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Lélia Gonzalez, uma teórica crítica do social

Lélia Gonzalez, a critical theoretician of the social

Resumo

A produção teórica de Lélia Gonzalez se insere na tradição ensaística brasileira, rica em produzir interpretações sobre o Brasil e a América Latina. Em que pese a relevância e originalidade do pensamento da autora, ainda são relativamente incipientes os investimentos de pesquisa voltados à teoria social proposta pela pensadora brasileira. Neste artigo, busca-se identificar os fundamentos da teoria social produzida por Lélia Gonzalez, dando especial atenção a seus vínculos com o pensamento sociológico. O intuito é realçar a multidimensionalidade de sua abordagem, que mobiliza e dialoga criticamente com autoras(es) clássicas(os) das ciências sociais, apontando suas limitações em termos heurísticos, e articulando-se com investigações e reflexões que conferem aos conceitos de raça/cor e gênero lugar equiparável ao de classe na interpretação crítica do social.

Palavras-chave:
Teoria; Capitalismo; Raça; Gênero; Classe

Abstract

The theorization of Lélia Gonzalez is part of a Brazilian essayistic tradition, with rich contributions towards the interpretation of Brazil and Latin America. Although she presents a relevant and original thought, research directed at her social theory is still comparably scarce. In this article we evidence the main traits of the social theory produced by Lélia Gonzalez, with special attention to her liaison to sociological thought. Our aim is to highlight a central aspect of this approach, the multidimensionality of her studies, that mobilize and critically dialogue with a number of classic authors from the social sciences, hereby pointing out their limitations in heuristic terms, as well as articulating this point of view with investigations and reflections that award the concepts of race/color and gender a place comparable to that of class in the critical interpretation of the social.

Key-words:
Theory; Capitalism; Race; Gender; Class

“Para as teorias sociais críticas, entender e transformar o mundo social é objeto primário de investigação.”

Patricia HillCollins, 2022COLLINS, Patricia Hill. Bem mais que ideias. A Interseccionalidade como teoria social crítica. São Paulo: Boitempo, 2022.: 17.

Introdução

Ao longo da última década, o pensamento de Lélia Gonzalez (1935-1994) ganhou novo impulso. Sua produção tem sido revisitada, principalmente por autoras(es) das áreas das ciências sociais (Cardoso, 2014CARDOSO, Cláudia Pons. Amefricanizando o feminismo: o pensamento de Lélia Gonzalez. Revista de Estudos Feministas. v. 22, n. 3, p. 965-986, Set.-Dez. 2014. Disponível em: <https://www.scielo.br/j/ref/a/TJMLC74qwb37tnWV9JknbkK/?format=pdf⟨=pt>. Acesso em: 01 Jul. 2022.
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; Rios & Ratts, 2016RIOS, Flavia; RATTS, Alex. A perspectiva interseccional de Lélia Gonzalez. In: CHALHOUB, S.; PINTO, F. M. (Orgs.). Pensadores negros-pensadoras negras do século XIX e XX. Belo Horizonte: Traço Fino, 2016.; Moura & Almeida, 2019MOURA, Dione Oliveira; ALMEIDA, Tânia Mara Campos de. Ancestralidade, interseccionalidade, feminismo afrolatino-americano e outras memórias sobre Lélia Gonzalez. Arquivos do CMD, v. 8, n. 2, p. 27-45, Jul.-Dez. 2019. Disponível em: <https://doi.org/10.26512/cmd.v8i2.31148 >. Acesso em: 01 Jul. 2022.
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; Portela Júnior & Lira, 2022; Klein, 2022KLEIN, Stefan. Articulando o lugar da resistência na Dialética do esclarecimento e em Lélia Gonzalez. Civitas, v. 22, 2022. Disponível em: <https://revistaseletronicas.pucrs.br/ojs/index.php/civitas/article/view/41421/27551>. Acesso em: 31 Jul. 2022.
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), psicanálise (Ambra, 2019AMBRA, Pedro. O lugar e a fala: a psicanálise contra o racismo em Lélia Gonzalez. SIG Revista de Psicanálise. v. 8, n. 1, p. 85-101, Jan.-Jul. 2019. Disponível em: <https://lavrapalavra.com/2020/11/16/o-lugar-e-a-fala-a-psicanalise-contra-o-racismo-em-lelia-gonzalez/>. Acesso em 01 Jul. 2022.
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; 2021), história (Viana, 2010VIANA, Elizabeth do Espírito Santo. Lélia Gonzalez e outras mulheres: Pensamento feminista negro, antirracismo e antissexismo. Revista da ABPN, v. 1, n. 1, p. 52-63, Mar.-Jun. 2010.) e filosofia (Rodrigues & Monteiro, 2020RODRIGUES, Carla; MONTEIRO, Juliana de Moraes. Lélia Gonzalez, uma filósofa amefricana. Ideação, n. 42, p. 94-105, Jul.-Dez. 2020. Disponível em: <http://periodicos.uefs.br/index.php/revistaideacao/article/view/5460/4757>. Acesso em: 01 Jul. 2022.
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). No campo das ciências sociais nota-se que, a despeito do interesse pela vida e obra da autora, as reflexões mais aprofundadas sobre o pensamento de Lélia Gonzalez encerram-se nos debates sobre gênero, raça e estudos decoloniais. Sem desconsiderar a relevância e a centralidade dessas abordagens para o entendimento da produção intelectual da autora brasileira, este artigo versa sobre o modo como Lélia Gonzalez estabeleceu alicerces para uma teoria do social, em particular o modo como ela, influenciada pelo marxismo, operou com a categoria classe para compor sua teoria interseccional, que envolve também as categorias de raça e gênero, visando explicar e, ao mesmo tempo criticar, as complexas estruturas de dominação e exploração no Brasil e na América Latina.

Um desafio fundamental para as e os intelectuais que estudam o desenvolvimento do capitalismo na América Latina é o colonialismo. Com efeito, o lugar geopolítico do continente na economia global adicionou um elemento aos teóricos da região que buscam compreender a configuração e a dinâmica das sociedades capitalistas latino-americanas. Por colonialismo entende-se não apenas a experiência da escravidão atlântica e seus vínculos de dependência com as metrópoles europeias, quando se desenvolveram a moderna relação de exploração de trabalho na ordem liberal competitiva, e ainda as representações, ideologias e formas de controle social que marcariam o sistema escravocrata, e se fazem presentes nos contextos pós-escravistas, isto é, na ordem capitalista (Vergès, 2020VERGÈS, Françoise. Um feminismo decolonial. São Paulo: Ubu, 2020.).

Que tipo de dominação temos em sociedades que passaram por longos processos de escravidão? Como explicar a estrutura social de desigualdades do sistema capitalista no Brasil? O pensamento de Lélia Gonzalez, multifacetado e rigoroso, oferece um conjunto vital de reflexões para essas questões, congregando debates conceituais da filosofia, das ciências sociais, bem como da psicanálise, numa rica articulação que encontra poucos paralelos na produção intelectual brasileira ao longo do século XX. Também por isso, nosso esforço aqui está longe de buscar rotulá-la como aderindo a alguma dessas perspectivas teóricas ou disciplinares: antes, o cerne está em compreender a riqueza por meio da qual ela se apropria de óticas por vezes consideradas díspares, o que lhe confere um ecletismo teórico sem no entanto perder o rigor analítico que justifica plenamente a redescoberta de sua teoria social crítica.

Nesse sentido, nossa investigação acerca do pensamento da autora brasileira consiste em mostrar como suas análises e reflexões são fundamentais para a elaboração de uma teoria social crítica, que, nos termos de Patricia Hill Collins, significa a teoria situada “em um ponto ideal entre a análise crítica e a ação social” (Collins, 2022: 15). Ainda que fortemente dependente de categorias materialistas, especialmente do marxismo, como se verá, a autora fará uso de um conjunto mais amplo de conceitos e fundamentos epistemológicos, a fim de desenhar uma teoria do social com capacidade explicativa para o problema da dominação não apenas de classe, mas também de gênero e racial. O mais importante - e o que a distingue da tradição marxista - é que Lélia não irá buscar no capitalismo a fonte exclusiva para as explicações acerca do binômio dominação-exploração. O raciocínio elaborado pela autora dará pistas para uma teoria complexa do social, que passa a encontrar solo fértil, especialmente, no último quartil do século XX.

O contexto e a metodologia

No tocante à vida da autora, vale sublinhar alguns aspectos de sua trajetória, que permitem maior compreensão sobre o percurso intelectual da pensadora (Ratts & Rios, 2020RATTS, Alex; RIOS, Flavia. Lélia Gonzalez. São Paulo: Summus; Selo Negro, 2020.). De família de origem popular e operária, Gonzalez é filha de um ferroviário negro e de uma dona de casa de origem indígena. Migrante, sua família se estabeleceu no Rio de Janeiro, a capital do Brasil à época, em busca de melhores oportunidades de vida e trabalho. Com trajetória díspar dos demais irmãos, Gonzalez formou-se em boas escolas públicas cariocas e frequentou o prestigioso Colégio Pedro II, instituição pública imperial monopolizada pelos filhos e filhas das classes médias altas e de elite no Brasil. Sua passagem pelo Pedro II foi passaporte para o ensino superior. Formou-se em filosofia, geografia e história na então Universidade Estadual da Guanabara (UEG). Casou-se com um colega da faculdade, de quem herdou o Gonzalez no nome. Com carreira no magistério, Gonzalez seguiu ao longo de sua vida como professora de colégios secundários de elite e do Colégio de Aplicação da UERJ. Sua carreira como docente a tornou professora da PUC/Rio. Quando faleceu, em 1994, era coordenadora do curso de sociologia e política da instituição carioca.

Também cabe enfatizar que, em decorrência dos tipos de contribuições da autora, acabamos por concentrar os nossos esforços em maior medida sobre os textos ensaísticos em que predomina o aprofundamento do debate teórico, sempre iminentemente relacionado à praxis, posto que se trata daquele tipo de teoria que visa explicar o social para transformá-lo. Isso, no entanto, difere de se entender que as formulações de sua teoria social estejam restritas a esses textos: há uma série de intervenções1 1 Sem esgotar a questão, cabe indicar as menções às formas de contribuição na luta antirracista de Chacrinha, de Clementina de Jesus, de Zezé Motta, da Noite da Beleza Negra enquanto “ato de descolonização cultural” em “Beleza negra, ou: Ora-yê-yê-ô!” (Gonzalez, 2020 [1982]: 216), bem como a crítica a exemplos concretos e destacados de embranquecimento, da ausência da temática racial no programa do Partido dos Trabalhadores etc. , por exemplo, que deixam de realizar o debate teórico-conceitual, na medida em que se apropriam desse conjunto de elaborações para interferir no debate público. A distinção, aqui, é feita por nós em virtude do foco deste artigo em particular, enquanto Lélia Gonzalez, por sua vez, mostra uma invejável capacidade de alimentar a teoria de exemplos concretos, evitando enclausurar-se, e faz com que a reflexão teórica sustente essas intervenções. Lélia pode, assim, ser também compreendida enquanto intelectual pública2 2 Deixaremos de aprofundar o debate acerca dessa classificação, mas vale salientar o fato de que, em 1985, a própria Lélia Gonzalez identifica-se como intelectual negra orgânica (Gonzalez, 2020 [1985]c: 311). , atuação essa que se expressa textualmente sobretudo em publicações como a Folha de S. Paulo, jornais da imprensa negra e no jornal Mulherio, dentre outros periódicos.

Como intelectual pública e ativista (Viana, 2006______. Relações raciais, gênero e movimentos sociais: o pensamento de Lélia Gonzalez 1970-1990. Dissertação (Mestrado em História Comparada) - Programa de Pós-Graduação em História Comparada, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro. 2006. Disponível em: <http://objdig.ufrj.br/34/teses/ElizabethDoEspiritoSantoViana.pdf>. Acesso em: 01 Fev. 2022.
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: 51-67), Gonzalez é uma personagem e intérprete da democratização do Brasil. Ela participou de numerosas formas de resistência política ao Regime Militar, por isso foi vigiada pelo Departamento de Ordem Política e Social (Dops); foi fundadora do Movimento Negro Unificado, esteve na formação do Partido dos Trabalhadores (PT) e participou ativamente das eleições de 1982 e 1986. Nesta última eleição, já integrava os quadros do Partido Trabalhista Brasileiro, o PDT. Ela atuou nas mobilizações civis brasileiras contra o apartheid na África do Sul e em defesa da autonomia da Namíbia, fundou a organização Nzinga - Coletivo de Mulheres Negras, em 1983, e participou de inúmeros encontros feministas e de mulheres negras no Brasil e em outras partes do mundo (Bairros, 2000BAIRROS, Luisa. Lembrando Lélia Gonzalez 1935-1994. Afro-Ásia, n. 23, 2000. Disponível em: <https://periodicos.ufba.br/index.php/afroasia/article/view/20990>. Acesso em: 01 Jul. 2022.
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; Barreto, 2005BARRETO, Raquel. Enegrecendo o feminismo ou feminizando a raça - narrativas de libertação em Angela Davis e Lélia Gonzalez. Dissertação (Mestrado em História Social da Cultura) - Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2005. Disponível em: <https://doi.org/10.17771/PUCRio.acad.7183>. Acesso em: 01 Jul. 2022.
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). Gonzalez esteve nas mobilizações pela Constituinte e colaborou ativamente com as comissões parlamentares, entre 1986 e 1988; integrou o Conselho Nacional dos Direitos da Mulher (CNDM), em 1985, e envolveu-se em vários protestos e mobilizações de rua que denunciavam as desigualdades raciais e de gênero no Brasil e no mundo.

No tocante à sua produção intelectual, é preciso observar que, além da docência, a autora exerceu por mais de duas décadas a carreira de tradutora do francês para o português. A maior parte de suas traduções são da área de filosofia e psicanálise. Por isso, é preciso dizer que, em sua formação inicial, a filosofia foi determinante para sua carreira, contudo, ainda na primeira metade dos anos de 1970, a autora se envolveu com a formação do Colégio Freudiano no Rio de Janeiro, em 1975. O diálogo e o trabalho junto, muito particularmente, aos psicanalistas Magno Machado Dias e Betty Millan deram-lhe substrato para traduzir e refletir a partir das categorias lacanianas. Tal texto indica nitidamente que a psicanálise e a filosofia em suas formas puras e disciplinares não renderam ou não apresentaram a Gonzalez instrumentos para pensar uma teoria do social. Tal passo seria dado na medida em que a autora aliaria essa formação em filosofia e psicanálise às ciências sociais. É precisamente na sociologia e na antropologia que Gonzalez encontrará uma comunidade de interlocutores que lhe permitirá dar importantes passos para uma teoria do social (Rios, 2019RIOS, Flavia. Améfrica Ladina: The conceptual legacy of Lélia Gonzalez (1935-1994). Lasa Forum, v. 50, 2019. Disponível em: <https://forum.lasaweb.org/files/vol50-issue3/Dossier-Lelia-Gonzalez-8.pdf>. Acesso em: 01 Jul. 2022.
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).

Ao levar em conta esse pano de fundo, em breves linhas, da trajetória social e intelectual de Lélia Gonzalez, debruçamo-nos sobre o conjunto conhecido de sua obra, lançando mão de ferramentas de localização de termos e expressões que funcionam como chaves para a abertura do universo semântico de sua produção textual. Ao recorrer a essa ferramenta de buscas, observamos:

  • i. a frequência de categorias centrais para o entendimento da teoria social que subjaz ao seu pensamento e, ao mesmo tempo, que é por ela construído;

  • ii. o contexto semântico e a natureza dos problemas enfrentados pela autora em seu trabalho intelectual; e

  • iii. a trajetória do desenvolvimento desses termos no conjunto de sua obra, em particular seu amadurecimento.

Cabe uma nota sobre os termos: inicialmente, partimos de conceitos mais associados às teorias materialistas do pensamento sociológico - especialmente o marxismo - para, em seguida, buscarmos a identificação do modo como esses conceitos eram apropriados pela autora e por qual motivo. Após essa primeira sistematização, buscamos saber a que contextos e natureza de problemas os termos estavam associados. Assim, os termos iniciais para a busca foram: capitalismo, alienação, ideologia, classe, consciência e exploração.

Após essa seleção, utilizamos os mecanismos de busca do PDF dos textos que compõem o livro Por um feminismo afro-latino-americano (2020) para localizar a recorrência e os contextos em que os termos selecionados se fazem presentes. Concluída essa etapa, perguntamo-nos sobre os sentidos e os diálogos que a autora estabeleceu quando operou analiticamente com os conceitos supracitados. A partir de então, passou-se, em diferentes momentos, a compreender quais as formas de uso dos referidos conceitos, ou seja, partindo de uma descrição quantitativa e iniciando uma análise de caráter qualitativo.

Como método de análise de textos, movemo-nos das perguntas para os textos e logo depois dos textos para o conjunto de sua obra, num movimento que alia o zoom à visão panorâmica. Os enquadramentos localizados no texto e nos contextos de produção do texto durante a trajetória da autora foram levados em consideração, bem como o desenvolvimento de seu pensamento ao longo de sua vida acadêmica. Ou seja, com isso evitamos uma interpretação estática do texto, ao mesmo tempo em que nos valemos de procedimentos metodológicos com potencial de inibição de leituras anacrônicas, escapando das leituras do final da obra para o começo e vice-versa.

A crítica do capitalismo a partir da relação entre raça, dependência e cultura

O conceito de capitalismo, em Lélia Gonzalez, está ancorado no pensamento sociológico, destacando-se a influência que recebe de autores como Florestan Fernandes (1920-1995) e José Nun (1936-2021). O foco principal da autora consiste em realçar a necessidade de se atentar às especificidades do contexto dependente, indicando de que maneira elementos identificados por ela na interpretação crítica das análises do capitalismo no Brasil também precisam ser considerados em sua dinâmica mais ampla, como veremos mais à frente. Desse modo, na produção intelectual de Lélia Gonzalez o termo capitalismo aparece qualificando diferentes formas/tipos de capitalismo, isto é, acompanhado dos adjetivos “industrial”, “competitivo”, “monopolista” e “dependente”, caracterizando assim movimentos mais amplos/gerais dessa formação social. Nesse sentido, a autora dialoga com uma ampla literatura, a qual já refletiu acerca das transformações da formação social capitalista ao longo do século XX, sejam os debates acerca das formas de estratificação, como em Nicos Poulantzas (1936-1979), sejam as concepções envolvendo como se articulam, de maneira particular, às suas expressões dependentes. Além do próprio Marx (1818-1883), adquirem lugar relevante em seu olhar as análises do sociólogo cepalino argentino José Nun.

Entendemos que a centralidade do texto de Nun, publicado em língua portuguesa numa coletânea organizada por Luiz Pereira, e que originalmente data de 1969, possa ser em razão de três aspectos particulares: o primeiro é a relação com a concepção de materialismo histórico, pois o autor, ao mesmo tempo em que a retoma, também entende que necessita ser objeto de reflexão crítica; o segundo, derivado do anterior, diz respeito à importância de as categorias estarem fundadas no olhar sobre a realidade empírica, distanciando-se de tomá-las de maneira apriorística; por fim, a incorporação crítica de aspectos da perspectiva de Louis Althusser (1918-1990) decerto também contribui para o reconhecimento assumido no debate de Gonzalez.

O principal achado do texto que ela traz ao debate se expressa por meio da maneira de interpretar os conceitos de superpopulação relativa e de exército industrial de reserva, já presentes em Marx, haja vista que Nun discute criticamente suas distinções e propõe - apoiado em Trotsky - o conceito de massa marginal a fim de compreender o contexto histórico atual. Cabe, assim, destaque ao fato de que as condições interpretadas e analisadas por Marx diferiam em larga medida daquelas observáveis à época em que Nun e, poucos anos depois, Gonzalez estão escrevendo. Se a tendência predominante em meio a diferentes desenvolvimentos é se constatar a existência da superpopulação relativa, os fatores que a produzem diferem historicamente (Nun, 2003: 40-43), portanto, alteram-se também suas capacidades e o papel que exercem para a produção e reprodução da formação social capitalista.

Quando se refere à massa marginal, Nun (2003NUN, José. La teoría de la masa marginal. In: ______. Marginalidad y exclusión social, p. 35-140. Buenos Aires; Ciudad de México: Fondo de Cultura Económica, 2003 [1969].: 87-90ss) indica explicitamente que ela não invalida o conceito do exército industrial de reserva mas, antes, visa qualificá-lo de acordo com o novo contexto histórico que se apresenta. Em relação à apropriação feita por Lélia Gonzalez, salientamos que o autor argentino apenas alude à mediação da raça/cor como fator relevante quando coloca os Estados Unidos (Nun, 2003: 102) como referência empírica principal, ainda assim sem lhe conferir a devida centralidade, com a ênfase restando na imigração e na falta de qualificação de modo geral, sem aprofundar a discrepância que identifica nos dados referentes à população estadunidense. Ao abordar a América Latina esse enfoque se repete.

O que importa para o autor argentino é o fato de essa população ser caracterizada por estar justamente à margem da capacidade de contribuir produtivamente para o capitalismo diante de suas mutações, haja vista as exigências formais que não são atendidas. O que se observa na abordagem de Gonzalez, portanto, é um esforço de conferir concretude a essa reflexão conceitual à luz das especificidades do contexto americano, tomado aqui em sentido literal, dando conta da América como um todo, tal qual ela nos lembra no ensaio “A categoria político-cultural de amefricanidade” (Gonzalez, 2020 [1988a]: 134). Ou seja, em parte, a necessidade de pensar a conceituação do exército industrial de reserva e da massa marginal advém da distinção entre as formas de organização do capitalismo - se competitivo ou monopolista - e, em parte, da composição interna de como se organiza a sua produção.

Em paralelo, desde os seus primeiros escritos sobre o tema, o capitalismo também aparece no esforço de distinguir os efeitos particularmente raciais dessa formação social e econômica que, durante um tempo significativo, foram escanteados no debate sociológico, de todo ausentes ou se fazendo presentes de maneira subordinada a outras variáveis consideradas mais relevantes. Desse modo, Gonzalez (2020______. A mulher negra no Brasil. In: RIOS, Flavia; LIMA, Márcia (Orgs.). Por um feminismo afro-latino-americano afro-latino-americano, p. 158-170. São Paulo, Zahar, 2020 [1995]. [1979b]: 46) refere-se ao “capitalismo branco” e ao que denomina “formações socioeconômicas capitalistas e multirraciais contemporâneas” (Gonzalez, 2020 [1979a]: 35; 2020 [1985a]: 96; 2020 [1981a]: 187). Nesse viés de sua abordagem para o debate específico do Brasil, Gonzalez se ancora teoricamente com atenção especial na perspectiva de Abdias do Nascimento (1914-2011) e, igualmente, de Clóvis Moura (1925-2003), além de dialogar com Frantz Fanon (1925-1961)3 3 Ainda que Fanon apareça explicitamente em apenas três de seus textos - a saber, “Racismo e sexismo na cultura brasileira” (Gonzalez, 2020 [1983a]: 75-93) , “A categoria político-cultural de amefricanidade” (Gonzalez, 2020 [1988a]: 127-138) e “Uma viagem à Martinica I” (Gonzalez, 2020 [1991]) - o pensador martinicano contribui para mobilizar os aportes psicanalíticos, visando expressar a dinâmica da dominação tomando por base a identificação com o dominador. Aprofundar o lugar de Fanon em seu pensamento, dado o arcabouço teórico psicanalítico, extrapolaria o escopo de nosso artigo. . Ao longo de toda a sua obra, apoia-se ainda na parceria que teve com Carlos Hasenbalg (1942-2014) e, igualmente, mobiliza os seus estudos sobre as expressões e os dados das desigualdades raciais - tanto sociais como econômicas - no Brasil.

É fundamental atentar para um dos resultados analíticos que se expressa numa formulação bastante feliz, a saber, a referência aos dividendos do racismo, os quais são recebidos também pela população branca assalariada, isto é, que não faz parte da classe dos capitalistas, e contribui no sentido de adicionar camadas à interpretação crítica da formação social capitalista. Essa expressão aparece em mais de um texto, relacionando-se sobretudo às disputas no mercado de trabalho, em que o conflito precisa, de acordo com Gonzalez, ser compreendido para além do antagonismo trabalho versus capital, conforme discutiremos melhor na última seção de nosso artigo.

Não obstante, o debate mais direto a respeito da relação entre capitalismo e raça, que é perpassado pela abordagem da dependência, merece especial atenção em três textos, a saber: “Cultura, etnicidade e trabalho: efeitos linguísticos e políticos da exploração da mulher” (Gonzalez, 2020______. A mulher negra no Brasil. In: RIOS, Flavia; LIMA, Márcia (Orgs.). Por um feminismo afro-latino-americano afro-latino-americano, p. 158-170. São Paulo, Zahar, 2020 [1995]. [1979a]: 25-44), “A juventude negra brasileira e a questão do desemprego” (Gonzalez, 2020 [1979b]: 45-48) e “A mulher negra na sociedade brasileira: uma abordagem político-econômica” (Gonzalez, 2020 [1979c]: 49-64), sendo que todos articulam, simultaneamente, o trabalho, a etnia/raça e o gênero.

De Nun a Gonzalez há certamente no meio do caminho a contribuição ímpar do argentino Carlos Hasenbalg, parceiro de trabalho e coautor de um livro com Lélia Gonzalez, intitulado Lugar de Negro (2022 [1982]). O sociólogo portenho defendeu a centralidade da raça nas sociedades capitalistas modernas. Diferentemente de autores como Fernando Henrique Cardoso (1931) e até Florestan Fernandes, Hasenbalg deixou mais explícita a relação entre raça e capitalismo do ponto de vista teórico, assim como em termos da demonstração empírica. Sua tese de doutorado, defendida em Berkeley, no final da década de 1970, trouxe contribuições relevantes para pensar a dinâmica da raça no sistema capitalista, a partir da observação da estrutura de classes brasileira. E isso não escapou à leitura atenta de Gonzalez.

As afinidades intelectuais entre Hasenbalg e Gonzalez são notáveis. Esse diálogo acadêmico permitiu à autora amadurecer seu pensamento sobre o lugar da raça no capitalismo, de forma ainda mais refinada, o lugar da raça na estruturação das hierarquias de classe do país. Aliás, a primeira ocorrência do termo classe na obra de Lélia Gonzalez - em “Cultura, etnicidade e trabalho: efeitos linguísticos e políticos da exploração da mulher negra” (Gonzalez, 2020 [1979a]: 25-44) - aparece com o objetivo de explicar a questão racial no pós-abolição brasileiro. Ao compreender que, com a mudança do regime escravista, o sistema econômico estabelecido no país organizava-se em termos de uma estrutura de classes, a autora preocupa-se mais detidamente com dois problemas relativos a essa organização social:

  • i. “a reprodução dos lugares das classes” (Gonzalez, 2020______. A mulher negra no Brasil. In: RIOS, Flavia; LIMA, Márcia (Orgs.). Por um feminismo afro-latino-americano afro-latino-americano, p. 158-170. São Paulo, Zahar, 2020 [1995]. [1979a]: 34); e

  • ii. a “produção dos atores e sua distribuição entre esses lugares” (Gonzalez, 2020______. A mulher negra no Brasil. In: RIOS, Flavia; LIMA, Márcia (Orgs.). Por um feminismo afro-latino-americano afro-latino-americano, p. 158-170. São Paulo, Zahar, 2020 [1995]. [1979a]: 34).

Para essa reflexão, Gonzalez está ancorada em dois sociólogos, a saber: Poulantzas e Hasenbalg.

Gonzalez concorda com Hasenbalg no que toca ao lugar da raça no sistema capitalista. Diferentemente de Florestan Fernandes, que interpretou, em A integração do negro na sociedade de classes (1964FERNANDES, Florestan. A integração do negro na sociedade de classes. São Paulo: Universidade de São Paulo/Anhembi, 1964.), o preconceito racial ou de cor como elemento estruturante da sociedade estamental, sem funcionalidade numa sociedade burguesa com pretensões igualitárias e liberais, Gonzalez ancora-se na tese do sociólogo argentino, para quem a raça é um elemento constitutivo da sociedade de classes e está subordinada à lógica de distribuição dos lugares e dos agentes nessa estrutura social. De forma complementar, alega o autor, com quem Gonzalez tem concordância, o racismo também teria papel ideológico, ou seja, atuaria como campo das representações sociais, as quais informam uma lógica discriminatória desfavorável às pessoas racializadas, no caso estudado, aos negros ou não brancos.

A aposta de Lélia Gonzalez é que o racismo é determinante na formação da estrutura de classes em sociedades multirraciais. Segundo ela,

[...] o racismo - enquanto articulação ideológica e conjunto de práticas - denota sua eficácia estrutural na medida em que estabelece uma divisão racial do trabalho e é compartilhado por todas as formações socioeconômicas capitalistas e multirraciais contemporâneas (Gonzalez, 2020______. A mulher negra no Brasil. In: RIOS, Flavia; LIMA, Márcia (Orgs.). Por um feminismo afro-latino-americano afro-latino-americano, p. 158-170. São Paulo, Zahar, 2020 [1995]. [1979a]: 35).

No excerto evidenciado, é preciso destacar dois aspectos analíticos. O primeiro é que, para a autora, o racismo apresenta eficácia estrutural, ou seja, não se trata de um fenômeno superestrutural, conforme algumas teorias marxistas que abordam o tema racial costumam supor. Para ela, por sua natureza estrutural, o racismo e seus efeitos nas sociedades capitalistas podem ser observados na estratificação social. A autora chega a se referir, diversas vezes, à divisão racial do trabalho: “A juventude negra brasileira e a questão do desemprego” (Gonzalez, 2020______. A mulher negra no Brasil. In: RIOS, Flavia; LIMA, Márcia (Orgs.). Por um feminismo afro-latino-americano afro-latino-americano, p. 158-170. São Paulo, Zahar, 2020 [1995]. [1979b]: 45-48); “A mulher negra na sociedade brasileira: uma abordagem político-econômica” (Gonzalez, 2020 [1979c]: 49-64); “Racismo e sexismo na cultura brasileira” (Gonzalez, 2020 [1983a]: 75-93); “Mulher negra” (Gonzalez, 2020 [1985a]: 94-111); “A questão negra no Brasil” (Gonzalez, 2020 [1981a]: 183-190). Dito de outra forma, a estrutura sócio-ocupacional, ou mesmo as divisões das classes sociais seriam organizadas pela lógica racial da sociedade. As consequências desse argumento vão muito além do pressuposto de que o racismo é funcional ao capitalista para a divisão da classe trabalhadora. Não se trata apenas de afirmar que nessas sociedades capitalistas o racismo impediria a unidade da classe trabalhadora, trata-se antes de assinalar uma consequência ainda mais forte do efeito do racismo no sistema capitalista, qual seja: a sua interdependência.

Uma segunda dimensão relevante do pensamento apresentado nessa passagem refere-se ao lugar da raça como cultura e como práticas sociais. Ou seja, há de se observar a dimensão das representações e das ações. Se o racismo não é apenas ideologia, sua presença nas práticas sociais em sociedades de mercado tem efeitos que precisam ser investigados. Na visão da autora, tais efeitos são exatamente a forma pela qual os indivíduos racializados são alocados no ordenamento econômico.

No esteio desse olhar consegue-se verificar um terceiro eixo relevante que aparece em seus escritos, a saber, a referência à maneira de apropriação da cultura negra pelo capitalismo, destacando essa dinâmica de englobar seus críticos, algo que dificulta, sem impedir, a resistência no âmbito da cultura. Esse olhar pode ser constatado, de maneira mais explícita, em ao menos dois momentos: a menção ao “sistema capitalista” (Gonzalez, 2020______. A mulher negra no Brasil. In: RIOS, Flavia; LIMA, Márcia (Orgs.). Por um feminismo afro-latino-americano afro-latino-americano, p. 158-170. São Paulo, Zahar, 2020 [1995]. [1980]: 286-297), na qual Lélia responde ao questionamento sobre o lugar de movimentos culturais como o Movimento Black Rio, Black São Paulo, instrumentalizados para incrementar a venda de discos ou outros materiais a eles associados. Gonzalez afirma em “A cidadania e a questão étnica”: “Essas criações, essa produção cultural negra é apropriada pelo branco, no sentido de branco, macho mesmo, evidentemente, que tem a ver com o capitalismo” (Gonzalez, 2020 [1986]: 237).

O que se pode observar, portanto, é que, sem abrir mão de incorporar certas categorias do arcabouço teórico legado pela leitura de Marx e dos autores marxistas, Lélia Gonzalez expõe, de diferentes maneiras, as limitações daquele olhar teórico e contribui trazendo novas formulações e pode-se mesmo dizer que seu pensamento permite vislumbrar uma nova matriz analítica. Em particular, ao longo desta seção buscamos reconstruir o alicerce de sua apropriação dos conceitos de classe e de cultura, largamente presentes em diferentes vertentes da teoria social clássica. Gonzalez se pauta por eles a fim de elaborar mais a fundo o tipo de impacto que cabe ao elemento racial, de um lado, e ao lugar de uma formação social dependente, de outro, informando um recorte distinto para lidar com o cerne do capitalismo branco e do racismo estrutural no Brasil. Com isso, traz para o âmago de sua visada crítica o componente racial, ainda que sem solapar os antecedentes da teoria social com os quais trava seu diálogo crítico. Ela movimenta-se, portanto, nos meandros entre os tensionamentos em face do cânone estabelecido versus a construção de uma “nova” teoria crítica, que embora não se assente exclusivamente no marxismo, tem nele um alicerce para sustentar suas reflexões sobre a exploração econômica e sua relação com a dominação e a opressão racial e de gênero, assunto que passaremos a analisar na próxima seção.

Entrelaçamentos entre exploração, dominação e opressão

O problema da exploração é central nos ensaios de Lélia Gonzalez. O conceito está diretamente ancorado tanto no modo de produção escravista como no capitalista e seus efeitos sobre a classe trabalhadora e demais segmentos da população que, nas franjas do sistema capitalista, nem chegam à condição de operário, uma vez que engrossam as fileiras de massas desempregadas e miseráveis, completamente vulneráveis na sociedade, que sequer conseguem ingressar de forma legal e estável no mercado de trabalho assalariado. Todavia, a exploração não constitui um conceito usado para explicar exclusivamente o mecanismo de extração/usurpação econômica de uma classe em detrimento de outra, tal como na tradição ortodoxa do marxismo. Em visão panorâmica, percebe-se que, em seus escritos, Gonzalez se refere diversas vezes à “exploração de classe”, bem como à “exploração sexual”, “exploração racial” ou “exploração das minorias raciais”, ou ainda “exploração capitalista e racial”, relacionando essas formas com os seus respectivos modos de opressão (opressão racial, sexual, de classe etc.). Ou seja, a autora move e expande o conceito de exploração para outros domínios da hierarquização social, não sendo a classe a única categoria analítica referida à dinâmica da exploração no sistema capitalista. Dito de outro modo, é como se autora insistisse, de um lado, na ideia de que na ordem capitalista a exploração não é apenas de natureza econômica, enquanto, de outro, ela sustenta que a exploração é um processo histórico, que se vale de múltiplas hierarquizações para a sua realização, sendo a condição racial e de gênero dois domínios essenciais para a intensidade/aprofundamento da exploração, bem como para a sua legitimação.

No conjunto da produção de Lélia Gonzalez, a exploração “de classe” também é substituída por “exploração econômica”, e se desdobra no uso do termo “superexploração”, apropriado para pensar formas mais intensas de exploração da população. A superexploração está diretamente relacionada à condição de tripla discriminação a que está submetida a classe trabalhadora negra, em particular a mulher negra. Em seu pensamento, as condições materiais e históricas são determinantes para entender a dinâmica da superexploração e os agentes afetados por tal processo. Podemos dizer que, em seu pensamento, a interdependência entre raça, gênero e classes são os determinantes causais da condição de superexploração. Sendo assim, segundo sua linha de raciocínio, o acúmulo dessas determinações sobre as mulheres negras - extensivo também às mulheres indígenas - seria visível na dinâmica da força de trabalho, seja em seu recrutamento, na alocação em postos de trabalho, ou nos rendimentos (no valor relativo dos salários). Das consequências de sua (má) inserção no mercado capitalista tais mulheres viveriam em condições precárias e, em muitos casos, em condições análogas à escravidão. Sendo assim, o ponto chave da superexploração, para Gonzalez, faz-se retratar não apenas nas condições desiguais a que está submetida a classe trabalhadora, mas sobre seus efeitos perversos para além do mundo do trabalho, como as condições de moradia, de vida, além da exploração sexual.

A superexploração em seu pensamento está associada a um processo histórico, que remonta à escravidão, mas que apresenta um ponto de inflexão no pós-abolição4 4 A especificidade do olhar de Lélia Gonzalez sobre o capitalismo também instiga a pensar o modo peculiar como critica a ditadura militar no Brasil. Sem deixar de denunciar a violência policial, o recurso à tortura, as formas de censura, Lélia sempre nos lembra do fato de que, mesmo antes disso, é leviano e incorreto falar-se numa democracia. Esse tema emerge de maneira ainda mais candente nos textos de meados e final da década de 1980, quando a política no Brasil está marcada pelo debate acerca da redemocratização, e Gonzalez repetidamente questiona - como, por exemplo, na sua participação no debate acerca da Constituinte em “Discurso na Constituinte” (Gonzalez, 2020 [1988c]: 244-262) - essa concepção, alertando para o fato de que seria, antes, necessário buscar a democratização do país, uma vez que ela nunca foi efetivamente realizada. . É a partir de 1888 que se dá o processo de marginalização dos negros enquanto classe trabalhadora. Nos termos de Lélia, em “E a trabalhadora negra, cumé que fica?”: “até aquela data [1888] elas e eles haviam sido considerados bons para o trabalho escravo. A partir de então passaram a ser considerados ruins, incapazes para o trabalho livre” (Gonzalez, 2020______. A mulher negra no Brasil. In: RIOS, Flavia; LIMA, Márcia (Orgs.). Por um feminismo afro-latino-americano afro-latino-americano, p. 158-170. São Paulo, Zahar, 2020 [1995]. [1981c]: 218). A autora identifica um processo perverso na construção da modernidade no Brasil testemunhada pela ótica do trabalho. Em outras palavras, a desqualificação e consequente marginalização da força de trabalho negra na ordem capitalista fazem com que esse segmento se apresente em condições estruturalmente desvantajosas no mercado, levando-o não apenas à condição de explorados, por possuírem tão só a mão de obra para vender, como também de superexplorados, posto que já recai sobre essa força de trabalho o desvalor, isto é, a redução do valor do trabalho em razão das crenças de inferioridade racial - o racismo em sua dimensão cultural, ou seja, enquanto valor e representação que justificam e legitimam práticas discriminatórias no mundo do trabalho.

Não sem razão o tema da ideologia ganha destaque em sua obra. Afinal, a autora precisa explicar a dimensão da cultura que interfere de forma estrutural na dinâmica das relações econômicas e sociais. O recurso ao conceito de ideologia aparece sobretudo em duas grandes instâncias: como atributo mais geral, referindo-se à ideologia dominante, e fortemente apoiado no argumento althusseriano dos aparelhos ideológicos do Estado e, de outro, à exaustão, no sentido de se referir à ideologia do branqueamento, do embranquecimento ou da democracia racial, que se espraia por toda a obra de Gonzalez. Importa observar como, na discussão sobre a amefricanidade, a autora em “A categoria político-cultural de amefricanidade” (Gonzalez, 2020 [1988c]: 128) chega mesmo a falar em “véu ideológico do branqueamento” e, na sequência, em “Por um feminismo afro-latino-americano” (Gonzalez, 2020 [1988b]: 144) toma o mito da democracia racial como “dominação ideológica”.

É nítida a predominância de relacionar a ideologia mais diretamente com o racismo, construindo a maneira por meio da qual a ideologia dominante também abarca elementos sexistas e de classe, mas sustentando que a questão de raça/cor precisaria ser considerada de maneira mais estrutural do que vinha sendo, e conjugando as formulações teóricas aos dados empíricos para embasar esse entendimento5 5 De modo algum sugerimos que seja esse o único uso de ideologia em seu olhar, como se pode observar em “Mito feminino na revolução malê”, a menção ao racismo e ao sexismo como duas ideologias (Gonzalez, 2020 [1985c]: 307). . Essa triangulação é, portanto, aspecto marcante de sua teoria social e pode ser identificada ao se perscrutar os textos e reconstruir o debate conceitual. No intuito de ilustrar um pouco melhor esse recorte passaremos, a seguir, a percorrer alguns de seus textos em que a questão da exploração aparece com maior destaque em termos teóricos para, ao final da seção, retomar o argumento geral.

No ensaio “Cultura, etnicidade e trabalho: efeitos linguísticos e políticos da exploração da mulher negra” encontra-se um argumento que retorna em outros momentos, a saber, o debate envolvendo o que Lélia denomina os dividendos do racismo, que apenas pode ser adequadamente compreendido numa chave de exploração em que um dos lados dessa relação acaba por beneficiar-se do mesmo, refinando assim a análise acerca do papel da estratificação social do ponto de vista material sobre as oportunidades.

Nesse momento, se poderia colocar a questão típica do economicismo: tanto brancos quanto negros pobres sofrem os efeitos da exploração capitalista. Mas, na verdade, a opressão racial nos faz constatar que mesmo os brancos sem propriedade dos meios de produção são beneficiários do seu exercício. Claro está que, enquanto o capitalista branco se beneficia diretamente da exploração ou superexploração do negro, a maioria dos brancos recebe seus dividendos do racismo, a partir de sua vantagem competitiva no preenchimento das posições que, na estrutura de classes, implicam as recompensas materiais e simbólicas mais desejadas. Isso significa, em outros termos, que, se pessoas possuidoras dos mesmos recursos (origem de classe e educação, por exemplo), excetuando sua afiliação racial, entram no campo da competição, o resultado desta última será desfavorável aos não brancos (Gonzalez, 2020______. A mulher negra no Brasil. In: RIOS, Flavia; LIMA, Márcia (Orgs.). Por um feminismo afro-latino-americano afro-latino-americano, p. 158-170. São Paulo, Zahar, 2020 [1995]. [1979a]: 35).

Pensar a exploração como acarretando dividendos6 6 A referência aos dividendos do racismo reaparece, por exemplo, em “A juventude negra brasileira e a questão do desemprego” (Gonzalez, 2020 [1979b]: 46) e “A questão negra no Brasil (Gonzalez, 2020 [1981a]: 187). é vital na medida em que confere a esse olhar maior concretude, evitando que se use o termo de maneira genérica, como se houvesse apenas um grupo sendo explorado, sem identificar quem é diretamente responsável por esse processo, bem como quem dele se beneficia, ainda que de maneira indireta. Aliás, esse é outro aspecto relevante de sua abordagem: ao explicitar a origem da exploração e os sujeitos nela envolvidos, contrapõe-se ao tão frequente distanciamento asséptico, que acaba por situar a existência das práticas de dominação e exploração de maneira anônima. Ainda que haja uma formação social que contribua para que as formas de dominação se reproduzam, internamente a ela pode-se identificar diferentes grupos que, por conseguinte, participam distintamente desse processo.

Mais à frente, no mesmo artigo, está a articulação explícita dessa concepção de exploração com o conceito de reificação, porém destacando que, ao trazer diferentes dimensões ao debate, ele ganha em sofisticação quando comparado às formas exclusivamente de classe ou econômicas as quais, sobretudo no momento em que Lélia escreve, marcavam o uso desse conceito.

O processo de exclusão da mulher negra é patenteado, em termos de sociedade brasileira, pelos dois papéis sociais que lhe são atribuídos: “domésticas” ou “mulatas”. O termo “doméstica” abrange uma série de atividades que marcam seu “lugar natural”: empregada doméstica, merendeira na rede escolar, servente nos supermercados, na rede hospitalar etc. Já o termo “mulata” implica a forma mais sofisticada de reificação: ela é nomeada “produto de exportação”, ou seja, objeto a ser consumido pelos turistas e pelos burgueses nacionais. Temos aqui a enganosa oferta de um pseudomercado de trabalho que funciona como um funil e que, em última instância, determina um alto grau de alienação. Esse tipo de exploração sexual da mulher negra se articula a todo um processo de distorção, folclorização e comercialização da cultura negra brasileira. Que se pense no processo de apropriação das escolas de samba por parte da indústria turística, por exemplo, e no quanto isso, além do lucro, se traduz em imagem internacional favorável para a “democracia racial brasileira” (Gonzalez, 2020______. A mulher negra no Brasil. In: RIOS, Flavia; LIMA, Márcia (Orgs.). Por um feminismo afro-latino-americano afro-latino-americano, p. 158-170. São Paulo, Zahar, 2020 [1995].[1979a]: 44; aspas da autora).

O amplo debate envolvendo as diferentes formas de exploração sexual, conforme foi apresentado, percorre uma miríade de textos de Gonzalez. Um aspecto distintivo desse esforço consiste em esmiuçar o quão multifacetado ele é, ou seja, há formas de exploração sexual que se dão numa lógica material, ao mesmo tempo em que outras assumem um caráter mais ideológico, o que se manifesta, por exemplo, em “A mulher negra na sociedade brasileira: uma abordagem político-econômica” (Gonzalez, 2020 [1979c]: 49-64), na referência à iniciação sexual de homens brancos com mulheres negras, seja no contexto do estupro das empregadas domésticas, seja no recurso à prostituição. De maneira semelhante, apropriando-se criticamente do conceito de Marx no intuito de fortalecer sua interpretação acerca do que Gonzalez, mais de uma vez, identificou como racismo cultural, ainda se refere à “‘mais-valia’ cultural e ideológica” (Gonzalez, 2020 [1979b]: 48; aspas da autora). Tal formulação salienta como se combinam o mito da democracia racial e a ideologia do branqueamento, levando a que se aumente o grau de exploração da população negra, em geral, e das mulheres negras, em particular, num processo eivado de articulação entre os elementos culturais e ideológicos que Gonzalez detalha criticamente.

Uma segunda consequência que merece destaque é o efeito do racismo sobre a classe trabalhadora. Nos termos da autora, a crença de inferioridade racial não seria uma mentalidade exclusivamente burguesa. Para Gonzalez, tanto as classes dominantes, como as classes médias e até mesmo a classe trabalhadora branca compartilhariam as mesmas crenças raciais. Nos termos nacionais, a autora entendia que a ideologia racial brasileira - ou seja, o mito da democracia racial - seria o conjunto de valores orientadores de práticas sociais que levava tanto à exploração da população negra como à sua dominação enquanto grupo. Seguindo sua linha de raciocínio, a ideologia racial da nação não seria apenas uma narrativa de dominação de uma classe sobre a outra - da classe burguesa branca sobre a classe operária negra -, mas também constituiria uma forma de dominação intraclasse. Na compreensão de Lélia, um fator de divisão da classe trabalhadora. Em síntese, o fator racial movido no sistema capitalista teria o efeito de gerar mais exploração (dado o seu fator intensificador), ao mesmo tempo em que enfraqueceria a solidariedade intraclasse. Para uma verdadeira consciência de classe, enquanto classe trabalhadora, a autora entendia que seria necessária a superação do racismo, posto que essa era sim uma barreira para a unidade da classe trabalhadora.

O movimento teórico de Lélia Gonzalez leva-nos a perceber um tripé conceitual, o qual pode ser observado a partir da tríade “exploração”, “dominação” e “opressão”, recorrentemente usada de maneira associada, isto é, com a dominação ensejando exploração e vice-versa - conforme observa Gonzalez (2020 [1984]: 302-305), em “O racismo no Brasil é profundamente disfarçado”- , ou as maneiras de exercer dominação se expressando em opressão. Sendo assim, há de se fazer uma breve distinção entre os conceitos de dominação e opressão, tal como aparecem na produção da autora. Ao que tudo indica, o termo dominação refere-se ao tipo de relação que envolve mando e obediência não apenas no mundo do trabalho, mas também em outros espaços da vida, como o ambiente familiar. Ou seja, a dominação em seu pensamento se expressa nas formas de exercer poder, em relações verticalizadas. Sendo que, como já foi dito, a dominação - assim como a exploração - não seria apenas de natureza econômica e, por conseguinte, não seria apenas aferida pela relação entre e intraclasses. A dominação, portanto, seria uma forma de exercer poder que mobilizaria domínios de classe, de raça e de gênero. A hierarquia sexual de uma dada sociedade geraria uma dominação do homem sobre a mulher, assim como uma hierarquia racial geraria a dominação dos brancos sobre os não brancos. Ao se referir ao Brasil e à América Latina, a autora esteve ancorada nos casos das populações racializadas durante o sistema colonial, isto é, das pessoas indígenas e negras. E é sobre essa dimensão de grupo e essa dimensão histórica que incide o termo opressão, na ótica de Gonzalez. A opressão, diferentemente da dominação (que pode ser aplicada à esfera interpessoal), é uma forma de exercer poder de um grupo sobre outro. O termo opressão está associado à dimensão material de usurpação, exploração materiais, mas também se refere a uma espécie de confinamento e até banimento social de segmentos inteiros da sociedade. Nesse sentido, o termo opressão é o que mais tem aderência ao debate do colonialismo, uma vez que se refere a coletividades inteiras, não necessariamente mediadas por clivagens de classe.

Frequentemente, os três termos estão acompanhados, conforme indicado anteriormente, dos qualificativos de classe/econômica, racial e/ou sexual, ou variantes que se ancoram sobre essa conceituação, como a “dominação das mulheres”, a “dominação branca” etc. Gonzalez constrói, portanto, uma relação fundamental entre a dominação e o exercício de exploração e de opressão.

O ponto de observação mais emblemático para a sustentação empírica de sua teoria está não apenas nas condições desiguais a que estão submetidos os trabalhadores negros e brancos no mundo do trabalho, mas, sobretudo, aos espaços em que o vínculo entre o mundo tradicional escravista se relaciona ao mundo capitalista e moderno. Desses espaços, o da casa recebe atenção particular, visto que o trabalho doméstico é a ocupação privilegiada para extrair a dinâmica entre a tríade “exploração”, “dominação” e “opressão”. Dado o tamanho, a extensão e a expressividade do trabalho doméstico no Brasil, e seu caráter majoritariamente negro e feminino7 7 Para uma perspectiva da relevância e da maneira como a articulação entre raça, gênero e trabalho doméstico ainda se mantém na atualidade, tanto do ponto de vista quantitativo como tomando por base aspectos qualitativos, cf. Márcia Lima e Ian Prates (2019) e Joaze Bernardino-Costa (2015). , Lélia Gonzalez desenvolve sua teoria crítica observando os estratos inferiores do sistema ocupacional brasileiro. Tal escolha não se limita ao fato de que boa parte da força de trabalho das mulheres negras concentra-se nesse tipo de ocupação, mas também se justifica pois a hiperexploração desse segmento está em relação direta com o desvalor desse trabalho. A desvalorização do trabalho doméstico se expressaria não apenas nos baixos rendimentos advindos dessa ocupação, mas, sobretudo, em seu caráter imutável, duradouro, dado seu grande potencial de reprodução intergeracional. O fato de mulheres negras herdarem de suas mães, avós e bisavós a mesma profissão marcaria o caráter colonial da exploração na sociedade capitalista. Não sem razão, Gonzalez não enxergava grandes rupturas entre a sociedade de tipo colonial para a sociedade capitalista. Os elos silenciosos entre o colonialismo, o patriarcalismo e o capitalismo poderiam ser observados em diferentes contextos sociais e, de forma ainda mais evidente, nas relações de trabalho, dado o seu poder estruturante nas relações e hierarquizações sociais.

De maneira mais aprofundada, o embate das distintas facetas da exploração das mulheres negras, sob os auspícios das relações de raça/cor e de gênero, estão presentes em “A mulher negra na sociedade brasileira: uma abordagem político-econômica” (Gonzalez, 2020______. A mulher negra no Brasil. In: RIOS, Flavia; LIMA, Márcia (Orgs.). Por um feminismo afro-latino-americano afro-latino-americano, p. 158-170. São Paulo, Zahar, 2020 [1995]. [1979c]: 49-64), em que recorre à exploração em geral, expressa na figura da mulata, bem como ao fato de que há uma forma específica de exploração por parte das mulheres brancas, ao contratarem as mulheres negras para serviços domésticos os quais, em alguns casos, também contemplam um viés sexual. Recorrendo à ideia de superexploração, Gonzalez conclui:

Pelo exposto, talvez se conclua que a mulher negra desempenha um papel altamente negativo na sociedade brasileira dos dias de hoje, dado o tipo de imagem que lhe é atribuído ou dadas as formas de superexploração e alienação a que está submetida” (Gonzalez, 2020______. A mulher negra no Brasil. In: RIOS, Flavia; LIMA, Márcia (Orgs.). Por um feminismo afro-latino-americano afro-latino-americano, p. 158-170. São Paulo, Zahar, 2020 [1995]. [1979c]: 62).

Essa tensão - teórico-conceitual e política - entre as explorações de classe, de cor/raça e de gênero, é uma marca do olhar crítico de Gonzalez e reaparece aprofundadamente no texto “Mulher negra”8 8 Trata-se aqui de texto apresentado em congresso realizado em 1984 nos Estados Unidos. Grande parte da argumentação, em especial a atenção à articulação da exploração sexual com as formas de exploração de classe, a questão da dominação como elemento da exploração, bem como a exemplificação a partir dos estereótipos das mulheres negras, em particular a figura da mulata, reaparece em outros textos, tanto naquele originalmente publicado em coletânea em língua inglesa, em 1995, e traduzido como “A mulher negra no Brasil” (Gonzalez, 2020 [1995]: 158-170), quanto em “Mito feminino na revolução malê” (Gonzalez, 2020 [1985c]: 306-309). , aludindo mesmo às dificuldades encontradas por ela no que diz respeito à organização política, haja vista o embate com o movimento feminista predominantemente branco. Gonzalez identifica, com isso, a miríade de tensões que marca a sociedade e que reverbera para as formas de enfrentamento dessas desigualdades. Contudo, isso nunca leva Gonzalez a abrir mão de buscar algum diálogo com o outro lado, com os diferentes sujeitos envolvidos, tanto no nível teórico, com o recurso a autoras(es) brancas(os) e europeias(eus), quanto no cotidiano de sua atuação política. É um traço que se depreende do entendimento que defende acerca da forma de construir a mudança, na medida em que a necessidade de grupos e movimentos autônomos - como o MNU - não implica estabelecer uma barreira no que diz respeito à construção de alianças e até mesmo ao processo que poderíamos tomar enquanto educativo, de fomentar o antirracismo.

No esteio dessa concepção Gonzalez também constata o papel fundamental de resistência às diferentes opressões que é exercida pelas mulheres negras, e que decorre, ao menos em parte, do lugar privilegiado que, ao passo em que eram escravizadas, ocuparam historicamente em decorrência dessa exploração, e que vem desde a casa-grande no contexto da escravidão e se estende até os tempos recentes. Parece-nos bastante plausível aproximar essa sua reflexão do olhar que Patricia Hill Collins (2016______. Aprendendo com a outsider within. Sociedade e Estado, v. 31, n. 1, p. 99-127, Jan.-Abr. 2016. Disponível em: <https://www.scielo.br/j/se/a/MZ8tzzsGrvmFTKFqr6GLVMn/?format=pdf⟨=pt>. Acesso em: 01 Jul. 2022.
https://www.scielo.br/j/se/a/MZ8tzzsGrvm...
) traz acerca da outsider within. Ainda que se encontre espraiada ao longo de diferentes textos, essa ideia constitui o cerne do argumento de “Mulher negra, essa quilombola” (Gonzalez, 2020 [1981b]: 197-200), que novamente embasa as possibilidades de resistência sobre o fato de que a exploração acaba atingindo de maneira mais incisiva a população negra e, sobretudo, as mulheres negras9 9 Analogamente, a relevância de combater as diferentes formas de esquecimento dos processos de exploração e opressão é expressa na intervenção “A importância da organização da mulher negra no processo de transformação social” (Gonzalez, 2020 [1988d]: 267-270). .

Investigar e refletir acerca das formas de exploração, na teoria social de Lélia Gonzalez, perpassa, portanto, a contínua mediação entre o geral e o particular, entre as referências à exploração, em sentido abrangente, e sua qualificação e expressão em contextos específicos. O debate acerca da amefricanidade - um de seus conceitos mais ricos - também dialoga com esse aspecto: Lélia fala em “exploração sexual da mulher negra” (Gonzalez, 2020 [1988a]: 130) e, mais à frente, situa o papel exercido, durante o processo de colonização, pela naturalização da “exploração socioeconômica dos amefricanos” (Gonzalez, 2020 [1988a]: 135).

É instigante observar a maneira por meio da qual, com o passar do tempo, Lélia foi construindo em certos textos a relação entre a constatação da dominação/exploração e as maneiras de organizar o combate a elas. Tanto no texto, originalmente publicado em língua inglesa, acerca do MNU, “O Movimento Negro Unificado: um novo estágio na mobilização política negra” (Gonzalez, 2020______. A mulher negra no Brasil. In: RIOS, Flavia; LIMA, Márcia (Orgs.). Por um feminismo afro-latino-americano afro-latino-americano, p. 158-170. São Paulo, Zahar, 2020 [1995]. [1985b]: 112-126), quanto no ensaio sobre o feminismo afro-latino-americano, “Por um feminismo afro-latino-americano” (Gonzalez, 2020 [1988b]: 139-150), publicado em espanhol, essa conexão é evidenciada, como pode ser observado a seguir.

A exploração de classe e a discriminação racial constituem as referências básicas da luta comum de homens e mulheres pertencentes a um grupo étnico subordinado. A experiência histórica da escravidão negra, por exemplo, foi terrível e sofridamente vivida por homens e mulheres, sejam crianças, adultos ou idosos (Gonzalez, 2020______. A mulher negra no Brasil. In: RIOS, Flavia; LIMA, Márcia (Orgs.). Por um feminismo afro-latino-americano afro-latino-americano, p. 158-170. São Paulo, Zahar, 2020 [1995]. [1988b]: 147).

Sobrevivência e resistência estão no cerne do pensamento de Lélia Gonzalez. O diagnóstico da formação capitalista e racial, em particular suas complexidades expressas na interdependência das múltiplas formas de dominação, opressão e exploração, vem acompanhado de uma análise fina acerca das formas de transformação social, que passaria certamente pela necessidade da organização política, seja em associações, partidos, movimentos sociais ou outras coletividades políticas e culturais (sem excluir as formas religiosas, como os candomblés, umbandas e demais organizações de terreiro) e nas resistências passivas (construídas historicamente por meios da subjetivação, memória e linguagem). Na excerto acima, é ilustrativo seu esforço de manter a coerência nas categorias analíticas, tanto para o diagnóstico do processo histórico e social da dominação/exploração, como para pensar formas e agências de superação das mesmas sem, no entanto, deixar de mostrar as facetas da escrita engajada. Logo, Gonzalez se contrapõe à parte do tom predominante na teoria sociológica, que frequentemente se ancora na ausência de juízos de valor, equiparando-os à neutralidade das palavras utilizadas.

Cabe destacar, com isso, outro momento bastante distintivo e característico de sua abordagem, a saber, a atenção às contradições que marcam a sociedade brasileira. Lélia Gonzalez abarca tais contradições de maneira mais evidentemente próxima ao arcabouço conceitual marxista, quando se refere, por exemplo, às “contradições estruturais” (Gonzalez, 2020 [1979a]: 28-29) do sistema ou às “contradições internas” (Gonzalez, 2020 [1983b]: 65; 2020 [1983a]: 77; 2020 [1985b]: 115; 2020 [1988b]: 139); do Brasil, fossem elas políticas ou econômicas. Sem, portanto, desconsiderar as contradições de classe, aponta e esmiuça as outras expressões do conjunto de contradições sociais constitutivas dessa formação social10 10 Entre as maneiras de desqualificar a população negra, vale remeter ao apontamento que faz acerca da inferiorização que se caracterizaria pela falta de razão e pelo predomínio da emoção, ao que responde: “Na medida em que o racismo, enquanto discurso, se situa entre os discursos de exclusão, o grupo por ele excluído é tratado como objeto e não como sujeito. Consequentemente é infantilizado, não tem direito a voz própria, é falado por ele. [...] O modo paternalista mais sutil é exatamente aquele que atribui o caráter de ‘discurso emocional’ à verdade contundente da denúncia presente na fala do excluído. Para nós, é importante ressaltar que emoção, subjetividade e outras atribuições dadas ao nosso discurso não implicam uma renúncia à razão, mas ao contrário, são um modo de torná-la mais concreta, mais humana e menos abstrata e/ou metafísica. Trata-se, no nosso caso, de uma outra razão” (Gonzalez, 2020 [1979a]: 43-44). .

Desse modo, a abordagem de Lélia Gonzalez a respeito da temática e dos diferentes elementos que estruturam a exploração, bem como seu entrelaçamento com as formas de dominação e opressão, conferem novas camadas ao se digladiar criticamente com a teoria social canônica e com o contexto empírico ao qual volta o seu olhar. Traz, portanto, corpos e cores para enriquecer o olhar que, conforme dito anteriormente, por vezes aproximava-se de uma leitura distanciada dessas relações, utilizando o termo classe de maneira monocromática e quase reificada.

Considerações finais

A teoria social de Lélia Gonzalez não apenas reconhece os limites das abordagens monocausais como busca superá-las. É notável seu esforço em mostrar a interdependência de fatores causais estruturais na explicação do social, sem que uma explicação ganhe premência em relação às demais. Dito de outro modo, de partida a autora apresenta uma tendência de articular de forma codependente as categorias estruturais de explicação do social.

O seu pensamento de conjunto evidencia um esforço intelectual de mitigar a unicausalidade, de resistir às simplificações teóricas. A multicausalidade em sua teoria social tem consequências relevantes, das quais se pode destacar:

  • i. a articulação entre processos de exploração, de dominação e opressão;

  • ii. a interdependência dos sistema capitalista, patriarcal e colonial.

Nesse sentido, realçamos o fato de que esses processos encontram-se intrinsecamente relacionados em sua abordagem. A associação que Gonzalez coloca entre exploração, dominação e opressão dá conta de explicar o mundo do trabalho, seus impactos para outros âmbitos da vida social, com consequências flagrantes no ordenamento das relações sociais cotidianas. Isso posto, não é possível identificar em seu pensamento a autonomização de uma esfera cultural em relação ao substrato de sua produção material.

Sem dúvidas, a dominação é colocada sob o signo de “dominação ideológica”, de “sistemas de dominação” bem como, ainda, de uma “lógica de dominação”, que explicitamente encontra formas de vínculo com a organização capitalista, sendo, no entanto, irredutível à sobrecarga econômica que marca parte significativa das interpretações em voga à época. Em suma: as formas de dominação são multifacetadas, e a teoria que se pretende crítica precisa acompanhar esse dado da realidade, sem se render a determinismos e, ao mesmo tempo, sem abrir mão de considerar a amplitude de fatores que a compõem e apontar a contribuição de cada um deles.

Cabe observar como, no início do século XX, na Europa, o marxismo foi questionado pela ausência ou lugar subordinado atribuído às mulheres em sua teorização. Assim, intelectuais como Rosa Luxemburgo, Clara Zetkin e Alexandra Kollontai começaram um movimento que, efetivamente, viria a reverberar com mais força apenas décadas depois. Sabe-se, portanto, como o fato de as mulheres explicitamente comporem a força de trabalho, fosse na fábrica, fosse no lar, foi insuficiente para que a produção masculina dominante enxergasse suas contribuições. De maneira análoga, a produção intelectual predominantemente branca silenciou e invisibilizou, durante mais de um século, a articulação das mulheres negras em termos de seu lugar vital para a compreensão das relações de poder.

A perspectiva de Lélia Gonzalez proporciona elementos teóricos que se contrapõem a esse processo de invisibilização, provocando criticamente a teoria social e o campo político no sentido de reverem diversos de seus pressupostos, ao mesmo tempo em que, como intelectual negra, combateu a marginalização dessas reflexões teóricas ao ocupar espaços acadêmicos historicamente brancos e masculinos. Nesse sentido, a autora buscou desenvolver em sua obra o que Collins (2022COLLINS, Patricia Hill. Bem mais que ideias. A Interseccionalidade como teoria social crítica. São Paulo: Boitempo, 2022.: 332) caracteriza como “o pensamento relacional por interdependência”, característica da teoria crítica que se move por meio da teorização interseccional. O nosso esforço com essa leitura imanente consiste em realçar alguns dos principais traços de seu olhar. Busca, portanto, reconhecer sua contribuição, entendendo tratar-se de um legado ainda pouco abordado nos debates da teoria social crítica, no Brasil e alhures. Espera-se que essa retomada ainda permita, no espírito do que a própria autora representa, estimular o confronto crítico com o seu pensamento, de modo que sua visada continue aguçando as contendas teóricas.

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    » http://objdig.ufrj.br/34/teses/ElizabethDoEspiritoSantoViana.pdf
  • 1
    Sem esgotar a questão, cabe indicar as menções às formas de contribuição na luta antirracista de Chacrinha, de Clementina de Jesus, de Zezé Motta, da Noite da Beleza Negra enquanto “ato de descolonização cultural” em “Beleza negra, ou: Ora-yê-yê-ô!” (Gonzalez, 2020 [1982]: 216), bem como a crítica a exemplos concretos e destacados de embranquecimento, da ausência da temática racial no programa do Partido dos Trabalhadores etc.
  • 2
    Deixaremos de aprofundar o debate acerca dessa classificação, mas vale salientar o fato de que, em 1985, a própria Lélia Gonzalez identifica-se como intelectual negra orgânica (Gonzalez, 2020 [1985]c: 311).
  • 3
    Ainda que Fanon apareça explicitamente em apenas três de seus textos - a saber, “Racismo e sexismo na cultura brasileira” (Gonzalez, 2020 [1983a]: 75-93) , “A categoria político-cultural de amefricanidade” (Gonzalez, 2020 [1988a]: 127-138) e “Uma viagem à Martinica I” (Gonzalez, 2020 [1991]) - o pensador martinicano contribui para mobilizar os aportes psicanalíticos, visando expressar a dinâmica da dominação tomando por base a identificação com o dominador. Aprofundar o lugar de Fanon em seu pensamento, dado o arcabouço teórico psicanalítico, extrapolaria o escopo de nosso artigo.
  • 4
    A especificidade do olhar de Lélia Gonzalez sobre o capitalismo também instiga a pensar o modo peculiar como critica a ditadura militar no Brasil. Sem deixar de denunciar a violência policial, o recurso à tortura, as formas de censura, Lélia sempre nos lembra do fato de que, mesmo antes disso, é leviano e incorreto falar-se numa democracia. Esse tema emerge de maneira ainda mais candente nos textos de meados e final da década de 1980, quando a política no Brasil está marcada pelo debate acerca da redemocratização, e Gonzalez repetidamente questiona - como, por exemplo, na sua participação no debate acerca da Constituinte em “Discurso na Constituinte” (Gonzalez, 2020 [1988c]: 244-262) - essa concepção, alertando para o fato de que seria, antes, necessário buscar a democratização do país, uma vez que ela nunca foi efetivamente realizada.
  • 5
    De modo algum sugerimos que seja esse o único uso de ideologia em seu olhar, como se pode observar em “Mito feminino na revolução malê”, a menção ao racismo e ao sexismo como duas ideologias (Gonzalez, 2020 [1985c]: 307).
  • 6
    A referência aos dividendos do racismo reaparece, por exemplo, em “A juventude negra brasileira e a questão do desemprego” (Gonzalez, 2020 [1979b]: 46) e “A questão negra no Brasil (Gonzalez, 2020 [1981a]: 187).
  • 7
    Para uma perspectiva da relevância e da maneira como a articulação entre raça, gênero e trabalho doméstico ainda se mantém na atualidade, tanto do ponto de vista quantitativo como tomando por base aspectos qualitativos, cf. Márcia Lima e Ian Prates (2019) e Joaze Bernardino-Costa (2015).
  • 8
    Trata-se aqui de texto apresentado em congresso realizado em 1984 nos Estados Unidos. Grande parte da argumentação, em especial a atenção à articulação da exploração sexual com as formas de exploração de classe, a questão da dominação como elemento da exploração, bem como a exemplificação a partir dos estereótipos das mulheres negras, em particular a figura da mulata, reaparece em outros textos, tanto naquele originalmente publicado em coletânea em língua inglesa, em 1995, e traduzido como “A mulher negra no Brasil” (Gonzalez, 2020 [1995]: 158-170), quanto em “Mito feminino na revolução malê” (Gonzalez, 2020 [1985c]: 306-309).
  • 9
    Analogamente, a relevância de combater as diferentes formas de esquecimento dos processos de exploração e opressão é expressa na intervenção “A importância da organização da mulher negra no processo de transformação social” (Gonzalez, 2020 [1988d]: 267-270).
  • 10
    Entre as maneiras de desqualificar a população negra, vale remeter ao apontamento que faz acerca da inferiorização que se caracterizaria pela falta de razão e pelo predomínio da emoção, ao que responde: “Na medida em que o racismo, enquanto discurso, se situa entre os discursos de exclusão, o grupo por ele excluído é tratado como objeto e não como sujeito. Consequentemente é infantilizado, não tem direito a voz própria, é falado por ele. [...] O modo paternalista mais sutil é exatamente aquele que atribui o caráter de ‘discurso emocional’ à verdade contundente da denúncia presente na fala do excluído. Para nós, é importante ressaltar que emoção, subjetividade e outras atribuições dadas ao nosso discurso não implicam uma renúncia à razão, mas ao contrário, são um modo de torná-la mais concreta, mais humana e menos abstrata e/ou metafísica. Trata-se, no nosso caso, de uma outra razão” (Gonzalez, 2020 [1979a]: 43-44).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    19 Dez 2022
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2022

Histórico

  • Recebido
    15 Jul 2022
  • Aceito
    09 Ago 2022
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