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Semântica de eventos no domínio nominal: diferenças e semelhanças entre nominalizações e nomes que denotam eventos

Event Semantics in the nominal domain: differences and similarities between nominalizations and event-denoting nouns

RESUMO

Nomes que denotam eventos (NDEs), sem contraparte verbal, tais como cirurgia e terremoto, formam uma classe, em geral, deixada de lado na literatura sobre semântica de eventos no domínio nominal, em comparação com as nominalizações. Neste artigo, nosso objetivo é, depois de argumentar linguisticamente que NDEs, de fato, denotam eventos, fornecer uma explicação estrutural para essa característica, baseada nos postulados da Morfologia Distribuída (Halle & Marantz, 1993Halle, M., & Marantz, A. (2020). A Morfologia Distribuída e as peças da flexão. Tradução Beatriz Pires Senanta & Maurício Resende. Editora da UFPR. (Distributed Morphology and the pieces of inflection, 1993).). Argumentaremos que há duas estruturas distintas que denotam eventos e que os NDEs colocam questões importantes para a semântica de eventos das línguas naturais.

Palavras-chave:
nominalização; morfologia distribuída; semântica de eventos

ABSTRACT

Event-denoting nouns (ENDs) with no verbal counterpart, such as cirurgia (‘surgery’) and terremoto (‘earthquake’), constitute a class, which is usually set aside from the literature on nouns denoting events, in contrast to nominalizations. In this paper, after arguing linguistically that EDNs do denote events, we aim at providing a structural explanation on this property, based on Distributed Morphology framework (Halle & Marantz, 1993Halle, M., & Marantz, A. (2020). A Morfologia Distribuída e as peças da flexão. Tradução Beatriz Pires Senanta & Maurício Resende. Editora da UFPR. (Distributed Morphology and the pieces of inflection, 1993).). We claim that there are two different structures denoting events and that EDNs raise important questions to the semantic of events of natural language.

Keywords:
nominalization; distributed morphology; Event Semantics

1. Introdução

Desde o famoso trabalho inaugural de Donald Davidson (1967Davidson, D. (1967). The logical form of action sentences. In N. Rescher (Eds.), The logical of decision and action (pp. 81-95). University of Pittsburg Press.), o uso de ideias provenientes da semântica de eventos é virtualmente consensual entre os pesquisadores da área. Apesar de alguns pontos de disputa, o consenso gira em torno da ideia de que “sentenças de ação”, ou seja, sentenças que carregam um verbo não estativo3 3 A depender da abordagem, os estativos são considerados como um tipo de evento. Essa não é, contudo, a visão original de Davidson (1967), apesar de ser a que prevaleceu graças, em parte, ao trabalho de Parsons (1990) - cf. Steward (1997). flexionado, têm entre os elementos de sua denotação uma entidade particular, os eventos. Assim, uma sentença como João correu ontem tem, entre seus elementos, João e um evento de corrida. Davidson (1967Davidson, D. (1967). The logical form of action sentences. In N. Rescher (Eds.), The logical of decision and action (pp. 81-95). University of Pittsburg Press.) oferece três importantes argumentos para sua análise, na época ainda controversa, a saber, (i) lidar com a poliadicidade dos verbos de ação; (ii) explicar sentenças que parecem implicar/indicar/requerer a existência de um evento ao falar explicitamente sobre ele e (iii) contando com eventos na ontologia, é possível explicar padrões de comportamento e de inferências linguísticas - para mais detalhes sobre esses argumentos, cf. Basso (2009Basso, R. M. (2009). A semântica das relações anafóricas entre eventos. 2009. 236f. Tese (Doutorado em Linguística) - Universidade Estadual de Campinas, Campinas. http://repositorio.unicamp.br/jspui/handle/REPOSIP/270558 (acesso 22 de setembro, 2021).
http://repositorio.unicamp.br/jspui/hand...
).

Contudo, um olhar mais atento sobre as línguas naturais revela que não somente verbos de ação flexionados denotam eventos, mas também suas contrapartes nominais. Assim, se João correu ontem à noite envolve João e uma corrida, um sintagma nominal como a corrida do João ontem à noite envolverá, em princípio, os mesmos participantes. Dado que temos uma contraparte verbal para corrida, isto é, correr, a relação semântica estreita entre os dois, ou seja, o fato de tanto corrida quanto correu denotarem eventos, pode ser explicada justamente contando com tal relação - quando houver verbos de ação (flexionados), haverá eventos, e isso inclui também as nominalizações4 4 Tradicionalmente, o termo “nominalização” tem aparecido na literatura para fazer referência ao processo de formação de nomes a partir de verbos ou ao produto desse processo, como sinônimo de “nome deverbal”. Alternativamente, ou de uma maneira menos comprometida com a direção da formação vocabular, o termo “nominalização” tem sido empregado para denominar a relação paradigmática entre verbos e nomes no que concerne ao compartilhamento de certas propriedades sintáticas e semânticas. É essa última acepção que interessa a este trabalho. .

Porém, não seria equivocado afirmar que a semântica das nominalizações, pelo menos do ponto de vista da semântica de eventos, recebeu muito menos atenção que sua contraparte verbal (Zucchi, 1993Zucchi, A. (1993). The language of propositions and events: Issues in syntax and semantics of nominalizations. Kluwer. ; Moulton, 2014Moulton, K. (2014). Simple event nominalizations: roots and their interpretation. In I. Paul (Ed.), Cross-linguistic investigation of nominalization patterns (pp. 119-144). John Benjamins.; Moltaman, 2019Moltman, F. (2019). Nominals and event structure. In R. Truswell (Ed.), Oxford handbook on event structure. Oxford University Press.)5 5 Além desses, Rather & Alexiadou (2010) reúnem uma série de trabalhos que se debruçam sobre a semântica das nominalizações, sob a ótica de várias correntes teóricas. . Contudo, além das nominalizações, há ainda uma outra classe de nomes que denotam eventos (NDEs), que, até onde foi possível averiguar, praticamente não são mencionados pela literatura relevante6 6 Na verdade, alguns trabalhos, como Alexiadou & Grimshaw (2008) e Roy & Soare (2013), ao se debruçarem sobre nominalizações eventivas, mencionam a existência de nomes sem contraparte verbal que também denotam eventos. No entanto, esses dados são metodologicamente desconsiderados, e uma análise mais detalhada acerca da relação entre os tipos de nomes que denotam eventos permanece pouco explorada. ; é o caso de nomes que denotam eventos e que não têm contraparte verbal, como cirurgia, show, mutirão, milagre, torneio, greve, evento, missão e nomes que denotam fenômenos meteorológicos, tais como erupção, terremoto, tsunami, tempestade, furacão. Nosso objetivo no presente artigo é apresentar uma análise linguística preliminar desses nomes, aos quais nos referiremos como “NDEs”, com foco em sua estrutura morfológica e problemas colocados por sua análise semântica, com vistas a mapear quais as diferenças e semelhanças entre nomes - com contraparte verbal e sem contraparte verbal - que denotam eventos.

Sendo assim, o presente artigo está organizado da seguinte forma: na seção 2, apresentamos mais exemplos desses nomes e argumentamos, com base em diagnósticos linguísticos, que eles, de fato, denotam eventos. Nas seções 3 e 4, analisamos a estrutura morfológica desses nomes, propondo critérios de classificação e apresentando evidências (sobretudo) sintáticas de que a principal diferença entre nomes que denotam eventos com e sem contraparte verbal diz respeito à sua relação com outros constituintes da sentença, como na projeção de estrutura argumental.

2. Semântica de eventos e a semântica dos eventos

Como adiantado, o principal objetivo do presente artigo é oferecer uma análise linguístico-estrutural para os NDEs e, para tanto, o primeiro passo é identificar, através de critérios linguísticos, esses itens. Uma estratégia para dar conta dessa tarefa é usar a ideia de “contâiner”, proposta por Vendler (1967Vendler, Z. (1967). Linguistics in philosophy. Cornell University Press.); vejamos como isso funciona. A preocupação do filósofo era desenvolver uma maneira de capturar e isolar fatos de eventos, dado que, muitas vezes, essas entidades podem ser denotadas pelas mesmas expressões linguísticas. Para dar um exemplo, o autor mostra que uma expressão como a Segunda Guerra Mundial denotaria um evento em (1a) e um fato em (1b).

(1) (a) A Segunda Guerra Mundial foi longa.

(b) A Segunda Guerra Mundial foi terrível.

O motivo para tanto, segundo Vendler, é que eventos podem ser longos, diferentemente de fatos, que não podem ser longos, mas podem ser terríveis. Vendler (1967Vendler, Z. (1967). Linguistics in philosophy. Cornell University Press., p. 142) argumenta que não é o caso que uma vez que a Segunda Guerra Mundial tenha sido um evento gradual ou sangrento, ela tenha que ter sido um fato gradual ou sangrento. Além disso, o fato de uma Segunda Guerra Mundial poder ser negado ou questionado não significa que um evento esteja sendo negado ou questionado7 7 A relação entre fatos e eventos é um tema filosófico bastante complexo e que recebe diferentes respostas na literatura especializada, sem impacto na nossa argumentação. Para um panorama da história da relação entre fatos e eventos, cf. Neale (2002). Além disso, uma argumentação semelhante podia ser feita, por exemplo, com base em Guerra e Paz é um livro histórico versus Guerra e Paz é um livro pesado em que, no primeiro caso, livro remete a um conteúdo e, no segundo, a um objeto físico, e essas interpretações têm a ver com os predicados (ou contêineres) ser histórico e ser pesado. .

Muito simplificadamente, a ideia é que alguns predicados selecionam o tipo de entidade - para Vendler, em um sentido ontológico - com a qual se combinam, e por isso, somente fatos, que são entidades atemporais e não espaciais, podem ser terríveis, e somente eventos, que são entidades temporais, podem ser longos; grosso modo, é uma ideia próxima, guardadas as devidas proporções, à de seleção semântica.

Cada predicado se comporta como um contâiner, em que cabem apenas certos tipos de entidades; por exemplo, quando semanticistas defendem a ideia de uma entidade como espécie (‘kind’), na ontologia semântica, lançam mão de predicados como estar esparramado e estar em extinção - assim, a baleia está em extinção não diz respeito a baleias individuais, mas à espécie baleia, que é um tipo específico de entidade; ou seja, estar em extinção é um contâiner que aceita apenas espécies e, por isso, sentenças como *o João está em extinção ou *a girafa do zoológico de São Paulo está em extinção são somente aceitáveis mediante algum tipo de coerção.

Nossa estratégia, então, é encontrar predicados que se combinam apenas com eventos e testar sua aceitabilidade com os supostos NDEs para avaliar se eles, de fato, denotam eventos. Um bom candidato para tanto é o predicado acontecer, ao lado de ser longo (em uma interpretação temporal) e acabar. Dado que eventos são entidades que ocupam lugar no tempo (e somente, às vezes, no espaço), eles acontecem, têm duração e, eventualmente, acabam, e isso os caracteriza como predicados para a avaliação da presença de eventos. Assim sendo, vejamos as possibilidades a seguir, usando cirurgia (NDE), construção (nominalização) e mesa (um nome concreto comum).

(2) (a) A cirurgia aconteceu no ano passado.

(b) A construção (do prédio) aconteceu no ano passado.

(c) *A mesa aconteceu no ano passado.

(3) (a) A cirurgia foi longa.

(b) A construção (do prédio) foi longa.

(c) *A mesa foi longa.

(4) (a) A cirurgia acabou antes do esperado.

(b) A construção (do prédio) acabou antes do esperado.

(c) ?A mesa acabou antes do esperado.

Como podemos ver, tanto cirurgia quanto construção aceitam os predicados escolhidos, mas não mesa. A razão para isso está justamente no fato de que mesa não denota um evento e, assim, não pode ser combinado com acontecer, ser longo e acabar. Note que o caso em (4c) é aceitável somente mediante coerção e, assim, sua interpretação é algo como “a construção da mesa acabou antes do esperado”, na qual temos um evento - isto é, a construção da mesa - que pode se combinar com os predicados usados.

Usando esse critério, podemos concluir que cirurgia, show, tragédia, catástrofe, crime etc. são, de fato, NDEs. Naturalmente, nem todos os eventos se combinarão com os predicados escolhidos sem um contexto que possibilite a combinação; por exemplo, em a tragédia foi longa, há uma sentença que exige um contexto peculiar porque, em geral, pensamos em tragédia como um evento pontual, sem duração; de modo semelhante, o crime foi longo é estranho em um primeiro olhar. Contudo, podemos também dizer sentenças como a fome na África é uma longa tragédia na história recente da humanidade e a corrupção é o crime que mais dura no Brasil, ou seja, conceitualmente tragédias e crimes podem também ser longos. Há também eventos que não têm duração linguisticamente relevante, como explosão; porém, como adiantamos, mesmo nesses casos, predicados como acontecer e ocorrer são aceitáveis. O mesmo parece ser o caso para nomes que indicam fenômenos meteorológicos, tais como tsunami, terremoto, nevasca, furacão, como pode ser observado em (5).

(5) (a) O terremoto/tsunami/furacão aconteceu no ano passado.

(b) O terremoto/tsunami/furacão foi longo.

(c) O terremoto/tsunami/furacão acabou antes do esperado.

Uma vez que contamos com NDEs, o próximo passo que damos nesta seção é perguntar se há alguma maneira linguisticamente interessante e relevante de classificá-los. Uma primeira divisão é aquela que coloca, de um lado, os NDEs que se referem a fenômenos meteorológicos, cuja principal característica é não envolver participantes; por sua vez, NDEs como show e mutirão envolvem um ou mais participantes e provavelmente volição8 8 Talvez seja interessante, em trabalhos futuros, explorar essa e provavelmente outras subdivisões entre os NDEs; entretanto, para os propósitos do presente artigo, consideramos todos como uma única classe e apenas mencionaremos, quando necessário, essa divisão. . Do ponto de vista semântico, entendemos que “denotar eventos” equivale a estabelecer, entre os referentes discursivos, um evento. Assim, se uma sentença como (6a) pode ser representada como (6b) e se uma sentença como (7a) recebe a representação em (7b), devemos, então, atribuir a representação (8b) para a sentença (8a) - usando uma representação baseada em Parsons (1990Parsons, T. (1990). Events in the semantics of English: A study in subatomic semantics. Cambridge: MIT Press.).

(6) (a) João construiu uma cabana.

(b) ∃e (construir(e) ∧ agente(e, João) ∧ tema(e, uma-cabana))

(7) (a) A construção da cabana foi rápida.

(b) ∃e (construir(e) ∧ tema(e, uma-cabana) ∧ rápido(e))

(8) (a) O show foi em São Paulo.

(b) ∃e (show(e) ∧ em(e, São-Paulo))

Como adiantado na introdução, diferentemente do verbo em (6a) e da nominalização em (7a), não há, aparente ou superficialmente, um verbo ou uma contraparte verbal que responda pela denotação do evento em (8), pois temos apenas o item show. A pergunta a se fazer, então, é: qual é a estrutura de show e demais NDEs para que eles, mesmo sendo nomes “puros” (ou seja, sem uma contraparte verbal), denotem eventos.

3. A estrutura das nominalizações e dos NDEs

A ideia de que verbos e suas nominalizações correspondentes compartilham algum cerne de significado comum é bastante antiga dentro dos estudos linguísticos. Do ponto de vista da estrutura, primeiramente, propunha-se que as nominalizações eram formadas a partir de bases verbais, no Léxico, e que o “cerne de significado comum” (referido por muitos como “leitura verbal” das nominalizações) era resultado de uma direção deverbal de formação. Por exemplo, demolição tinha uma “leitura verbal”, porque era derivado do verbo demolir; por outro lado, tampa não apresentava uma “leitura verbal”, pois se tratava de um nome morfologicamente básico (em última análise, primitivo), a partir do qual, era possível formar um verbo denominal, ou seja, tampar. De maneira simplificada, exemplos dessas regras podem ser vistos em (9).

(9) (a) [demoli-]V -ção → [demolição]N

(b) [tampa]N -a- → [tampa-]V

Via de regra, a “leitura verbal” presente em alguns nomes (nas nominalizações, por exemplo) dizia respeito a uma leitura de evento, isto é, alguns nomes - assim como seus verbos correlatos - podem denotar eventos. Posteriormente, sobretudo depois do advento da Morfologia Distribuída (MD) (Halle & Marantz, 1993Halle, M., & Marantz, A. (2020). A Morfologia Distribuída e as peças da flexão. Tradução Beatriz Pires Senanta & Maurício Resende. Editora da UFPR. (Distributed Morphology and the pieces of inflection, 1993).), começaram a surgir propostas (para vários fenômenos de diversas línguas) advogando em favor da hipótese de que, na arquitetura da gramática, há apenas um componente gerativo - a sintaxe - e que mesmo as estruturas mais simples - como os nomes morfologicamente básicos - são resultado de processos sintáticos.

Nesse modelo, o léxico não é gerativo - no sentido de formar palavras por meio de regras, como as que aparecem em (9) - e é apenas um repositório de raízes e feixes de traços sintáticos e semânticos que vão dar conta de gerar as estruturas (de todos os tamanhos e/ou graus de complexidade). Nessa perspectiva, a leitura de evento das nominalizações é resultado não de uma direção deverbal de formação - como (9a) -, mas de um compartilhamento estrutural comum.

Não é objetivo desta seção (nem deste artigo) fazer uma avaliação detalhada desse percurso ou desse tipo de análise, mas é importante mostrar como se dá esse compartilhamento estrutural - cf. Scher (2006Scher, A. P. (2006). Nominalizações em ‘-ada’ em construções com o verbo leve ‘dar’ em português brasileiro. Letras de hoje, 41(1), 29-48.), Medeiros (2010Medeiros, A. B. (2010). Aspecto e estrutura de evento nas nominalizações do português do Brasil: revendo o caso das nominalizações em ‘-ada’. Letras, 81, 99-122. http://dx.doi.org/10.5380/rel.v81i0.17318.
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) e Resende (2018Resende, M. S. (2018). A nominalização zero do português: revisitando a derivação regressiva à luz da Morfologia Distribuída. Revista de Estudos Linguísticos e Literários, 61, 104-127. https://doi.org/10.9771/ell.v0i61.26913.
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, 2019Resende, M. S. (2019). Notas sobre competição e bloqueio de afixos: o caso das nominalizações. Cadernos de Estudos Linguísticos, 61(1), 1-21. https://doi.org/10.20396/cel.v61i0.8655303.
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) para discussão do português e referências. As representações em (10) mostram exemplos dessas estruturas.

(10) (a)

(b)

Basicamente, o que as estruturas em (10) representam é que uma raiz se torna um nome quando se concatena com um categorizador nominal, no (ou seja, um núcleo funcional responsável por transformar uma raiz/estrutura em um nome), formando, assim, um nP, e se torna um verbo quando se concatena com um categorizador verbal, vo (isto é, um núcleo funcional responsável por transformar uma raiz/estrutura em um verbo), formando um vP. A esses núcleos funcionais categorizadores associam-se diferentes propriedades semânticas, sintáticas, morfológicas e fonológicas, sobretudo no que concerne às propriedades distribucionais de cada classe.

Como é consensual na literatura, admitimos que a leitura de evento está associada a vP, e isso vem da ideia de que a denotação de eventualidades (eventos e estados) está associada a verbos. No entanto, o fato de alguns nomes (como nominalizações) poderem denotar eventos resulta, como já afirmado, de um compartilhamento estrutural comum, e isso pode ser ilustrado por (11).

(11)

leitura de evento (λe)

O que (11) ilustra é que, antes de se concatenar com no (que, de fato, transforma a estrutura em um nome), a raiz se concatena com um vo, e isso atribui a ela uma leitura de evento. Assim, a ideia é a de que verbos têm uma estrutura (básica) como (10b) e nomes comuns - como tampa, gato, prédio, bondade etc. - têm uma estrutura como (10a). Complementarmente, as nominalizações (de evento) apresentam uma estrutura como a que apresentamos em (11), que as tornam nomes com propriedades verbais.

Os diagramas arbóreos apresentados fazem referência a apenas uma parte da estrutura que nomes e verbos devem ter, e já muito discutidas na literatura como, por exemplo, T e Agr para verbos e Aspo e Vozo para nominalizações etc., que não são abordadas neste artigo. A discussão completa sobre a estrutura funcional das nominalizações e/ou dos verbos foge ao escopo deste trabalho - mas cf. Oliveira (2006Oliveira, D. C. M. (2006). Nominalizações de evento/processo e nominalizações de resultado: diferenças estruturais. Revista de Estudos da Linguagem, 14(2), 491-502. http://dx.doi.org/10.17851/2237-2083.14.2.491-502.
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), Scher (2006Scher, A. P. (2006). Nominalizações em ‘-ada’ em construções com o verbo leve ‘dar’ em português brasileiro. Letras de hoje, 41(1), 29-48.), Oliveira (2007Oliveira, S. M. (2007). Os sufixos nominalizadores ‘-ção’ e ‘-mento’. Estudos Linguísticos, 36(1), 87-96. ), Medeiros (2010Medeiros, A. B. (2010). Aspecto e estrutura de evento nas nominalizações do português do Brasil: revendo o caso das nominalizações em ‘-ada’. Letras, 81, 99-122. http://dx.doi.org/10.5380/rel.v81i0.17318.
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), Freitas (2014Freitas, M. L. (2014). Two nominalizing suffixes in Brazilian Portuguese: locality constraints on morphological realization. Cadernos de Estudos Linguísticos, 56(1), 87-113. https://doi.org/10.20396/cel.v56i1.8636526.
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) e Resende (2018Resende, M. S. (2018). A nominalização zero do português: revisitando a derivação regressiva à luz da Morfologia Distribuída. Revista de Estudos Linguísticos e Literários, 61, 104-127. https://doi.org/10.9771/ell.v0i61.26913.
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, 2019Resende, M. S. (2019). Notas sobre competição e bloqueio de afixos: o caso das nominalizações. Cadernos de Estudos Linguísticos, 61(1), 1-21. https://doi.org/10.20396/cel.v61i0.8655303.
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) para algumas propostas sobre o português e para referências.

Seja como for, a postulação de uma camada verbal (um vP) para as nominalizações não pode ter apenas motivações semânticas, já que se está falando de constituência estrutural. Sendo esse o caso, adicionalmente ao argumento semântico, esta seção apresenta três argumentos em favor de uma proposta, como aquela ilustrada por (11), para tratar das nominalizações: um morfológico e dois sintáticos.

A primeira evidência em favor da estrutura (básica) proposta é oferecida por Gamarski (1988Gamarski, L. (1988). A derivação regressiva: um estudo da produtividade lexical em português. Editora UFG.) e é de natureza morfológica. A autora mostra que existem certos prefixos que exibem restrição categorial de combinação; por exemplo, des- e re- só se adjungem a verbos, como mostram os exemplos em (12).

(12) (a) encontrar → reencontrar / desencontrar

(b) montar → remontar / desmontar

(c) carro → *recarro / *descarro

(d) bonito → *rebonito / *desbonito

No entanto, como mostra (13)9 9 É preciso mencionar que não são todos os nomes que contêm vP que aceitam o prefixo re-, pois há também restrições semânticas que pesam sobre a compatibilidade de re- com o tipo de evento “repetido”. Seja como for, o ponto em questão é que a projeção vP parece ser condição necessária, mas não suficiente para o licenciamento desse prefixo - cf. Medeiros (2012) para uma análise detalhada. - diferentemente de (12c) e (12d) - esses prefixos aparecem em alguns nomes. Como conclui Gamarski, o fato de esses prefixos aparecerem em nomes é uma pista de que eles são deverbais. Essa generalização pode ser traduzida para o modelo adotado em termos de projeções funcionais, isto é, se vo é o núcleo verbalizador (que aparece tanto em verbos quanto em nominalizações eventivas), é possível postular que des- e re- são morfemas que ocupam posições adjuntas a vP, como ilustrado em (14).

(13) (a) encontro → reencontro / desencontro

(b) construção → reconstrução / desconstrução

(14)

A estrutura em (14) captura a constatação empírica de que os prefixos des- e re- só se combinam com estruturas verbais já que estão adjuntos à projeção de vP e, adicionalmente, explica por que essa combinação é possível somente com nominalizações eventivas - mas não nomes comuns ou adjetivos como (12c) e (12d). Outra evidência estrutural vem dos advérbios. De acordo com Fu, Roeper & Borer (2001Fu, J., Roeper, T., & Borer, H. (2001). The VP within process nominals: evidence from adverbs and the VP anaphor ‘do-so’. Natural Language and Linguistic Theory, 19(3), 549-582.), advérbios de VP (grosso modo, advérbios de modo), como o próprio nome sugere, estão associados a verbos (ou a projeções-VP), isto é, se adjungem a vP, da mesma forma que re- e des- em (14). Assim, o fato de eles poderem exercer escopo sobre (alguns) nomes, é uma evidência de que eles possuem uma camada estrutural verbal - embora, naturalmente, a leitura do escopo do advérbio sobre o verbo também é possível. Exemplos do PB aparecem em (15).

(15) (a) A entrega do prêmio publicamente (foi linda).

(b) O abandono do cachorro repentinamente (deixou a menina abalada).

Por fim, mas não menos importante, uma outra evidência sintática em favor da presença de vP nas nominalizações é a ocorrência de argumentos, isto é, assim como os verbos, as nominalizações eventivas também apresentam grade argumental, e a ausência desses argumentos pode gerar estruturas malformadas. Exemplos desse fenômeno aparecem em (16).

(16) (a) O inimigo destruiu a cidade.

(b) *O inimigo destruiu.

(c) A destruição da cidade pelo inimigo.

(d) *A destruição pelo inimigo.

Como ilustra (16), tanto verbos quanto nominalizações eventivas requerem argumentos para gerar estruturas bem formadas e, por exemplo, a ausência do argumento interno - como em (16b) e (16d) - produz sentenças agramaticais. Nesse sentido, a ideia é que a vP também se associa a projeção de argumentos, o que está em plena convergência com a introdução da variável de evento na representação semântica - como em (6) e (7). Assim, da mesma forma que a eventos se associam “argumentos semânticos”, a vP se associam “argumentos sintáticos”.

Em síntese, a hipótese defendida neste trabalho é que verbos e nominalizações eventivas compartilham uma estrutural comum, isto é, vP, e que isso dá conta de capturar generalizações empíricas importantes no domínio da morfologia, da sintaxe e da semântica. De qualquer forma, cumpre tecer algumas considerações sobre os NDEs.

Pelo menos à primeira vista, os NDEs (meteorológicos ou não) são nomes comuns, isto é, são nomes morfologicamente básicos e sua estrutura subjacente seria mais bem caracterizada por (10a). Contudo, ainda que denotem eventos, esses nomes não licenciam certas propriedades normalmente associadas a vo, o núcleo funcional introdutor da variável de evento, como mostra a má formação dos exemplos (17), (18) e (19)10 10 É importante notar que essas sentenças são bem formadas se o advérbio estiver exercendo escopo sobre o verbo (que aparece entre parênteses, ou seja, assustar e deixar nervoso) e não sobre o NDE - o que é um cenário possível também para os exemplos em (15), como afirmado anteriormente. , conforme os testes apresentados para as nominalizações.

(17) (a) *re-terremoto, *re-furacão, *des-tornado, *des-catástrofe.

(b) *re-torneio, *re-evento, *des-mutirão, *des-cirurgia.

(18) (a) *A tempestade repentinamente (assustou os moradores da vila).

(b) *A cirurgia publicamente (deixou o médico nervoso).

(19) (a) *O milagre pelo Papa deixou os fiéis maravilhados.

(b) *A cirurgia pelo Dr. Sílvio de Castro demorou duas horas.

A agramaticalidade dos exemplos em (17), (18) e (19) pode ser explicada por razões estruturais. Como mostrado na seção anterior, do ponto de vista semântico, esses nomes denotam eventos (tanto quanto nominalizações eventivas e verbos), por isso, a má formação de (17) não seria esperada, porque é perfeitamente possível pensar em um cenário em que terremotos ou furacões se repetem. Todavia, a ideia é que, dada a ausência de vP, não é possível que esses prefixos se adjunjam a no - o que já havia sido, de certa forma, observado por Gamarski (1988Gamarski, L. (1988). A derivação regressiva: um estudo da produtividade lexical em português. Editora UFG.). E essa é a mesma razão (estrutural) pela qual esses nomes não são compatíveis com advérbios de VP, como em (18): não há uma projeção sintática que os licencie.

Finalmente, em (19), as sentenças são agramaticais não porque milagres ou cirurgias não possam ter agentes, mas porque os NDEs não possuem vP e, portanto, não licenciam uma grade argumental.11 11 É verdade que é possível dizer o milagre do Papa e a cirurgia do Dr. Sílvio, no entanto, a preposição de possui outras leituras que não a de agentividade - posse, por exemplo. A ausência de vo nesses nomes já é, em certa medida, esperada, uma vez que essas raízes não parecem se combinar com verbalizadores, o que justifica a caracterização desses nomes como não tendo uma contraparte verbal.

Dadas essas considerações, a conclusão é a de que, do ponto de vista do significado, tanto verbos quanto nominalizações e NDEs podem denotar eventos e, por isso, há um paralelo semântico entre esses três tipos de recursos linguísticos. Entretanto, do ponto de vista da estrutura, apenas verbos e nominalizações compartilham de uma propriedade comum (isto é, vP). Assim, assumindo que os NDEs denotam eventos, mas não têm vo - apenas raiz e no, como na representação em (10) -, cumpre tecer algumas considerações a respeito do lugar de onde vem a leitura de evento (dado que ela não parece estar disponível para outros nomes com a mesma estrutura como mesa ou gato).

4. Evento lexical e evento gramatical

Na segunda seção deste artigo, mostramos que existem certos nomes - os NDEs - que, assim como verbos e nominalizações, denotam eventos. Do ponto de vista estritamente semântico, como defendido, não há diferenças entre os eventos expressos por esses três recursos linguísticos. Na terceira seção, defendemos que a possibilidade de as nominalizações denotarem eventos - da mesma forma que seus verbos correlatos - advém do compartilhamento de uma porção estrutural comum (isto é, vP), que é responsável pela introdução da variável de evento e pelo licenciamento de certas propriedades gramaticais, tais como certos prefixos, advérbios de VP e presença de estrutura argumental.

Além disso, a seção 3 mostrou que os NDEs, ainda que denotem eventos, não contêm um vP, já que estruturalmente não são compatíveis com essa projeção funcional. Sendo esse o caso, a pergunta em aberto é: de onde vem a interpretação eventiva desse tipo de nome. Um olhar rápido para a constituição morfológica dos NDEs sugere, com pouca margem para dúvidas, que se trata de nomes morfologicamente básicos, ou seja, à luz da MD, nomes formados apenas por uma raiz e um núcleo nominalizador, como em (10a), repetido em (20) com exemplos.

(20) (a)

(b)

Como pode ser visto em (20), os NDEs (meteorológicos ou não) contêm uma estrutura que difere da estrutura das nominalizações e dos verbos. Todavia, como adiantado, (20) não explica como esse tipo de nome é diferente (em termos de significado) de outros nomes comuns como gato, prédio, tampa etc. que, por hipótese, são formados pelo mesmo tipo de estrutura - mas não denotam eventos. Diante desse impasse, este trabalho defende que a propriedade “evento” dos NDEs não está codificada estruturalmente (em termos de vP), mas sim lexicalmente, o que - assumindo os pressupostos da MD - significa estar codificado (como diacrítico) na raiz.

A discussão sobre semântica das raízes na MD é bastante atual e controversa. Há tanto autores que defendem que as raízes são robustas semanticamente a ponto de serem capazes de licenciar argumentos (Marantz, 1997), quanto autores que entendem que as raízes carregam apenas um cerne de significado conceitual, com conteúdo suficiente apenas para relacionar palavras de uma mesma família, mas não para licenciar propriedades estruturais (Siddiqi, 2009Siddiqi, D. (2009). Syntax within the word: economy, allomorphy, and argument selection in Distributed Morphology. John Benjamins.). Finalmente, há quem defenda que as raízes não possuem nenhum conteúdo semântico e são somente marcadores de posição sintática, e que toda informação semântica vem de LF e da Enciclopédia (Harley, 2014Harley, H. (2014). On the identity of roots. Theoretical linguistics, 40(3-4), 225-276. https://doi.org/10.1515/tl-2014-0010.
https://doi.org/10.1515/tl-2014-0010...
).

Não é objetivo deste artigo fazer uma avaliação comparativa ou detalhada dessas propostas, mas com base no comportamento sintático-semânticos dos NDEs, podemos defender que as raízes portam algum tipo de conteúdo semântico (como a denotação de eventualidade, nesses casos), o qual não é capaz de licenciar propriedades estruturais (como projeção argumental, certos prefixos e certos advérbios). Do ponto de vista da modelagem teórica, isso quer dizer que, quando essas raízes adentram a computação sintática, elas já estão associadas a uma leitura de evento que é, então, computada em LF, sem dispor de núcleos funcionais sintáticos que requereriam o licenciamento de certas propriedades estruturais (ausentes nos NDEs).

Naturalmente, a afirmação de que certas raízes codificam a leitura de evento tem consequências analíticas e teóricas importantes. Do ponto de vista analítico, é preciso mostrar dados empíricos que corroboram essa hipótese. Ora, se a informação de evento está codificada na raiz, é necessário que outras palavras formadas a partir dela estejam semanticamente relacionadas a eventos, e isso é observado nos exemplos em (21).

(21) (a) eventivo (“que tem a propriedade de evento”).

(b) grevista (“que participa de greves”)

(c) catastrófico (“que tem a propriedade de catástrofe”)

(d) milagroso (“que realiza milagres”)

Como pode ser visto em (21), adjetivos - e mesmo nomes agentivos como (21b) - derivados desse tipo de raiz devem conter em seu significado uma leitura relacionada a eventos. Vale a pena notar, entretanto, que o mesmo não se aplica a outras raízes, como mostram os dados em (22) - raízes cujos nomes e adjetivos não estão semanticamente relacionados a eventos.

(22) (a) martelo (“ferramenta formada por uma cabeça e um cabo”).

(b) martelar (“bater a golpes de martelo”).

(c) guarda (“vigilante que tem a função de proteger/defender”).

(d) guardar (“ato de proteger/defender”).

A respeito dos dados em (22), é possível afirmar que as palavras derivadas de √martel e √guard só denotam eventos quando são verbos (ou seja, quando contêm um vP). O nome martelo, por exemplo, não é semanticamente dependente de um evento; pode ser que um artesão tenha recém-criado um martelo, o qual nunca participou de um único evento de martelar. O mesmo raciocínio se aplica a guarda: pode ser o caso de uma pessoa ter sido designada para ser “guarda” de algum lugar, antes mesmo de ter participado de um único evento de guardar - adicionalmente não é nem mesmo claro se guarda (como sinônimo de “vigilante”) se relaciona ao verbo (ou ao evento de) guardar.

O que essas observações sugerem é que, uma vez que existem palavras formadas por raízes que não são semanticamente dependentes de uma leitura de evento, tais raízes não codificam evento - diferentemente daquelas que formam NDEs. No caso das raízes subjacentes aos dados em (22), a denotação de evento só é possível em virtude de um expediente sintático, no caso, vo. É interessante observar também que esse papel nem sempre pode ser associado a um sufixo (como -or em nadador), já que -ista em dentista ou vigarista não tem uma função agentiva (como teria grevista) composicionalmente às raízes √dent e √vigar.

No que tange às consequências teóricas, como afirmado, há ainda muito debate na literatura em MD12 12 Cf. Harley (2014) para um panorama dessa discussão e para referências. acerca da “semântica das raízes”, isto é, “quanto” de semântica comportam as raízes. A despeito do debate entre os adeptos do modelo, é consenso que informações estritamente extralinguísticas (isto é, não necessárias para a construção do significado composicional) são codificadas na Enciclopédia (pós-sintaticamente). Por exemplo, a estrutura sintática não precisa ter acesso à informação de que “greve” é um tipo de paralisação que ocorre normalmente quando pessoas que se sentem prejudicadas protestam para reivindicar seus direitos, ou que “furacão” é um redemoinho de vento de grandes proporções causado por condições meteorológicas e geográficas específicas etc.

Todavia, a sintaxe requer acesso à informação de que uma estrutura (nome ou verbo) denota um evento, uma vez que certos modificadores só são compatíveis com leitura eventiva - como ser longo, acontecer no ano passado, acabar etc. Igualmente consensual - entre os autores que defendem que as raízes possuem algum tipo de conteúdo semântico - é a afirmação de que o conteúdo semântico das raízes pode ser “gramaticalmente codificável” como, por exemplo, [±contável], [±animado] etc. No bojo dessas considerações, este trabalho defende que as raízes subjacentes aos NDEs apresentem a especificação [+evento].

Sob essa perspectiva, o presente trabalho propõe que “evento” é uma propriedade codificada pela gramática de duas formas: (i) gramaticalmente, introduzido por vo e (ii) lexicalmente, introduzido por um certo conjunto de raízes. Convém observar, contudo, que, embora a presente proposta traga certas novidades no que tange à relação entre a (morfo)sintaxe e a semântica dos eventos, a ideia de que uma certa propriedade pode ser codificada tanto lexicalmente quanto gramaticalmente não é nova.

Já é de longa data o reconhecimento de que “gênero” é uma propriedade que tem tanto consequências sintáticas (como concordância) quanto semânticas (como denotação de sexo biológico, para alguns casos) e que nem sempre há convergência entre a estrutura e o significado no que concerne à marcação de gênero. Sendo esse o caso, há muito se fala na oposição entre gênero “interpretável” versus “não interpretável” ou entre gênero “gramatical” versus “lexical”.

Discutir a marcação de gênero ou apresentar o problema de maneira mais completa fugiria muito aos objetivos deste artigo13 13 Cf. Resende & Santana (2019) para uma discussão mais completa e para referências. . A ideia, porém, é mostrar que uma mesma propriedade pode ser lexicalmente codificada (na raiz), sem ser gramaticalmente codificada (por núcleos funcionais). Os exemplos em (23) e (24) ilustram esse cenário à luz da propriedade “gênero”.

(23) (a) Maria é uma mulher alta.

(b) Maria é um mulherão alto.

(24) (a) Pedro é uma criança mal-educada.

(b) João foi uma das vítimas do acidente.

(c) Ana é um membro exemplar desta comunidade.

(d) Sérgio foi a testemunha mais aguardada do julgamento.

O que os exemplos em (23) mostram é que mulher denota sexo feminino (isto é, “gênero interpretável feminino”) independentemente do gênero gramatical - como pode ser observado em (23b), em que temos um mulherão. A intepretação de gênero “lexical” influencia na interpretação, mas não nas propriedades estruturais, já que a concordância leva em conta apenas a informação de gênero gramatical - cf. (23b). Isso é corroborado, adicionalmente, pelos dados em (24), em que a interpretação de masculino e feminino não depende da marca gramatical, já que vítima, testemunha e criança são sempre femininos, ainda que se refiram a indivíduos do sexo masculino. O mesmo vale para membro, que é um nome sempre masculino.

O que esse paralelo ilustra é que, independentemente do que o nome significa, é a sua constituição estrutural que vai determinar o seu comportamento sintático (concordância no caso de gênero; grande argumental, advérbios, prefixos etc. no caso dos eventos). Assim, a conclusão é a de que nomes (gramaticalmente) comuns podem denotar eventos, da mesma forma que nomes (gramaticalmente) masculinos podem denotar seres do sexo feminino (e vice-versa).

5. Considerações finais

Vimos que há duas estratégias de alcançarmos a denotação de eventos, uma lexical e outra gramatical, e a contraparte estrutural de denotar eventos é a presença do núcleo funcional vo. Essa conclusão estrutural nos leva a questionamentos sobre a descrição e análise semântica dos NDEs, a respeito da qual. ainda há alguns pontos interessantes a serem explorados. Um deles é garantir que a denotação de eventos não tenha a ver exclusivamente com verbos e que estruturas reconhecidas como “nomes” possam também denotar eventos. Tal fato reforça argumentos mais ontológicos a favor de eventos, pois afinal, se admitimos que nomes denotam entidades e, se entre essas entidades, há eventos, temos, então, um argumento a favor da denotação de eventos.

Uma análise de eventos parsoniana (Parsons, 1990Parsons, T. (1990). Events in the semantics of English: A study in subatomic semantics. Cambridge: MIT Press.) lidaria, em princípio, sem maiores problemas com esse tipo de nome que denota evento, como vimos na seção 2, e atribuiria a ele as mesmas propriedades que encontramos em verbos flexionados que, por suposição, denotam eventos. Nesse tipo de análise, propriedades aspectuais e acionais - como ser um accomplishment, uma atividade etc., ou ser perfectivo ou imperfectivo - podem ser consideradas como propriedades “somadas” via conjunção de eventos, e sua presença é, assim, opcional; ou seja, essa análise não exige que eventos tenham participantes, mas apenas que existam. Por isso, (25a) acarreta (25b), e (26a) acarreta (26b).

(25) (a) João correu à noite no parque.

(b) Houve um evento de corrida. (∃e (correr(e)))

(26) (a) A greve dos metroviários afetou o transporte da cidade.

(b) Houve um evento de greve. (∃e (greve(e)))

Há ainda outras questões interessantes que merecer exploradas e que são também ilustradas por (26a), como a questão sobre a definitude dos eventos - temos um artigo definido em (26a), prefaciando greve14 14 E, assim, talvez a melhor análise para esse caso seja ιe (GREVE(e)). , mas poderíamos ter um artigo indefinido. Se é possível fazer isso com um NDE (isto é, mudar a definitude pela qual um evento é denotado), surge a pergunta de qual seria a sua contraparte verbal. Essas são algumas das questões que merecem ser exploradas e que mostram que investigar NDEs não é relevante por si só, fornecendo uma análise para uma classe de nomes negligenciada, mas também coloca questões fundamentais para a semântica de eventos. Esta e outras questões, bem como os seus refinamentos estruturais, aguardam trabalhos futuros. Em resumo, esta é certamente uma primeira análise sobre o tema, mas esperamos que ela possa contribuir para discussões sobre os NDEs tanto na interface sintaxe-morfologia quanto para discussões semânticas.

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  • Vendler, Z. (1967). Linguistics in philosophy. Cornell University Press.
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  • 3
    A depender da abordagem, os estativos são considerados como um tipo de evento. Essa não é, contudo, a visão original de Davidson (1967Davidson, D. (1967). The logical form of action sentences. In N. Rescher (Eds.), The logical of decision and action (pp. 81-95). University of Pittsburg Press.), apesar de ser a que prevaleceu graças, em parte, ao trabalho de Parsons (1990Parsons, T. (1990). Events in the semantics of English: A study in subatomic semantics. Cambridge: MIT Press.) - cf. Steward (1997Steward, H. (1997). The ontology of mind: event, process, and states. Oxford University Press.).
  • 4
    Tradicionalmente, o termo “nominalização” tem aparecido na literatura para fazer referência ao processo de formação de nomes a partir de verbos ou ao produto desse processo, como sinônimo de “nome deverbal”. Alternativamente, ou de uma maneira menos comprometida com a direção da formação vocabular, o termo “nominalização” tem sido empregado para denominar a relação paradigmática entre verbos e nomes no que concerne ao compartilhamento de certas propriedades sintáticas e semânticas. É essa última acepção que interessa a este trabalho.
  • 5
    Além desses, Rather & Alexiadou (2010Rathert, M., & Alexiadou, A. (Eds.). (2010). The semantics of nominalizations across languages and framkeworks. De Grutyer Muton.) reúnem uma série de trabalhos que se debruçam sobre a semântica das nominalizações, sob a ótica de várias correntes teóricas.
  • 6
    Na verdade, alguns trabalhos, como Alexiadou & Grimshaw (2008) e Roy & Soare (2013), ao se debruçarem sobre nominalizações eventivas, mencionam a existência de nomes sem contraparte verbal que também denotam eventos. No entanto, esses dados são metodologicamente desconsiderados, e uma análise mais detalhada acerca da relação entre os tipos de nomes que denotam eventos permanece pouco explorada.
  • 7
    A relação entre fatos e eventos é um tema filosófico bastante complexo e que recebe diferentes respostas na literatura especializada, sem impacto na nossa argumentação. Para um panorama da história da relação entre fatos e eventos, cf. Neale (2002Neale, S. (2002). Encarando os fatos. Editora da UNESP.). Além disso, uma argumentação semelhante podia ser feita, por exemplo, com base em Guerra e Paz é um livro histórico versus Guerra e Paz é um livro pesado em que, no primeiro caso, livro remete a um conteúdo e, no segundo, a um objeto físico, e essas interpretações têm a ver com os predicados (ou contêineres) ser histórico e ser pesado.
  • 8
    Talvez seja interessante, em trabalhos futuros, explorar essa e provavelmente outras subdivisões entre os NDEs; entretanto, para os propósitos do presente artigo, consideramos todos como uma única classe e apenas mencionaremos, quando necessário, essa divisão.
  • 9
    É preciso mencionar que não são todos os nomes que contêm vP que aceitam o prefixo re-, pois há também restrições semânticas que pesam sobre a compatibilidade de re- com o tipo de evento “repetido”. Seja como for, o ponto em questão é que a projeção vP parece ser condição necessária, mas não suficiente para o licenciamento desse prefixo - cf. Medeiros (2012Medeiros, A. B. (2012). Considerações sobre o prefixo ‘re-’. Alfa, 56(2), 583-610. https://periodicos.fclar.unesp.br/alfa/article/view/5539 (acesso 22 de setembro, 2021).
    https://periodicos.fclar.unesp.br/alfa/a...
    ) para uma análise detalhada.
  • 10
    É importante notar que essas sentenças são bem formadas se o advérbio estiver exercendo escopo sobre o verbo (que aparece entre parênteses, ou seja, assustar e deixar nervoso) e não sobre o NDE - o que é um cenário possível também para os exemplos em (15), como afirmado anteriormente.
  • 11
    É verdade que é possível dizer o milagre do Papa e a cirurgia do Dr. Sílvio, no entanto, a preposição de possui outras leituras que não a de agentividade - posse, por exemplo.
  • 12
    Cf. Harley (2014Harley, H. (2014). On the identity of roots. Theoretical linguistics, 40(3-4), 225-276. https://doi.org/10.1515/tl-2014-0010.
    https://doi.org/10.1515/tl-2014-0010...
    ) para um panorama dessa discussão e para referências.
  • 13
    Cf. Resende & Santana (2019Resende, M. S., & Santana, B. P. (2019). A relação entre raízes, gênero, classe e significado. Revista da Associação Brasileira de Linguística, 18(1), 2-55. https://doi.org/10.25189/rabralin.v18i1.481.
    https://doi.org/10.25189/rabralin.v18i1....
    ) para uma discussão mais completa e para referências.
  • 14
    E, assim, talvez a melhor análise para esse caso seja ιe (GREVE(e)).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    01 Ago 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    26 Fev 2020
  • Aceito
    14 Dez 2021
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