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IGUALDADE COMO NÃO SUBORDINAÇÃO1 1 Agradeço a Nunzio Ali, Márcio Black, Nathalie Bressiani, Andréia Cardoso, Guilherme Cardoso, Mônica Oliveira e Sebástian Rudas pelas leituras, conversas, críticas e sugestões durante a produção deste artigo. Agradeço também a dois/duas pareceristas da Lua Nova pelos comentários e, finalmente, a Raissa Ventura, também pela leitura, mas, sobretudo, pela insistência em pensar novas imaginações políticas. Agradeço o suporte institucional da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp) e do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap).

EQUALITY AS NON-SUBORDINATION

Resumo

O objetivo deste artigo é explorar os ganhos conceituais, normativos e metodológicos do igualitarismo social com base em uma interpretação específica do valor da igualdade: a igualdade como não subordinação. Ao longo das duas primeiras seções será argumentado que (1) a concepção da igualdade, como não subordinação identifica um rationale normativo comum para as diversas expressões do igualitarismo social; (2) que essa é uma interpretação coerente com o pano de fundo histórico das lutas por igualdade social e (3) que ela nos ajuda a evitar problemas conceituais aos quais formas monistas do igualitarismo tendem a incorrer. Em seguida, gostaria de mostrar que essa maneira específica de compreender o valor da igualdade encontra ressonância na obra de John Rawls, um dos filósofos políticos mais importantes do século passado, e cuja relação com o igualitarismo social ainda permanece em aberto. Particularmente importante para o igualitarismo social é o modo como o construtivismo rawlsiano concebe a personalidade moral dos membros de uma sociedade justa enquanto fontes auto-originárias de reivindicações válidas.

Palavras-Chave:
Igualdade Social; Distribuição; Hierarquia Social; John Rawls

Abstract

This article aims to explore the conceptual, normative, and methodological gains of social equalitarianism based on a specific interpretation of the value of equality: equality as non-subordination. Throughout the two first sections we will argue that (1) the conception of equality as non-subordination identifies a common normative rationale to the diverse expressions of the social equalitarianism; (2) this interpretation is coherent with the historical background of the fights for social equality; and (3) it helps us to avoid conceptual issues which monist forms of equalitarianism tend to incur. Then, we would like to show that this specific way of understanding the value of equality resonates with the work of John Rawls, one of the most important political philosophers of the past century, and whose relationship with social equalitarianism is still open. Particularly important to the social equalitarianism is the way in which Rawls’s constructivism conceives the moral personality of the members of a just society as self-originating sources of valid claims.

Keywords:
Social Equality; Distribution; Social Hierarchy; John Rawls

A teoria igualitária passou por uma mudança importante nas primeiras décadas do século XXI. O surgimento de um programa de pesquisa igualitário, denominado de igualitarismo social ou relacional2 2 Utilizarei “igualitarismo social” como forma de designar esse programa de pesquisa ao longo do artigo. diferente e rival do então vigente igualitarismo distributivo na filosofia política contemporânea, obrigou igualitárias e igualitários e, em certo sentido, a própria filosofia política a reformular algumas de suas preocupações normativas e orientações metodológicas. O igualitarismo social aprimorou nossa compreensão da igualdade enquanto um valor desejável para sociedades economicamente afluentes, socialmente diversas e politicamente livres.3 3 Anderson (1999), Wolff (2019) e Petroni (2020) são reconstruções, com vieses próprios, dos termos centrais do debate entre concepções distributivas e sociais de igualdade.

O debate entre dois tipos distintos de igualitarismo caraterizados, de um lado, por concepções de igualdade fundadas em ideais de relações sociais e, de outro, por teorias distributivas da igualdade, nos ajudou a definir melhor em que sentido (ou sentidos) a igualdade deve ser concebida como um objetivo social intrinsecamente importante, isto é, como um valor cujas reivindicações derivadas dele importam por si mesmas para além de seu papel instrumental na realização de outros valores. Contrários às concepções exclusivamente distributivas de igualdade, autoras e autores, como Samuel Scheffler (2003SCHEFFLER, Samuel. 2003. What is Egalitarianism? Philosophy and Public Affairs, v. 31, n. 1, pp. 5-39. Disponível em: Disponível em: https://bit.ly/3E3rNdr . Acesso em: 29 set. 2022.
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; 2014), Elizabeth Anderson (1999ANDERSON, Elizabeth. 1999. What is the Point of Equality? Ethics, v. 109, n. 2, pp. 287-337. Disponível em: Disponível em: https://bit.ly/3E3Cvk7 . Acesso em: 29 set. 2022.
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; 2012), Jonathan Wolff (1998WOLFF, Jonathan. 1998. Fairness, Respect and the Egalitarian Ethos. Philosophy & Public Affairs , v. 27, n. 2, pp. 97-122. Disponível em: Disponível em: https://bit.ly/3DYoqEO . Acesso em: 29 set. 2022.
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; 2014; 2019), Debra Satz (2010SATZ, Debra. 2010. Why Some Things Should Not Be for Sale: The Moral Limits of Markets. Oxford: Oxford University Press .) e Niko Kolodny (2014aKOLODNY, Niko. 2014a. Rule Over None I: What Justifies Democracy? Philosophy & Public Affairs, v. 42, n. 3, pp. 195-229. Disponível em: Disponível em: https://bit.ly/3BW8osd . Acesso em: 29 set. 2022.
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; 2014bKOLODNY, Niko. 2014b. Rule Over None II: Social Equality and the Justification of Democracy. Philosophy & Public Affairs , v. 42, n. 4, pp. 287-336. Disponível em: Disponível em: https://bit.ly/3SlYKGo . Acesso em: 29 set. 2022.
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; 2019KOLODNY, Niko. 2019. Being Under the Power of Others. In: ELAZAR, Yiftah; ROUSSELIÈRE, Geneviève. (ed.). Republicanism and the Future of Democracy. Cambridge: Cambridge University Press, pp. 94-114.) construíram as bases para uma visão irredutivelmente relacional da igualdade, um valor cujo sentido mais importante, como pretendo argumentar, é encontrado na busca pelo autogoverno das nossas relações sociais entre iguais. Nesse sentido, a criação de uma sociedade de iguais - objetivo último do igualitarismo social - não deve ser confundida com outras dimensões do projeto igualitário, tal qual a busca por princípios distributivos, traço característico das teorias da justiça do final do século passado, ou pela criação de parâmetros equitativos de alocação de bens escassos - esses que, no mais das vezes, são concebidos como bens perfeitamente divisíveis e individualmente apropriáveis - típico da avaliação de políticas públicas.

Esse mesmo debate no interior do igualitarismo transformou também a própria natureza das teorias igualitárias. Um dos resultados mais importantes dessa reorientação metodológica foi a reaproximação da filosofia política de modos social e historicamente densos de conceber as desigualdades e, consequentemente, recolocando em cena a relação indissociável entre uma filosofia política da igualdade e as experiências históricas e lutas políticas reais dos movimentos igualitários.

Reconhecer os ganhos trazidos pelo igualitarismo social é extremamente relevante para os esforços políticos contra os regimes de desigualdade atuais e na criação coletiva de novas imaginações políticas para o século XXI. Esses ganhos podem nos ajudar a recuperar aquela que, acredito, constitui a premissa mais importante da tradição política igualitária, a saber: que a igualdade não é uma reivindicação demasiadamente exigente, muito menos conceitualmente absurda, em contextos de liberdade política, diferença interpessoal e afluência econômica.

Meu objetivo neste artigo é analisar o igualitarismo social com base em uma interpretação específica do valor da igualdade que, tal como as avalio, fundamenta suas expressões teóricas mais importantes. Denominarei essa interpretação de igualdade como não subordinação. Ao longo deste artigo, argumentarei que (1) a igualdade como não subordinação identifica um rationale normativo comum para as diversas expressões do igualitarismo social; (2) que essa é uma interpretação coerente tanto com o pano de fundo histórico das lutas por igualdade social como com o fundamento normativo do igualitarismo e que, finalmente; (3) uma concepção orientada pela luta contra formas injustas de subordinação social nos ajuda a evitar a confusão entre igualdade e valores morais distintos, porém igualmente importantes em uma sociedade de iguais.

Em seguida, na última seção, pretendo mostrar em quais sentidos essa maneira específica de compreender o valor da igualdade pode ser encontrada na obra de John Rawls, um dos filósofos igualitários mais relevantes do século passado, porém cuja relação com o igualitarismo social ainda permanece aberta. Particularmente significativo para o igualitarismo social é o modo como o construtivismo rawlsiano concebe a personalidade moral dos membros de uma sociedade justa enquanto “fontes auto-originárias de reivindicações válidas” (Rawls, 1999aRAWLS, John. 1999a. Kantian Constructivism in Moral Theory. In: FREEMAN, Samuel. (ed.). John Rawls: Collected Papers. Boston: Harvard University Press , pp. 303-358., p. 330). Alerto, de antemão, que o objetivo deste artigo não será oferecer uma exegese da obra rawlsiana, tampouco vindicar decisivamente o pertencimento de Rawls às fileiras do igualitarismo social (ou de descartar tal pertencimento). De modo bem mais modesto, pretendo explicar por que a concepção de personalidade moral presente no construtivismo moral rawlsiano representa um recurso teórico crucial, ainda que nem sempre reconhecido, para os projetos igualitários do século XXI. A conclusão pretendida é mostrar que para Rawls, bem como para o igualitarismo social, o que há de moralmente errado em relações de desigualdades de longa duração é um tipo condenável de despersonalização e que, consequentemente, o interpessoal também é político.

Igualdade: social e distributiva

Não é exagero afirmar que, na cultura política do final do século XX, as forças igualitárias estiveram na defensiva. A própria ideia de igualdade, entendida como um compromisso intrisecamente valioso e socialmente exigente, foi duramente colocada em questão tanto pela cultura política das democracias liberais como por discursos disciplinares prestigiosos na economia, na ciência política, e na história intelectual. De acordo com o que podemos denominar de status quo anti-igualitário do final do século XX, projetos políticos explicitamente igualitários seriam ao mesmo tempo politicamente suspeitos e economicamente catastróficos para as democracias capitalistas (Piketty, 2020PIKETTY, Thomas. 2020. Capital and Ideology. Boston: Harvard University Press .). Algo paralelo ocorreu no interior da filosofia política nesse mesmo período: a igualdade deixou de ser um valor moral prioritário a ser analisado e promovido nos debates filosóficos mais importantes e, por vezes, deixou de ser considerado um valor em si mesmo. Em um primeiro momento essa afirmação pode parecer paradoxal, uma vez que problemas distributivos ocuparam papel de destaque na filosofia política. Mais do que isso: é possível afirmar que a disciplina como um todo tenha orbitado, em maior ou menor grau, em torno do debate entre diferentes teorias da justiça social.4 4 Essa é a visão apresentada, por exemplo, no importante livro de introdução de Will Kymlicka (1990), traduzido para o português em 2006. Contudo, ao nos debruçarmos com mais atenção para o debate entre teorias da justiça distributiva, ao longo das últimas décadas do século passado, notamos que o valor da igualdade, isto é, a igualdade enquanto um valor moral intrisecamente importante para a vida social, recebeu um tratamento secundário, uma consideração ora implícita, porém não articulada, pelas diferentes teorias ora como um obstáculo conceitual a ser (finalmente) superado por concepções de justiça social mais sofisticadas do ponto de vista distributivo livres das “velhas demandas” igualitárias (Wolff, 2007WOLFF, Jonathan. 2007. Equality: The Recent History of an Idea. Journal of Moral Philosophy, v. 4, n. 1, pp. 125-136. Disponível em: Disponível em: https://bit.ly/3RCxEKd . Acesso em: 29 set. 2022.
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).

Como afirmado anteriormente, acredito que o surgimento de um programa de pesquisa orientado por uma interpretação irredutivelmente social (ou relacional) de igualdade representa uma contribuição teórica importante tanto para a filosofia política contemporânea quanto para a luta em curso contra os regimes de alta desigualdade econômica e social que, hoje, caracterizam todas as democracias do século XXI em maior ou menor grau. Para entendermos o porquê disso precisamos, em primeiro lugar, distinguir como concepções distintivamente sociais diferem de concepções estritamente distributivas de igualdade que, a despeito de sua popularidade na filosofia política e na esfera pública, acabam por corroborar o status quo anti-igualitário das democracias liberais.

Teorias relacionais e distributivas da igualdade diferem entre si, em primeiro lugar, em relação ao propósito normativo assumido por cada uma delas e, em segundo lugar, em relação ao conjunto de problemas teóricos considerados prioritários por cada uma dessas teorias. O objetivo mais importante de teorias distributivas é determinar qual a melhor maneira de distribuir certos recursos e vantagens socialmente benéficas entre agentes morais independentes, o que, por sua vez, implica na formulação de princípios distributivos idealizados. Exemplos paradigmáticos dessa maneira de conceber o igualitarismo podem ser encontrados nas teorias da justiça de Ronald Dworkin (1981aDWORKIN, Ronald. 1981a. What is equality? Part I: equality of welfare. Philosophy and Public Affairs, v. 10, n. 3, pp. 185-246. Disponível em: Disponível em: https://bit.ly/3Rn74o6 . Acesso em: 29 set. 2022.
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; 1981bDWORKIN, Ronald. 1981b. What is equality? Part II: equality of resources. Philosophy and Public Affairs, v. 10, n. 4, pp. 283-345. Disponível em: Disponível em: https://bit.ly/3LSqCQ4 . Acesso em: 29 set. 2022.
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) e Richard Arneson (1989)ARNESON, Richard. 1989. Equality and equal opportunity for Welfare. Philosophical Studies, v. 56, n. 1, pp. 77-93. DOI: 10.1007/BF00646210.
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. Se a busca por uma divisão equitativa de bens sociais privadamente usufruídos entre indivíduos representa o sentido mais importante do ideal igualitário, então é esperado das teorias igualitárias que elas defendam certos padrões de distribuição de recursos sociais como justos ou injustos. Essa forma de conceber a igualdade é encontrado, por exemplo, no chamado “igualitarismo de fortuna”, um conjunto de teorias para as quais a realização da igualdade equivale à neutralização de efeitos distributivos adversos nas vidas dos indivíduos advindos de circunstâncias moralmente arbitrárias. Segundo o igualitarismo de fortuna, uma desigualdade é injusta na medida em que a situação de um indivíduo na sociedade é determinada por falhas ou escolhas que não são de sua própria responsabilidade. Consequentemente, uma visão distributiva da desigualdade tende a centrar seus esforços em problemas ligados à distribuição de recursos escassos na tentativa de determinar quais bens sociais devem ser equitativamente alocados pela sociedade - bem-estar, recursos materiais, vantagens sociais etc. - e quais considerações morais - por exemplo o grau de responsabilidade individual de cada pessoa - poderiam justificar desvios legítimos em relação a uma distribuição estritamente igual entre todas as pessoas.

Se para o igualitarismo distributivo o valor da igualdade é entendido como uma distribuição igual entre coisas (a ser ponderada por outras considerações urgentes), para as concepções sociais da igualdade, as aspirações do igualitarismo possuem como base um ideal político abrangente em cujo centro se encontram relações interpessoais entre sujeitos livres, iguais e reciprocamente responsáveis pela criação de uma sociedade justa. Como argumenta Elizabeth Anderson, o valor da igualdade nos leva à cocriação de “uma ordem social na qual as pessoas mantenham relações de igualdade entre si”, isto é, uma ordem social incompatível com formas injustas de hierarquia sociais, tipos de relações sociais “com base nas quais as pessoas dominam, exploram, marginalizam, aviltam e exercem violência umas sobre as outras” (Anderson, 1999, p. 313). Como veremos posteriormente, princípios distributivos e bens sociais individualmente apropriados por pessoas não deixam de possuir um papel importante nessa visão da igualdade. Porém, eles não se confundem com aquilo que define uma concepção política igualitária.

Meu objetivo nesta seção, contudo, não será o de recuperar os meandros do debate intra-igualitário entre visões distributivas e sociais da igualdade.5 5 Cf. nota 2. Isso porque acredito que a dimensão mais importante do igualitarismo social não se encontra propriamente em sua crítica do distributivismo, mas no modo como as teorias sociais da igualdade nos permitem reavaliar, de maneira mais profunda, o próprio sentido da igualdade. Dito de outro modo: ao disputar o sentido usual, ou seja, o sentido distributivo das teorias igualitárias, o igualitarismo social nos fornece uma concepção ao mesmo tempo mais detalhada e mais plausível do valor da igualdade, evitando, por exemplo, certos argumentos anti-igualitários a priori comumente direcionado às demandas por uma sociedade igualitária.

Uma reavaliação relacional do valor da igualdade pode ser apresentada com base em quatro teses distintas a respeito do objetivo do igualitarismo, do estatuto normativo da igualdade e da natureza das teorias igualitárias:

  1. o igualitarismo deve ser fundado em um ideal de relações sociais;

  2. o valor da igualdade é intrisecamente valioso;

  3. as teorias igualitárias contam com um pluralismo de razões contra a desigualdade; e

  4. as teorias igualitárias dependem de conceitos normativamente densos.

Comecemos pela interpretação relacional da igualdade. Como afirmei anteriormente, o igualitarismo social sustenta, em primeiro lugar, que o valor da igualdade deve ser entendido como um ideal responsável por governar relações interpessoais e, em segundo lugar, que seu objetivo é colaborar para a construção coletiva de uma sociedade de iguais, uma forma de vida social na qual as pessoas são livres e mutualmente responsáveis por negociar suas diferenças entre iguais. “A verdadeira motivação igualitária”, argumenta Samuel Scheffler (2014SCHEFFLER, Samuel. 2014. The Practice of Equality. In: FOURIE, Carina; SCHUPPERT, Fabian; WALLIMANN-HELMER, Ivo. (ed.). Social Equality: On What It Means to be Equals. Oxford: Oxford University Press , pp. 20-44.), “seja de um ponto de vista histórico, seja de um ponto de vista conceitual, é encontrada em um compromisso com um ideal específico de sociedade, a convicção de que todos os membros da sociedade devem se relacionar entre si em pé de igualdade” (p. 22). Essa forma de conceber a igualdade acarreta duas considerações importantes.

Em primeiro lugar, como vimos, o igualitarismo deve ser definido com base em ideais de relações sociais e não como a justificação de algum princípio distributivo. Definir com precisão o que significa um ideal de relações não é uma tarefa simples e retornaremos a ela na próxima seção. Contudo, e em segundo lugar, dado que nossas relações sociais são historicamente contingentes e os valores que as sustentam são sempre politicamente contestáveis, ou seja, não apenas que a noção de uma relação “em pé de igualdade” muda no tempo e no espaço, como também sua natureza sempre permanecera em questão entre cocriadores e criadoras da ordem social, isso significa que é infrutífero teorizar sobre a igualdade sem dialogar diretamente com a longa e diversificada história dos movimentos políticos igualitários (Anderson, 2012ANDERSON, Elizabeth. 2012. Equality. In: ESTLUND, David. (ed.). The Oxford Handbook of Political Philosophy. Oxford: Oxford University Press, pp. 40-57.). De modo propositalmente vago e inclusivo, entendo por movimento igualitário qualquer forma de ação em concerto cujo objetivo principal seja identificar, desmantelar e transformar formas injustas de hierarquias sociais - hierarquias essas que, por sua vez, constituem assimetrias moralmente objetáveis de poder, prestígio, e riqueza conforme o ideal de uma sociedade de iguais.

Essa maneira de conceber a história do igualitarismo engloba os movimentos revolucionários contra privilégios aristocráticos e dominação colonial; a luta abolicionista e antirracista; a expansão do sufrágio; as lutas trabalhistas; feministas e ecológicas; os movimentos de resistência dos povos originários; experimentos de autogestão etc. Cada uma dessas lutas certamente possuiu (e continua a possuir) critérios avaliativos muito diferentes em relação a quais hierarquias são justas ou injustas, além de contarem com ideais potencialmente incompatíveis sobre o que conta como relações igualitárias. O ponto é que, diferentemente do debate distributivo dominante na filosofia política contemporânea, em nenhum desses casos o sentido moral dessas demandas é perfeitamente traduzível na formulação de princípios distributivos (ainda que, como veremos, eles sejam importantes). Por outro lado, uma visão social do igualitarismo procura incorporar essa intuição elementar no interior de suas teorias com o objetivo de permitir o diálogo entre teorização normativa e demandas igualitárias concretas. Quando mobilizado por reivindicações morais concretas, o valor da igualdade é melhor compreendido como a busca pelo autogoverno de diferenças entre iguais em reivindicação, isto é, pelo desmantelamento de hierarquias sociais injustas em nome de formas de cooperação ou interdependência social livres de subordinação, nas quais agentes livres e iguais possam negociar suas diferenças em pé de igualdade. As lutas igualitárias, para utilizar a formulação precisa de Audre Lorde (2007LORDE, Audre. 2007. Sister Outsider: Essays & Speeches. New York: Crossing Press.), dependem da nossa habilidade de articular nossas diferenças no interior da igualdade.

Insisto na proposição segundo a qual a igualdade orienta ideais de relações e não padrões distributivos, porque isso nos permite entender em que sentido a igualdade deve ser concebida como um valor moral intrisecamente valioso. Uma das objeções anti-igualitárias mais importantes em voga no atual regime de desigualdade afirma, justamente, que a igualdade, diferente de valores, como a liberdade, a solidariedade e o bem-estar individual, não seria em si mesmo valiosa, mas apenas um meio contingente para a produção de outros valores. “O que faz com que nos preocupemos com desigualdades não é a desigualdade [em si]”, afirma Joseph Raz, “mas sim a fome do faminto, a necessidade do necessitado, o sofrimento dos enfermos, e assim sucessivamente.” (Raz, 1988RAZ, Joseph. 1988. The Morality of Freedom. Oxford: Oxford University Press ., p. 240). Ou ainda, como conclui Derek Parfit, após esgotar os possíveis argumentos sobre políticas igualitárias, “o que é ruim [do ponto de vista da justiça] não é que algumas pessoas [estejam] em pior situação do que outras. Mas sim que elas estejam em uma pior posição, comparada com a posição que elas próprias poderiam estar.” (Parfit, 2002PARFIT, Derek. 2002. Equality or Priority? In: CLAYTON, Matthew; WILLIAMS, Andrew. (ed.). The Ideal of Equality. New York: Palgrave Macmillan, pp. 81-125., p. 104, grifo nosso).

Essa objeção é, em geral, articulada com base em alguma encarnação do chamado “argumento do nivelamento para baixo” (ou levelling-down objection). Digamos que se queira tornar duas ou mais pessoas iguais em si, ou pelo menos apenas menos desiguais, tomando como referência alguma métrica distributiva de relevância, como renda ou bem-estar subjetivo de cada indivíduo. Isso significa, segue o argumento, que as pessoas concernidas precisam ser comparadas e niveladas para que possamos redistribuir certos bens entre as partes concernidas. A estratégia igualitária usual, evidentemente, é melhorarmos a posição da pessoa em pior situação distribuindo recursos das melhores posições para as piores. Agora, e aqui segue o argumento, outra maneira igualmente correta de fazê-lo seria simplesmente nivelarmos as pessoas concernidas para baixo, isto é, destruindo a riqueza ou retirando vantagens das posições superiores unilateralmente.

Esse argumento conclui que políticas distributivas igualitárias podem tornar algumas pessoas piores do que elas estariam sem que, no entanto, outras pessoas tenha a sua condição de vida melhorada - o que seria patentemente irracional. Em nome da justiça estaríamos equalizando as pessoas para baixo sem que, no processo, ninguém seja beneficiado por isso. A obsessão igualitária com raciocínios comparativos nos levaria à destruição de riquezas, à proibição de talentos pessoais, ou à abolição de oportunidades sociais escassas apenas porque ao fazê-lo tornaríamos as pessoas mais iguais. Para autores anti-igualitários como Friedrich Hayek, isso tornaria a insistência na igualdade não um valor, mas uma espécie de vício moral análogo à inveja (Hayek, 1960HAYEK, Friedrich. 1960. The Constitution of Liberty. Chicago: Chicago University Press., p. 93). Logo, se o nivelamento social é uma política irracional, então Raz e Parfit teriam razão ao afirmarem que, no final das contas, a distribuição igualitária não deve ser buscada por si só, mas como o meio necessário de satisfazer necessidades individuais ou melhorar a situação das pessoas menos abastadas.

Interpretar o valor da igualdade como um ideal de relações nos permite compreender o que há de equivocado com esse raciocínio. Tratar as pessoas como iguais ou viver sob relações sociais pautadas pelo respeito mútuo entre as partes pode configurar um estado de coisas valioso enquanto tal e não apenas sob a condição de que sua realização favoreça distributivamente cada uma das partes envolvidas. O que há de intrisecamente valioso na igualdade não é a defesa mais ou menos arbitrária de equalizações distributivas, mas um ideal de vida social composto por uma pluralidade de elementos normativos distintos que, em alguns casos, justificam de modo perfeitamente racional certas formas de “nivelamento para baixo”.6 6 Agradeço aqui às sugestões de Guilherme Cardoso sobre esse ponto. Afinal, a demanda por certas formas de nivelamento é um traço recorrente na história do igualitarismo e constitutiva da ideia revolucionária de que ser reconhecido ou reconhecida como uma pessoa igual às pessoas - ou de que certas vidas possuem o mesmo valor do que outras - exigirá o desmantelamento de hierarquias sociais injustas.7 7 Por exemplo, no célebre manifesto do Coletivo Comabahee River, suas autoras reivindicam que “ser reconhecidas como humanas, niveladoramente humanas [levelly humans], é o bastante” (Combahee River Collective, 1997, p. 362, grifo nosso). Uma tradução do manifesto pode ser encontrada em: https://bit.ly/3rvWctx.

Aqui precisamos dar um passo em direção à terceira tese característica do igualitarismo social, a saber, que existe uma diversidade de razões igualitárias que são, ao mesmo tempo, normativamente importantes para a construção de uma sociedade de iguais e que essas razões são, ao mesmo tempo, analiticamente distintas entre si e que cada uma delas é capaz de justificar a busca de relações igualitárias intrisecamente valiosas (incluindo, em alguns casos, formas de nivelamento para baixo). Consoante a célebre tipologia de razões igualitárias proposta por Thomas Scanlon (2003SCANLON, Thomas Michael. 2003. The Diversity of Objections to Inequality. In: SCANLON, Thomas Michael. The Difficulty of Tolerance: Essays in Political Philosophy. Cambridge: Cambridge University Press , pp. 202-218.; 2018), existiriam pelo menos quatro grandes conjuntos de razões diferentes pelas quais desigualdades podem ser moralmente objetáveis.

Desigualdades sociais podem ser entendidas (1) como assimetrias institucionalizadas de status e privilégios; (2) como formas de dominação política; (3) como violação injusta de procedimentos equitativos e (4) como o reconhecimento assimétrico de direitos e obrigações por parte de instituições sociais comuns. Cada uma dessas razões ilustra um tipo de consideração normativa cuja justificativa é a valorização de modos igualitários de convívio social e que, portanto, autorizam formas de nivelamento social. A abolição de hierarquias de raça e gênero, a luta contra o poder do dinheiro na política democrática e a garantia institucional de condições equitativas de acesso aos recursos públicos são três exemplos de considerações irredutivelmente comparativas - e que, portanto, autorizam políticas de nivelamento de status, recursos e oportunidades respectivamente - sem que, com isso, o resultado seja necessariamente alguma forma irracional ou autoritária de equalização social. A eliminação de posições de superioridade social ou o nivelamento de privilégios institucionais são demandas moralmente justificadas quando essas posições de superioridade foram constituídas historicamente - e sustentadas atualmente - por relações de opressão e discriminação, e quando privilégios sociais são tidos como injustos. Como argumenta Scanlon (2003SCANLON, Thomas Michael. 2003. The Diversity of Objections to Inequality. In: SCANLON, Thomas Michael. The Difficulty of Tolerance: Essays in Political Philosophy. Cambridge: Cambridge University Press , pp. 202-218.) sobre esse ponto: “os oponentes da igualdade se mostram mais convincentes quando são capazes de retratar a igualdade como um objeto particularmente abstrato [...] ao qual um valor moral especial é atribuído” (p. 203). Reconhecer o pluralismo de razões igualitárias é reconhecer a pluralidade de elementos normativos em atuação no pensamento igualitário com lógicas econômicas, sociais e políticas próprias, as quais, em conjunto, constituem o horizonte normativo de políticas e práticas sociais igualitárias (O’Neill, 2008O’NEILL, Martin. 2008. What Should Egalitarians Believe? Philosophy & Public Affairs , v. 36, n. 2, pp. 119-156. Disponível em: Disponível em: https://bit.ly/3Sqowt2 . Acesso em: 29 set. 2022.
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).

Uma decorrência importante do reconhecimento da pluralidade de considerações igualitárias é o reconhecimento, por parte do igualitarismo, das diversas fontes de complexidade moral que estruturam nossa vida em conjunto, inclusive em relação a outros valores que não o da igualdade (Larmore, 1987LARMORE, Charles. 1987. Patterns of Moral Complexity. Cambridge: Cambridge University Press .). De maneira geral, uma teorização normativa é moralmente complexa quando reconhece que a racionalidade prática é constituída por mais de uma fonte de valorização e que, portanto, pode acarretar dilemas normativos e, no limite, acarretar demandas normativas irreconciliáveis. Conflitos entre liberdade e igualdade ou entre agregações eficientes e equitativas são dois exemplos dessa complexidade. No caso particular das teorias igualitárias, gostaria de chamar atenção para o fato de que, se por um lado, o compromisso com o valor intrínseco da igualdade e de sua variedade de reivindicações é uma característica definidora de concepções igualitárias, de outro, a igualdade não precisa ser o único compromisso normativo relevante em uma sociedade justa. Isso porque há uma diferença importante em sustentar que (1) a igualdade é intrisecamente valiosa e (2) que a igualdade é o único valor importante (ou valor supremo). Ou seja, em certos casos pode ser perfeitamente aceitável recusarmos o nivelamento igualitário em detrimento de outros valores igualmente importantes.

Novamente, do fato de que a igualdade seja um valor intrínseco não se segue que ela seja um valor supremo. O que se segue disso, no entanto, é que ao sacrificarmos a igualdade estamos sacrificando alguma coisa, isto é, estamos perdendo algo mesmo quando esse sacrifício é feito em nome da liberdade, da segurança, da solidariedade, ou da eficiência. Uma questão central colocada para a teoria igualitária é a busca por critérios de resolução para conflitos entre valores.

Agora, se o igualitarismo contemporâneo é, ao mesmo tempo, uma concepção fundada no valor intrínseco da igualdade e se esse valor intrínseco deve ser com base em um ideal de relações sociais, qual seria, então, o papel de considerações propriamente distributivas na política igualitária? Essa é uma pergunta importante. Qualquer tentativa de justificar o igualitarismo relacional precisa acomodar o fato óbvio de que boa parte da discussão pública sobre igualdade é pautada por e para políticas de distribuição. Considerações distributivas possuem, de fato, um papel central na política igualitária, mas é preciso notar, ao mesmo tempo, que o valor de demandas distributivas é de tipo extrínseco. A diferença entre valores intrínsecos e extrínsecos é uma distinção conceitual proposta por Christine Korsgaard que pode nos ajudar a entender melhor o que quero dizer com isso (1996KORSGAARD, Christine. 1996b. Two Distinctions in Goodness. In: KORSGAARD, Christine. Creating the Kingdom of Ends. Cambridge: Cambridge University Press , pp. 249-274.b). Chamemos de valiosas (ou “boas”) as características normativas próprias de propósitos ou finalidades de ações tidas como dignas de serem escolhidas. Diante de qualquer finalidade específica podemos nos perguntar se essa finalidade possui um valor instrumental, isto é, se ela é valiosa apenas na medida em que representa um meio para outro fim, ou, diferentemente, se ela possui um valor em si mesma. Caso a finalidade seja valiosa em si mesma, então podemos fazer uma segunda pergunta, que não deve ser confundida com a perguntar anterior: a finalidade em questão é incondicionalmente valiosa? Isto é, ela tem a si mesma como fonte desse valor, ou deriva seu valor constitutivo de outras considerações normativas? Ou seja, nem tudo o que não é intrisecamente valioso é necessariamente instrumental uma vez que estamos diante de dois pares correlativos diferentes: (1) como valoramos alguma coisa (meios versus fins) e (2) qual a fonte do valor (intrínseco versus extrínseco).8 8 Acredito que essa maneira de formular a relação entre igualdade distributiva e igualitarismo seja mais precisa, por exemplo, do que a solução, em outros aspectos correta, proposta por Martin O’Neill (2008), cujo valor da igualdade distributiva seria de tipo “não intrínseco”. Juízos igualitários (relacionais) possuem uma fonte própria de valor e, portanto, possuem valor moral intrínseco, enquanto considerações de igualdade distributivas possuem um valor extrínseco ou derivado.

Ou seja, demandas distributivas podem ter tanto um papel meramente instrumental, quando constatamos, por exemplo, que sociedades extremamente desiguais possuem piores indicadores de saúde e/ou tendem a ser politicamente instáveis, como um papel valioso em si mesmo, quando o controle sobre recursos econômicos permite a grupos sociais uma participação efetiva na vida social e equitativa na disputa política. No segundo caso, o ponto importante é que a luta por recursos é constitutiva da luta por igualdade de relações, ainda que não seja ela mesma a sua fonte última de valor. Essa é uma daquelas “diferenças que fazem diferença” por dois motivos diferentes.

Em primeiro lugar, porque, a despeito da importância de problemas de distribuição, essa não é uma consideração necessária para toda e qualquer luta igualitária. Muitas lutas distintivamente igualitárias podem perfeitamente não ser orientadas por reivindicações distributivas. A luta feminista pela liberdade reprodutiva das mulheres, por exemplo, ou a luta socialista por maior participação no local de trabalho, ou ainda a luta contra a patologização de identidades transexuais são três exemplos relativamente simples de lutas que não podem ser reduzidas à luta por um recurso a ser distribuído igualmente entre as partes em questão, não obstante o fato de que considerações distributivas sejam instrumentalmente importantes para essas formas de luta igualitária, por exemplo, recursos financeiros, acesso a recursos legais etc. Além disso, e em segundo lugar, considerações relacionais e distributivas de igualdade podem ser contraditórias sob certas condições. Esse conflito ocorre em casos de “desrespeito distributivo”, isto é, quando políticas distributivas utilizam, direta ou indiretamente, mecanismos distributivos como meio para gerir formas de subordinação social. Como argumenta Debra Satz, casos de desrespeito distributivo são constitutivos de propostas (supostamente) equitativas de mercadorização de atividades e atributos individuais com efeitos morais potencialmente degradantes para seus agentes e portadores (como a venda de órgãos, o trabalho sexual desprotegido e o trabalho infantil) (Satz, 2010). Ou ainda, como argumentam outros autores, na implementação de políticas de bem-estar social amparadas em modelos punitivistas ou estigmatizantes de política pública (Wolff, 1998WOLFF, Jonathan. 1998. Fairness, Respect and the Egalitarian Ethos. Philosophy & Public Affairs , v. 27, n. 2, pp. 97-122. Disponível em: Disponível em: https://bit.ly/3DYoqEO . Acesso em: 29 set. 2022.
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; Petroni, 2020PETRONI, Lucas. 2020. O que há de errado com o igualitarismo de fortuna? Dados, v. 63, n. 2, pp. 1-36. DOI: 10.1590/001152582020208.
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).

Finalmente, e como consequência direta das três características apresentadas anteriormente, o igualitarismo social foi responsável por reconstruir a ligação entre teorias da justiça e problemas de justiça orientados por preocupações normativamente densas. Movimentos sociais igualitários tendem a expressar seus objetivos, queixas, e diagnósticos com base em uma gramática politicamente densa, detentora de uma história particular e inserida em disputas políticas determinadas. Ou seja, eles empregam conceitos avaliativos cuja formulação é inextricável das situações políticas nos quais eles são articulados.9 9 Sobre a distinção entre conceitos normativamente densos ou espessos (thick), e rarefeitos ou finos (thin), ver Williams (1986, pp. 128-131). Os propósitos da distinção em Williams são, no entanto, diferentes dos meus. Diferentemente de categorias normativamente rarefeitas como “dever”, “coerção”, ou “justiça”, que admitem uma análise neutra em relação às realidades às quais se referem noções típicas da luta igualitária, tais como objetificação sexual, misoginia, racismo institucional, alienação ou mercadorização são conceitualmente dependentes da conceituação de fenômenos sociais específicos em contextos não ideais, cuja instanciação teórica por si só já representa uma tomada de posição política diante dessas mesmas injustiças.

Penso que essa seja uma das melhores explicações para o fato curioso de que os principais movimentos sociais igualitários em atuação hoje, sejam eles movimentos ambientais, feministas, antirracistas, pós-coloniais, e socialistas, não se identifiquem, nem mesmo implicitamente, com as principais teorias da justiça ensinadas em nossos cursos de introdução à filosofia política.10 10 Iris Young (1990), em sua crítica do chamado “paradigma distributivo” na filosofia política, foi precursora ao alertar sobre essa falta de convergência entre lutas igualitárias e teorias da justiça. Young, contudo, privilegia teorias pós-estruturalistas e interpreta a filosofia rawlsiana como sendo o protótipo (e em certo sentido a responsável causal) dessa divergência. Particularmente, penso que Young esteja equivocada sobre as causas dessa divergência e que a filosofia continental, tão cara à Young, não esteja ela própria imune ao problema da divergência ainda que por outras razões. Cf. Piroli (2022) para uma excelente reavaliação rawlsiana da crítica de Young. O que há de particularmente valioso na ênfase em conceitos normativamente densos não é tanto imiscuir as teorias igualitárias em debates sobre os vícios e virtudes de pressupostos idealizados de agência e causalidade social nas teorias - muito menos estimular a paranoia metodológica que prevalece em certos quadrantes da crítica social - mas sim a possibilidade de expandir a caixa de ferramentas da teoria política, de maneira a apreender e criticar formas concretas de injusta social próprias do funcionamento normal e esperado das estruturas sociais e constelações de poder predominantes atuantes, sem sermos obrigadas e obrigados a dissolver esses problemas em teorias idealizadas (Fricker, 2007FRICKER, Miranda. 2007. Epistemic Justice: Power and the Ethics of Knowing. Oxford: Oxford University Press .; Ventura, 2021VENTURA, Raissa Wihby. 2021. Shifting the Burden of a Bordered World: Justification, Immigration and Stability. In: MIETH, Corinna; CREMER, Wolfram. (org.). Migration, Stability and Solidarity. Baden-Baden: Nomos, pp. 33-62.). Tal como eu a entendo, o igualitarismo social reaproximou a filosofia política de problemas politicamente situados.

Igualdade como não subordinação

Se a visão social da igualdade está correta, então, desigualdades passam a designar, sobretudo, conjuntos de relações sociais desiguais nas quais algumas pessoas estabelecem posições sociais estruturadas de superioridade e inferioridade. Contudo, ainda precisamos entender melhor o que conta, afinal, como uma relação igualitária e qual o rationale moral por trás dessas relações.

Oferecer uma definição convincente sobre o que conta como uma relação social igualitária não é uma tarefa simples. Na verdade, esse é um dos problemas mais urgentes e, como era de se esperar, aquele que tem encontrado menor concordância entre as defensoras e os defensores da igualdade social. A dificuldade aqui reside no desafio de encontrar uma formulação da noção de relação igualitária que seja ao mesmo tempo ampla o bastante para abarcar as diferentes expressões do igualitarismo contemporâneo e suficientemente determinada para que atenda as características específicas analisadas na seção anterior. O impasse teórico é tamanho que podemos até mesmo especular, como Jonathan Wolff o faz, se existiria de fato algo em comum entre as diferentes críticas recentes à visão distributiva da igualdade. Como afirma Wolff (2015)WOLFF, Jonathan. 2015. Political Philosophy and the Real World of the Welfare State. Journal of Applied Philosophy, v. 32, n. 4, pp. 360-372. DOI: 10.1111/japp.12125.
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, “o problema duradouro [abinding]” do igualitarismo social “é oferecer uma abordagem [positiva] do que constituem relações sociais igualitárias” (p. 214).

Minha proposta neste artigo é argumentar que a ideia de igualdade como não subordinação pode ser útil na tentativa de organizar as diferentes contribuições teóricas do igualitarismo social. Uma interpretação da igualdade orientada por relações sociais livres de subordinação social atenderia às quatro características gerais das concepções sociais: ideal de relações, valor intrínseco, pluralismo e normatividade densa.

O objetivo é articular o significado normativo de uma visão social da igualdade, uma interpretação desse valor que possa ser atribuída a diferentes expressões de um programa filosófico comum a despeito de suas especificidades e propósitos teóricos. Wolff tem razão ao afirmar que o ideal igualitário pode ser realizado de muitas formas diferentes, isto é, que uma vida social permeada por relações sociais igualitárias é compatível com uma diversidade de organizações sociais e constelações de valores morais distintos. Duas sociedades igualmente igualitárias poderiam ser absolutamente incompatíveis em todas as outras dimensões da vida social - por exemplo, uma comunidade orgulhosa de valores tradicionais e um coletivo pluralista autogerido. Contudo, acredito que, quaisquer que sejam as instanciações de relações igualitárias possíveis, um elemento necessário a todas elas sempre será a recusa de formas socialmente estruturadas de subordinação interpessoal. Essa é mais uma consequência - positiva na minha opinião - do que denominei acima de reconhecimento da complexidade moral pelo igualitarismo: o fato de que existirão formas de cooperação social ao mesmo tempo não subordinantes, porém eticamente incompatíveis entre si. A igualdade entendida como uma demanda contra a subordinação social caracteriza de modo mais ou menos adequado as expectativas comuns e inegociáveis de movimentos políticos igualitários sem, com isso, esgotar as possibilidades éticas para a criação de uma sociedade de iguais.

Igualdade como não subordinação parte da intuição moral básica de que temos boas razões para evitar modos de relação interpessoal constituídos por práticas de subordinação e superordenação social. O igualitarismo social pode ser compreendido, portanto, como um gênero de teoria política caracterizado pela identificação teórica, a compressão empírica e o desmantelamento político de relações de inferioridade (e superioridade) social. A garantia de relações igualitárias - porque não subordinantes - torna-se um aspecto político central na luta por formas de cooperação social em que agentes iguais em reinvindicação moral podem negociar autonomamente os termos cujas diferenças mútuas são organizadas e reorganizadas.

A articulação reiterada dessa ideia é compatível com a história da luta igualitária. A crença na inferioridade intrínseca de um sexo, gênero, classe ou raça e a reivindicação de um suposto direito (ou “necessidade civilizatória”) de dominação, segregação, extração de privilégios, constitui o dia a dia das lutas igualitárias. Essas lutas pela abolição de formas de inferioridade social correspondem aos esforços de transformação da desigualdade social em formas de diferença benéficas para a vida social e para a individualidade de seus membros. Ao relacionar desigualdades com hierarquias sociais injustas, o espírito do igualitarismo social é perfeitamente articulável na formulação de Audre Lorde, segundo a qual a luta igualitária é a busca ininterrupta por “critérios comuns para trafegarmos nossas diferenças humanas como iguais” (Lorde, 2007, p. 115, tradução nossa).11 11 No original: “patterns for relating across our human differences as equals”.

A ideia de não subordinação enfatiza um componente fundamental das teorias igualitárias, a saber, que tratar alguém como uma subordinada ou um subordinado social, alguém cuja identidade e agência social é publicamente definida por uma posição de subalternidade em relação a grupos superordenados, caracteriza uma situação intrisecamente objetável.12 12 A caracterização de subordinação social apresentada aqui possui evidentes ligações com as proposições percursoras de Spivak (2010) sobre o problema da agência subalterna. Entretanto - ou pelo menos tal como compreendo o uso do termo - para Spivak, subalternidade trata primeiramente de um processo de natureza epistêmica, referindo-se às perspectivas incongruentes com, porque sistematicamente desarticuladas pela produção “oficial” de conhecimento, cuja natureza possui, de modo derivado, consequências normativas importantes para a agência de grupos subalternos. Agradeço a uma crítica feita por Raissa Ventura sobre esse ponto. O tipo de hierarquia social que nos interessa aqui consiste em formas de desigualdade de longa duração sustentadas por estruturas sociais, como as leis, o funcionamento normal e esperado de organizações, a reprodução de normas sociais etc., nas quais posições assimétricas são ocupadas em decorrência do pertencimento de seus membros a classes de pessoas definidas por características socialmente atribuídas, como, raça, etnia, classe, casta, religião, gênero ou orientação sexual (Anderson, 2012ANDERSON, Elizabeth. 2012. Equality. In: ESTLUND, David. (ed.). The Oxford Handbook of Political Philosophy. Oxford: Oxford University Press, pp. 40-57.; Tilly, 1998TILLY, Charles. 1998. Durable Inequality. Berkeley: University of California Press.). Hierarquias sociais injustas nada mais são, nesse sentido, do que padrões de longa duração de inferioridade causados pela organização categorial de diferenças sociais.

Seguindo as propostas de Anderson (2012ANDERSON, Elizabeth. 2012. Equality. In: ESTLUND, David. (ed.). The Oxford Handbook of Political Philosophy. Oxford: Oxford University Press, pp. 40-57.) e Kolodny (2014aKOLODNY, Niko. 2014a. Rule Over None I: What Justifies Democracy? Philosophy & Public Affairs, v. 42, n. 3, pp. 195-229. Disponível em: Disponível em: https://bit.ly/3BW8osd . Acesso em: 29 set. 2022.
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; 2014bKOLODNY, Niko. 2014b. Rule Over None II: Social Equality and the Justification of Democracy. Philosophy & Public Affairs , v. 42, n. 4, pp. 287-336. Disponível em: Disponível em: https://bit.ly/3SlYKGo . Acesso em: 29 set. 2022.
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), podemos afirmar que hierarquias sociais constituem formas assimétricas de poder, prestígio e riqueza e que, portanto, subordinam grupos sociais com base em dinâmicas de (1) obediência; (2) estima e (3) consideração de interesses e que, portanto, podemos identificar pelo menos três formas ideais de inferiorização social: (1) dominação; (2) estigmatização e (3) injustiça/inequidade (unfairness). Nesses três casos, estar subordinado13 13 Emprego o termo subordinação e estar subordinado para descrever posições de inferioridade social - e não os correlatos “subalternas” e “subalternos” - com o propósito explícito de enfatizar a inferiorização enquanto um processo social, e não como uma eventual identidade essencial de um “ser” subalterno. significa ser governado pela agência de outras pessoas, governo esse cuja atuação pode ser direta ou indireta. Ainda que analiticamente distintas, diferentes padrões de subordinação tendem a se sobreporem na prática e se reforçarem mutuamente de tal modo que o entrelaçamento entre dinâmicas de subordinação distintas pode criar formas específicas de subordinação (Crenshaw, 1989CRENSHAW, Kimberle. 1989. Demarginalizing the Intersection of Race and Sex: A Black Feminist Critique of Antidiscrimination Doctrine, Feminist Theory and Antiracist Politics. University of Chicago Legal Forum, v. 1989, n. 1, pp. 139-167. Disponível em: Disponível em: https://bit.ly/3dNAvC9 . Acesso em: 29 set. 2022.
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; Haslanger, 2012HASLANGER, Sally. 2012. Resisting Reality: Social Construction and Social Critique. Oxford: Oxford University Press .). Podemos classificar as três dinâmicas de inferiorização do seguinte modo:

(1) Hierarquias de Obediência. Posições assimétricas de obediência estão sujeitas a um exercício não responsivo da autoridade (de jure) ou do poder (de facto) por parte de agências superordenadas. Isso pode ocorrer de dois modos diferentes. Primeiramente, com base em expectativas de autoridade e comando de jure sobre as pessoas. Em segundo lugar, e independentemente de regras explícitas de autoridade, na forma de poder social de facto. Em ambos os casos, estamos diante de dinâmicas de dominação pessoal. Existe uma sobreposição entre hierarquias de obediência e a perda de liberdade no sentido neorrepublicano do termo, a condição de vulnerabilidade individual à interferência arbitrária de interesses alheios.14 14 Pettit (1997) e Skinner (2012). Contudo, como argumenta Neuhouser (2013), existe uma diferença importante entre estarmos sob o controle de alguém devido à vulnerabilidade de interferência sobre os nossos interesses (perda de liberdade como não dominação) ou porque estamos sujeitos a comandos alheios que não podemos aceitar como nossos (perda de autonomia). Hierarquia de obediência no sentido acima especificado pretende cobrir ambas as dimensões da agência. Para a distinção entre esses dois sentidos de perda de agência, ver: Petroni (2022). Exemplos extremos de hierarquias de obediência são a escravidão, a subjugação colonial e a dominação sexual.

(2) Hierarquias de Estima. Posições de subordinação em hierarquias de estima são caracterizadas pela estigmatização de identidades, estilos de vida ou modos de apresentação social tidos como naturalmente subalternos, desviantes ou moralmente degradados. Em geral, processos de estigmatização social são pautados por estereótipos negativos publicamente endossados (no limite pelas próprias pessoas estigmatizadas) que explicam o desprezo, o medo ou o ódio que devemos sentir por essas identidades, como também autorizam a humilhação, a segregação espacial e, no limite, a violência aberta contra as pessoas que ocupam essas posições. Formas de preconceito racial e sexual, e a distribuição assimétrica de status (como no sistema de castas) representam exemplos típicos dessas dinâmicas.

(3) Hierarquias de Consideração de Interesses. No caso de hierarquias de consideração, atribui-se um valor especial, ou predominante, aos interesses de grupos superordenados em processos informais de deliberação social ou no funcionamento normal e esperado de instituições sociais. Interesses subordinados podem ser sistematicamente marginalizados nos processos usuais de tomada de decisão ou simplesmente negligenciados em favor de interesses dominantes. Uma vez que podemos identificar em pelo menos dois tipos distintos de interesses fundamentais - interesses de tipo material e interesses de tipo epistêmico - hierarquias de consideração reproduzem duas formas distintas de injustiças ou inequidades (unfairness) de consideração: injustiças materiais e injustiças epistêmicas.15 15 No sentido desenvolvido por Fricker (2007). Exemplos desse tipo de hierarquia são encontrados na pobreza estrutural e na concentração da riqueza, na distribuição injusta das bases sociais para o bem-estar e nas formas de silenciamento praticadas contra perspectivas minoritárias, ou tidas como “desviantes” em relação às normas sociais de grupos superordenados.

Nem todas as formas de hierarquias configuram relações injustificadas de subordinação. Recorrer às hierarquias sociais como ponto focal do igualitarismo ajuda-nos a identificar quais formas de desigualdade são relevantes e quais não são do ponto de vista da justiça. Em primeiro lugar, hierarquias de obediência, de estima e de consideração precisam ser contrapostas às formas legítimas de hierarquias, por exemplo organizações assimétricas de autoridade consentidas ou responsivas aos interesses das partes subordinadas, formas hierarquizantes de distribuição de mérito e reconhecimento não totalizantes ou degradantes, e processos equitativos de hierarquização de interesses. Além disso, um igualitarismo centrado na erradicação de hierarquias injustas torna prioritárias formas de desigualdade duradouras que afetam classes de pessoas e não desigualdades entre indivíduos isolados. Desigualdades pontuais podem representar uma forma de injustiça. A discrepância entre vantagens moralmente arbitrárias entre duas pessoas, ou um caso isolado de favoritismo, por exemplo, devem ser entendidos como casos de injustiça. Porém, como não constituem um caso de subordinação de longa duração entre classes de pessoas, esses casos não representam um problema de desigualdade social, tal como o estou definindo aqui (o que ilustra, mais uma vez, a necessidade de mais de um valor moral na avaliação de problemas de justiça).16 16 A despeito da não subordinação ser concebida com base em classes de pessoas ou grupos sociais, de um ponto de vista moral são as pessoas que constituem esses grupos que sofrem a subordinação e não a entidade grupo.

Finalmente, como já indicado anteriormente, a luta contra desigualdades institucionalizadas e duradouras remete-nos à gênese histórica do pensamento igualitário. A igualdade como não subordinação ilustra um modo específico de conceber o elemento igualitário essencial das sociedades modernas. Esse modo que pode ser encontrado, por exemplo, em Rousseau (2017ROUSSEAU, Jean-Jacques. 2017. A origem da desigualdade entre os homens. São Paulo: Penguin; Companhia das Letras .) e Neuhouser (2014NEUHOUSER, Frederick. 2014. Rousseau’s Critique of Inequality: Reconstructing the Second Discourse. Cambridge: Cambridge University Press .), ainda que, evidentemente, o tema tenha sido alargado e rearticulado por diferentes movimentos igualitários - inclusive, em aspectos importantes, contra a própria teoria política rousseauniana, tal como ilustrado pela luta feminista contra a naturalização do patriarcado e a subordinação das mulheres à esfera privada (Okin, 2013OKIN, Susan Moller. 2013. Women in Western Political Thought. Princeton: Princeton University Press.).17 17 Seguindo de perto a interpretação de Neuhouser, Rawls (2007), em seus cursos de filosofia política, identifica Rousseau como a origem dessa nova maneira de conceber a desigualdade na história da filosofia. De acordo com essa forma de compreender a igualdade, formas justas de cooperação social são fundadas na ideia de que as pessoas são naturalmente diferentes umas das outras, que cada um possui uma individualidade irredutível e intrisecamente valiosa. No entanto, justamente porque possuem essa dimensão irredutível, as pessoas também são estritamente iguais em autoridade moral e, consequentemente, uma sociedade justa exige que as principais instituições civis, políticas e econômicas reconheçam publicamente duas dimensões normativas simultaneamente: a particularidade irredutível de nossos planos e necessidades individuais e a igualdade de poder formular reivindicações morais umas/uns para as/os outras/os amparado por regras comuns. O objetivo da política igualitária é encontrar formas não subordinantes de interdependência social.

A radicalidade dessa forma de conceber a igualdade pode ser apresentada esquematicamente com base no que podemos denominar de problema de Rousseau. Diferentemente das diferenças individuais (inégalités naturalles), as desigualdades sociais (inégalités morales), tais como os “privilégios” e hierarquias que “alguns desfrutam em prejuízo dos outros, como o de ser mais ricos, mais honrados, mais poderosos […] ou mesmo o de se fazer obedecer […]”, são o resultado da ação em concerto entre as pessoas (une sort de convention) e não da natureza próprias das coisas (Rousseau, 2017, p. 33). Desigualdades sociais são constituídas - ou pelo menos autorizadas - pela agência humana e suas instituições, portanto, são passíveis de serem abolidas ou reconstruídas com base em critérios de justiça igualmente convencionados entre agentes morais. A cooperação social é marcada por dois aspectos normativos distintivos e potencialmente opostos. Por um lado, a vida em sociedade permite a satisfação de nossas necessidades materiais e psicológicas fundamentais, como “as comodidades da vida”, e “a consideração [considération] dos outros” (Rousseau, 2017). Com base no aumento da riqueza material e na criação de novas formas de exercício da nossa agência moral - como o ganho em “liberdade moral” discutido no primeiro livro de O Contrato Social - a cooperação social possibilita tanto a segurança das necessidades materiais, precária e injustamente distribuídas fora da cooperação social, como a satisfação do nosso desejo pelo reconhecimento da nossa individualidade (amour propre) - isto é, o desejo de ter nossa singularidade reconhecida pelas outras pessoas.

Se por um lado a dependência mútua inerente à cooperação social permite-nos reestruturar as necessidades humanas fundamentais (inclusive e principalmente ao criar nossas formas de necessidades), por outro, ela também está na origem da principal fonte de malefícios advindas da igualdade da cooperação: a produção de relações assimétricas de poder, recurso e status - ou, nos termos de Rousseau (2017ROUSSEAU, Jean-Jacques. 2017. A origem da desigualdade entre os homens. São Paulo: Penguin; Companhia das Letras .), o surgimento da “escravidão e da miséria” (p. 80). A desigualdade de recursos materiais, de posições de poder, e de formas desiguais de reconhecimento social tem o potencial de transformar um estado virtuoso de interdependência em formas assimétricas de dependência.18 18 “Sendo os vínculos da servidão formados da dependência mútua dos homens e das necessidades recíprocas que os unem, é impossível subjugar um homem [sic] sem o ter posto antes na situação de não poder prescindir de outrem […]” (ROUSSEAU, 2016, p. 69). Relações de dependência recíproca tornam-se relações de dependência assimétrica por meio da subordinação aos outros para a satisfação de necessidades materiais ou para o reconhecimento constitutivo da nossa individualidade. Notemos que tanto para Rousseau como - argumento - para o igualitarismo social, a institucionalização de padrões de subordinação por dependência assimétrica pode ser algo ruim para a sociedade como um todo, isto é, tanto para quem está subordinada ou subordinado, na medida em que dependem da boa vontade dos poderosos para a execução de seus planos de vida, como para quem ocupa posições de superordenação social, conforme se tornam dependentes de um reconhecimento (considération) de superioridade por parte daquelas e daqueles que o servem. Em sociedades definidas por hierarquias sociais profundas, nenhum dos polos constitutivos exerce controle efetivo sobre sua identidade prática. O desejo por superioridade social, e a sua institucionalização em hierarquias de poder político, estima social e riqueza fornecem incentivos à servidão interpessoal e às formas inflamadas (furer de se distinguer) de competição por estima causadoras dos vícios individuais e malefícios coletivos típicos de sociedades desiguais.

Deixando de lado as particularidades da teoria rousseauniana, o problema de Rousseau coloca-nos a seguinte questão: como é possível cooperação social sem subordinação social? Encontrar uma maneira de estruturar a cooperação social de tal forma a permitir que diferenças pessoais não acarretem formas de inferioridade/superioridade sociais constitui a solução para o problema fundamental da teoria igualitária (Neuhouser, 1993NEUHOUSER, Frederick. 1993. Freedom, Dependence, and the General Will. The Philosophical Review, v. 102, n. 3, pp. 363-395. DOI: 10.2307/2185902.
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). Teorias liberais tenderão a solucionar esse problema buscando algum padrão de autossuficiência individual, procurando com isso restringir a interdependência constitutiva da vida em sociedade. Essa não é a solução dada por Rousseau para esse problema.19 19 Cf. Neuhauser (2011, pp. 487-488) sobre o ceticismo rousseauniano acerca de soluções fundadas em ideias de autossuficiência individual. Acredito que essa seja uma diferença conceitual importante entre teorias igualitárias e o liberalismo clássico. Agradeço a um comentário de Raissa Ventura o desenvolvimento dessa ideia. Uma cooperação social sem subordinação é possível consoante à instituição de uma ordem social fundada em um pertencimento igualitário à cidadania. A aplicação uniforme e imparcial da lei, o igual direito de legislar e as bases materiais para relações em pé de igualdade na vida pública permitiriam a reconstrução das nossas diferenças de tal modo que não viveríamos (mais) sob o poder de outras pessoas (Rousseau, 2017). O principal objetivo de uma cidadania democrática seria o de assegurar não apenas as prerrogativas pessoais de cada membro da sociedade, mas - e sobretudo - garantir que o status igualitário dessa cidadania seja publicamente pelas leis e instituições sociais fundamentais.

Ou, se assim podemos dizer, essa é a solução rousseauniana para o problema de Rousseau. Outras vertentes do igualitarismo identificaram ao longo do tempo outras formas de assimetrias objetáveis e propuseram soluções igualitárias alternativas para o mesmo problema. Contudo, todas elas tenderão a (1) reconhecer o problema da não subordinação como fundamental para uma ordem social justa; (2) sem renunciar à interdependência de diferenças individuais. O ponto que gostaria de ressaltar aqui é bem mais analítico do que historiográfico: o problema de Rousseau apresenta um rationale normativo comum a diferentes formas do pensamento igualitário. A luta histórica por direitos políticos e pela expansão democrática seguiu de perto essa lógica. Entretanto, outros movimentos organizados pela e para a luta por igualdade também compartilham em maior ou menor grau esse mesmo ideal de não subordinação ao exigirem que hierarquias sociais injustas sejam reconstruídas com base no respeito mútuo entre iguais. Em pelo menos três das vertentes históricas mais importantes para o igualitarismo contemporâneo o problema de Rousseau pode ser facilmente identificado. O ideal de não subordinação se faz presente no feminismo, em sua luta pela abolição da opressão de gênero, no socialismo, ao lutar pela socialização da riqueza social e pelo controle democrático das forças produtivas e no antirracismo/anticolonialismo, orientado pela abolição de padrões racistas e pela emancipação de populações colonizadas. A seu modo, cada uma dessas lutas foi responsável por rearticular e alargar historicamente o significado da não subordinação.

Personalidade moral e não subordinação social

Gostaria de concluir este artigo fazendo dois apontamentos sobre os vínculos entre a interpretação que estou propondo para o igualitarismo social, de um lado, e, de outro, a filosofia política de John Rawls. Uma investigação exaustiva dessa relação extrapolaria por muito o escopo deste trabalho. Contudo, gostaria de chamar atenção para duas características dessa relação que precisam ser levadas em conta pelas adeptas e pelos adeptos do igualitarismo social.

Em primeiro lugar, acredito que a relação entre o igualitarismo social e a filosofia de Rawls seja de tipo contingente. Isto é, eles não estabelecem um vínculo necessário, tampouco suficiente. Podemos subscrever à ortodoxia rawlsiana pelo menos em suas linhas gerais e não atender às exigências de uma visão estritamente social da igualdade como, ao contrário, podemos aderir ao igualitarismo social e recusar aspectos conceituais e metodológicos essenciais da justiça como equidade. Essa relação de contingência é ilustrada, de um lado, pelo igualitarismo relacional de autoras e autores como Jonathan Wolff (2014WOLFF, Jonathan. 2014. Social Equality and Social Inequality. In: FOURIE, Carina; SCHUPPERT, Fabian; WALLIMAN-HELMER, Ivo. (ed.). Social Equality: On What It Means to Be Equals. Oxford: Oxford University Press , pp. 209-225.) e Iris Young (1990YOUNG, Iris. 1990. Justice and the Politics of Difference. Princeton: Princeton University Press .), que recusam explicitamente o aparato contratualista rawlsiano e, de outro, pelas teorias explicitamente rawlsianas de Elizabeth Anderson (2010ANDERSON, Elizabeth. 2010. The fundamental disagreement between luck egalitarians and relational egalitarians. Canadian Journal of Philosophy, v. 40, n. sup1, pp. 1-23. DOI: 10.1080/00455091.2010.10717652.
https://doi.org/10.1080/00455091.2010.10...
), Samuel Scheffler (2003SCHEFFLER, Samuel. 2003. What is Egalitarianism? Philosophy and Public Affairs, v. 31, n. 1, pp. 5-39. Disponível em: Disponível em: https://bit.ly/3E3rNdr . Acesso em: 29 set. 2022.
https://bit.ly/3E3rNdr...
) e Thomas Scanlon (2018SCANLON, Thomas Michael. 2018. Why Does Inequality Matter? Oxford: Oxford University Press .). O que explica essa contingência, no meu entender, é a maneira como certos aspectos e certas ênfases da filosofia rawlsiana são privilegiadas e certas interpretações favorecidas, enquanto outros aspectos são deixados de lado. A tese rawlsiana sobre a arbitrariedade moral das desigualdades, por exemplo, serviu de inspiração direta para as teorias da igualdade distributiva, sobretudo, para o igualitarismo de fortuna (Rawls, 1971RAWLS, John. 1971. A Theory of Justice. Boston: Harvard University Press .).20 20 Cf. Scheffler (2003) sobre os acertos e equívocos dessa interpretação. Já a tese da prioridade da estrutura básica como objeto da justiça e o princípio metodológico da teorização ideal - duas das características distintivas de Uma Teoria da Justiça - não encontram respaldo consensual nas teorias sociais da igualdade. Isso não significa, evidentemente, que uma reinterpretação dessas teses em bases relacionais não seja possível. Por exemplo, é possível alargar o conceito de estrutura básica para dar conta de práticas interpessoais e padrões de relação socialmente arraigados em uma sociedade para além das regras e legislações formais e redefinir a prioridade de teorias idealizadas.21 21 Essa seria uma das respostas possíveis à crítica de G. A. Cohen (1991) à exclusão rawlsiana de atributos agenciais, tais como a motivação e o caráter individual do âmbito da justiça.

Um problema de interpretação particularmente constrangedor para as partidárias e partidários da igualdade social diz respeito à concessão de Rawls, em sua teoria da justiça internacional, às sociedades formalmente hierarquizadas. Em O Direito dos Povos (Rawls, 1999bRAWLS, John. 1999b. The Law of Peoples. Boston: Harvard University Press .), Rawls defende que, no âmbito de uma “sociedade de povos”, o princípio de tolerância recíproca deve ser estendido também a povos cuja organização social seja estruturada com base em hierarquias étnicas, religiosas e/ou de gênero, contanto que essas sociedades satisfaçam condições mínimas de justiça, como o reconhecimento de direitos humanos e mecanismos de consulta social “aceitáveis” (decent) no interior dessas hierarquias (Rawls, 1999bRAWLS, John. 1999b. The Law of Peoples. Boston: Harvard University Press .). Lembremos que, no contexto de uma sociedade de povos, Rawls compreende o dever de tolerância não apenas como a rejeição de atitudes abertamente imperialistas, como intervenções militares ou sanções econômicas, mas qualquer esforço de persuadir as pessoas vivendo nessas sociedades a “mudarem os seus modos de ser” (Rawls, 1999bRAWLS, John. 1999b. The Law of Peoples. Boston: Harvard University Press ., p. 59, tradução nossa).22 22 No original: “to make a people change its ways”.

Deixando de lado aqui dois temas extremamente difíceis em si mesmos - o problema de tolerância e interferência entre culturas diferentes e o papel da esfera internacional na teoria rawlsiana - a concessão rawlsiana às sociedades formalmente hierarquizadas é francamente incompatível com a concepção de igualdade como não subordinação, a noção de personalidade moral por trás dessa concepção e, em certo sentido, até mesmo com a preocupação normativa mais elementar do igualitarismo político - tal como discutido acima no problema de Rousseau. A legitimidade política de sociedades hierarquizadas aceitáveis não dependeria, portanto, da ideia segundo a qual “as pessoas são cidadãos e cidadãs em primeiro lugar e [portanto] contam com direitos básicos iguais enquanto tais” (Rawls, 1999bRAWLS, John. 1999b. The Law of Peoples. Boston: Harvard University Press ., p. 66, grifo nosso), mas sim de compromissos e deveres advindos exclusivamente de seu pertencimento a grupos sociais determinados e desigualmente posicionados na estrutura social. A pergunta se podemos ou não compatibilizar essa forma de estrutura social com direitos humanos e mecanismos de responsabilização política minimamente equitativos talvez seja empírica. Seja qual for a resposta a ela, o fato é que esse critério não é compatível com uma organização social em que um dos valores fundamentais seja a não subordinação entre grupos sociais.

Ao elencar os pontos de divergência entre a filosofia rawlsiana e o igualitarismo social, quero dizer apenas que a filosofia de Rawls, como qualquer clássico da história da filosofia, pode ser apropriada de diferentes maneiras e para diferentes propósitos, estando permanentemente sujeita àquilo que José Arthur Giannotti (2011GIANNOTTI, José Arthur. 2011. Lições de filosofia primeira. São Paulo: Companhia das Letras.) chamou de “torções de significado” próprios da história da filosofia. Diferentes gerações torcem e retorcem os argumentos e conceitos filosóficos estabelecidos tendo em vista propósitos específicos. Sendo assim, e talvez diferindo da opinião majoritária dos meus/minhas colegas igualitários e igualitárias, não acredito que exista uma afinidade essencial e, portanto, obrigatória, entre a ortodoxia rawlsiana e o igualitarismo social. Por outro lado, mas pelos mesmos motivos, também não acredito que o contrário seja verdadeiro, que não existe uma relação possível entre eles. Meu ceticismo abrange apenas a suposição de que devemos procurar no igualitarismo social o verdadeiro sentido da teoria rawlsiana.

Feitas essas ressalvas, é inegável que ambos os projetos possuam inúmeras afinidades.23 23 Duas afinidades importantes, mas que não poderei explorar aqui, dizem respeito ao caráter irredutivelmente relacional das “bases sociais do autorrespeito”, enquanto um bem social primário, e o conceito igualmente relacional de respeito mútuo na justiça rawlsiana. Sobre a primeira dessas afinidades, ver, mais uma vez, Piroli (2022). Procurei articular o conceito de respeito mútuo rawlsiano em uma chave explicitamente relacional em Petroni (2017). A primeira e mais evidente delas é a interpretação pluralista e explicitamente relacional do valor da igualdade ao longo da obra de Rawls. Ao explicar em que sentido a justiça como equidade constituiria “uma visão igualitária” da justiça, Rawls adere aos quatro tipos de razões apresentadas por seu colega de departamento Thomas Scanlon (Rawls, 2001RAWLS, John. 2001. Justice as Fairness: A Restatement. Boston: Harvard University Press ., p. 39). Particularmente importante para os nossos propósitos, Rawls identifica dentre essas razões aquela “sugerida por Rousseau” segundo a qual “o status fundamental em uma sociedade política é o da igualdade de cidadania, um status social partilhado por todos e todas enquanto pessoas livres e iguais” (Rawls, 2001RAWLS, John. 2001. Justice as Fairness: A Restatement. Boston: Harvard University Press ., p. 132). Essa razão igualitária é interpretada como o reconhecimento recíproco da igualdade entre cidadãos e cidadãs e seria constitutiva da própria definição de cidadania democrática: “[as pessoas] sendo o que são - cidadãos e cidadãs - isso inclui sua relação como iguais [being related as equals]; e relacionarem-se enquanto iguais é constitutivo tanto daquilo que elas são como daquilo que elas são reconhecidas como sendo pelas outras.” (Rawls, 2001RAWLS, John. 2001. Justice as Fairness: A Restatement. Boston: Harvard University Press ., p. 132). O valor da igualdade, interpretado enquanto uma relação não hierárquica entre iguais em reivindicação moral ocupa um papel fundante na arquitetura rawlsiana e, segundo o próprio autor, constituiria “o ponto de vista” normativo a partir do qual “a justificação de todas as outras desigualdades precisam ser entendidas.” (Rawls, 2001RAWLS, John. 2001. Justice as Fairness: A Restatement. Boston: Harvard University Press ., p. 132).

Reconhecendo que a adoção de uma noção complexa de igualdade moral talvez seja o ponto de convergência mais fundamental entre Rawls e o igualitarismo social, gostaria de encerrar este artigo explorando uma segunda fonte de afinidade importante, porém bem menos analisada pelas teorias relacionais da igualdade. Essa afinidade diz respeito ao segundo apontamento que gostaria de fazer sobre a relação entre Rawls e o igualitarismo social, a saber, que uma visão social do igualitarismo pode se beneficiar e, em última medida, depende de uma noção de personalidade moral compatível com o ideal de pessoa próprio do projeto rawlsiano. Mais especificamente, o reconhecimento de que reivindicações igualitárias contra hierarquias sociais injustas dependem de uma concepção de agência moral na qual reivindicações normativas de segunda pessoa possuem um papel essencial. Para empregar a própria formulação rawlsiana sobre esse ponto, reivindicações igualitárias contra a existência e reprodução de hierarquias sociais dependem da tese segundo a qual as pessoas devem ser entendidas enquanto “fontes auto-originárias de reivindicações válidas” (Rawls, 1999aRAWLS, John. 1999a. Kantian Constructivism in Moral Theory. In: FREEMAN, Samuel. (ed.). John Rawls: Collected Papers. Boston: Harvard University Press , pp. 303-358., p. 330; 2001RAWLS, John. 2001. Justice as Fairness: A Restatement. Boston: Harvard University Press ., pp. 23-24).24 24 Nos últimos trabalhos de Rawls, essa tese é restrita à concepção política de pessoa ligada à cidadania democrática. Permanece uma questão em aberto, contudo, se o igualitarismo social deveria, ou não, circunscrevê-la também ao domínio político tal como entendido pela filosofia rawlsiana.

Desde sua primeira aparição em Uma Teoria da Justiça, a noção de personalidade moral na obra de Rawls é indissociável de um conjunto de faculdades - ou “poderes morais” - responsáveis simultaneamente por definir e possibilitar a agência moral requerida por uma concepção de justiça igualitária. “A capacidade para desenvolver uma personalidade moral”, afirma Rawls, “é condição suficiente para ter direito à justiça igual” (Rawls, 1971RAWLS, John. 1971. A Theory of Justice. Boston: Harvard University Press ., p. 505). Ainda que tanto a definição como a descrição do funcionamento dessas faculdades variem consideravelmente ao longo da obra rawlsiana, dois conjuntos de faculdades podem ser ressaltadas como gerais e essenciais para a concepção de cooperação social implícita na teoria de Rawls: (1) a capacidade para desenvolver, e revisar quando necessário, uma concepção racionalmente estruturada de bem, e (2) a capacidade para compreender, produzir, e ser motivado por juízos da justiça (Rawls, 1971RAWLS, John. 1971. A Theory of Justice. Boston: Harvard University Press .; 1999aRAWLS, John. 1999a. Kantian Constructivism in Moral Theory. In: FREEMAN, Samuel. (ed.). John Rawls: Collected Papers. Boston: Harvard University Press , pp. 303-358.; 2001RAWLS, John. 2001. Justice as Fairness: A Restatement. Boston: Harvard University Press .). O desenvolvimento e o exercício dessas capacidades representariam “interesses de ordem superior”25 25 A rigor, Rawls estabelece três interesses de ordem superior, conforme a capacidade para a individualidade (desenvolver uma concepção de bem) é dividida entre o interesse em definir finalidades, isto é, o interesse de expressar uma visão da realidade a partir do meu ponto de vista e a habilidade de elaborar planos de vida racionalmente estruturados (Rawls, 1996, p. 74). no sentido de serem, ao mesmo tempo, interesses sobre a natureza dos demais interesses que venhamos a ter (do mesmo modo que desejos de segunda ordem são desejos sobre desejos) e interesses mais profundos e estáveis do que as preferências cotidianas e transitórias de agentes sociais. Somadas, esses dois conjuntos de capacidades morais constituiriam uma condição suficiente para transformar um agente em um sujeito recíproco de reivindicações de justiça.

Ambas as faculdades são representadas no procedimento contratualista como parte fundamental do status de pessoas livres e iguais (Rawls, 1999RAWLS, John. 1999a. Kantian Constructivism in Moral Theory. In: FREEMAN, Samuel. (ed.). John Rawls: Collected Papers. Boston: Harvard University Press , pp. 303-358.a, pp. 330-333). Em primeiro lugar, todas as pessoas são entendidas, e devem compreender umas às outras, como sendo igualmente capazes de compreender e atender às exigências de uma concepção de justiça. A posição original da justiça deve, por essa razão, considerar todas as pessoas que participam da cooperação social como igualmente dignas de serem representadas em deliberações que determinem os critérios de organização da estrutura básica da sociedade. Em segundo lugar, e correspondente à capacidade de desenvolver concepções de bem individuais e racionalmente organizadas, a posição original compreende o exercício da agência moral de cada uma das pessoas envolvidas na cooperação social como independente de compromissos éticos ou identidades sociais particulares. Isto é, as pessoas “não veem a si mesmas como inevitavelmente ligadas à realização de uma concepção de bem particular e aos objetivos últimos que venham a adotar em um determinado período.” (Rawls, 1999aRAWLS, John. 1999a. Kantian Constructivism in Moral Theory. In: FREEMAN, Samuel. (ed.). John Rawls: Collected Papers. Boston: Harvard University Press , pp. 303-358., p. 331). Logo, os direitos e liberdades básicas, o direito à participação política e à visibilidade pública não estigmatizada, e o acesso às vantagens sociais disponíveis em uma sociedade, não dependem, nem em sua natureza, nem em seu exercício, do valor ou sentido dos planos de vida e dos sistemas de valores livremente adotados pelas pessoas. Cada pessoa deve ser considerada, desse modo, como tendo uma vida diferente para levar ou uma perspectiva diferente da realidade moral, o que exige que seja tratada pelos arranjos sociais como alguém (someone), ao invés de ninguém (anyone). Em suma, a posição original representa a agência moral de sujeitos da justiça como irredutivelmente igualitária e independente de contingências sociais e éticas.

Em linhas muito gerais, esse é o núcleo normativo da teoria da justiça rawlsiana e, como essa rápida reconstrução ajuda-nos a dimensionar, a noção de personalidade moral ocupa um lugar insubstituível no construtivismo moral rawlsiano. Existe, contudo, uma modificação desse argumento ou pelo menos de um aspecto desse argumento, que gostaria de ressaltar tendo em vista a ideia de igualdade discutida neste artigo. Em suas palestras sobre construtivismo moral na década de 1980, Rawls adiciona um elemento em sua compreensão da personalidade moral até então ausente. Além da igualdade fundamental, como base para a justiça, e da liberdade como independência, Rawls argumenta que pessoas livres e iguais reconhecem a si mesmas “como autorizadas [entitled] a fazerem reivindicações sobre a forma e função [design] das instituições sociais em nome de seus interesses de ordem mais elevada.” Essa ideia é apresentada por Rawls como a exigência normativa de que os membros da cooperação social reconheçam uns aos outros, bem como a si próprios, “como fontes auto-originárias de reivindicações válidas.” (Rawls, 1999aRAWLS, John. 1999a. Kantian Constructivism in Moral Theory. In: FREEMAN, Samuel. (ed.). John Rawls: Collected Papers. Boston: Harvard University Press , pp. 303-358., p. 330, tradução nossa).26 26 No original: “self-originating sources of valid claims”. As pessoas seriam fontes imediatas de reivindicações no sentido de que as reivindicações públicas derivadas de sua personalidade moral possuem um peso moral independente ou autônomo, derivado apenas de sua autoridade interpessoal enquanto agentes morais e não do conteúdo particular ou da adequação social que essas reivindicações venham a ter.

Em razão disso, o exercício da agência moral não apenas acarreta, mas em um sentido mais profundo também é constituído pelas reivindicações interpessoais que colocamos umas para as outras e uns para os outros. Ela é fundada em uma autoridade moral que precisa ser protegida tanto contra princípios perfeccionistas ou contra agregação de preferências injustas, como também das demais formas de deveres e obrigações sociais próprias da cooperação social. O exemplo paradigmático desse último tipo de violação é ilustrado segundo Rawls no conceito de “morte social” cunhado pelo sociólogo da escravidão Orlando Patterson (1982PATTERSON, Orlando. 1982. Slavery and Social Death: A Comparative Study. Boston: Harvard University Press.). Segundo Patterson, regimes escravagistas seriam socialmente estruturados de tal modo que a agência moral de escravizadas e escravizados simplesmente não contava (e ainda não conta em contextos de escravidão de facto) como fontes socialmente aceitas de reivindicações para o propósito da organização das relações sociais. De um ponto de vista normativo, a personalidade moral dos escravizados é publicamente apresentada como derivada de obrigações e encargos próprios de uma posição social ao mesmo tempo dependente (em relação ao senhor), violenta (em relação à organização social) e moralmente injusta. Essa é uma posição que depende inteiramente dos direitos (e principalmente dos caprichos) de seus proprietários e que não reconhece a agência moral de suas vítimas como uma fonte válida de reivindicações normativas.

O caso da escravidão é um exemplo extremo de hierarquia social cujas características da subordinação (obediência, estima e consideração de interesses) prevalecem em grau máximo em favor das posições de superordenação social. Contudo, o ponto de Rawls é estendível a qualquer forma de hierarquia social injusta, uma vez que o traço definidor da inferioridade social é o fato de que a personalidade moral de quem venha a ocupar essa posição é desautorizada, enquanto uma fonte igual de reivindicação normativa e que essa assimetria de autoridade de reivindicação faz parte de identidades inferiorizadas socialmente atribuídas. Hierarquias de sexo, gênero, raça, classe e etnia não precisam almejar a erradicação pública da agência moral das partes subordinadas para contarem como formas de subordinação. Isto é, não precisam perpetrar a “morte social” para desautorizar (inclusive com base em sanções) o pleno exercício de sua personalidade moral. Relações de subordinação social são moralmente objetáveis, segundo o construtivismo rawlsiano, conforme estabelecem relações assimétricas nas quais a autoridade moral igual de uma pessoa é negada ou sistematicamente distorcida com base em atitudes interpessoais hierarquizantes.

Isso significa, e agora podemos retornar ao igualitarismo social, que desigualdades de longa duração são moralmente objetáveis não apenas porque minimizam o bem-estar das partes subordinadas ou porque reduzem sua liberdade como “independência”, mas - e esse é um ganho conceitual importante do igualitarismo social - porque hierarquias sociais despersonalizam agentes iguais em reivindicação obrigando-os a adequarem o livre exercício de sua agência moral às expectativas interpessoais de obediência, estima social e consideração de interesses de tipo assimétrico. Isso significa, portanto, que para a filosofia rawlsiana - assim como para o igualitarismo social - arranjos injustos desrespeitam a dignidade das pessoas seja quando violam seus direitos, por exemplo, quando interferem em suas liberdades, seja quando negam a existência e a visibilidade pública dessa autonomia, tratando-as como desiguais em autoridade moral. Um tipo de agente social que, a despeito de participar ativamente do processo de cooperação social, não deveria ser considerado uma fonte legítima para queixas, demandas ou asserções de direitos.

Em sociedades patentemente desiguais, constituídas por hierarquias de obediência, status e consideração de interesses, cujas relações sociais são marcadas por práticas sociais de despersonalização, a filosofia rawlsiana nos permitiria concluir, além de tantas outras coisas, que o interpessoal (também) é político. Essa é uma conclusão vital para o futuro da política igualitária e para a relevância filosófica do igualitarismo social.

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  • SCANLON, Thomas Michael. 2018. Why Does Inequality Matter? Oxford: Oxford University Press .
  • SCHEFFLER, Samuel. 2003. What is Egalitarianism? Philosophy and Public Affairs, v. 31, n. 1, pp. 5-39. Disponível em: Disponível em: https://bit.ly/3E3rNdr Acesso em: 29 set. 2022.
    » https://bit.ly/3E3rNdr
  • SCHEFFLER, Samuel. 2014. The Practice of Equality. In: FOURIE, Carina; SCHUPPERT, Fabian; WALLIMANN-HELMER, Ivo. (ed.). Social Equality: On What It Means to be Equals. Oxford: Oxford University Press , pp. 20-44.
  • SKINNER, Quentin. 2012. Liberty Before Liberalism. Cambridge: Cambridge University Press .
  • SPIVAK, Gayatri Chakravorty. 2010. Can the Subaltern Speak? In: MORRIS, Rosalind. (ed.). Can the Subaltern Speak? Reflections on the History of an Idea. New York: Columbia University Press , pp. 21-80.
  • TILLY, Charles. 1998. Durable Inequality. Berkeley: University of California Press.
  • VENTURA, Raissa Wihby. 2021. Shifting the Burden of a Bordered World: Justification, Immigration and Stability. In: MIETH, Corinna; CREMER, Wolfram. (org.). Migration, Stability and Solidarity. Baden-Baden: Nomos, pp. 33-62.
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    » https://bit.ly/3DYoqEO
  • WOLFF, Jonathan. 2007. Equality: The Recent History of an Idea. Journal of Moral Philosophy, v. 4, n. 1, pp. 125-136. Disponível em: Disponível em: https://bit.ly/3RCxEKd Acesso em: 29 set. 2022.
    » https://bit.ly/3RCxEKd
  • WOLFF, Jonathan. 2014. Social Equality and Social Inequality. In: FOURIE, Carina; SCHUPPERT, Fabian; WALLIMAN-HELMER, Ivo. (ed.). Social Equality: On What It Means to Be Equals. Oxford: Oxford University Press , pp. 209-225.
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    » https://doi.org/10.1111/japp.12125
  • WOLFF, Jonathan. 2019. Equality and Hierarchy. Proceedings of the Aristotelian Society, v. 119, n. 1, pp. 1-23. DOI: 10.1093/arisoc/aoz001.
    » https://doi.org/10.1093/arisoc/aoz001
  • YOUNG, Iris. 1990. Justice and the Politics of Difference. Princeton: Princeton University Press .
  • 1
    Agradeço a Nunzio Ali, Márcio Black, Nathalie Bressiani, Andréia Cardoso, Guilherme Cardoso, Mônica Oliveira e Sebástian Rudas pelas leituras, conversas, críticas e sugestões durante a produção deste artigo. Agradeço também a dois/duas pareceristas da Lua Nova pelos comentários e, finalmente, a Raissa Ventura, também pela leitura, mas, sobretudo, pela insistência em pensar novas imaginações políticas. Agradeço o suporte institucional da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp) e do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap).
  • 2
    Utilizarei “igualitarismo social” como forma de designar esse programa de pesquisa ao longo do artigo.
  • 3
    Anderson (1999), Wolff (2019)WOLFF, Jonathan. 2019. Equality and Hierarchy. Proceedings of the Aristotelian Society, v. 119, n. 1, pp. 1-23. DOI: 10.1093/arisoc/aoz001.
    https://doi.org/10.1093/arisoc/aoz001...
    e Petroni (2020)PETRONI, Lucas. 2020. O que há de errado com o igualitarismo de fortuna? Dados, v. 63, n. 2, pp. 1-36. DOI: 10.1590/001152582020208.
    https://doi.org/10.1590/001152582020208....
    são reconstruções, com vieses próprios, dos termos centrais do debate entre concepções distributivas e sociais de igualdade.
  • 4
    Essa é a visão apresentada, por exemplo, no importante livro de introdução de Will Kymlicka (1990)KYMLICKA, Will. 1990. Contemporary Political Philosophy: An Introduction. Oxford: Oxford University Press ., traduzido para o português em 2006.
  • 5
    Cf. nota 2.
  • 6
    Agradeço aqui às sugestões de Guilherme Cardoso sobre esse ponto.
  • 7
    Por exemplo, no célebre manifesto do Coletivo Comabahee River, suas autoras reivindicam que “ser reconhecidas como humanas, niveladoramente humanas [levelly humans], é o bastante” (Combahee River Collective, 1997, p. 362, grifo nosso). Uma tradução do manifesto pode ser encontrada em: https://bit.ly/3rvWctx.
  • 8
    Acredito que essa maneira de formular a relação entre igualdade distributiva e igualitarismo seja mais precisa, por exemplo, do que a solução, em outros aspectos correta, proposta por Martin O’Neill (2008), cujo valor da igualdade distributiva seria de tipo “não intrínseco”. Juízos igualitários (relacionais) possuem uma fonte própria de valor e, portanto, possuem valor moral intrínseco, enquanto considerações de igualdade distributivas possuem um valor extrínseco ou derivado.
  • 9
    Sobre a distinção entre conceitos normativamente densos ou espessos (thick), e rarefeitos ou finos (thin), ver Williams (1986WILLIAMS, Bernard. 1986. Ethics and the Limits of Philosophy. Boston: Harvard University Press ., pp. 128-131). Os propósitos da distinção em Williams são, no entanto, diferentes dos meus.
  • 10
    Iris Young (1990), em sua crítica do chamado “paradigma distributivo” na filosofia política, foi precursora ao alertar sobre essa falta de convergência entre lutas igualitárias e teorias da justiça. Young, contudo, privilegia teorias pós-estruturalistas e interpreta a filosofia rawlsiana como sendo o protótipo (e em certo sentido a responsável causal) dessa divergência. Particularmente, penso que Young esteja equivocada sobre as causas dessa divergência e que a filosofia continental, tão cara à Young, não esteja ela própria imune ao problema da divergência ainda que por outras razões. Cf. Piroli (2022)PIROLI, Diana. 2022. Para além da imagem distributiva-alocativa: uma interpretação relacional da teoria de John Rawls. Voluntas, v. 13, n. 1, pp. 1-33. DOI: 10.5902/2179378667881.
    https://doi.org/10.5902/2179378667881....
    para uma excelente reavaliação rawlsiana da crítica de Young.
  • 11
    No original: “patterns for relating across our human differences as equals”.
  • 12
    A caracterização de subordinação social apresentada aqui possui evidentes ligações com as proposições percursoras de Spivak (2010)SPIVAK, Gayatri Chakravorty. 2010. Can the Subaltern Speak? In: MORRIS, Rosalind. (ed.). Can the Subaltern Speak? Reflections on the History of an Idea. New York: Columbia University Press , pp. 21-80. sobre o problema da agência subalterna. Entretanto - ou pelo menos tal como compreendo o uso do termo - para Spivak, subalternidade trata primeiramente de um processo de natureza epistêmica, referindo-se às perspectivas incongruentes com, porque sistematicamente desarticuladas pela produção “oficial” de conhecimento, cuja natureza possui, de modo derivado, consequências normativas importantes para a agência de grupos subalternos. Agradeço a uma crítica feita por Raissa Ventura sobre esse ponto.
  • 13
    Emprego o termo subordinação e estar subordinado para descrever posições de inferioridade social - e não os correlatos “subalternas” e “subalternos” - com o propósito explícito de enfatizar a inferiorização enquanto um processo social, e não como uma eventual identidade essencial de um “ser” subalterno.
  • 14
    Pettit (1997)PETTIT, Philip. 1997. Republicanism: A Theory of Freedom and Government. Oxford: Oxford University Press . e Skinner (2012)SKINNER, Quentin. 2012. Liberty Before Liberalism. Cambridge: Cambridge University Press .. Contudo, como argumenta Neuhouser (2013)NEUHOUSER, Frederick. 2013. Rousseau’s Critique of Economic Inequality. Philosophy & Public Affairs , v. 41, n. 3, pp. 193-225. Disponível em: Disponível em: https://bit.ly/3rhVgZC . Acesso em: 29 set. 2022.
    https://bit.ly/3rhVgZC...
    , existe uma diferença importante entre estarmos sob o controle de alguém devido à vulnerabilidade de interferência sobre os nossos interesses (perda de liberdade como não dominação) ou porque estamos sujeitos a comandos alheios que não podemos aceitar como nossos (perda de autonomia). Hierarquia de obediência no sentido acima especificado pretende cobrir ambas as dimensões da agência. Para a distinção entre esses dois sentidos de perda de agência, ver: Petroni (2022)PETRONI, Lucas. 2022. Sob o governo de outros: dominação republicana vs. subordinação social. Voluntas: Revista Internacional de Filosofia. [ no prelo] .
  • 15
    No sentido desenvolvido por Fricker (2007).
  • 16
    A despeito da não subordinação ser concebida com base em classes de pessoas ou grupos sociais, de um ponto de vista moral são as pessoas que constituem esses grupos que sofrem a subordinação e não a entidade grupo.
  • 17
    Seguindo de perto a interpretação de Neuhouser, Rawls (2007)RAWLS, John. 2007. Lectures on the History of Political Philosophy. Boston: Harvard University Press ., em seus cursos de filosofia política, identifica Rousseau como a origem dessa nova maneira de conceber a desigualdade na história da filosofia.
  • 18
    “Sendo os vínculos da servidão formados da dependência mútua dos homens e das necessidades recíprocas que os unem, é impossível subjugar um homem [sic] sem o ter posto antes na situação de não poder prescindir de outrem […]” (ROUSSEAU, 2016ROUSSEAU, Jean-Jacques. 2016. Do contrato social. São Paulo: Penguin; Companhia das Letras., p. 69).
  • 19
    Cf. Neuhauser (2011, pp. 487-488) sobre o ceticismo rousseauniano acerca de soluções fundadas em ideias de autossuficiência individual. Acredito que essa seja uma diferença conceitual importante entre teorias igualitárias e o liberalismo clássico. Agradeço a um comentário de Raissa Ventura o desenvolvimento dessa ideia.
  • 20
    Cf. Scheffler (2003) sobre os acertos e equívocos dessa interpretação.
  • 21
    Essa seria uma das respostas possíveis à crítica de G. A. Cohen (1991)COHEN, Gerald Allen. 1991. Incentives, Inequality and Community. In: COHEN, Gerald Allen. The Tanner Lectures on Human Values. Stanford: Stanford University, v. 13, pp. 263-329. à exclusão rawlsiana de atributos agenciais, tais como a motivação e o caráter individual do âmbito da justiça.
  • 22
    No original: “to make a people change its ways”.
  • 23
    Duas afinidades importantes, mas que não poderei explorar aqui, dizem respeito ao caráter irredutivelmente relacional das “bases sociais do autorrespeito”, enquanto um bem social primário, e o conceito igualmente relacional de respeito mútuo na justiça rawlsiana. Sobre a primeira dessas afinidades, ver, mais uma vez, Piroli (2022)PIROLI, Diana. 2022. Para além da imagem distributiva-alocativa: uma interpretação relacional da teoria de John Rawls. Voluntas, v. 13, n. 1, pp. 1-33. DOI: 10.5902/2179378667881.
    https://doi.org/10.5902/2179378667881....
    . Procurei articular o conceito de respeito mútuo rawlsiano em uma chave explicitamente relacional em Petroni (2017)PETRONI, Lucas. 2017. A moralidade da igualdade. Tese de Doutorado em Ciência Política. São Paulo: USP..
  • 24
    Nos últimos trabalhos de Rawls, essa tese é restrita à concepção política de pessoa ligada à cidadania democrática. Permanece uma questão em aberto, contudo, se o igualitarismo social deveria, ou não, circunscrevê-la também ao domínio político tal como entendido pela filosofia rawlsiana.
  • 25
    A rigor, Rawls estabelece três interesses de ordem superior, conforme a capacidade para a individualidade (desenvolver uma concepção de bem) é dividida entre o interesse em definir finalidades, isto é, o interesse de expressar uma visão da realidade a partir do meu ponto de vista e a habilidade de elaborar planos de vida racionalmente estruturados (Rawls, 1996RAWLS, John. 1996. Political Liberalism. New York: Columbia University Press., p. 74).
  • 26
    No original: “self-originating sources of valid claims”.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    12 Dez 2022
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2022

Histórico

  • Recebido
    01 Jul 2022
  • Aceito
    15 Set 2022
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