizadas nas situações reais. Como nem todos os elementos da ação humana são conscientes e verbalizáveis, cabe ao ergonomista explicitar as representações juntamente com o usuário, por meio de observações da atividade, verbalizações espontâneas e entrevistas. A partir da explicitação das representações e da identificação dos elementos relevantes da situação, é possível estruturar sistemas informatizados mais eficientes e eficazes, uma vez que a partir deles pode-se conceber sistemas que forneçam ao usuário pistas claras que indiquem as possibilidades mais adequadas de ação.

A evolução dos softwares que utilizam padrão WIMP –"Windows, Icons, Mouse e Pull-Down Menus", quando comparados aos seus predecessores, associa as representações gráficas às denominações utilizadas e procura associar elementos do cotidiano para facilitar o seu uso. No entanto, pistas podem também criar armadilhas num contexto específico (Evans, Gibbons, Shah & Griffin, 2004). Assim, comandos como "recortar" e "salvar" tentam estabelecer uma forte associação entre os instrumentos "tesoura" e "disquete" com as ações esperadas. Neste caso, o estímulo visual do ícone, que representa uma tesoura, atua como pista que ativa e disponibiliza para uso informações da memória relacionadas ao conceito do que significa recortar um trecho do texto que está sendo redigido, bem como os procedimentos necessários para executar esta ação (vide Figura 2 item a). Por outro lado, o comando "colar" está associado a um símbolo que não guarda relação direta com a ação que ele representa. Assim, para pessoas com pouca experiência este símbolo não atua como uma pista forte (em alguns casos como pista alguma) do padrão de ativação para as competências necessárias à ação "colar". Mesmo para usuários experientes, a falta de uma representação direta com as ferramentas do dia-a-dia pode induzir a erros, levando-os a acionar o ícone de "copiar" (vide Figura 2 item b), em vez do ícone "colar" (vide Figura 2 item c), que é o desejado.


Como no exemplo do Windows citado acima, a tesoura se assemelha mais a um objeto comum na realidade de escritórios, facilmente identificado pelas pessoas. Ela traz, ainda, sua função associada ao comando disponibilizado. Contudo, não basta ao ergonomista buscar as representações para ação. Para apreender as bases sobre as quais foram construídas as competências do usuário, é preciso compreender como ele utiliza essas representações nas situações reais. Nesse sentido, a Ergonomia faz uso dos conceitos de estratégias e modos operatórios, que se manifestam na forma de ações, operacionalizando suas representações para gerir os constrangimentos da situação de trabalho e/ou dos aparatos tecnológicos.

As estratégias operatórias

O conceito de estratégias, de forma geral, pode ser entendido como um conjunto ordenado de passos que envolvem o raciocínio e a resolução de problemas, possibilitando a ação (Montmollin, 1995). As estratégias operatórias são definidas por Silvino e Abrahão (2003) como sendo um processo de regulação que pressupõe mecanismos cognitivos como a categorização, a resolução de problemas e a tomada de decisão. As estratégias resultam, entre outros fatores, das possibilidades de interpretação das informações do ambiente de trabalho e da evocação de conhecimentos e experiências contidas na memória do trabalhador. Após a seleção das estratégias, o indivíduo é capaz de operacionalizar um conjunto de procedimentos para alcançar o objetivo planejado. Aos procedimentos dá-se o nome de modos operatórios (Guérin & cols., 1991/2001), conseqüência de uma regulação entre o que deve ser feito, as condições disponíveis para sua execução e o estado interno do individuo.

Pelo menos quatro processos cognitivos estão envolvidos na estruturação e utilização (por meio de estratégias e modos operatórios) das representações. Estes processos envolvem o momento de percepção, bem como, a interpretação e elaboração das informações captadas: atenção, categorização, memória e resolução de problemas, resultando em um procedimento que permite a ação (resolução de problemas). Cada informação presente na situação mobiliza estes processos, selecionando e tratando as informações relevantes para atingir os objetivos almejados.

O processo de categorização busca identificar como as informações são percebidas e como elas se articulam com as que estão armazenadas no sistema de memória do individuo, auxiliando na compreensão de como uma nova associação se estabelece.

Nesse sentido, ela tende a organizar a realidade segundo uma lógica que se apóia em crenças, valores e normas, ou seja, as verdades que o institui enquanto sujeito. Nesse processo de dar sentido à realidade, entram em ação outros mecanismos, sendo um deles, a atenção que também é dirigida pela experiência e conhecimentos logo, ela é seletiva, e determina aspectos da realidade que serão descartados e outros retidos.

Este processo gera uma outra configuração que é enriquecida em função da variabilidade conjuntural e até mesmo estrutural das situações reais. As características perceptuais e contextuais relacionadas aos elementos a serem codificados podem facilitar ou dificultar sua vinculação a uma categoria adequada (Barsalou, 1992), o que poderia ocasionar julgamentos e ações inapropriadas na realização de uma atividade.

As teorias sobre a atenção buscam explicitar como o ser humano processa determinadas informações privilegiando outras, e quais as conseqüências para o seu desempenho em determinadas tarefas. A atenção é compreendida como o processo que permite a captação e o tratamento ativo de informações (Sternberg, 2000). Um dos princípios norteadores dos estudos sobre a atenção está relacionado à quantidade de estímulos diferenciados presentes em cada situação e a significação que o sujeito atribui a cada um deles, dependendo das informações contidas na sua memória e das associações que ele é capaz de estabelecer para elaborar uma representação, em tempo real, do problema a que ele está confrontado. Neste sentido, seria inviável para o ser humano processar cada elemento do contexto, por isso ele seleciona, segundo as suas competências, as variáveis que considera pertinentes para a sua ação.

Estudos, como o de Anderson (1983), buscam definir como ocorre o processo de automatização de procedimentos oriundo da prática do indivíduo e da quantidade de situações semelhantes presentes na sua experiência, tornando o processo de recuperação das informações mais rápido e permitindo que o indivíduo direcione seus recursos atencionais para outras tarefas (Boronat & Logan, 1997; Logan, 1988).

Outros estudos procuram compreender o efeito de tarefas interferentes no desempenho dos indivíduos, considerando que existe um limite para a atenção a diversos estímulos simultâneos. A similaridade de estímulos de tarefas concorrentes, por exemplo, é um fator que dificulta a realização da tarefa principal (Duncan & Humphreys, 1992 conforme citado por Sternberg, 2000). Estudos realizados por Pashler, Johnston e Ruthruff (2001) apontam que o processo de atenção não ocorre somente em função do estímulo apresentado, sem um direcionamento ativo do indivíduo; nesse sentido, ele não pode ser considerado completamente automático, uma vez que o indivíduo é capaz de, até certo ponto, controlar o foco da atenção para estímulos ou contextos específicos, "filtrando" informações irrelevantes para a execução de determinada tarefa. Para os autores, as características dos estímulos do ambiente podem facilitar ou interferir no controle consciente da atenção, a exemplo dos estímulos mais discrepantes, que podem redirecionar o foco de atenção sem o controle do sujeito.

Na EC, procura-se compreender quais são as estratégias elaboradas que favorecem não somente o direcionamento atencional, mas, sobretudo, como é distribuída sua atenção e a partir de quais elementos da situação se estabelece uma hierarquia sobre o que é mais relevante ao desenvolvimento da atividade. Ao se identificar na situação real, as informações e as estratégias utilizadas no processo, pode-se definir os parâmetros de transformação ou critérios de flexibilização a serem incorporados no processo de forma a facilitar a seleção das informações pertinentes.

No que se refere à resolução de problemas, os estudos buscam compreender como os elementos de uma determinada situação são analisados e como os indivíduos utilizam as informações disponíveis para encontrar uma solução. A teoria de Newell e Simon (1972, conforme citado por Sternberg, 2000), pressupõe que este processo é composto: pelo estado inicial do problema; o seu estado final (os objetivos a serem alcançados), bem como pela representação das alternativas possíveis de resolução e pelos obstáculos existentes. Neste modelo, o indivíduo lança mão de regras de produção, que são as ações possíveis que alteram o estado atual para uma situação mais próxima ao estado final. De acordo com essa teoria, este é um processo que engloba a análise dos elementos do problema e a busca pela estratégia mais adequada.

Neste enfoque, pode-se supor que a dificuldade em obter alguns benefícios via internet, ou pagar contas, ou pegar a segunda via de um imposto qualquer passe pela dificuldade ou impossibilidade de formular o problema a ser resolvido. Naturalmente, como já foi dito, as pessoas utilizam uma representação para compreender a situação e agir. Essa representação, quanto mais distante da situação-problema, menos ela é adequada para obter respostas.

Imagine que alguém vá pedir um benefício na Agência da Previdência Social. Após muito tempo na fila, ele apresenta uma série de documentos ao atendente, que os protocolará e dirá ao requerente que o processo será julgado e a resposta será dada no prazo de X meses, ou por outro lado, informará ao cidadão que ainda são necessários alguns documentos que poderão ser obtidos nos órgãos A, B e C. Neste caso, o requerente tem ciência (a) do estado inicial do problema (qual é o problema, a localização das agências, rotas de trânsito e horário de funcionamento, por exemplo), (b) do estado final (qual o resultado: o documento protocolado e mais informações sobre o processo, seja a data do julgamento seja a necessidade de encaminhar mais documentos) e (c) dos caminhos para a resolução (como fazer: ir à Agência com os documentos e protocolar o pedido). Apesar do trabalho, sofrimento e perda de tempo evidente, o indivíduo sabe o que deve ser feito.

Na internet, as possibilidades de resolução podem ser inúmeras ou somente uma, a depender da concepção da interface (lógica do site). Ou seja, pode-se chegar ao resultado final por diferentes caminhos, mais longos ou mais curtos, dependendo de como se monta o problema. Até a possibilidade de ajuda, neste contexto, que pode ser considerada um caminho para a resolução, consiste em encontrar uma resposta previamente redigida ou enviar um e-mail com a pergunta.

Assim, o problema apresentado pode ser definido em função das informações que disponibiliza. Os problemas bem estruturados são aqueles que apresentam claramente o estado inicial, o estado final desejado, os procedimentos e os obstáculos para sua solução. Os problemas mal estruturados, por sua vez, não disponibilizam informações suficientemente estruturadas que permitam a construção do espaço do problema. Desta forma, o indivíduo não é capaz de interpretar, com precisão, como resolver o problema (Anderson, 1983; Quesada, Cañas & Antolí, 2000; Quesada, Kintsch & Gomez, 2002; Sternberg, 2000). A representação do espaço do problema, que é construída pelo indivíduo no momento da resolução, está associada à clareza das informações disponibilizadas e à experiência anterior do sujeito, e quanto mais correta for essa representação, maior serão as chances de resolução (Keren, 1984).

Quesada e cols. (2002) pontuam, de forma pertinente, que no "mundo real" as resoluções de problemas adquirem características que as diferenciam de situações de laboratório. Segundo os autores, elas são: a) dinâmicas, pois ações anteriores podem determinar mudanças no ambiente e o ambiente da tarefa pode mudar sem a interferência do sujeito; b) limitadas temporalmente, porque as decisões têm que ser tomadas em um tempo específico; e c) complexas, já que a maioria das variáveis não está relacionada linearmente entre si. Essa variabilidade de características pode ser ilustrada pelo estudo conduzido por Sarmet (2003), que pela via da análise ergonômica do trabalho, identifica como a situação de interação entre o tutor e os alunos é permeada pela imprevisibilidade, dinamismo e incerteza. Além disso, os seus dados revelam que o tutor não tem controle do seu meio de comunicação e, que ele está submetido a panes e disfuncionamentos nos aplicativos utilizados, ou ainda problemas de conexão na própria internet. Ele pode solucionar a demanda de um aluno em dois minutos ou em uma hora, dependendo do grau de complexidade da questão. Aliados a estes fatores, a multiplicidade das ferramentas e a própria dinâmica inerente à tarefa de tutoria compõem um quadro que prima pela variabilidade. Ao tutor cabe a atribuição de lidar com todas estas variáveis, com um espaço de problema mal delineado e cumprir a sua jornada de trabalho sem saber quais serão os problemas que deve resolver ou qual o estado final para cada uma das demandas colocadas pelos alunos.

Como os recursos cognitivos são limitados, a análise de todos os elementos do contexto, bem como das alternativas de ação disponíveis se mostra inviável (Holyoak, 1990), os indivíduos elaboram "atalhos mentais" denominados de heurísticas, com o intuito de agilizar os processos de resolução de problemas e decisão utilizando o mínimo dos recursos disponíveis (Gingerenzer, Todd & ABC Group, 1999; Holyoak, 1990; Marmaras & Kontogianis, 2001; Sternberg, 2000). As heurísticas mais comuns dizem respeito à utilização da estratégia de solução mais facilmente recuperada na memória (disponibilidade), ou mais representativa da solução para problemas de categorias semelhantes (representatividade). A utilização de heurísticas, justamente por serem baseadas em análises parciais da situação, pode aumentar a probabilidade de erros e acidentes, em função de uma interpretação inadequada dos elementos do contexto. Na maioria dos casos, no entanto, elas elevam a eficiência e a eficácia das ações.

Todos estes processos se articulam e se manifestam na competência do sujeito ao utilizar seus conhecimentos e representações, gerando estratégias operatórias que resultam na ação mais adequada, visando a realização da ação. Os processos atencionais e de categorização auxiliam o indivíduo a determinar o que analisar na situação de trabalho e quais representações e conhecimentos buscar na memória de longo prazo, gerando os melhores procedimentos para solucionar a questão proposta.

Considerando que a EC tem como foco principal a análise da situação real, é parte do seu fazer compreender como se dá a interação entre os elementos do sistema estudado. Dada a importância do papel da interface como elemento mediador, é relevante estudar como se dá a interação entre o usuário e o sistema informatizado.

Desta forma, retomando o primeiro exemplo que introduziu este artigo, o terminal de auto-atendimento, quanto mais o sujeito se especializa nesta operação mais ele reforça a probabilidade de recuperação dos conhecimentos necessários para agir, tornando-o competente. Nesta lógica, quanto mais se incorpora o usuário na (re)concepção de sistemas informatizados mais se pode aproximar a lógica de funcionamento, a interface e a linguagem às representações e às estratégias que eles utilizam em sua ação.

Conclusão

O processo de informatização pode ser avaliado sob duas perspectivas até hoje distintas: uma que é a do especialista e a outra a do usuário. O problema é que a articulação das duas ocorre em um nível muito superficial. Talvez porque se trate, ainda, do usuário final como se fosse um especialista, acreditando que um dia ele aprenderá a utilizar esse artefato independente da lógica subjacente a seu manuseio. A conseqüência mais visível deste tipo de procedimento é o custo para o usuário que, se manifesta sob a forma de erros freqüentes e sofrimento ao ser confrontado quotidianamente a esses artefatos nos mais diferentes espaços de sua vida.

É bem verdade que os conhecimentos disponíveis sobre o homem em ação vêm se desenvolvendo no rastro das novas tecnologias e permanecem, em geral, de acesso restrito. Fato é, também, que os projetos de interface são relegados aos designers que raramente são portadores de conhecimento sobre a cognição humana em situação. De fato, a eles são solicitadas a harmonia e a estética, conceitos que eles operacionalizam apoiados na criatividade e sob alguma base da percepção humana.

Não bastasse essa dicotomia entre as lógicas, aparentemente de resolução simples, uma outra variável complexa media a definição desses dois critérios: o da confiabilidade dos sistemas. No meio dessa discussão se encontra o usuário, cidadão comum e trabalhador. Todos ansiosos para obter sucesso ao operar estes artefatos, disponibilizados pelo progresso tecnológico, e que aparentemente deveriam minimizar a carga de trabalho na lida com a vida. No entanto, este é um privilégio reservado a poucos. Por quê?

Seriam tantas as competências solicitadas para incorporar as características dos usuários na concepção dos artefatos que justifiquem, ainda hoje, a manutenção da lógica de concepção idealizada e voltada para os especialistas? Não é visível que dessa forma se exclui boa parte da população da sensação de bem-estar ao lidar com os artefatos disponibilizados até em quiosques de shoppings centers?

A proposta aqui contida é que se indague, antes de tudo, quais as tarefas e a que faixa da população se destina o produto. Para se atingir os objetivos a que o artefato se propõe e nesse processo, é fundamental compreender como o usuário se apropria das informações contidas no ambiente na perspectiva de incorporar essas representações (esquemas) conceitualmente no projeto.

O referencial teórico metodológico da Ergonomia foi apresentado como forma de identificar o processo segundo o qual o sujeito constrói suas interpretações do contexto em que se insere, ao mesmo tempo em que permite transformar esse conhecimento em elementos de mudança desse contexto. Trata-se de uma abordagem mediadora entre o sujeito e a tecnologia como forma de assegurar que a lógica que guia a ação do usuário seja contemplada tanto no processo de concepção quanto de reformulação das interfaces em geral.

Recebido em 21.09.2004

Primeira decisão editorial em 16.05.2005

Versão final em 01.06.2005

Aceito em 18.07.2005

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  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      23 Set 2005
    • Data do Fascículo
      Ago 2005

    Histórico

    • Revisado
      01 Jun 2005
    • Recebido
      21 Set 2004
    • Aceito
      18 Jul 2005
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