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Práticas econômicas e classes sociais: uma avaliação empírica e uma proposta analítica

Economic practices and social class: an empirical assessment and an analytical attempt

Resumo

O artigo investiga a interação entre condições e práticas econômicas. Para tanto, mobiliza a metodologia de pesquisa qualitativa, com entrevistas em profundidade contemplando dois grupos: um composto por trabalhadores no comércio informal, outro composto por trabalhadores especialistas e profissionais liberais especializados. Da análise empreendida, delineiam-se cinco eixos importantes para se compreender a articulação entre práticas e condições econômicas: i. a estrutura da renda; ii. o grau de diferenciação interna das práticas econômicas; iii. os tipos de prospecção; iv. os vínculos institucionais; e v. o grau de autonomia decisória com o dinheiro. Os eixos procuram dar conta de como práticas e condições econômicas ensejam uma experiência socialmente desigual com o tempo, mediada pela trajetória de classe.

Palavras-chave:
Condições econômicas; Práticas econômicas; Desigualdade social; Trajetória de classe

Abstract

This article proposes a set of categories in order to understand the interplay between economic conditions and economic practices. Within this framework, the study assesses empirical data based on qualitative interviews. Two different publics were interviewed: one group composed by informal workers and a second group comprising white-collars and specialized self-employed workers. The categorization follows five axes: i. income structure; ii. internal differentiation of economic practices; iii. modes of prospection; iv. institutional rapports; and v. degree of autonomy. As it follows, we understand economic conditions as practical dynamic mediated by a specific social and temporal experience dependent on class trajectory rather than a static state of material conditions.

Keywords:
Economic conditions; Economic practices; Social inequality; Class trajectory

Introdução

N este artigo, investigamos a dinâmica das práticas econômicas em diferentes classes sociais. A construção das categorias que orientam a compreensão das práticas econômicas surgiu justamente da confrontação de entrevistas semiestruturadas (N = 40) com trabalhadores comerciantes informais, profissionais especialistas empregados, funcionários públicos e profissionais liberais. De fato, não se pode negar nuances no interior de cada um desses estratos econômicos. No entanto, a ideia foi buscar por contrastes nítidos quais categorias podem reconduzir a posições de classe.

Um pressuposto central de nosso estudo é aliar a maneira como se formam os arranjos de práticas econômicas a vínculos institucionais, sejam financeiros, patrimoniais ou empregatícios. Assim sendo, as disposições econômicas resultantes de um arranjo de práticas não existem apenas em referência à decisão instrumental de um sujeito racional, mas exibem uma dimensão institucional objetiva. Portanto, o agente econômico não deve ser tomado isoladamente, como dotado de uma consciência instrumental capaz de operar escolhas racionais de maximização do lucro (Granovetter, 1985GRANOVETTER, Mark. Economic action and social structure. American Journal of Sociology, v. 91, n. 3, p. 481-510, 1985.; Bourdieu, 1977______. Algérie 60: structures économiques et structures temporelles. Paris: Les Éditions de Minuit, 1977.; 2000). Segundo a tradição intelectual de Mark Granovetter e Pierre Bourdieu, condições e ações econômicas determinam-se mutuamente, trazendo à luz o “ancoramento” social (social embedness) desta dinâmica (Polanyi, 1979POLANYI, Karl. Ökonomie und Gesellschaft. Frankfurt am Main, DE: Suhrkamp Verlag, 1979.). Em suma, classe, agente e suas práticas são uma constelação relacional de elementos combinatórios. Tencionam-se e aliviam-se, dependendo de circunstâncias contextuais e práticas, de determinações e contingências.

Uma limitação de nossa abordagem, a qual se inspira na sociologia em escala individual (Lahire, 2001______. De la Théorie de l’habitus à une sociologie psychologique. In: ______ (Org.). Le travail sociologique de Pierre Bourdieu: dettes et critiques. 2 ed. Paris: La Découverte, 2001.), pode ser compreendida no caráter sociativo (Simmel, 1992______. Soziologie: untersuchungen über die formen der vergesellschaftung. Frankfurt am Main, DE: Suhrkamp, 1992.) e coletivo que as práticas econômicas podem vir a adquirir, uma vez que, por exemplo, decisões sobre gastos domésticos possam ser feitas em casal, e não individualmente. Ainda que não tenha constituído o foco de nossa pesquisa, não ignoramos que estes elementos podem se tornar cruciais.

Nossa pesquisa também não está em condições de levar a cabo um diagnóstico sobre as características centrais do campo econômico (Bourdieu, 2000BOURDIEU, Pierre. Les structures sociales de l’économie. Paris: Les Éditions du Seuil, 2000.) ou subsistema econômico (Luhmann, 1994LUHMANN, Niklas. Die Wirtschaft der Gesellschaft. Frankfurt am Main : Suhrkamp Verlag, 1994.). Sem dúvida, munidos de uma análise sobre as instituições econômicas, seria possível construir um quadro mais cauteloso a respeito da contingência das situações práticas com as quais se deparam nossos entrevistados. Vale destacar que situações de endividamento, por exemplo, são subconsideradas em nosso estudo, pois, no momento da realização da pesquisa de campo com os pequenos comerciantes informais (2011-2012), o país passava por um momento de crescimento econômico e de aumento na renda das famílias (2003-2013).

Da análise das entrevistas, chegamos a um conjunto de cinco eixos que permitem compreender a formação das práticas econômicas de públicos com trajetórias de classes distintas. São eles:

  • i. estrutura da renda;

  • ii. diferenciação das práticas econômicas;

  • iii. tipo de prospecção;

  • iv. grau e tipo dos vínculos institucionais das práticas econômicas; e

  • v. autonomia decisória.

Essas categorias emergiram paulatinamente da análise das entrevistas.

A partir de uma sociologia em escala individual, entendeu-se que o elo significativo entre as práticas econômicas, os vínculos institucionais e a autonomia decisória não prescinde de uma experiência coletiva com o tempo. Autores como Norbert Elias (1984ELIAS, Norbert. Über die Zeit. Erste Auflage. Frankfurt am Main, DE: Suhrkamp Taschenbuch Verlag, 1984.) e Bourdieu (1977______. Algérie 60: structures économiques et structures temporelles. Paris: Les Éditions de Minuit, 1977.) perceberam como as sociedades modernas passam de uma experiência temporal circular, baseada nos ciclos da natureza, a uma linear, orientada rumo a um futuro abstrato e comandada por uma estrutura simbólica autônoma (basta pensar no ordenamento dos meses, dias, horas etc.). Bourdieu vai ainda além ao propor que as determinações econômicas estruturais impõem, às classes sociais, uma experiência com o tempo, seja ela planejada, racional/instrumental ou estruturalmente determinada pelas condições, resultando em baixa autonomia decisória. O texto intentou justamente retomar as afinidades eletivas entre práticas econômicas e estruturas temporais.

As diferenças mais significativas identificadas na análise empírica se estabelecem entre duas grandes classes sociais. Uma classe trabalhadora do setor informal, na qual predomina um uso sequencial do dinheiro, uma estrutura da renda que une alta variação e baixo volume. Uma classe profissional composta por empregados assalariados e profissionais liberais, na qual observamos a estabilização da estrutura de renda e a tendência à diferenciação entre gastos correntes e ação econômica prospectiva.

O artigo se desdobrará em três seções:

  • i. a delimitação do público perquirido e a caracterização das pesquisas conduzidas;

  • ii. a análise da interação entre práticas e condições econômicas para ambos os públicos, segundo a propositura das cinco categorias; e

  • iii. a elaboração de uma conclusão.

Pesquisa de campo e considerações metodológicas

Utilizamos, neste artigo, informações levantadas em três pesquisas de campo. Na primeira, realizada na cidade de Campina Grande/PB (2011-2012), foram entrevistados trabalhadores comerciantes informais e beneficiários do programa Crediamigo, no contexto de uma pesquisa financiada pela então Secretaria de Assuntos Estratégicos (Visser, 2012VISSER, Ricardo. As estruturas sociais do microcrédito. In: SOUZA, Jessé (Org.). Os batalhadores brasileiros: nova classe média ou nova classe trabalhadora? 2. ed. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2012.)1 1 A pesquisa foi compilada no capítulo de Ricardo Visser, “As estruturas sociais do microcrédito”. (Souza, 2012). . Na segunda, levada a cabo no Rio de Janeiro (2013-2015), foram entrevistados membros das classes profissionais metropolitanas. Na terceira pesquisa, realizada pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), entre os anos de 2015 e 2016, foram conduzidas 630 entrevistas qualitativas com pessoas dos mais diversos estratos socioeconômicos em sete regiões metropolitanas (Natalino & Lopes, 2020NATALINO, Marco Antônio; LOPES, Fernanda. Introdução à edição temática Classes sociais, Estado e desigualdades. In: ______ (Orgs.). Boletim de análise político-institucional, p. 7-17. Brasília: Ipea, 2020.).

Embora elaboradas em períodos e lugares distintos, as três pesquisas de campo partilham de preocupações muito próximas: investigar as trajetórias socioeconômicas de indivíduos, articulada a um conjunto de tópicos diversos como relações familiares, vida escolar e consumo cultural. Do ponto de vista do estudo aqui empreendido, o critério teórico-metodológico, que une as três pesquisas, consiste na investigação das práticas econômicas em conexão com as diferentes esferas da vida dos entrevistados. Na concepção dos roteiros de entrevista nelas empregados, a orientação para a reconstrução de “trajetórias de vida” serve como fio condutor para que o entrevistado possa falar acerca de suas práticas econômicas no contexto mais geral de sua vida cotidiana e, o que é muito importante, articulando-as às condições de existência que, a cada momento ou circunstância, as antecedem.

O levantamento realizado em Campina Grande, entre 2011 e 2012, contou com 20 entrevistas. Naquela ocasião, o objetivo principal da pesquisa era estudar as práticas econômicas de comerciantes informais, beneficiários do programa Crediamigo, promovido pelo Banco do Nordeste, e que tinha como intuito a dinamização da economia local por meio do microcrédito2 2 Oitenta e oito por cento dos beneficiários do programa Crediamigo estavam alocados no setor comércio varejista (Relatório Crediamigo, 2020: 33). . Os comerciantes informais foram entrevistados em seus locais de trabalho: feiras populares nas quais, geralmente, vendiam frutas, legumes, peças de vestuário feminino, serviços de fotocópia etc. A renda média dos trabalhadores entrevistados variava então entre um e dois salários mínimos; e a idade, entre 35 e 65 anos.

O segundo levantamento, realizado entre 2013 e 2015, foi motivado pela busca de um grupo de comparação que contrastasse, em termos de posição e origem de classe, com os comerciantes informais entrevistados em Campina Grande/PB. Optou-se por profissionais especialistas (engenheiros e economistas) empregados em grandes empresas privadas ou em órgãos públicos. Para as opções tomadas nesse levantamento, concorreram também motivos de conveniência. Sem contarmos, àquela altura, com financiamento institucional, a escolha da cidade do Rio de Janeiro como lugar de pesquisa se impôs.

Mais ainda, as entrevistas realizadas em Campina Grande/PB sugeriam que, além do volume, a organização temporal do fluxo da renda era um condicionante fundamental para as práticas econômicas. Assim, para contraste, foram selecionadas posições de classe marcadas por “contratos de serviço”, em que prevalecem a segurança, a estabilidade, assim como perspectivas econômicas futuras (Goldthorpe & Mcknight, 2004GOLDTHORPE, H. John; MCKNIGHT, Abigail. The economic basis of social class. Case paper n. 80). London: Centre for Analysis of Social Exclusion; London School of Economics and Political Science, 2004.). Foram realizadas dez entrevistas em profundidade, com pessoas entre 33 e 65 anos e com renda variando de dez a 15 salários mínimos. Todos os entrevistados tinham ensino superior completo, alguns com pós-graduação.

O terceiro levantamento de dados utilizado é a pesquisa Radiografia do Brasil contemporâneo, conduzida pelo Ipea em sete regiões metropolitanas brasileiras. Detalhes sobre o levantamento podem ser vistos em Marco Antônio Natalino e Fernanda Lopes (2020NATALINO, Marco Antônio; LOPES, Fernanda. Introdução à edição temática Classes sociais, Estado e desigualdades. In: ______ (Orgs.). Boletim de análise político-institucional, p. 7-17. Brasília: Ipea, 2020.). Na presente investigação, a pesquisa de campo serviu à ampliação do escopo dos trabalhadores especialistas estudados. Foram incluídas na análise dez entrevistas, realizadas com professores universitários e profissionais liberais. Aqui também, trata-se de pessoas com entre 33 e 65 anos, com renda acima de oito salários mínimos.

Pode-se dizer que a orientação metodológica geral dessa investigação é a grounded theory (Corbin & Strauss, 1990). Partimos de algumas premissas básicas ancoradas na literatura da sociologia econômica para, mediante o estudo do material empírico, chegarmos à maior especificação teórica de um conjunto de critérios, ou eixos de análise, para o estudo das práticas econômicas. No nível mais operacional, utilizamos técnicas convencionais de análise de conteúdo (Bardin, 2015BARDIN, Laurence. Análise conteúdo. Lisboa: Edições 70, 2015.) visando à categorização das descrições dos entrevistados sobre suas práticas econômicas. As entrevistas foram lidas na íntegra. A partir dessa leitura, foram feitas a seleção das passagens relevantes, sua categorização, assim como as inferências que levaram à construção do quadro analítico proposto como resultado da investigação.

Práticas econômicas e classes sociais

Nesta seção, faz-se uma exposição dos padrões de comportamento econômico encontrados a partir da análise de conteúdo das entrevistas, levando-se em consideração a classe social dos entrevistados. É importante observar que nos orientamos por uma conceituação de classe social neomarxista, que preconiza três dimensões como definidoras de posições de classe: posse de ativos produtivos, nível de especialização da atividade e exercício de autoridade nas relações de emprego (Wright, 1980WRIGHT, Erik Olin. Class and occupation. Theory and Society, v. 9, n. 1, Special Issue on “Work and the Working Class”, p. 177-214, 1980.). Mais especificamente, balizamo-nos pelo sistema de classificação socioeconômica proposto por José Alcides Santos (2005SANTOS, José Alcides. Uma classificação socioeconômica para o Brasil. Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 20 n. 58, p. 27-45, 2005. Disponível em: <https://doi.org/10.1590/S0102-69092005000200002>.
https://doi.org/10.1590/S0102-6909200500...
), a partir de uma adaptação do modelo teórico neomarxista para o contexto brasileiro. Como exposto no Quadro Sinótico I, as classes sociais investigadas nessa pesquisa são os trabalhadores por conta própria, os empregados especialistas, os especialistas autoempregados e os gerentes. A análise do material empírico sugeriu apenas uma adaptação importante no esquema de classificação: a diferenciação dos empregados especialistas entre funcionários públicos e empregados do setor privado. Especialmente a diferença em termos de estabilidade financeira, faz dos empregados especialistas do setor público uma fração de classe com características bastante particulares.

Quadro sinótico
I

Diferentemente de conceituações holísticas de classe social, em que aspectos disposicionais e cognitivos são incorporados à própria definição de localizações de classe (Bourdieu, 1977______. Algérie 60: structures économiques et structures temporelles. Paris: Les Éditions de Minuit, 1977.), adotamos uma separação entre, por um lado, o plano das posições de classe definidas pelo exercício de direitos e poderes sobre recursos economicamente relevantes e, por outro, o plano da formação para as atitudes e das orientações para o comportamento. As contribuições feitas no âmbito de teorias holísticas de classe constituem um referencial teórico fundamental para a análise do material empírico, tendo em vistas a construção de categorias interpretativas dos diferentes padrões de práticas econômicas. Contudo, as disposições, cognições e práticas econômicas não são vistas como dimensões definidoras de posições de classe, mas como plano distinto de formação de ação social. O objeto em estudo consiste em averiguar em que medida esse plano da formação da ação social está correlacionado a posições de classe, definidas a partir dos tipos de ativos elencados no parágrafo anterior.

A partir das entrevistas em profundidade, propomos a construção de categorias interpretativas que possam elucidar a relação dinâmica entre práticas econômicas e posição de classe para o público entrevistado. Começamos com uma exposição da situação dos feirantes entrevistados em Campina Grande/PB. Na sequência, são abordados os entrevistados das classes profissionais, residentes de regiões metropolitanas.

Os feirantes de Campina Grande

Diante do ciclo veloz e do volume dos empréstimos contratados pelo programa Crediamigo, o comércio varejista de diversos itens, como vestuário feminino, brinquedos, frutas etc., torna-se preponderante em relação aos demais setores, posto que o setor de serviços e, sobretudo, a indústria têm um ciclo de valorização do capital mais alongado (maquinário, fábrica etc.), dependentes de investimentos iniciais mais volumosos. Observou-se que, não raro, os entrevistados transitaram por empregos formais e informais, e circulam por diferentes ramos do comércio. Por vezes, associavam este “tino comercial” à herança familiar, dado que a maioria experimentou o trabalho juvenil, a fim de auxiliar na sobrevivência econômica da família de origem3 3 Há distinções internas relevantes na maneira como o trabalho juvenil se faz presente, não incorrendo necessariamente no fracasso escolar ou na condenação aos estratos inferiores da estratificação por renda. Sobre diferentes formas de trabalho juvenil, ver Emerson Rocha (2017). . Há igualmente certa circulação pela zona rural, uma vez que a cidade de Campina Grande está localizada no agreste paraibano. Ademais, há afinidade entre o grau de escolaridade e os conhecimentos necessários para o desempenho do comércio informal, conquanto note-se grande recurso ao improviso e alguma inventividade para lidar com instabilidades. O pequeno comércio informal permite o controle mental da contabilidade, o que, normalmente, ocorria com entrevistados analfabetos. Essa forma de contabilidade se distingue daquela mediada pela linguagem escrita (o “caderninho”), pois se fia exclusivamente na racionalidade prática e na memória viva do comerciante.

Já no grande comércio, a contabilidade sem mediação de linguagem escrita e instrumentos matemáticos mais complexos tornaria o controle das vendas impossível.

Os trabalhadores entrevistados em Campina Grande/PB exibem uma série de características quanto ao arranjo prático e contextual de seu comportamento econômico. No decorrer da pesquisa, verificou-se que a renda daqueles vendedores sofria importante variação mensal e até semanal. Sua situação de precariedade ocorre, em grande parte, pela combinação da alta variação no curto prazo e baixo volume de rendimentos. Eram constantes as narrativas de que o volume de vendas variava muito semanal ou quinzenalmente e que sua renda, apesar de geralmente se manter acima do salário mínimo, oscilava em até 100% de mês para mês.

Outro aspecto observado é a baixa diferenciação no emprego da renda: o uso do dinheiro torna-se normalmente sequencial, uma vez que qualquer despesa tem alto potencial de embargar ou dificultar outra despesa em uma janela temporal estreita. Aqui, os registros de ação com o dinheiro no presente e no futuro próximo permanecem em constante atrito com as possibilidades de agir prospectivamente. Outro aspecto desta situação se deixa entrever na indistinção entre gastos pessoais e orçamento do empreendimento. Destacamos que, como beneficiários do microcrédito, alguns dos entrevistados utilizavam o crédito primeiramente para necessidades pessoais e não no próprio empreendimento, revelando-se ausente a diferenciação entre o orçamento familiar e o da unidade econômica empresarial típica da organização burocrática capitalista (Weber, 1980WEBER, Max. Wirtschaft und Gesellschaft: Grundisse der verstehenden Soziologie besorgt von Johannes Winckelmann. 5. ed., Tübingen, DE: Mohr, 1980.).

No tocante à orientação para o futuro, o público dos pequenos comerciantes exibe predominantemente - embora não exclusivamente - o que se pode denominar de prospecção realista. O uso do capital econômico é dirigido ao atendimento das necessidades do consumo familiar e à expansão marginal do próprio comércio. Ao mesmo tempo, seus investimentos, quando existem, raramente assumem a forma de capitalização financeira e de ativos físicos como equipamentos. Existe uma predisposição manifesta para que a poupança em dinheiro tome forma, mas a prática é intermitente e descontínua. É difícil, contudo, remeter essa intermitência e instabilidade a uma explicação estritamente disposicionalista, já que a própria estrutura da renda dos pequenos comerciantes em questão confere pouca margem para a autonomia decisória.

Os feirantes entrevistados também apresentam particularidades quanto ao tipo de vínculos existentes entre suas práticas econômicas e as instituições. Há, de maneira geral, um baixo grau de institucionalização das práticas, que se circunscreve o mais das vezes à bancarização (uso de serviços bancários básicos, como acesso a uma conta corrente e a serviços de pagamento por cartão) e ao trato com os procedimentos para a contratação do microcrédito. A baixa institucionalização significa, na prática, pouca vinculação dos fluxos monetários a regulamentos e rotinas que ultrapassem as imposições ordinárias das necessidades de consumo da unidade doméstica. A indiferenciação entre orçamento familiar e unidade econômica empresarial se faz destacar aqui novamente, com os aportes de microcrédito pulverizando-se, muitas vezes, no consumo familiar imediato. Mais uma vez, é preciso lembrar que a própria estrutura da renda daqueles trabalhadores (baixo volume e instabilidade) dificulta mormente a planificação das práticas econômicas. Se a estrutura da renda não permite a estabilização das expectativas com relação à reprodução da unidade doméstica, é de se esperar que os recursos do microcrédito sejam capturados para responder a essas carências tão imperativas.

Como já enfatizado, a autonomia decisória, isto é, a margem de liberdade no trato com o dinheiro é baixa pois, os trabalhadores comerciantes se veem na tensão entre despesas fixas e estrutura de sua renda. No entanto, conquanto baixa, essa autonomia é fator ativo e costuma vir à tona acompanhada, de modo semelhante ao já observado alhures por Bourdieu (1979______. La distinction: critique social du jugement. Paris: Les Éditions de Minuit, 1979.; 2000) e Bernard Lahire (2012LAHIRE, Bernard. Tableaux de familles: Heurs et malheurs scolaires en milieux populaires. Paris: Gallimard; Les Éditions du Seuil, 2012.), de hercúleo rigorismo no esforço ascético e no controle de despesas correntes. Este tipo de ascetismo em nada se relaciona com o ascetismo estilizado, passível de observação nos estratos superiores das classes profissionais metropolitanas. Naquele caso, o ascetismo tende a refletir, no fundo, uma estratégia de distinção contra certo exibicionismo, uma vez que visa, em determinados contextos, à oclusão do patrimônio que sinaliza riqueza e pertencimento de classe (Bourdieu, 1979).

Numa perspectiva social psicológica, poder-se-ia mencionar a experiência de um estado nervoso de urgência, dado que as condições econômicas instáveis dificultam o nascimento de um processo decisório minimante autônomo e, em certo sentido, “racional” com o capital econômico. Do mesmo modo como, para Simmel (1899______. Über Geiz, Verschwendung und Armut. Ethische Kultur, n. 7. Caderno 42 (21.10), p. 332-335, Caderno 43 (28.10) p. 340-341, 1899.: 3), o significado social e cultural da riqueza na modernidade se relaciona, em relação ao senso prático do agente, ao sentimento de poder (Machtgefühl) na dinâmica entre expectativas e possibilidades de realização, o significado social da pobreza incorre numa dissimetria conflituosa e nervosa entre os dois fatores. Nesse caso, a pobreza de uma classe social não condiciona meramente recursos materiais, mas a qualidade do processo decisório com o capital econômico, isto é, talha condições sociais de possibilidade para a ação e para as escolhas referentes ao dinheiro no tempo.

Não por acaso, o sentimento de poder do rico está relacionado à calma para dispor, decidir sem pressões externas e se relacionar com o futuro no longo prazo. Segundo a ótica simmeliana, o rico é calmo porque se antecipa no tempo social. Por fim, importa comentar que esta experiência nervosa, trazida pela urgência temporalmente indomada, apresenta certo grau de independência com relação a flutuações na renda: certo acréscimo na renda não incorre automaticamente em condições sociais de possibilidade para a ação autônoma com o capital econômico.

As classes profissionais das metrópoles

Nos primeiros passos da pesquisa com os membros de classes profissionais, dois fatores saltaram aos olhos: a estrutura da renda exibe alto volume e baixo grau de variação (assalariamento por contratos) e considerável controle decisivo no tocante a estratégias de ascensão dentro da organização, assim como estratégias ligadas à qualificação (mestrado profissional, MBA etc.). Em seguida, um terceiro fator mostrou-se muito distinto do arranjo prático observado nos trabalhadores comerciantes informais: além de as práticas relacionadas à poupança e ao investimento tomarem um contorno financeiro (aplicações financeiras e aquisição de patrimônio em localizações nobres, tendo em vista o retorno de médio e de longo prazo), estas geralmente se estabilizam em relação aos gastos fixos e às despesas correntes. A estabilização das despesas correntes diante da estrutura da renda inaugura a possibilidade de um controle temporal robusto e estratégico do agir com o dinheiro.

Em contraste com os trabalhadores comerciantes, os membros das classes profissionais são assalariados, excluindo de sua alçada o controle direto das organizações nas quais trabalham. É preciso destacar que dois dos entrevistados principais recebem bônus e opções podendo ser ou não de empresas para as quais trabalharam ou atualmente trabalham. Aqui, também há a dimensão da disseminação dos cursos, informações e conteúdos sobre educação financeira, incorrendo na financeirização dos estilos de vida. Novas relações empregatícias também estimulam a percepção de si enquanto trabalhador/investidor autônomo, como a contratação como pessoa jurídica (PJ) ou como consultor.

Os entrevistados partilham de condições econômicas e laborais que estimulam a percepção financeira do investimento4 4 Muito embora imprecisa do ponto de vista econômico, utilizamos a palavra investimento em função de ela aparecer nas respostas dos entrevistados. A rigor, investimento financeiro diz respeito ao capital que se valoriza no ciclo produtivo, enquanto a aplicação financeira remete à valorização do capital econômico em função de dívida financeira, como aplicações no tesouro direto (Dowbor, 2017). . Essa prática é mais usual entre os economistas entrevistados, contando com a incorporação de um conhecimento perito. Não se pode deixar de notar que tais especialistas entrevistados tendem a projetar sua visão econômica de mundo para outras áreas da vida (Bourdieu, 2000BOURDIEU, Pierre. Les structures sociales de l’économie. Paris: Les Éditions du Seuil, 2000.). De maneira geral, há relativa independência entre a ação com o dinheiro orientada ao futuro longínquo e a ação calcada no presente ou no futuro próximo. Em termos mais teóricos, existe diferenciação articulada entre dois tempos de referência para as práticas econômicas.

Ao adotar o esquema de classificação proposto por José Alcides Santos (2005SANTOS, José Alcides. Uma classificação socioeconômica para o Brasil. Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 20 n. 58, p. 27-45, 2005. Disponível em: <https://doi.org/10.1590/S0102-69092005000200002>.
https://doi.org/10.1590/S0102-6909200500...
), são três as classes profissionais abrangidas nessa pesquisa:

  • i. uma classe de gerentes, assalariados em grandes empresas;

  • ii. uma classe de empregados especialistas, composta por docentes universitários, assalariados do funcionalismo público; e, finalmente,

  • iii. uma classe de especialistas autoempregados, composta por profissionais liberais e por consultores.

Entre essas classes, há diferenças relevantes no tocante à estrutura da renda. Pode-se dizer que o estrato com renda mais estável é aquele composto pelos empregados pelo regime do funcionarismo público, seguido pelos gerentes assalariados de grandes empresas, cuja estabilidade é média e depende de ciclos econômicos e de planos de carreira. Os fluxos de renda menos estáveis são os dos profissionais liberais. Os gerentes e os especialistas autoempregados pendem ao trabalho por projetos (Boltanski & Chiapello, 2005BOLTANSKI, Luc; CHIAPELLO, Ève. The new spirit of capitalism. 2. ed. New York: Verso, 2005.; Sennett 2008SENNETT, Richard. A corrosão do caráter: consequências pessoais do trabalho no novo capitalismo. 13. ed. Rio de Janeiro: Record, 2008.), sendo que os assalariados de grandes empresas, particularmente, distinguem entre carreira e emprego atual, ou seja, seus planos futuros de ascensão envolvem sistematicamente uma expectativa de substituição de vínculos profissionais.

Entre os profissionais liberais, a instabilidade da renda se torna, não raro, compensada pelo maior volume, que lhes permite uma alçada temporal mais alongada em relação à urgência estrutural imposta pelos gastos fixos. Normalmente, os consultores entrevistados demoram a receber vencimentos e são dependentes da oferta de projetos relacionados à sua clientela. Tal instabilidade, contudo, tende a ser domada na medida em que o capital social adquirido seja resistente a choques, como os eventuais reposicionamentos da clientela, que podem ser bastante drásticos, por exemplo, em certas mudanças de governo, pelo menos para aqueles que vendem consultorias para órgãos públicos ou para o terceiro setor.

No tocante aos funcionários públicos - dentre eles professores do ensino universitário com dedicação exclusiva -, observa-se que a ausência de práticas financeiras prospectivas é compensada pela estrutura da renda garantida (Fromm,1999FROMM, Erich. Psychologische Aspekte zur Frage eines garantierten Einkommens für alle. In: THEOBALD, R. (Org.). Gestamtausgabe in zwölf Bänden. München, DE: Deutsche Verlags-Anstalt; Deutscher Taschenbuch Verlag, 1999.), que une alto volume a baixíssima variação. É comum entre os professores entrevistados uma narrativa tanto de resistência como de despreocupação com práticas financeiras relacionadas a aplicações e acumulação de patrimônio rentável. Em contraste, sua autonomia com o capital econômico parece estar direcionada, de modo mais contundente, a formas estilizadas e cultivadas de consumo, como viagens e bens culturais.

No que tange à diferenciação interna dos domínios práticos do comportamento econômico, as classes profissionais se distinguem, como um todo, dos pequenos comerciantes informais. É incomum, entre os entrevistados, relatos de dificuldades financeiras preocupantes. No geral, o mais importante é que, em sua narrativa, observa-se a relativa independência das práticas econômicas prospectivas em relação às despesas fixas. Em suas entrevistas, tensões relacionadas à dinâmica sequencial de despesas fixas praticamente desaparecem, a não ser quando se trata de formas de consumo de maior vulto, como viagens mais custosas e bens de consumo de maior porte, como carros ou imóveis. Neste particular, há geralmente algum planejamento, com a despesa, muitas vezes, sendo acompanhada de uma poupança prévia, a ela direcionada.

Mesmo quando não há o desenvolvimento de um comportamento de poupança ou aplicação financeira sistemática, verifica-se que sua ausência não advém de conflitos entre a estrutura da renda e as despesas fixas da vida urbana, como para os trabalhadores comerciantes informais. As tensões entre a estrutura da renda e os gastos fixos não ganham contornos problemáticos, o que proporciona à classe média perquirida alguma independência entre esses domínios práticos. Esta característica encontra-se nas três classes profissionais. Nas entrevistas, isso se expressou como a capacidade de destacar o uso corrente do prospectivo. A independência relativa de tais domínios práticos também alivia o caráter tenso e rigorista do trato com o dinheiro. Dessa maneira, torna-se possível agir com o dinheiro de forma distribuída, quer dizer, o direcionando a diferentes tipos de uso e, portanto, de sentido.

Não ao acaso, Mercedes Krause (2016KRAUSE, Mercedes. La temporalidad del dinero: un mecanismo de reproducción sociocultural de las desigualdades sociales. Revista Civitas, v. 16, n. 2, p. 306-322, Abr.-Jun. 2016.) faz uma observação análoga sobre despesas fixas envolvendo educação e saúde, as quais passariam, em contextos de classe média estabelecida, a serem percebidas como “investimento”. Isso ocorre em função da perda do caráter emergencial na utilização do dinheiro, cujo fundamento repousa sobre o atrito entre estrutura precária da renda e despesas fixas. Pode-se indagar, assim como percebeu Marie-France Garcia-Parpet (Klüger & Krohn, 2019KLÜGER, Elisa; KROHN, Lilian. Por uma sociologia da economia de cunho etnográfico e histórico: entrevista com Marie France Garcia-Parpet. Tempo Social, Revista de Sociologia da USP, v. 31, n. 2, p. 263-278, 2019.: 273), se os agentes entram no “mercado” com capacidades desiguais de racionalização e projeção de suas práticas.

É comum às classes profissionais a prática de aplicações financeiras, a partir da secção mensal de uma parcela do salário destinada a tais aplicações (produtos financeiros diversos, previdência privada etc.). Especialmente entre gerentes e especialistas autoempregados, tais aplicações podem diversificar-se, mas é mais comum que assumam o caráter de aplicações de baixo risco. A relação com o dinheiro no tempo parece refletir, no âmbito da orientação subjetiva para o comportamento econômico, a estrutura objetiva da renda. A combinação entre baixa variação e alto volume torna tangível um futuro como projeto de afiliação social de longo prazo, sobretudo, porque essa estrutura de renda está assegurada por vínculos institucionais: contratos regulados, direitos trabalhistas e sociais (Castel, 1998CASTEL, Robert. As metamorfoses da questão social: uma crônica do salário. Petrópolis, RJ: Vozes, 1998.). Mesmo a despreocupação em se providenciar uma retaguarda financeira, observada com alguma frequência entre os empregados especialistas do serviço público, parece ocorrer em razão da estabilidade da renda (ou melhor, da confiança nessa estabilidade, que constitui, em última análise, confiança em uma ordem institucional) e de um tipo de estilização da vida.

No concernente aos vínculos institucionais, os membros das classes profissionais prezam pelo acesso a serviços e direitos institucionalizados. Muito embora não disponham da grande propriedade ou de patrimônio produtivo, experimentam um elo mais forte entre instituições e suas práticas econômicas, se comparados aos trabalhadores comerciantes informais. Primeiramente, suas relações profissionais são mediadas por contratos regulados. Ademais, podem vir, no caso de altos assalariados das grandes empresas, a ganhar bônus salariais ou participações em lucros que fazem a renda variar, mas em função de acréscimos, eventuais ou recorrentes.

O fato de as práticas econômicas das classes profissionais estarem mediadas por instituições de forma mais robusta torna a comparação com os pequenos comerciantes menos dependente de argumentos disposicionalistas. A fundamental diferença é que, para as primeiras, as práticas econômicas são mediadas por organizações e, de maneira mais geral, por ambientes institucionais balizados pela racionalidade procedimental. Assim, se patrimônios rentáveis, contratos regulados e aplicações financeiras são os três pilares da prospecção econômica das classes profissionais, isso não se pode explicar meramente por um conjunto de disposições para o comportamento econômico racional de longo prazo, mas, antes, pela posição social que postula para as práticas econômicas, um escopo possível de vínculos institucionais. O que se propõe aqui não é descartar completamente o argumento disposicionalista, mas salientar que o comportamento econômico orientado para o longo prazo pode efetivar-se mesmo a partir de disposições fracas para o pensamento prospectivo, em virtude dos vínculos sociais e das mediações institucionais.

Por fim, no tocante à autonomia decisória, as classes médias profissionais exibem maior margem de ação, posto que emancipadas da tensão constante entre gastos fixos e estrutura da renda. Em suma, a autonomia econômica manifesta, do ponto de vista do agente que faz suas escolhas em matéria de economia, a diferenciação interna entre dois tempos de referência para as práticas econômicas:

  • i. as despesas correntes, com o ontem, o hoje e o amanhã do tempo presente; e

  • ii. as inversões prospectivas, com o ontem, o hoje e o amanhã do tempo futuro.

Cinco eixos para a análise das práticas econômicas

Nesta seção, é apresentado o conjunto de eixos teóricos construídos a partir da análise de conteúdo cujos resultados principais foram sintetizados na seção anterior. Na sequência, nesta mesma seção, dois quadros sinóticos apresentam a caracterização das práticas econômicas mais comuns aos membros de cada classe social considerada, em termos desses cinco eixos propostos.

  1. Estrutura da renda: tematiza o nível da renda de maneira dinâmica, visando às implicações sobre as práticas econômicas. Isso é feito a partir da consideração simultânea de dois critérios: o volume e a variação da renda num certo prazo de referência. O prazo regular para a consideração da variação no fluxo de renda pode variar de contexto para contexto (semanal, mensal etc.). Inicialmente, pode-se considerar que, para as comparações das práticas econômicas entre grupos (entre diferentes classes sociais, por exemplo), deve-se adotar o mesmo prazo para todos os grupos, sob o argumento de compará-los a partir de um mesmo critério. Contudo, esse não é necessariamente o caso. O ciclo da atividade dos feirantes, por exemplo, pode impor que o mais plausível seja considerar o fluxo da renda semanalmente. No caso de um consultor, por outro lado, pode ser que a periodização adequada seja anual. Essa diferença entre prazos de referência em nada atrapalha a comparação, até porque a estabilidade ou a segurança da renda podem - na verdade, devem - ser aferidas considerando justamente o ciclo de rendimento imposto pela respectiva posição de classe. Tais diferenças de ciclo constituem, aliás, um importante dado comparativo ao se considerar a articulação entre práticas econômicas e posição de classe.

  2. Diferenciação de domínios práticos: tematiza em qual extensão os agentes diferenciam domínios de ordenação de estoques, receitas e despesas. No caso de empregadores e de autoempregados, uma das principais diferenciações em jogo é aquela entre unidade doméstica e unidade do empreendimento. Entre trabalhadores empregados, pode-se pensar na diferenciação entre fração da renda (salários e bonificações) para despesas fixas e correntes e fração da renda para poupança. Não há razão para (e nem é possível) especificar a priori todas as formas concebíveis de diferenciação entre domínios. Note-se, finalmente, que essa ordenação horizontal entre domínios de uso do dinheiro tem repercussões verticais ao longo do tempo. A indiferenciação entre domínios favorece o desembolso estritamente sequencial da renda, com o que se quer designar o fato de uma despesa arbitrada em um momento forçar necessariamente um desembolso específico em outro momento. Quando há diferenciação entre domínios, há maior chance de algumas despesas serem distribuídas simultaneamente entre diferentes ordenações de estoques, receitas e despesas. Talvez, o exemplo mais trivial dessa última situação seja aquele do profissional empregado que, por meio da diferenciação de uma fração do salário para a poupança, consegue atender uma demanda emergencial sem comprometer as despesas correntes.

  3. Tipo de prospecção: referência à ordenação temporal das práticas econômicas. Como já dito, a diferenciação entre domínios práticos também apresenta implicações temporais. Este eixo, contudo, trata especificamente da existência ou não do futuro como um segundo tempo de referência para as práticas econômicas. Distingue-se, por um lado, a prospecção que tem como referência o tempo presente, o que inclui também o futuro do tempo presente. Trata-se, por exemplo, da perspectiva de adquirir novos bens de consumo ou do melhoramento apenas incremental de algum ativo (manutenção de maquinário, pequenas benfeitorias em instalações etc.). Por outro lado, há a prospecção que tem como referência o tempo futuro, o que inclui também o passado do tempo futuro5 5 Nossa diferenciação entre tempos de referência se inspira naquela feita por Reinhart Koselleck (2018), mas não mantém uma relação direta com a discussão do autor. . No passado do tempo futuro encontra-se o “aqui e agora”, para o qual a experiência lança um olhar de objetivação desde aquele ponto de referência. Na prospecção referenciada no tempo futuro estão em jogo práticas econômicas que procedem com essa objetivação do momento presente (produtos financeiros de maior custo, previdência privada, contratação de seguros etc.). Obviamente, para alguns públicos, os dois tipos de prospecção podem coexistir.

  4. Institucionalização das práticas: evidencia o grau e a qualidade dos vínculos entre práticas econômicas e instituições. Esta dimensão se faz saliente na reflexão acerca dos processos de objetivação do comportamento econômico. É a partir dela que se considera a possibilidade de que padrões de comportamento prático em matéria econômica estejam ancorados em contextos e vínculos institucionais. Essa compreensão permite diferenciar e relacionar disposições econômicas e contextos de atualização, e previne o analista de atribuir antecipadamente as práticas econômicas a uma explicação demasiadamente internalista, seja em termos de disposições, seja em termos de escolhas racionais.

  5. Autonomia decisória: tematiza o modo pelo qual as condições econômicas se revertem em um contexto e possibilidades/restrições para decisões com o capital econômico. Por meio da dinâmica da estrutura da renda e dos gastos fixos, pode-se chegar a analisar de que modo o agente dispõe de um contexto mais ou menos aberto ou fechado para agir com o capital econômico. A principal repercussão subjetiva das díades abertura/fechamento e possibilidades/restrições é o duo relaxamento/tensão.

Encerramos essa seção com os quadros sinóticos II e III, onde são feitas as caracterizações das práticas econômicas comuns aos membros de cada classe considerada neste estudo, em termos dos cinco eixos teóricos que acabamos de expor.

Quadro sinótico
II
Quadro sinótico
III

Conclusão

A análise de conteúdo das entrevistas, cujos principais resultados substantivos foram expostos na seção anterior, levou à construção de um quadro teórico para o estudo das práticas econômicas. Trata-se de cinco eixos aptos a cumprirem - advogamos aqui - dois papéis relevantes em pesquisas qualitativas sobre as práticas econômicas das pessoas, tendo em vista a posição que elas ocupam na distribuição de direitos e de poderes sobre recursos econômicos relevantes.

O primeiro papel é o de categorias sensibilizadoras na coleta e no trato com o material empírico, seja este composto por transcrições de entrevistas, como no presente caso, por anotações e observações diretas ou, ainda, por uma combinação desses elementos. Na medida em que esse texto tenha sido feliz na escolha das premissas teóricas mais gerais expostas na introdução, os cinco eixos aqui propostos chamam atenção para as características mais relevantes das práticas econômicas.

Em termos operacionais, o papel de categorias sensibilizadoras se desdobra em três possibilidades de aplicação operacional:

  • i. orientação para a construção de protocolos e roteiros de entrevista;

  • ii. orientação para a construção de protocolos de observação de campo; e

  • iii. referência para a construção de um primeiro quadro de categorias para análises de conteúdo em pesquisas sobre o tema.

O segundo papel que pode ser cumprido pelo quadro conceitual aqui proposto abrange mais o aspecto teórico-constitutivo. A estrutura da renda, a diferenciação de domínios práticos, a diferenciação temporal, a institucionalização das práticas e a autonomia decisória são conceitos adequados para generalizações de médio alcance em pesquisas sobre práticas econômicas. Elas se articulam com discussões teóricas e metateóricas de amplo alcance, como a dualidade entre ação e estrutura, as assimetrias em processos de modernização e de diferenciação social etc. Ao mesmo tempo, elas se voltam para a caracterização das práticas econômicas de modo que permita a comparação entre diferentes contextos e situações investigadas, quer no espaço, quer ao longo do tempo.

Além das consequências metateóricas, as categorias podem auxiliar na elaboração de políticas públicas, sobretudo para os trabalhadores do comércio informal. Enquanto instrumentos de pesquisa, permitem romper com uma concepção ingênua do comportamento econômico dos mais pobres em pelo menos duas dimensões:

  • i. a primeira encontra-se no eixo da estrutura da renda: não apenas o volume baixo da renda é o que provoca a condição de incerteza econômica, mas sua combinação com um grau considerável de instabilidade;

  • ii. em seguida, a ideia de que a dinâmica entre práticas e condições econômicas, ilustradas nos cinco eixos, ensejam um experiência social com o tempo, a qual possui consequências nas possibilidades de planejamento durável da vida e nas precondições da constituição da autonomia decisória com a renda, orientada para o futuro em longo prazo.

Aproveitamos a conclusão para extrair uma importante limitação dos resultados dessa pesquisa. Conquanto a dinâmica entre práticas e condições econômicas - e seus impactos sobre a experiência temporal - não possa ser considerada um fator unificador das práticas sociais, cremos que esta dimensão condiciona modos de experiência e processos de socialização em outros campos e esferas de valor. O modo como uma experiência econômica, especialmente em função de seus impactos sobre a orientação temporal, condiciona a trajetória familiar, educacional, profissional e cultural dos trabalhadores informais não pôde, contudo, ser aqui contemplado. A investigação sobre essa influência multidirecional, assim como dos mecanismos que a medeiam, constitui interessante objeto para pesquisas futuras.

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  • 1
    A pesquisa foi compilada no capítulo de Ricardo Visser, “As estruturas sociais do microcrédito”. (Souza, 2012).
  • 2
    Oitenta e oito por cento dos beneficiários do programa Crediamigo estavam alocados no setor comércio varejista (Relatório Crediamigo, 2020: 33).
  • 3
    Há distinções internas relevantes na maneira como o trabalho juvenil se faz presente, não incorrendo necessariamente no fracasso escolar ou na condenação aos estratos inferiores da estratificação por renda. Sobre diferentes formas de trabalho juvenil, ver Emerson Rocha (2017).
  • 4
    Muito embora imprecisa do ponto de vista econômico, utilizamos a palavra investimento em função de ela aparecer nas respostas dos entrevistados. A rigor, investimento financeiro diz respeito ao capital que se valoriza no ciclo produtivo, enquanto a aplicação financeira remete à valorização do capital econômico em função de dívida financeira, como aplicações no tesouro direto (Dowbor, 2017).
  • 5
    Nossa diferenciação entre tempos de referência se inspira naquela feita por Reinhart Koselleck (2018), mas não mantém uma relação direta com a discussão do autor.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    19 Dez 2022
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2022

Histórico

  • Recebido
    19 Jan 2022
  • Aceito
    26 Ago 2022
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