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Uma pós-sociologia para a sociedade-do-tempo-presente

CAILLÉ, Alain; VANDENBERGHE, Frédéric. Por uma nova sociologia clássica: re-unindo teoria social, filosofia moral e os Studies. Petrópolis, RJ: Vozes, 2021

"Com sua crescente profissionalização a sociologia corre o risco de tornar-se irrelevante" (Caillé & Vandenberghe, 2021: 11). Entre algumas constatações acerca da atual situação da sociologia como disciplina, essa talvez seja a que mais bem aglutine a força motriz do desenvolvimento do programa de Alain Caillé e Frédéric Vandenberghe apresentado no livro Por uma nova sociologia clássica: re-unindo teoria social, filosofia moral e os Studies, agora traduzido ao português pela Vozes. Se aquela constatação - e eventualmente o título do livro - pode sugerir ao leitor que os autores pretendem fazer alguma espécie de defesa escolástica da disciplina, como se o modelo para a sua relevância estivesse num passado longínquo, não nos enganemos acerca da preocupação derradeira deles: não se trata de declarar-se um arauto da disciplina sociológica e de suas abordagens canônicas, mas sim de alinhavar um novo quadro teórico interdisciplinar para torná-la parelha ao momento presente da sociedade e de suas mudanças irrefreáveis. Se conceitos sociológicos cunhados no alvorecer da modernidade são pouco efetivos em captar a configuração atual da sociedade e suas dinâmicas, das quatros mãos de Caillé e Vandenberghe surge a proposta de uma nova síntese teórica que tenta alinhar-se às necessidades analíticas dos conflitos e das urgências do presente.

Aos olhos de nossos autores, a tônica da sociologia atualmente é a fragmentação. Essa se manifesta desde cisões internas à disciplina entre a pesquisa e o ensino até à desintegração de um denominador comum entre as diversas escolas de pensamento sociológico contemporâneas (interacionismo, pragmatismo, marxismo, dentre outras). Quando se perde de vista a unidade do conhecimento sociológico enquanto tal, ganha-se rixas intradisciplinares bastante estéreis. Mas se essas fragmentações precisam ser de pronto superadas, há outras todavia que precisam ser açambarcadas. Caillé e Vandenberghe não querem ensejar a ultraespecialização, que engendra mais diferenciação disciplinar; querem, ao contrário, unificar, agrupar e congregar. Tal aspiração está manifesta no subtítulo do livro: trata-se então de re-unir no âmbito sociológico tanto os Studies - as disciplinas que se desenvolveram na esteira do pós-estruturalismo (como os estudos culturais, os da governamentalidade, os de gênero, os pós-coloniais, dentre outros) - quanto a filosofia moral e a política. Com todas essas disciplinas situadas à margem do campo sociológico, eles desejam produzir uma “nova confederação”, mas agora pós-sociológica. Dos Studies, os autores louvam sua capacidade de desvelar, na chave poder-discurso, as estruturas de dominação política, patriarcal e racial - algo talvez apenas possível dada a sua natureza (in)disciplinar. Da filosofia moral (e da social e política também), estimam a aproximação às investigações normativas e a unidade tomada entre vida social e moral para assim clarificar a verve antiweberiana da síntese teórica que desejam alcançar - afinal, na ótica dos autores, não cabe à nova sociologia clássica abrir mão de sua faculdade de julgar e aspirar algo como uma “liberdade a valores” [Wertfreiheit] (cf. Weber, 1973WEBER, Max. Gesammelte Aufsätze zur Wissenschaftslehre. Tübingen, DE: J.C.B Mohr Siebeck, 1973.).

Da fragmentação à unificação, com a congregação de áreas dispersas nas humanidades e nas ciências sociais, Caillé e Vandenberghe chegam ao núcleo de suas proposições. Num movimento de síntese, tentam delinear um novo quadro teórico geral “enquanto uma plataforma comum para a articulação dialógica envolvendo a sociologia, os Studies, assim como as filosofia social, moral e política” (Caillé & Vandenberghe, 2021: 31). Curiosamente, o movimento para esse quadro não se efetiva de maneira unicamente positiva - ou seja, a partir tão´só da re-união anunciada -, mas sim como reação à colonização por parte de disciplinas que quantificam a vida social, reduzindo-a a relações tipicamente mercantis e utilitaristas. Se o outro das intenções derradeiras do conhecimento sociológico foi, em algum momento da história da disciplina, o naturalismo e suas aspirações objetivistas em reduzir a experiência social ao meramente quantificável, hoje, para os autores, não se trata mais de abrir mão do explicar [Erklären] em favor do compreender [Verstehen] (Apel, 1979APEL, Karl-Otto. Die Erklären:Verstehen-Kontroverse in Transzendental-Pragmatische Sicht. Frankfurt, DE: Suhrkamp, 1979.; von Wright, 1971WRIGHT, Georg Henrik von. Explanation and understanding. Ithaca, NY: Cornell University Press, 1971.), mas de partir de um consenso mínimo de que a vida social não se organiza sobre bases utilitaristas. Crer que a vida social se constitui em torno de ações estratégico-instrumentais, e que o conhecimento é apenas possível a partir de suas evidências cegas, não passa de ficção, de ilusão ou, porque não, de ideologia. Pontuam:

[...] caso as ciências sociais não encontrem uma resposta unificada à colonização de seus territórios pela economia e pelas teorias da ação racional, estarão destinadas a perder a “guerra das ciências” e a se tornar irrelevantes (Caillé & Vandenberghe, 2021: 27).

Ao leitor tudo isso pode se assemelhar a um gesto fundacional, semelhante àqueles empreendidos pelos “pais fundadores” para o estabelecimento do campo de objetos legítimos ao conhecimento sociológico. E de certa forma o é, porque para Caillé e Vandenberghe as ciências sociais se encontram num solo comum que é antiutilitarista por natureza, vale dizer, que não é egocêntrico ou monadológico, mas perpetrado por relações intersubjetivas; que não se volta para a máxima instrumental dos interesses, mas para o vínculo, para a reciprocidade e para as formas expressivas. À sociologia cabe, por conseguinte, uma vasta dimensão substantiva de laços e relações simbólicas próprias à existência humana em sociedade. Interessa-lhe, então, um valor qualitativo e antropológico antes de um quantitativo e metrificado, ou, trocando em miúdos, o homo donator reciprocans ao invés do homo œconomicus. Para abrir dessa “antropologia positiva” em vista do empreendimento “neoclássico”, ou mesmo a dimensão ontológica das relações não utilitaristas, os autores voltam-se para um velho quadro das ciências sociais, a saber: o paradigma da dádiva de Marcel Mauss (2003MAUSS, Marcel. Sociologia e antropologia. São Paulo: Cosac Naify, 2003.).

Enquanto notórios integrantes do Movimento Antiutilitarista nas Ciências Sociais (MAUSS), para Caillé e Vandenberghe a teoria da dádiva apresenta o fundamento mais sólido e completo para as ciências sociais. Isso porque tal teoria, justificam eles, “unifica estrutura, cultura e as práticas sociais no interior de uma trama social que apenas pela via analítica pode ser decomposta em partes”. Se a dádiva é um “fato social total”, uma vez que atravessa todas as esferas da sociedade, para os autores sua teoria é também uma espécie de teoria social total, porque “oferece as melhores e mais amplas possibilidades de articulação interteórica [com as outras teorias sociais]” (Caillé & Vandenberghe, 2021: 54). É com tal constatação que Caillé e Vandenberghe apontam para a possibilidade de uma espécie de “tradução” das preocupações de outras teorias dentro dos quadros do paradigma da dádiva, tornando-a assim uma plataforma comum para a integração da sociologia com a filosofia moral e os Studies. E enquanto plataforma, torna-se possível articular demandas e conflitos por reconhecimento, questões subjetivas decorrentes das relações assimétricas entre colônias e metrópoles típicas dos estudos pós-coloniais e inclinações morais das teorias do care dentro dos marcos da dádiva. Mesmo sem uma certidão de nascimento comum entre todos esses quadros teóricos, há entre eles, na ótica dos autores, um “ar de família” por compartilharem princípios teóricos intersubjetivos e dialógicos. Mas a partilha de traços em comum não assegura unidade ou comunicação orgânica entre esses quadros. Para articulá-los entre si, os autores sugerem - no movimento mais original de suas proposições - um alargamento interno no paradigma da dádiva, indo da “reciprocidade simples” para uma “reciprocidade complexa”, ou seja, da lógica “A dá a B que dá a A para A que dá a B que dá a C que dá a D que dá, poderá ou poderia ter dado a A etc” (Caillé & Vandenberghe, 2021: 60). Com este movimento, ampliam esse paradigma para uma dimensão quase holista e deixam entrever o humanismo latente de seus esforços:

“doar a si mesmo para e pelo outro” (addonnement) a partir do amor, compaixão, sacrifício ou gratidão, o paradigma da dádiva alcança um nível de generalidade que até mesmo Mauss não chegaria a imaginar (Caillé & Vandenberghe, 2021: 60).

Embora os autores tenham um diagnóstico bastante lúcido sobre o atual estado disciplinar da sociologia, da filosofia e de todas as correntes conhecidas como “novas humanidades”, fica entretanto ensombrada a operacionalização da sociologia neoclássica anunciada por eles. Caillé e Vandenberghe edificam o modelo, qualificam suas propriedades, salientam os nexos teóricos com os metateóricos, explicitam o caráter público que querem lhe atribuir, mas permanece difícil entrever o seu valor analítico a partir unicamente do “documento de posição” que apresentam. Por certo que não se trata de contrapor à proposição deles a edificação de um modelo necessário ao “plano dos acontecimentos” (Bourdieu, Chamboredon & Passeron, 2010BOURDIEU, Pierre; CHAMBOREDON, J-P; PASSERON, J-C. O ofício de sociólogo. Metodologia da pesquisa na sociologia. Petrópolis, RJ: Vozes, 2010.: 70), mas apenas constatar que é mais fácil vislumbrar seu valor a partir de sua operacionalização efetiva. Afinal, só pela operacionalização é possível dimensionar com clareza o modo pelo qual o pensamento vincula-se à realidade concreta. Sem amostras, torna-se um pouco difícil ter clareza de que, como afirmam os autores, a demanda por reconhecimento de grupos sociais em litígio (mulheres, ex-colônias, subalternos, trabalhadoras e provedoras de cuidado etc.) é, fundamentalmente, o valor do dom que realizaram e que lhe foram expropriados (Caillé & Vandenberghe, 2021: 60). Modelos ou proposições teóricas são geralmente mais palatáveis quando apresentados a posteriori, ou mesmo no processo e na sua operacionalização em pesquisa, e não a priori. Muito embora seja conhecida a larga produção de pesquisas dos autores em torno do MAUSS, dos ensaios reconstrutivos de Vandenberghe (2014) às obras de Caillé sobre a dádiva (2002; 2005), há uma brevidade no tratamento de alguns pontos nodais e cruciais no “documento de posição” - precisamente os que dizem respeito à sua operacionalização -, que pode trazer ao leitor certa sensação de vaguidade.

É justificável, porém, o tratamento sucinto em alguns pontos, se levarmos em conta que o “documento de posição”, seja uma espécie de “chamado à discussão” e de que o livro não se encerra nele. Porque além do “documento” em que Caillé e Vandenberghe apresentam suas posições, o livro é composto por onze réplicas de diferentes sociólogos em diversas partes do mundo em que comentam (Frank Adloff), ressaltam problemas metodológicos (Francis Chateauraynaud), criticam (Jeffrey Alexander e Raewyn Connell), corroboram (François Dubet) ou demonstram completa aversão (Nathalie Heinich). A presença desses onze críticos é o ponto alto do livro, porque faz o leitor sentir-se num espaço de debate teórico de altíssimo nível em que ideias são discutidas com maestria e a partir de diversos ângulos e posições. Para fechar o livro, Caillé e Vandenberghe fazem sua tréplica a todos os onze, abrindo-se para a reconsideração de argumentos ou para a clara demarcação de posição. Todo o movimento delineado no livro - posição, réplicas e tréplica - deixa a forte impressão de que não é mais possível produzir reflexão teórica de alto nível sem estar em permanente exercício dialógico, em espaço aberto para a escuta das mais diversas críticas. Se o livro apresenta este formato bastante elogiável, deixa a desejar, no entanto, em outro. Porque salta aos olhos a não presença de algum intelectual latino-americano ou africano entre os replicantes. Há europeus, estadunidenses, uma australiana e um chinês, mas não há nenhum sociólogo das regiões periféricas mencionadas. Ainda que possa haver justificativas técnicas para tal, é bastante difícil imaginar como é possível abrir a sociologia e torná-la mais ecumênica - algo que está declaradamente no horizonte dos autores - sem que problemas relacionados à circulação internacional de ideias não sejam diretamente enfrentados em momentos como este. Afinal, quem poderia conceder aos intelectuais daquelas regiões a dádiva (no caso, a inserção em discussões amplas que dizem respeito ao futuro da disciplina) que a eles fora comumente negada?

O livro Por uma nova sociologia clássica é, em seu âmago, um chamado para o debate e para o aprofundamento do diálogo entre teorias. É provável que não precisemos “voltar ao Museu Britânico” (“back to the British Museum”, como dizia Jon Elster (1986ELSTER, Jon. An introduction to Karl Marx. Cambridge, UK: Cambridge University Press, 1986.: 17) em alusão a certas aporias do marxismo) para produzir uma nova grande teoria [grand theory] para a realidade e suas metamorfoses. Se o tempo das grandes teorias já passou, há outras teorias por aí sendo produzidas em distintos lugares e contextos, com suas reflexões sobre o poder, levando em conta o ponto de vista dos excluídos, dos marginalizados, tematizando a justiça, as desigualdades e as patologias sociais. Como bem colocam Caillé e Vandenberghe, elas precisam ser articuladas conjuntamente, consensos mínimos precisam ser estabelecidos num campo unificado, para que, a partir da teia interdisciplinar, elas se avigorem analiticamente. Se o leitor pode ser cético quanto à centralidade da dádiva em todo esse processo de unificação, talvez não fique indiferente ao senso de urgência das questões levantadas pelos autores. A tarefa do dia é refazer a costura da sociologia com a sociedade-do-tempo-presente e recuperar a relevância e a potência crítica de seus diagnósticos. O livro é um convite a todos para essa urgente tarefa.

Referências

  • APEL, Karl-Otto. Die Erklären:Verstehen-Kontroverse in Transzendental-Pragmatische Sicht. Frankfurt, DE: Suhrkamp, 1979.
  • BOURDIEU, Pierre; CHAMBOREDON, J-P; PASSERON, J-C. O ofício de sociólogo. Metodologia da pesquisa na sociologia. Petrópolis, RJ: Vozes, 2010.
  • CAILLÉ, Alain. Don, Intérêt et désintéressement. Bourdieu, Mauss, Platon et quelques autres. Paris: La Découverte; MAUSS, 2005.
  • ______. Antropologia do Dom. O terceiro paradigma. Petrópolis, RJ: Vozes, 2002.
  • ELSTER, Jon. An introduction to Karl Marx. Cambridge, UK: Cambridge University Press, 1986.
  • MAUSS, Marcel. Sociologia e antropologia. São Paulo: Cosac Naify, 2003.
  • VANDENBERGHE, Frédéric. What’s critical about critical realism? Essays in reconstructive social theory. London: Routledge, 2014.
  • WEBER, Max. Gesammelte Aufsätze zur Wissenschaftslehre. Tübingen, DE: J.C.B Mohr Siebeck, 1973.
  • WRIGHT, Georg Henrik von. Explanation and understanding. Ithaca, NY: Cornell University Press, 1971.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    19 Dez 2022
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2022

Histórico

  • Recebido
    24 Jun 2022
  • Aceito
    04 Jul 2022
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