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Relendo a teoria sociológica brasileira à luz da crítica pós-coloniali i. Agradecemos aos(às) editores(as) da Sociedade e Estado e, em especial, aos(às) pareceristas pelas relevantes sugestões, que ajudaram a aperfeiçoar as hipóteses e os argumentos do artigo.

Resumo

O artigo discute em que medida teorias sociológicas produzidas no campo acadêmico brasileiro dialogam com um movimento global de crítica à colonialidade e aos fundamentos eurocêntricos das ciências sociais. De início, tratamos dos desafios subjacentes às tentativas de definir os dois enquadramentos, sociologia brasileira e pensamento pós-colonial, sem ignorar suas heterogeneidades internas. Em seguida, analisamos as convergências e tensões entre esses campos como condições de possibilidade para agendas de pesquisa que aproximem ambos os aportes. Por fim, exploramos o potencial epistemológico de uma dessas agendas, que corresponde a uma releitura da tradição sociológica brasileira à luz da crítica pós-colonial. Esse exercício é feito a partir do projeto da “redução sociológica”, de Guerreiro Ramos, que indica uma via de mão dupla na interlocução entre sociologia brasileira e pensamento pós-colonial: um olhar descentrado sobre nossa tradição sociológica que revela contribuições dessa tradição para o futuro das epistemologias pós-coloniais.

Palavras-chave:
Sociologia brasileira; Teorias pós-coloniais; Releitura; Guerreiro Ramos

Abstract

The article discusses to what extent sociological theories produced in the Brazilian academic field dialogue with a global intellectual movement criticizing coloniality and the Eurocentric foundations of the social sciences. Initially, we analyze the challenges regarding the attempts to define two theoretical approaches, Brazilian sociology, and Postcolonial Thought, without overlooking their internal heterogeneities. Then, we address the tensions between these approaches as conditions for research agendas that bring both contributions into proximity. Finally, we explore the epistemological potential of one of these agendas, which corresponds to a rereading of Brazilian sociological theory in light of postcolonial criticism. This exercise in rereading the canon is based on the methodological program of sociological reduction of Guerreiro Ramos, which indicates a reciprocal interrogation between Brazilian sociology and postcolonial thought, i.e., a decentered look at our sociological tradition that also reveals contributions from this tradition for the future of postcolonial epistemologies.

Keywords:
Brazilian sociology; Postcolonialism; Rereading; Alberto Guerreiro Ramos

Introdução

Neste artigo, discutimos em que medida teorias sociológicas produzidas no campo acadêmico brasileiro podem ser correlacionadas com um movimento intelectual mais amplo de crítica à colonialidade e aos pilares eurocêntricos das ciências sociais que vêm angariando espaço e atenção nas últimas décadas. É preciso, contudo, dizer de antemão que o esforço de pensar essas possíveis homologias e diálogos nos coloca diante de algumas dificuldades preliminares.

A primeira se refere ao desafio de lidar com duas abordagens teóricas que são complexas e heterogêneas, como é o caso da sociologia brasileira e dos aportes pós-coloniais, em suas diversas denominações e desdobramentos. Por um lado, não há uma única tradição na teoria sociológica brasileira, tampouco uma vertente específica, que tenha concentrado as contribuições do nosso campo acadêmico no questionamento dos fundamentos eurocêntricos da sociologia. Por outro lado, o próprio pós-colonialismo constitui um termo “guarda-chuva”, comportando múltiplas abordagens, acadêmicas e extra-acadêmicas. Assim, vale dizer que, nesta sistematização, consideramos ambas as abordagens a partir de uma perspectiva panorâmica, que abrange tanto as vertentes críticas da teoria social brasileira, sobretudo em relação ao eurocentrismo, à modernidade e ao colonialismo, como as diversas facetas assumidas pelos aportes pós-coloniais em seus desdobramentos contemporâneos.

O segundo desafio é o de considerar os dois enfoques em suas especificidades - contextuais, teóricas, metodológicas e epistemológicas -, sob o risco de cairmos em uma leitura homogeneizante que compreende toda interpretação crítica de um problema social como pós-colonial. Com isso, queremos evitar anacronismos ou adjetivações vagas que pouco dizem em termos analíticos sobre os aportes substanciais dos(as) autores(as) mencionados(as).

Tentamos enfrentar esse problema a partir de uma discussão sobre a pertinência de se considerar o sociólogo baiano Alberto Guerreiro Ramos (1915-1982) enquanto autor com inspirações pós-coloniais, tendo em vista suas contribuições para uma crítica ao eurocentrismo acadêmico e à dependência intelectual (Alatas, 2000______. Academic dependency in the social sciences: reflections on India and Malaysia. American Studies International, v. 38, n. 2, p. 80-96, 2000.; 2003) e, particularmente, sua proposição de uma abordagem epistemológica e metodológica que buscou lidar com o desafio da apropriação de conceitos, teorias, métodos e técnicas desenvolvidas em outros contextos pela sociologia brasileira.

Na primeira parte do texto, tratamos dos desafios subjacentes às tentativas de definição dessas duas abordagens. Na segunda, abordamos as convergências e divergências observadas entre a teoria sociológica brasileira e as teorias pós-coloniais que nos servem como expediente para refletir sobre as possíveis agendas de pesquisa que aproximem esses aportes. Na parte final do artigo, exploramos os predicados epistemológicos de uma dessas agendas, que corresponde à proposta de releitura da teoria sociológica brasileira à luz dos tensionamentos provocados pelo pensamento pós-colonial na teoria social contemporânea em nível global. Esse exercício é elaborado a partir da análise do potencial heurístico da redução sociológica de Guerreiro Ramos, concebida como método crítico-assimilativo de teorias sociais estrangeiras, cuja relevância pode apontar para uma via de mão dupla na relação entre sociologia brasileira e crítica pós-colonial, qual seja: um olhar descentrado sobre nossa própria tradição sociológica, que também pode implicar contribuições dessa tradição para o futuro das epistemologias pós-coloniais.

Considerações preliminares

A teoria sociológica se caracteriza, de um lado, pela ausência de consensos no que tange às suas dimensões ontológicas, epistemológicas e metodológicas1 1 The distinction between social theory and sociological theory is sometimes considered subtle. By social theory, we understand the abstract, metatheoretical manner of research in the social sciences (Go, 2016; Patel, 2020), since, when searching for more general models for analysis, social theory can schematize, conceptualizes, and explains the forms and dynamics in the interactions, classifications, hierarchies, reproductions, and social changes. In its turn, sociological theory is “less general and more concrete, which does not mean that it is less abstract, but offers not so much a reflection regarding society as such, but rather about any given society or […] any determined set of societies” (Vandenberghe, 2011, p. 19). Thus, we agree with Vandenberghe that sociological theory tends to be more disciplined and historically informed compared to social theory. Additionally, the analytic and metatheoretical propositions of social theory become important presuppositions for sociological theory, which in turn informs empirical research in sociology. (Alexander, 1999______. A importância dos clássicos. In: GIDDENS, Anthony; TURNER, Jonathan (Orgs.) Teoria social hoje, p. 23-90. São Paulo: Editora Unesp, 1999.; Go, 2016GO, Julian. Postcolonial thought and social theory. New York: Oxford University Press, 2016.; McLennan, 2010, Seidman, 1994SEIDMAN, Stephen. Contested knowledge. Oxford, UK: Blackwell, 1994.); de outro, pela existência de uma pluralidade de escolas, correntes, abordagens e paradigmas que, por vezes, se entrecruzam (Connell, 2007______. Southern theory. Sydney: Allen & Unwin, 2007.; Giddens & Turner, 1999GIDDENS, Antony; TURNER, Jonathan. Teoria social hoje. São Paulo: Editora Unesp, 1999.; Patel, 2010______. The ISA Handbook of diverse sociological traditions. Los Angeles, CA: Sage, 2010.). Essa tendência não se mostrou diferente no processo de institucionalização das ciências sociais no Brasil, que, pelo menos desde os anos 1940, vêm sendo atravessadas por intensos debates e pela constituição e concorrência interna entre campos de estudos específicos.

Mesmo se considerarmos a constituição interna de tais campos, cumpre observar que os mesmos não se fundamentam em interpretações unívocas ou em qualquer monolitismo teórico ou político. É o que atesta Lívio Sansone (2002SANSONE, Lívio. Um campo saturado de tensões: o estudo das relações raciais e das culturas negras no Brasil. Estudos Afro-Asiáticos, v. 24, n. 1, p. 5-14, 2002.) a respeito dos estudos étnico-raciais no Brasil, configurados, desde os anos 1930, como campo “denso de tensões, agendas, pontos de vistas, olhares e desejos” (Sansone, 2002, p. 7). Esse cenário torna-se mais complexo quando se observam disputas entre campos de pesquisa na explicação de fenômenos da sociedade brasileira, como é o caso da oposição entre estudos sobre classe e raça, que divergem quanto ao princípio explicativo acerca da estrutura e dinâmica das desigualdades no país (Barreto et al, 2020BARRETO, Paula; RIOS, Flavia; NEVES, Paulo; SANTOS, Dyane. A produção das ciências sociais sobre as relações raciais no Brasil entre 2012 e 2019. Revista Brasileira de Informação Bibliográfica em Ciências Sociais (BIB), v. 94, p. 1-35, 2020.; Barreti et al., 2017BARRETI, Paula; LIMA, Márcia; LOPES, Andrea; SOTERO, Edilza. Entre o isolamento e a dispersão. A temática racial nos estudos sociológicos no Brasil. Revista Brasileira de Sociologia, v. 5, p. 113-141, 2017.; Souza, 2006______. A construção social da subcidadania: para uma sociologia política da modernidade periférica. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2006.). Esse debate adquire novas dimensões com a consolidação de perspectivas que acentuam o caráter estruturante e sobreposto dessas categorias, às quais se soma a categoria gênero (Rios & Sotero, 2019RIOS, Flavia; SOTERO, Edilza. Apresentação: gênero em perspectiva interseccional. Plural: Revista de Ciências Sociais, v. 26, n. 1, p. 1-10, 2019.).

Essas discussões sintetizam o desafio de abordar, de modo mais abrangente, a sociologia brasileira, sobretudo no que se refere à análise das críticas à colonialidade e ao eurocentrismo. Como sugerimos na introdução, tais críticas não se concentram em uma única vertente teórica, pelo contrário, pode-se observar sua expressão em autores(as) que defendiam propostas epistemicamente divergentes para a sociologia nacional, como é o caso de Guerreiro Ramos e Florestan Fernandes, que protagonizaram um emblemático debate sobre as formas de conceber o “fazer-sociológico” nos anos 1950 (Bariani, 2006______. Padrão e salvação: o debate Florestan Fernandes × Guerreiro Ramos. Cronos, v. 7, n. 1, p. 151-160, 2006.; Fernandes, 1977; Ramos, 1996). Por essa razão, nosso esforço de sistematização das comunalidades e diferenças teóricas entre a sociologia brasileira e as teorias pós-coloniais considera, de modo geral, as vertentes mais críticas da tradição sociológica no país no que tange à abordagem da persistência do colonialismo e do eurocentrismo na construção do conhecimento sociológico nacional.

A tradição pós-colonial tampouco é menos espinhosa. Há pelo menos duas acepções para o termo. A primeira diz respeito a uma condição histórico-política que remete ao período posterior aos processos “tardios” de descolonização em países do “Terceiro Mundo” - entre 1950 e 1970 (Ballestrin, 2013______. América Latina e o giro decolonial. RBCP, v. 11, p. 89-117, 2013.; Chakrabarty, 2000CHAKRABARTY, Dipesh. Provincializing Europe. Princeton, NJ: Princeton University Press, 2000.; Miglievich-Ribeiro, 2014; Meneses, 2016MENESES, Maria Paula. A questão negra entre continentes: possibilidades de tradução intercultural a partir das práticas de luta? Sociologias, v. 18, n. 43, p. 176-206, 2016.; Young, 2001YOUNG, Robert. Postcolonialism. Malden, MA: Blackwell, 2001.). A segunda se refere ao conjunto de aportes teórico-metodológicos e epistemológicos que surgiram, na historiografia crítica e nos estudos culturais, a partir da década de 1970, com forte repercussão na Índia, nos Estados Unidos e na Inglaterra, com o objetivo de produzir um saber desvinculado do eurocentrismo, ainda que, por vezes, invocando correntes europeias, como o pós-estruturalismo, o desconstrutivismo e o marxismo (Ballestrin, 2013; Oliveira, 2020OLIVEIRA, Lucas Amaral de. Teoria social e desafios epistemológicos na geopolítica do conhecimento. RBHCS, v. 12. n. 24, p. 448-476, 2020.).

Sérgio Costa (2006) afirma que, a despeito das dessemelhanças teóricas que separam autores(as) tão díspares como Ftantz Fanon, Edward Said, Homi Bhabha e Gayatri Spivak, que se mostraram seminais para a teoria social na segunda metade do século XX, eles(as) partilham uma agenda intelectual e política comum: romper com o domínio da história única, sustentada por metanarrativas ocidentais; superar ideologias de progresso e modernização singulares; elaborar críticas às matrizes de dominação colonial e aos “processos civilizatórios” etnocêntricos; e desconstruir os essencialismos assentados em classe, raça, etnia, nação e gênero.

Na América Latina, essa postura pode ser observada nas discussões sobre a colonialidade, sobretudo dentro do Grupo Latino-Americano de Estudos Subalternos e, posteriormente, do Grupo Modernidade/Colonialidade, cuja criação foi orientada pela preocupação em romper com o cânone eurocêntrico como meio de alcançar formas de conhecimento e organização social verdadeiramente descolonizadas (Oliveira, 2020OLIVEIRA, Lucas Amaral de. Teoria social e desafios epistemológicos na geopolítica do conhecimento. RBHCS, v. 12. n. 24, p. 448-476, 2020.). No entanto, Luciana Ballestrin (2013______. América Latina e o giro decolonial. RBCP, v. 11, p. 89-117, 2013.) e Joaze Bernardino-Costa (2018) atentam para o fato de que um dos problemas dos aportes decoloniais na América Latina tem sido a discussão “sobre” e “com” o Brasil, sendo significativo o fato de não ter havido brasileiros(as) vinculados(as) a esses grupos, o que indica que a produção intelectual das ciências sociais brasileiras ficou “excluída” do “giro decolonial” (Castro-Gómez & Grosfoguel, 2007).

Desse modo, a abordagem das convergências e divergências notadas entre a sociologia brasileira e os aportes pós-coloniais constitui um primeiro passo em nosso intuito de analisar possibilidades de articulação entre tais enfoques. Neste esforço, o termo pós-colonialismo será considerado, aqui, do modo mais abrangente possível, envolvendo as diversas tendências e variações citadas, a despeito das especificidades e dessemelhanças observadas entre elas. Afinal, como afirmam Pedro Borba e Guilherme Benzaquen (2020BORBA, Pedro; BENZAQUEN, Guilherme. Teoria crítica nas margens: um diálogo entre marxismo e pós-colonialismo. RBCS, v. 35, p. 1-17, 2020., p. 2), “um diálogo construtivo não depende de uma delimitação rígida, mas antes do desvelamento de conexões pertinentes”.

Articulações entre sociologia brasileira e teorias pós-coloniais

A análise das condições de emergência de um discurso crítico à colonialidade e às bases eurocêntricas das ciências sociais, que ganha notoriedade em muitos países da periferia do capitalismo desde pelo menos os anos 1950, constitui um caminho profícuo para a discussão sobre convergências entre sociologia brasileira e aportes pós-coloniais. Não pretendemos reconstruir toda a história desse processo de descentramento teórico (Maia, 2011______. Ao sul da teoria: a atualidade teórica do pensamento social brasileiro. Sociedade e Estado, v. 26, n. 2, p. 71-94, 2011.), mas localizar alguns marcos e certas condições sociais, econômicas, culturais e institucionais, entre os anos 1950 e 1970, que permitiram a emergência do debate em contextos periféricos.

As lutas pela descolonização em África e Ásia constituem fatores responsáveis por essa reorientação política e intelectual observada nos países da periferia do capitalismo. Ademais, como destacam Ballestrin (2017BALLESTRIN, Luciana. Feminismos subalternos. Estudos Feministas, v. 25, n. 3, p. 1035-1054, 2017.) e Meneses (2016MENESES, Maria Paula. A questão negra entre continentes: possibilidades de tradução intercultural a partir das práticas de luta? Sociologias, v. 18, n. 43, p. 176-206, 2016.), a Conferência de Bandung, em 1955, o Movimento dos Não-Alinhados, em 1961, e a Conferência Tricontinental em Cuba, em 1966, favoreceram o vislumbre de uma identidade geopolítica dos países do Terceiro Mundo, que buscavam conquistar melhor posição no cenário internacional, para além da polarização imposta pela Guerra Fria.

No Brasil, temos ainda uma mudança na política externa a partir dos anos 1960, com a eleição de Jânio Quadros e João Goulart, que passam a construir uma posição mais independente em relação aos países do Norte, ao mesmo tempo em que afirmam uma atitude anticolonialista e de solidariedade com países do Terceiro Mundo. Por exemplo, nos meses que ficou no poder, Quadros abriu embaixadas na África e concedeu bolsas a universitários africanos com financiamento do Itamaraty (Silva, 2017______. Outra ponte sobre o Atlântico Sul: descolonização africana e alianças político-intelectuais em São Paulo nos anos 1960. Análise Social, v. 52, p. 804-826, Lisboa, 2017.). Mário Augusto Medeiros da Silva (2017) destaca a articulação entre intelectuais e militantes brasileiros(as) com ativistas anticoloniais da África lusófona naquele contexto, citando a fundação do Movimento Afro-Brasileiro pela Libertação de Angola (Mabla), em 1962, vinculado ao Movimento Pró-Libertação de Angola (MPLA), que construiu parcerias com o associativismo negro em São Paulo e no Rio de Janeiro, e também com intelectuais brasileiros(as), brancos(as) e negros(as).

O país passava no período por um intenso processo de industrialização - o “consenso das ciências sociais brasileiras” (Guimarães, 2002______. Classes, raças e democracia. São Paulo: Editora 34, 2002.) -, o que favorecia uma atmosfera de mudanças, manifesta nos campos intelectual e político, e de busca de uma posição geopolítica menos subserviente no cenário global. Esses fatores contribuíram para a criação de projetos intelectuais que almejavam o desenvolvimento de uma sociologia autônoma e engajada com os problemas nacionais e os rumos do país. Tais condições permitem aproximações e convergências teórico-metodológicas entre intelectuais no Brasil com intelectuais de outros contextos periféricos.

O estatuto da sociologia em contextos periféricos

Poderíamos então dizer que uma primeira convergência entre sociologia brasileira e teorias pós-coloniais diz respeito à preocupação teórica com o estatuto da sociologia em contextos periféricos. Tal discussão é crucial para o debate pós-colonial e atravessa de modos variados o campo sociológico nacional. Observamos, na história da sociologia brasileira, um intenso debate sobre a tarefa de aplicar à realidade do país teorias sociais e ideais normativos produzidos no Atlântico Norte e, ao mesmo tempo, uma crítica aos fundamentos eurocêntricos que informam as ciências sociais.

É inegável a influência da sociologia euro-norte-americana na formação do campo sociológico brasileiro. Assim como em outros contextos periféricos, o cânone sociológico no Brasil constituiu-se, fundamentalmente, a partir de modelos europeus (sobretudo franceses e britânicos) e estadunidenses. Apesar disso, nota-se uma constante preocupação com o estatuto periférico da sociologia brasileira em diferentes momentos da história da disciplina.

Cabe mencionar o debate entre Guerreiro Ramos e Florestan Fernandes, nos anos 1950, em relação aos rumos possíveis da sociologia e da sociedade brasileira, em um momento de institucionalização das ciências sociais no Brasil (Bariani, 2006______. Padrão e salvação: o debate Florestan Fernandes × Guerreiro Ramos. Cronos, v. 7, n. 1, p. 151-160, 2006.; Fernandes, 1977; Oliveira, 2001OLIVEIRA, Lucia Lippi. A redescoberta do Brasil nos anos 50: entre o projeto político e o rigor acadêmico. In: MADEIRA, Angélica; VELOSO, Mariza (Orgs.) Descobertas do Brasil, p. 139-161. Brasília: Editora UnB, 2001.; Ramos, 1996). Esse debate, que teve início no II Congresso Latino-Americano de Sociologia, realizado no Rio de Janeiro e em São Paulo, em 1953, segundo Bariani (2006), explicitou divergências com relação ao modo de conceber o trabalho sociológico, suas preocupações teóricas, metodológicas e políticas, bem como as condições de pesquisa e desenvolvimento no Brasil, que exprimiam diferentes projetos para o campo acadêmico e para a nação.

Nas propostas apresentadas no Congresso - e, posteriormente, nas obras Cartilha brasileira do aprendiz de sociólogo, de 1954, e A redução sociológica, de 1958 -, Guerreiro Ramos criticou a transplantação de medidas adotadas nos países “desenvolvidos” para os problemas nacionais, cujas soluções deveriam ser buscadas nas condições efetivas de suas estruturas nacionais e regionais. Sobre as condições ideais da pesquisa científica, o sociólogo baiano acreditava que elas deveriam se adequar ao caráter “subdesenvolvido” da sociedade brasileira, priorizando a formulação de interpretações gerais sobre a estrutura social - em detrimento dos estudos sobre “minudências da vida social” -, capazes de orientar a implementação de políticas de caráter planificador, com vistas ao desenvolvimento da nação via industrialização (Bariani, 2006______. Padrão e salvação: o debate Florestan Fernandes × Guerreiro Ramos. Cronos, v. 7, n. 1, p. 151-160, 2006., p. 152; Oliveira, 1995______. A sociologia do Guerreiro. Rio de Janeiro, Editora UFRJ, 1995.; Ramos, 1996). Guerreiro Ramos, conferindo uma orientação salvacionista ao pensamento sociológico, acreditava que o ensino da sociologia - mesmo como disciplina escolar - constituiria o melhor “modo de difundir uma consciência crítica dos problemas nacionais e promover a emancipação em relação ao colonialismo cultural” (Bariani, 2006, p. 154).

Florestan Fernandes, por sua vez, contrapõe-se a Guerreiro Ramos em sua análise sobre o padrão de trabalho científico que deveria ser adotado pela sociologia brasileira. Em texto publicado originalmente em 1958, “Padrão de trabalho científico dos sociólogos brasileiros”, Fernandes destaca que o fazer-sociológico não deve se orientar pelo sistema de interesses e valores da nação, mas pelo sistema de normas e valores do saber científico; do contrário, não seria possível colocar a ciência a serviço da comunidade. A defesa da autonomia do campo científico é encarada pelo autor como forma de fazer frente a influências externas, que pesam sobre o sociólogo em diversos níveis, sobretudo em um contexto marcado pela persistência de relações arcaicas e autoritárias. Com isso, ele defende o rigor metodológico na condução da pesquisa sociológica - que não deveria ser subordinada às condições materiais de subdesenvolvimento da nação - e o caráter universal do conhecimento científico, passível de ser absorvido dos grandes centros acadêmicos. A incorporação dos estudos de comunidade - rejeitada por Guerreiro Ramos -, para Florestan Fernandes, permitiria apreender as variações do desenvolvimento interno, econômico e sociocultural, que caracterizam as diversas regiões do país. Ou seja, a própria ciência deveria ser explorada como fator de desenvolvimento (Bariani, 2006______. Padrão e salvação: o debate Florestan Fernandes × Guerreiro Ramos. Cronos, v. 7, n. 1, p. 151-160, 2006.; Fernandes, 1977).

Embora extrapole o escopo deste trabalho reconstruir as múltiplas significações e posteriores interpretações assumidas por esse debate, cabe destacar a centralidade das preocupações dos dois autores com os rumos da sociologia no país, no momento de sua institucionalização e autonomização. Tais preocupações estavam voltadas tanto para a reflexão sobre a natureza das relações a serem estabelecidas com os centros de produção científica, quanto para os limites e as possibilidades do pensamento sociológico em promover o desenvolvimento do país.

Esses enfoques críticos convergem com um descentrado movimento intelectual transnacional que, desde os anos 1950, tensionava o estatuto eurocêntrico das ciências sociais praticada nos países do Atlântico Norte. Segundo João Marcelo Maia (2011______. Ao sul da teoria: a atualidade teórica do pensamento social brasileiro. Sociedade e Estado, v. 26, n. 2, p. 71-94, 2011.), essa reflexão contribuiu para dois procedimentos analíticos observados tanto em nosso campo intelectual como em outros países da periferia. O primeiro se refere à “crítica conceitual”, elaborada a partir de outros lugares de enunciação; o segundo corresponde à refutação de teorias de médio alcance em virtude dos vieses de suas bases empíricas e da proposição de novas abordagens analíticas para fenômenos específicos. Esses procedimentos permitem vislumbrar outra convergência entre a sociologia brasileira e as epistemologias pós-coloniais, qual seja: a crítica às teorias dominantes da modernidade.

Crítica às teorias dominantes de “modernidade”

As críticas às teorias da modernização têm constituído um dos principais eixos do debate pós-colonial, empenhados em destacar a colonialidade como o lado obscuro da “modernidade” europeia, mas ainda assim constitutivo (Miglievich-Ribeiro, 2020; Mignolo, 2017MIGNOLO, Walter. Colonialidade: o lado mais escuro da modernidade. RBCS, v. 32, n. 94, p. e329402, 2017.; Quijano & Wallerstein, 1992QUIJANO, Aníbal; WALLERSTEIN, Immanuel. Americanity as a concept or the Americas in the modern world-system. International Social Science Journal, n. 134, p. 549-556, 1992.; Segato, 2015SEGATO, Rita. La crítica de la colonialidad en ocho ensayos. Buenos Aires: Prometeo, 2015.). De modo similar, é possível observar o desenvolvimento de leituras críticas na teoria sociológica brasileira que procura romper com a perspectiva evolucionista e normativa das teorias hegemônicas da modernidade - que tomam a Europa como modelo universal, baseando-se em um dualismo metodológico entre a modernidade europeia e o caráter atrasado dos países periféricos.

Se tais críticas podem ser encontradas em nosso campo intelectual, pelo menos desde os anos 19502 2 In this sense, the sociological output of Florestan Fernandes is noteworthy, especially starting from the second half of the 1960s, when he developed the notion of dependent capitalism as an explanatory category to analyze the character assumed by the bourgeois revolution in Brazil. His interpretation was a direct critique of the American theory of modernization, which, amongst other aspects, highlights the ideological dimension of its progressive imaginary and places in check the necessary relationship between democracy and modernity. For Fernandes, the connection between modernity and autocracy is the normal condition imposed by dependent capitalism, and not a failure of the process of modernization as it takes place on the periphery of capitalism. Far from suggesting a mere correction of hegemonic theories of modernity, Fernandes argues that these theoretical and empirical limitations require a significant change of perspective and the formulation of new conceptual instruments, capable of including its diverse variants, as well as the external and internal conditions of societies that act on the character assumed by their respective processes of modernization (Brasil Jr., 2017; Fernandes, 1975; 2006). , é sobretudo a partir das últimas décadas do século XX que se observa a emergência de novas interpretações, voltadas, de um lado, à

  • i. construção de uma teoria crítica da modernidade brasileira, que afirma o caráter plenamente moderno da sociedade nacional, e de outro, ao

  • ii. desenvolvimento de uma teoria da modernidade verdadeiramente global.

Nessa medida, Jessé Souza (2000______. A modernização seletiva. Brasília: Editora UnB, 2000.; 2006) procurou construir uma crítica da modernidade brasileira através de um reexame dos intérpretes clássicos da formação brasileira. Para Souza (2017a), a tradição ensaística no país constrói uma interpretação da modernidade brasileira forjada a partir de uma distorção da europeia, encarando-a como processo inautêntico desde a sua origem, tendo algo de “epidérmico” e pouco profundo. O autor arquiteta duas ofensivas: de um lado, contra uma tradição denominada por ele de “personalista”, representada por autores como Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Holanda, Raymundo Faoro e outros; de outro, contra a tradição sociológica paulista constituída em torno de Florestan Fernandes, que se tornou dominante na segunda metade do século XX. Segundo Souza (2000; 2006), observa-se, em ambas as tradições, uma ênfase na persistência de elementos pré-modernos no processo de modernização da sociedade brasileira, que marcariam o seu caráter incompleto e a sua “especificidade” perante as sociedades plenamente modernas3 3 For the intellectuals in the “personalist” tradition, this premodern character is the result of a cultural legacy connected with “personalism” and “patrimonialism”, a legacy of the colonial past, which hampered the complete nationalization of national society. Fernandes, in his turn, highlighted the persistence of elements of status, and premodern, archaic elements in the constitution of a society of classes, resultant from the way in which abolition and the development of capitalism occurred, marked by the clear marginalization of the Black community. .

Avesso a essas leituras, Souza (2000______. A modernização seletiva. Brasília: Editora UnB, 2000.; 2006) atesta o caráter moderno da sociedade brasileira, cujo processo de modernização remontaria ao início do século XIX, com a chegada da corte portuguesa ao Brasil, o que teria favorecido a construção de instituições modernas (Estado e mercado). A partir daí, nota-se o gradativo abandono de critérios personalistas e patrimonialistas - típicos da dominação tradicional - e a absorção de critérios capitalistas de classificação social - como o mérito e o desempenho pessoal -, válidos mesmo para quem permaneceu à margem do mercado de trabalho formal, no contexto pós-abolição.

Em sua reinterpretação da modernização e constituição da sociedade de classes, Souza recorre ao modelo de estrutura social de Pierre Bourdieu (2013BOURDIEU, Pierre. A distinção: crítica social do julgamento. São Paulo: Zouk, 2013.) para afirmar a condição moderna da sociedade brasileira - cuja estrutura pode ser compreendida mediante os mesmos conceitos aplicados às sociedades euro-norte-americanas - e recuperar transformações das principais classes e frações de classe que compõem o espaço social brasileiro.

Contudo, nessa reconstrução, Souza (2006______. A construção social da subcidadania: para uma sociologia política da modernidade periférica. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2006.) destaca que o processo de “modernização à brasileira” se caracterizou pela marginalização de uma parte significativa da população, denominada como “ralé estrutural”, destituída não somente das competências que permitiriam a sua inserção no mercado como produtor útil, mas também das pré-condições sociais, culturais, afetivas e emocionais que permitiriam sua incorporação. A marca distintiva da sociedade brasileira seria a formação de uma classe que se constitui mediante a incorporação de um habitus precário - marcado pela ausência das disposições econômicas e políticas, que constituem o sujeito produtivo e disciplinado estabelecendo um habitus primário (Souza, 2006, p. 168). Sua origem histórica remonta à escravidão e à forma como se deu a constituição de uma sociedade moderna na periferia do capitalismo, em que as instituições modernas emergem como “artefatos prontos”, descolados de um longo processo cultural e moral capaz de universalizar uma lógica igualitária para o conjunto da população. Desse modo, Souza (2000) destaca o caráter seletivo assumido pela modernização brasileira.

Com essa interpretação, Souza (2006______. A construção social da subcidadania: para uma sociologia política da modernidade periférica. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2006.; 2017a) visa ir além da teorização proposta por Bourdieu, que coloca a generalização daquelas disposições mínimas (habitus primário) para o conjunto da população, tomando como exemplo o caso francês. Segundo Souza (2017a), tal generalização não ocorre na periferia do capitalismo, de modo que se faz necessário avançar na construção de novos instrumentos analíticos e de uma teoria crítica da modernização que apreenda formas materiais e simbólicas de dominação vigentes na atual fase do capitalismo, em países centrais e periféricos.

No entanto, o autor é criticado por reafirmar o caráter “peculiar” da modernidade brasileira, com a ideia de modernização seletiva, que destitui a experiência nacional de uma condição moderna plena. Essa crítica é feita por Sérgio Tavolaro (2009______. América Latina, variável independente? Para uma crítica ao binômio centro-periferia. Teoria & Pesquisa, v. 18, p. 85-118, 2009.; 2011), por exemplo, que se situa entre os(as) teóricos(as) contemporâneos(as) interessados(as) em inserir a experiência da modernidade no Brasil em um contexto global e entrelaçado. Para tanto, Tavolaro se contrapõe ao que denomina de “discurso sociológico hegemônico da modernidade”, destacando suas limitações para apreender processos históricos e contingentes de modernização em todo o mundo.

Ao analisar a produção sociológica brasileira, clássica e contemporânea, Tavolaro (2011______. Cidadania e modernidade no Brasil (1930-1945). São Paulo: Annablume, 2011.) afirma que, a despeito de diferenças entre seus enfoques teóricos, eles convergem para uma interpretação da modernidade no Brasil que não a coloca em pé de igualdade com as experiências vivenciadas nos países centrais. A chamada “sociologia da inautenticidade” abrangeria não somente a tradição do culturalismo atávico, de autores como Freyre e Buarque de Holanda, mas também a sociologia da dependência e o marxismo paulista, junto a suas interpretações sobre a modernidade periférica - como Caio Prado Jr., Florestan Fernandes, Fernando Henrique Cardoso, Octávio Ianni, entre outros(as) (Tavolaro, 2017). Com isso, contribuiu-se para consolidar o binômio centro-periferia, no qual predomina a visão de que a modernidade brasileira permanece incompleta. Isto ocorre, segundo Tavolaro (2009), porque nossa experiência de modernidade é avaliada por um padrão externo, modelar. Além disso, em ambas as tradições, há a tendência de relegar a segundo plano as variações na sociabilidade que ocorreram historicamente e pressupor um padrão normativo que permaneceu praticamente intacto nos últimos dois séculos no Brasil.

Em sua crítica, Tavolaro (2011______. Cidadania e modernidade no Brasil (1930-1945). São Paulo: Annablume, 2011.) propõe a “des-essencialização” da modernidade, que passa a ser vista como processo no qual surgem instituições historicamente contingentes. Sua análise apoia-se em duas noções-chave:

  • i. o padrão de sociabilidade moderno; e,

  • ii. a modernidade como processo tendencialmente global e descentrado de seu berço originário.

A primeira noção se ancora na crítica à episteme moderna - representada pelos clássicos sociológicos e, mais recentemente, por figuras como Parsons, Luhmann e Habermas -, que desconsidera variações em três pilares da experiência moderna: diferenciação/complexificação social; secularização da normatividade; e separação entre domínios públicos e privados. Essa episteme, reproduzida tanto pela sociologia clássica como pela tradição brasileira, projeta uma imagem invariável das sociedades centrais a partir desses pilares, relegando às “sociedades de modernização tardia” a condição de “arranjos modernos peculiares”.

Na contramão desse enquadramento, Tavolaro (2011______. Cidadania e modernidade no Brasil (1930-1945). São Paulo: Annablume, 2011.) propõe a derivação da episteme moderna a partir das noções de padrões variados de diferenciação social, padrões variados de secularização e padrões variados de separação entre o público e o privado. Tal derivação permitiria apreender tanto as configurações assumidas pelas “sociedades modernas tardias” como as vivenciadas pelas “sociedades centrais”. Além disso, o autor defende a necessidade de se conceber tais padrões de sociabilidade modernos para além das fronteiras nacionais, destacando a ideia da modernidade como processo tendencialmente global. Ainda que as sociedades centrais possam ser encaradas como iniciadoras históricas do discurso da modernidade, elas não podem ser consideradas como propagadoras e disseminadoras exclusivas do tipo de sociabilidade moderna. Portanto, a própria pressuposição da existência de rotas coerentes, lineares e nacionais em direção à modernidade se torna problemática (Tavolaro, 2011).

A partir dessa breve síntese, é possível afirmar que a teoria sociológica brasileira, em sua vertente mais crítica, se aproxima de enfoques pós-coloniais na forma como problematiza e tensiona a episteme moderna. Entretanto, notam-se diferenças significativas na construção das críticas e na própria concepção de modernidade sustentada por tais enfoques. Por isso, é preciso nos debruçarmos sobre as diferenças e especificidades observadas entre a sociologia brasileira e as epistemologias pós-coloniais, a partir da sistematização e análise do que chamamos de “distanciamentos estratégicos”.

Distanciamentos estratégicos

Em seu balanço das pesquisas sobre modernidade na América Latina, Sérgio Costa (2019COSTA, Sérgio. The research on modernity in Latin America: lineages and dilemmas. Current Sociology, v. 67, n. 6, p. 838-855, 2019.) destaca que a teoria sociológica brasileira contemporânea constitui uma resposta intermediária entre as interpretações dominantes da modernidade e o descentramento provocado pelos aportes pós-coloniais, como é o caso da teoria da colonialidade do poder proposta pelo sociólogo peruano Aníbal Quijano. Segundo Costa (2019, p. 11), no caso das teorias pós e decoloniais, o descentramento é ainda mais radical, na medida em que a própria gênese do discurso da modernidade se torna geográfica e temporalmente descentrada. Ou seja, ela não remete à Europa ou à América Latina, tendo sido moldada, de forma entrelaçada, pelas relações de poder colonial entre a Europa e o “resto” do mundo.

A ênfase está no elo constitutivo entre modernidade e colonialidade, nas relações de poder e dominação que se ancoram na classificação racial e no tráfico de pessoas e bens que constituem o projeto moderno - ou seja, tais elementos não são considerados falhas e desvios, mas constitutivos do projeto moderno. Teóricos(as) como Walter Mignolo e Madina Tlostanova (2006MIGNOLO, Walter; TLOSTANOVA, Madina. Theorizing from the borders: shifting to geo- and body-politics of knowledge. European Journal of Social Theory, v. 9, n. 2, p. 205-221, 2006.), por exemplo, levam ao limite o processo de descolonização das relações sociais e da produção do conhecimento, propondo a radicalização da ruptura, seja com a ideia unívoca de modernidade, seja com o cânone euro-norte-americano. Já a sociologia brasileira, mesmo a sua vertente mais crítica, não rompe inteiramente com o “projeto moderno”. Em vez disso, muitos(as) teóricos(as) brasileiros(as) têm destacado os perigos do abandono total de concepções críticas da modernidade e de todo um legado teórico-metodológico que ajudaria a apreender os padrões de relações e sociabilidades coloniais em suas diversas manifestações.

É nesse sentido que observamos as críticas mais relevantes na teoria social brasileira às perspectivas pós e decoloniais. José Maurício Domingues (2013______. Modernidade global e civilização contemporânea. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2013.) talvez seja o maior exemplo dentro dessa seara, na medida em que traça uma análise sobre a modernidade na América Latina e os “riscos antimodernos” que sua rejeição inequívoca pode gerar. Por um lado, localizar na modernidade o ponto zero dos males de origem do continente se mostrou histórica e epistemicamente improdutivo; por outro, negativizar a modernidade como um todo, essencializada a partir do seu dark side, como propõe Mignolo (2017MIGNOLO, Walter. Colonialidade: o lado mais escuro da modernidade. RBCS, v. 32, n. 94, p. e329402, 2017.), resulta no elogio da “tradição nativa” e na nostalgia do “purismo autóctone”.

Ainda que a discussão sobre modernidades entrelaçadas (Randeria, 2009RANDERIA, Shalini. Entangled histories of uneven modernities: civil society, case councils, and legal pluralism in postcolonial India. In: HAUPT, Heinz-Gerhard; KOCKA, Jürgen (Orgs.) Comparative and transnational history, p. 77-104. New York: Berghahn Books, 2009.; Therborn, 2003THERBORN, Göran. Entangled modernities. European Journal of Social Theory, v. 6, n. 3, p. 293-305, 2003.) presuma uma negociação constante e, por vezes, conflituosa entre diferentes contextos históricos que se cruzam, isso não acarretou o desmonte de teorias eurocêntricas e das relações de dependência epistêmica entre Norte-Sul. Domingues (2011______. Beyond the centre: the third phase of modernity in a globally compared perspective. European Journal of Social Theory, v. 14, p. 517-535, 2011.) advoga, então, uma “terceira fase da modernidade” - mais descentrada, heterogênea e complexa que as anteriores -, defendendo a validade de uma Teoria Crítica contemporânea na produção de um diagnóstico do presente, que aponte saídas para o solapamento da democracia que os sistemas de dominação - capitalismo, patrimonialismo, patriarcalismo, racismo etc. - impuseram à periferia global.

O autor sinaliza elementos emancipatórios e o horizonte de expectativas que movimentos populares na América Latina têm trazido desde os anos 1980, principalmente aqueles de base étnica ou orientados pelas questões raciais, de gênero e ambientais. Para ele, teorizar nas periferias do capitalismo, como é o caso do Brasil, deve conduzir a mudanças nos conceitos e a uma perspectiva radical de modernidade (Domingues, 2011______. Beyond the centre: the third phase of modernity in a globally compared perspective. European Journal of Social Theory, v. 14, p. 517-535, 2011.; 2018), levando em conta a própria dinâmica sociopolítica que tais sociedades demonstram. É necessário, portanto, que a sociologia brasileira, para além da mera descrição de problemáticas e estudos de casos locais, almeje teorizações gerais, com pretensões universalistas, colaborando com a sua parte para os processos futuros de emancipação no subcontinente, bem como no plano global.

Marcelo Maia (2009______. Pensamento brasileiro e teoria social: normas para uma agenda de pesquisa. Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 24, n. 71, p. 155-168, 2009.; 2013) também desfere críticas importantes a paradigmas mais engessados das teorias pós-coloniais, alertando para os perigos de se adotar tais inflexões da mesma maneira como, na história da sociologia global, abraçou-se as metanarrativas europeias no século XIX. O autor defende que a tradição sociológica brasileira buscou pensar o país desde suas especificidades e, simultaneamente, constituiu um diálogo, ora de tensão, ora de afinidade, com a imaginação social de outros países da América Latina e da Europa. Assim, um caminho possível para suplantar a lógica desigual da geopolítica do pensamento, que espelha desigualdades globais a níveis econômico e social, é entender como as questões tratadas enquanto desenvolvimentos endógenos da nossa tradição intelectual podem ganhar em sentido e inteligibilidade quando situadas à luz de redes transnacionais periféricas de ação, atuação e cooperação.

Luciana Ballestrin (2013______. América Latina e o giro decolonial. RBCP, v. 11, p. 89-117, 2013.; 2017) também tem destacado os desafios teóricos, epistemológicos e metodológicos dos enfoques pós-coloniais, levantado uma série de questões a esses aportes:

[...] é possível romper com a lógica da colonialidade da modernidade sem que abandonemos as contribuições do pensamento ocidental/europeu/iluminista [...] para a própria decolonização? Será que o êxito da sua proposta depende de sua própria condição subalterna e periférica? Qual o limite da implosão sobre a base epistemológica das ciências sociais? Será que, ao enfatizar superações e ao negar as influências do pós-estruturalismo, pós-marxismo e pós-colonialismo, o grupo [modernidade/colonialidade] não estaria criando uma nova hybris del punto cero? Como lidar com a paternidade europeia das nossas instituições e pensamentos políticos? Como verificar empiricamente hoje o sujeito colonizado? Experiências consideradas decoloniais, como o novo constitucionalismo latino-americano andino, por exemplo, estariam então livres de contradições? [...] Como operacionalizar metodologicamente a análise das escalas, níveis, esferas que a colonialidade perpassa? (Ballestrin, 2013______. América Latina e o giro decolonial. RBCP, v. 11, p. 89-117, 2013., p. 112).

Tais questionamentos nos conduzem à discussão sobre as principais divergências teóricas entre a linhagem crítica encontrada no campo intelectual brasileiro e uma vertente mais radical das discussões sobre pós e decolonialidade, em especial acerca da relação com o cânone sociológico euro-norte-americano. Nossa hipótese é que, na sociologia brasileira, parece haver, de um modo geral, maior disposição a dialogar criticamente com o cânone, mesmo que apontando seus limites,

  • i. seja porque reconhecem nele uma gramática que possibilita o diálogo entrecruzado;

  • ii. seja porque reivindicam a utilização de repertórios metodológicos considerados úteis para a análise dos fenômenos sociais; ou ainda

  • iii. porque defendem a existência de elementos de resistência e emancipação no imaginário moderno, com os quais não seria desejável romper integralmente.

Nossa reflexão revela como o diálogo entre uma vertente crítica da sociologia brasileira e as teorias pós-coloniais pode operar como via de mão dupla, marcada por contribuições recíprocas que possibilitam tanto avançar em aportes teóricos mais descentrados em relação ao cânone sociológico, quanto na construção de repertórios apropriados para a análise das mais diversas realidades locais. É a partir dessa hipótese que propomos um exercício de “releitura” de uma das principais obras de Guerreiro Ramos, A redução sociológica, de 1958, que nos permite destacar a recorrente preocupação de parte do nosso campo intelectual com questões teórico-metodológicas e respostas criativas ao desafio de lidar com a tradição sociológica hegemônica.

Uma releitura da “redução sociológica” de Guerreiro Ramos

Desde as primeiras décadas do século XX, a história intelectual e das ideias no país tem sido marcada por um imaginário modernista de inflexão crítica em relação a outras matrizes teóricas, o que exprime certa orientação antropofágica de apropriação seletiva de diferentes tradições no processo de criatividade intelectual (Santiago, 1978SANTIAGO, Silviano. O entre-lugar do discurso Latino-Americano. In: ______. Uma literatura nos trópicos, p. 11-28. São Paulo: Perspectiva, 1978.). O projeto da “redução sociológica” de Guerreiro Ramos (1996RAMOS, Alberto Guerreiro. A redução sociológica. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 1996 [1958].), ao nosso ver, exprime essa antropofagia no campo sociológico, na medida em que sistematiza o procedimento “crítico-assimilativo” de esquemas explicativos estrangeiros, sem anunciar a ruptura total com “teorias alienígenas” do Norte Global, ainda que modulando enquadramentos e técnicas às circunstâncias locais. Gostaríamos, então, de propor um exercício de “releitura” crítica desse autor, o que nos parece um caminho produtivo de aproximação entre uma tradição mais crítica da sociologia brasileira e as epistemologias pós-coloniais.

Já faz alguns anos que, no Brasil, agendas de pesquisa têm procurado destacar a relevância de intelectuais como “precursores(as)” de perspectivas pós-coloniais. Sob vieses distintos, pesquisadores(as) têm alçado a trajetória e a obra de Guerreiro Ramos como esforços vanguardistas de constituir um projeto teórico descentrado e uma agenda de pesquisa crítica ao eurocentrismo, pensando a sociologia a partir das idiossincrasias do contexto nacional (Barbosa, 2006BARBOSA, Muryatan. Guerreiro Ramos: o personalismo negro. Tempo Social, v. 18, p. 217-228, 2006.; Bariani, 2011BARIANI, Edison. Guerreiro Ramos e a redenção sociológica. São Paulo: Editora USP, 2011.; Bringel, Lynch & Maio, 2015LYNCH, Christian Edward Cyril. Teoria pós-colonial e pensamento brasileiro na obra de Guerreiro Ramos: o pensamento sociológico (1953-1955). Cadernos CRH, v. 28, n. 73, p. 27-45, 2015.; Figueiredo & Grosfoguel, 2007FIGUEIREDO, Angela; GROSFOGUEL, Ramón. Por que não Guerreiro Ramos? Novos desafios a serem enfrentados pelas universidades públicas brasileiras. Ciência & Cultura, v. 59, n. 2, p. 36-41, 2007.; Filgueiras, 2012FILGUEIRAS, Fernando de Barros. Guerreiro Ramos, a redução sociológica e o imaginário pós-colonial. Cadernos CRH, v. 25, n. 65, p. 347-363, 2012.; Lynch, 2015; Maia, 2012______. Reputações à brasileira: o caso de Guerreiro Ramos. Sociologia & Antropologia, v. 2, n. 4, p. 265-291, 2012.; 2015; Oliveira, 1995______. A sociologia do Guerreiro. Rio de Janeiro, Editora UFRJ, 1995.; Rezende, 2006REZENDE, Maria José. Guerreiro Ramos e a sociologia em “mangas de camisa”: uma proposta de intervenção nos processos de mudança social. Cadernos Ceru, v. 17, p. 33-51, 2006.). Ao buscar a inserção dentro dessa fortuna crítica, nosso objetivo é evidenciar a proposta de redução sociológica de Guerreiro Ramos como alternativa teórico-metodológica para o incremento das epistemologias pós-coloniais. Tal discussão permite explorar a hipótese das “releituras” possíveis da sociologia brasileira.

Nosso argumento parte de uma constatação e de uma aposta. Acreditamos que “viradas” epistemológicas na teoria social contemporânea - como a pós-colonial - reformataram a maneira de analisar a nossa própria história intelectual. Dessa constatação, emerge uma aposta: programas de pesquisas como a “redução sociológica”, de Ramos, constituem procedimentos originais em termos metodológicos que podem ser retomados, cultivados e exercitados, não só na sociologia brasileira atual, mas na sociologia contemporânea em escala global.

Uma releitura de Guerreiro Ramos à luz da crítica pós-colonial ajuda-nos a enfrentar o que o autor chamou à época de “centripetismo”, que é a tendência de algumas tradições intelectuais periféricas de sempre voltar-se para fora - em especial, para os centros hegemônicos - em busca de respostas prontas e modelares para a resolução de nossos problemas. Essa tendência, de acordo com a crítica do sociólogo baiano, não é algo que atinge somente o campo acadêmico; ela incide em todos os níveis de nossa vida, estabelecendo uma tensão entre os anacronismos do país, a potencialidade de suas “estruturas em geração” e as dificuldades de suscitar soluções efetivas:

Em termos superestruturais, essa tensão traduz um conflito de duas perspectivas, a do país velho e a do país novo, da mentalidade colonial ou reflexa e da mentalidade autenticamente nacional. No domínio das ciências sociais, essa tensão também se verifica. Até agora, considerável parcela de estudiosos se conduziu sem se dar conta dos pressupostos históricos e ideológicos do seu trabalho científico. Sua conduta era reflexa e se submetia passiva e mecanicamente a critérios oriundos de países desenvolvidos. [...] À assimilação literal e passiva dos produtos científicos importados, ter-se-á de opor a assimilação crítica desses produtos. Por isso, propõe-se aqui o termo redução sociológica para designar o procedimento metódico que procura tornar sistemática a assimilação crítica (Ramos, 1996RAMOS, Alberto Guerreiro. A redução sociológica. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 1996 [1958]., p. 68).

A “redução” de que fala Guerreiro Ramos exprime, entre outras coisas, uma preocupação em refletir sistematicamente sobre os pressupostos históricos, teóricos e ideológicos que conformam as ciências sociais. Já em O negro na sociologia brasileira, publicado originalmente em 1954, o autor destaca o viés ideológico - para ele, imperialista, colonialista e etnocêntrico - de conceitos fundamentais da sociologia e da antropologia europeia e norte-americana, tais como o de “aculturação” e de “mudança social”, os quais constituiriam uma “racionalização ou despistamento da espoliação colonial” (Ramos, 1981, p. 3).

À medida que esses e outros conceitos - como o de estrutura social - são apropriados de modo acrítico por estudiosos provenientes de países periféricos, a partir de um processo mimético, eles passam a atuar como um “poderoso fator de alienação”, contribuindo para a consolidação de uma “concepção quietista de sociedade”, que favorece a “ocultação da terapêutica decisiva dos problemas humanos em países subdesenvolvidos” (Ramos, 1981______. O problema do negro na sociologia brasileira. Cadernos de Nosso Tempo, p. 39-69, Brasília, Câmara dos Deputados e Biblioteca do Pensamento Brasileiro, 1981., p. 3). É interessante notar que embora Ramos proponha, nesse texto, um balanço dos estudos sobre o negro no Brasil, a crítica direcionada a diversos autores brasileiros se orienta não tanto pela concepção de raça por eles adotada - racista e, de todo modo, datada do ponto de vista científico -, mas pela atitude assumida frente ao repertório teórico estrangeiro. Portanto, é possível observar nessa crítica um esboço do que seria a sua proposta de redução sociológica como uma atitude crítico-assimilativa e uma preocupação metodológica, consideradas fundamentais para assegurar o fazer-sociológico em contextos periféricos.

Nesse sentido, acreditamos que Ramos converge com os enfoques pós-coloniais em sua crítica ao viés colonial inerente às teorias sociológicas hegemônicas. No entanto, ao nosso ver, o sociólogo baiano avança na tentativa de propor alternativas teórico-metodológicas para lidar com esse legado, respondendo a um anseio que marca o campo acadêmico nacional da época, e que ainda pode ser sentido nas críticas de teóricos(as) brasileiros(as) contemporâneos(as) endereçadas aos enfoques pós-coloniais, conforme discutido na seção anterior. Segundo Ramos (1996), a redução sociológica, seja ela praticada no domínio teórico-compreensivo, seja no domínio das operações empíricas, consiste na eliminação de tudo aquilo que, por seu caráter ideológico, acessório ou secundário, perturba o esforço de compreensão e a obtenção do essencial de um fato social.

Em termos epistemológicos, recuperar a “redução” é investir em um enquadramento que, de um lado, reflete um olhar descentrado sobre a teoria sociológica brasileira e, de outro, pode implicar contribuições da sociologia crítica brasileira para o futuro da crítica pós-colonial. Contudo, antes de avançar nessa discussão, vale elucidar em que consiste a noção de “releitura” e suas possibilidades.

Três tipos de releituras possíveis

A ideia de “releitura” deve ser compreendida como uma categoria analítica. Reler pressupõe retrospecto; implica ler de modo diferente, deslocado, heterotópico. Não se trata de “redefinir” certa tradição histórica a partir de seus fundamentos - com autores(as), ideias, projetos, contextos, disputas -, enquadrando-os em movimentos contemporâneos, de modo atemporal, como se esse conjunto de fatores anunciasse, profeticamente, o futuro; ou como se expressasse antecipações vanguardistas de novas descobertas epistemológicas. Por “releitura” sociológica compreendemos um deslocamento e um descentramento epistêmico, um novo prisma através do qual a tradição sociológica no Brasil pode ser redescoberta, reavaliada e ressignificada de modo crítico - afinal, foi este o principal tensionamento que paradigmas pós-coloniais exerceram sobre a sociologia nacional.

Tal tensionamento implica descobrir novas inflexões dentro da mesma tradição; mas também fora dela. A perspectiva analítica da “releitura” que estamos propondo - que retorna e retoma o passado em suas sinuosidades, reapropriando-se criticamente dele - é diferente, agregadora, mas apta a praticar os “corretivos necessários” na tradição (Alatas & Sinha, 2017ALATAS, Syed Farid; SINHA, Vineeta. Sociological theory beyond the cannon. London: Palgrave Macmillan, 2017.; Connell, 2007______. Southern theory. Sydney: Allen & Unwin, 2007.), que tende a ser negligente em razão de suas determinações históricas. Ao seguir esse raciocínio, podemos localizar três conjuntos importantes de releituras possíveis na teoria social.

O primeiro tipo de releitura constitui um procedimento de resgate analítico para a realização de corretivos temporais necessários, capazes de deslindar elementos da tradição sobre os quais, a seu tempo, pouco ou nada foi dito. Esse procedimento é análogo ao que Syed Farid Alatas e Vineeta Sinha (2017ALATAS, Syed Farid; SINHA, Vineeta. Sociological theory beyond the cannon. London: Palgrave Macmillan, 2017.) empreenderam em relação aos clássicos sociológicos europeus (Marx, Weber e Durkheim). Alatas e Sinha demonstram as qualidades metodológicas atemporais dos clássicos - que permanecem úteis, a despeito de diferentes contextos locais - e, paralelamente, acusam seus limites conceituais, metodológicos, políticos e ideológicos, à vista de novos deslocamentos possibilitados pelas viradas epistemológicas da teoria social.

No caso brasileiro, um exemplo seria a crítica ao racismo culturalista inerente às interpretações da geração de ensaístas de 1930 - conforme destaca Jessé Souza (2017b______. Para além de Bourdieu? Passos para uma teoria crítica da modernização. In: SOUZA, Jessé; BITTLINGMAYER, Uwe (Orgs.) Dossiê Pierre Bourdieu, p. 139-160. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2017b.) acerca dos conceitos de cordialidade e patrimonialismo elaborados por Sérgio Buarque de Holanda. Mesmo Caio Prado Jr., que parte do paradigma materialista, é criticado pelo racismo cultural constitutivo de sua proposta de modernização do país, ancorada na elevação dos padrões culturais (“aggiornamento”) de nossas matrizes coloniais - ameríndia e africana (Melo, 2019).

O segundo tipo possibilita redescobrir intelectuais que foram marginalizados(as) pela produção hegemônica do conhecimento no país, ou que habitaram tradições silenciadas, não reconhecidas ou esquecidas. Os exemplos são muitos: Alex Ratts (2007RATTS, Alex. Eu sou Atlântica. São Paulo: Imprensa Oficial; Instituto Kuanza, 2007.) com Beatriz Nascimento; Érika Mesquita (2003MESQUITA, Érika. Clóvis Moura e a sociologia da práxis. Estudos Afro-Asiáticos, v. 25, n. 3, p. 557-577, 2003.) e a sociologia da praxis de Clóvis Moura; Sandra Siqueira (2020SIQUEIRA, Sandra Maria M. A análise de Vânia Bambirra acerca da opressão das mulheres latino-americanas no lastro da teoria marxista da dependência. Germinal, v. 12, p. 99-113, 2020.) ao analisar o ostracismo de teóricas da “corrente radical” da Teoria da Dependência, como Vânia Bambirra; e Flávia Rios (2019RIOS, Flavia; SOTERO, Edilza. Apresentação: gênero em perspectiva interseccional. Plural: Revista de Ciências Sociais, v. 26, n. 1, p. 1-10, 2019.) com a trajetória de Lélia Gonzalez.

Uma terceira forma possível de releitura é a que estamos propondo neste artigo, que implica desenterrar elementos e vieses desde dentro das frestas da história intelectual e das ideias sociológicas no Brasil. Trata-se de reorientar o foco para questões que foram deixadas em segundo plano ou então interpretadas como contingentes, quando comparadas ao que foi, de fato, valorizado epistemologicamente à época. Trata-se, para dizer de outra maneira, de resgatar autores(as), conceitos e projetos teórico-metodológicos do limbo intelectual e da secundariedade a que eventualmente foram jogados, conferindo-lhes maior relevância e reconhecimento4 4 However, different to the “presentist” perspective of Olli Pyyhtinen (2010), the rereading that we are proposing here does not return to “the classics” of sociology to update them in light of contemporary problems and topics, but rather it divests those that were undervalued by their tradition of their secondary status, reevaluating their contributions in light of the new methodological and theoretical possibilities opened up by the epistemic turns in contemporary social theory. , o que favorece uma agenda de ampliação do cânone das ciências sociais (Alatas & Sinha, 2017ALATAS, Syed Farid; SINHA, Vineeta. Sociological theory beyond the cannon. London: Palgrave Macmillan, 2017.). Exemplos são os reexames críticos que Mário Augusto Medeiros da Silva (2018SILVA, Mário Augusto Medeiros da. Órbitas sincrônicas: sociólogos e intelectuais negros em São Paulo, anos 1950-1970. Sociologia & Antropologia, v. 8, n. 1, p. 109-131, 2018.) empreende de sociólogos(as) e intelectuais negros(as) em São Paulo entre os anos 1950 e 1970, como Virginia Bicudo, Eduardo de Oliveira e Oliveira, dentre outros(as); que Muryatan Barbosa (2006BARBOSA, Muryatan. Guerreiro Ramos: o personalismo negro. Tempo Social, v. 18, p. 217-228, 2006.) faz ao reler a ideia de “personalismo negro” de Guerreiro Ramos a partir de seu ativismo no Teatro Experimental do Negro, e em debate com teóricos da negritude; e que Adélia Miglievich-Ribeiro (2014; 2018) faz ao retomar Darcy Ribeiro e Paulo Freire a partir de suas relações com intelectuais de outros países latino-americanos e africanos.

Essas três modulações possíveis de “releitura” nos levam a sistematizar tanto o impacto de enfoques pós-coloniais sobre o campo sociológico no Brasil, pensado retrospectivamente, quanto os influxos que a sociologia no país, revista desde uma visada transnacional e “desprovincializada”, pode exercer sobre as abordagens pós-coloniais. Se as “releituras” têm sido possíveis graças a tensionamentos trazidos por “viradas” contemporâneas na teoria social, especialmente pelas epistemologias pós-coloniais, ao mesmo tempo, essas “releituras” de tradições sociológicas como a brasileira - em sua vertente mais crítica - podem oferecer contribuições relevantes para os aportes pós-coloniais. Para avançar nesse argumento, propomos o exercício de releitura do “diagnóstico do contexto intelectual” e as propostas teórico-metodológicas, presentes em A redução sociológica, de Guerreiro Ramos, de 1958.

A redução sociológica contra a mentalidade colonial

Conforme aventado anteriormente, Guerreiro Ramos percebia, no trabalho sociológico no Brasil dos anos 1940 e 1950, um reflexo de “dependência acadêmica e intelectual”, representado na forma de “alienação” científica e de “servidão conceitual” - tema que será desenvolvido em Mito e verdade da revolução brasileira (Ramos, 1963). O autor acusava parte da sociologia nacional de sua época de fazer uso impreciso da produção estrangeira, “alienígena”, aplicada ao Brasil de modo mecânico, servil, automático, sem atentar para os “pressupostos históricos e ideológicos do trabalho científico” num país na periferia do capitalismo (Ramos, 1996, p. 68).

De um lado, há uma crítica ácida voltada à altivez de alguns autores que compunham a tradição sociológica no Brasil, segundo ele, expressão ambígua de um vira-latismo que reflete a “condição de copista e repetidor” da elite intelectual nacional em relação a hábitos europeus (Ramos, 1996RAMOS, Alberto Guerreiro. A redução sociológica. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 1996 [1958]., p. 106). De outro, uma apreensão com a “dependência acadêmica” e os desafios para a produção de uma sociologia autônoma, pautados no abandono dos laços umbilicais que tornam o campo sociológico do país secundário e, portanto, inexpressivo em relação à proposição de “instrumentos de autoconhecimento e desenvolvimento das estruturas nacionais e regionais”5 5 This concern with epistemological colonialism and scientific autonomy appeared in other sociological fields of the Global South during the same period. We could mention Syed Hussein Alatas (1977), who undertook a similar discussion in Malaysia, Pablo Gonzalez Casanova (1969) in Mexico, and Anouar Abdel-Malek (1972) in Egypt - who, incidentally, was the one who provided the concept “Orientalism” for Edward Said. (Ramos, 1995, p. 107).

Guerreiro Ramos (1996RAMOS, Alberto Guerreiro. A redução sociológica. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 1996 [1958].) propõe algumas empreitadas para combater nossa dependência acadêmica: a liquidação da “mentalidade colonial”6 6 The critique of the “colonial mentality” is close to the phenomenon of the “captive mind”, which Syed Hussein Alatas argued was persistent in peripheral scientific traditions. Regarding Alatas and Ramos, see: Maia (2011; 2014). e seus efeitos no plano da cultura, das ideias e da política; e a apresentação de seus fundamentos históricos e ideológicos para a reivindicação e aquisição de uma “nova consciência crítica da realidade brasileira”, capaz de lidar com seus reveses estruturais e estruturantes. Essa consciência embasaria uma sociologia autônoma, autêntica, menos alienada, livre dos “grilhões imperiais”, produtora de teorias e métodos mais ajustados às demandas da realidade nacional (Ramos, 1966), pavimentando o caminho para a emergência de um “sujeito epistêmico” ou do que Ramos denominava “homem parentético”. Sobre a consciência crítica e parentética, Ramos defendia um tipo de “readestramento” ou “treino sistemático” do olhar que pudesse habilitar os cidadãos “a transcender [...] condicionantes circunstanciais que conspiram contra sua expressão livre e autônoma” (Ramos, 1996, p. 11), levando-nos a uma maior disposição para entender, enquadrar e analisar os problemas nacionais em busca de soluções efetivas. A “cultura sociológica” despontaria, nesse contexto, como componente qualitativo de resistência contra “a robotização da conduta pelas pressões sociais organizadas” (Ramos, 1996, p. 11).

Contudo, na contramão desse processo, o autor acusava nossa tradição de figurar uma “sociologia enlatada” (Ramos, 1995______. Introdução crítica à sociologia brasileira. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 1995 [1957]., p. 120) e uma “sociologia consular” (Ramos, 1996, p. 127). Tanto em Cartilha brasileira de aprendiz de sociólogo como em A redução sociológica, o intelectual baiano afirma que, no Brasil, não se formavam quadros de sociólogos(as) capazes de fazer um “uso sociológico da sociologia”. Com tal diagnóstico, nos anos 1950, Ramos afirma que o sociólogo brasileiro convencional habituou-se a incorporar a produção estrangeira de modo mecânico, sacrificando seu senso crítico pelo prestígio que poderia angariar perante o público leigo em razão do emprego de conceitos e técnicas importadas - de onde se produz a “melhor sociologia” -, mas que não se mostravam eficazes diante dos obstáculos históricos na nação (Ramos, 1966, p. 9).

Cumpre observar que A redução sociológica é uma obra em que Ramos responde às críticas feitas a ele no II Congresso Latino-Americano de Sociologia, em 1953______. O processo da sociologia no Brasil. Rio de Janeiro: Estúdio de Artes Gráficas, 1953., reformulando e aprofundando algumas das propostas apresentadas naquela ocasião, dentre elas o seu próprio posicionamento com relação a demandas metodológicas - o que permite destacar, novamente, a constante preocupação do campo sociológico brasileiro com a questão do método.

No “Prefácio à Segunda Edição” de A redução sociológica, Guerreiro Ramos afirma que muitos “expoentes da sociologia convencional no país” recusavam-se a “ajustar” técnicas estrangeiras de pesquisa às condições materiais da sociedade brasileira, temendo que pudessem alterar o teor metodológico da contribuição e dificultar o trabalho teórico. Ramos (1996, p. 26) também ataca o “purismo provinciano” que constituiria parte dessa sociologia nacional, advogando que o fazer-sociológico precisa implicar, sempre, uma modulação de técnicas e métodos científicos, bem como de conceitos e modelos analíticos, que devem ser adaptados a realidades situadas e consubstanciais a toda indagação sociológica autêntica - cuja autenticidade se mede em razão do grau de vinculação que têm com os problemas reais da vida social. A discussão sobre “sociologia autêntica” já havia sido aventada em “Sociologia Enlatada versus Sociologia Dinâmica”, apresentado naquele Congresso:

A essência de sociologia autêntica é, direta e indiretamente, um propósito salvador de reconstrução social. Por isso, inspira-se ela em uma experiência comunitária vivida pelo sociólogo, em função da qual adquire sentido. [...] Quem diz vida diz problema. A essência da vida é sua problematicidade incessante. Daí que na medida em que o sociólogo exercita vitalmente a sua disciplina é forçosamente levado a entrelaçar o seu pensamento com a sua circunstância nacional ou regional (Ramos, 1995______. Introdução crítica à sociologia brasileira. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 1995 [1957]., p. 79).

Ele também acusava a chamada “sociologia consular” do país de ser “bovarista”, ou seja, de deturpar a realidade empírica para que coubesse no enquadramento teórico-metodológico importado, incorrendo em grande falácia ao vislumbrar uma distância intransponível entre o “mundo dos sociólogos” e o “mundo dos leigos” (Ramos, 1996RAMOS, Alberto Guerreiro. A redução sociológica. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 1996 [1958]., p. 27). Para tanto, ele faz uma analogia dos “sociólogos convencionais” com os “puritanos” em matéria de gramática, que buscam uma vernaculidade linguística do português do século XVI não só inalcançável como inexistente. Guerreiro diz que a “hipercorreção em sociologia” é uma contradição em termos, “porque há muito pouco de sociologia e muito de consciência mistificada e alienada”. O que nos coloca em simetria em relação a

colegas estrangeiros não é o conhecimento decorado de suas produções, mas sim o domínio do raciocínio que implicam, e que habilita os sociólogos a fazer coisas diferentes em circunstâncias diferentes, [..] sem prejuízo da objetividade científica (Ramos, 1996RAMOS, Alberto Guerreiro. A redução sociológica. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 1996 [1958]., p. 20).

Como contraponto, Ramos advogava uma substituição do “centripetismo”, que é a atitude purista de importação de teorias euro-norte-americanas - que ele chamava de “assimilação literal e passiva dos produtos científicos importados” (Ramos, 1996, p. 68) -, por uma atitude “crítico-assimilativa”. Isso conduziria ao “uso sociológico da sociologia”7 7 According to Ramos (1996, p. 35), “the sociological reduction, although permeated by the influence of Husserl, is divergent from an eidetic social science. What we take from Husserl is not so much the philosophical content of his method as a fragment of his terminology. Additionally, the idea of the sociological reduction as it is conceived of and presented here never occurred to Gurvitch. This idea is foreign to Gurvitch who does not experience the problem of the decolonization of sociological labor”. , alicerce da redução sociológica. Ele constrói o método da redução a partir da fenomenologia de Husserl e da sociologia do conhecimento de Gurvitch. Alerta, contudo, que a ideia de redução é estranha aos intelectuais europeus, uma vez que eles não viveram o desafio da “descolonialização do labor sociológico”8 8 “Sociological reduction” is something different from an eidetic science of the social. What we took from Husserl was less the philosophical content of his method than a fragment of his terminology. Moreover, the idea of sociological reduction as conceived and expounded in this book never crossed Gurvitch’s mind. This idea is foreign to Gurvitch, who did not experience the problem of decolonizing sociological work” (Ramos, 1996, p. 35). (Ramos, 1996, p. 35), portanto, não precisam lidar com aquilo que Cheik Anta Diop (2012DIOP, Cheikh Anta. Naciones negras y cultura. Barcelona, ES: Belaterra, 2012.) denunciou, certa feita, como sendo um processo de falsificação da história, que reflete o fato de que a história de sociedades periféricas tem sido escrita apenas “do ponto de vista europeu” (Ramos, 1996, p. 49).

É nesse sentido que a redução emerge como um método de “assimilação crítica”, seletiva e antropofágica do patrimônio sociológico que vem de fora9 9 The “critical-assimilative” methodological procedure is not against international theoretical influences, and therefore, it is not possible to say that Guerreiro Ramos breaks radically with the epistemes of the Global North. He himself affirms that: “It is stupid to advocate for or condemn the importation of knowledge. All countries import science. What we are dealing with in this case is how to import it […]; it is the replacement of the “hypercorrect attitude” when confronting such a product with the critical-assimilative attitude” (Ramos, 1996, p. 20). . Esse método é um caminho de superação do que acusava de “imperialismo mimético” (Ramos, 1953______. O processo da sociologia no Brasil. Rio de Janeiro: Estúdio de Artes Gráficas, 1953.) e, com efeito, de viabilização da “sociologia autônoma e autêntica” (Ramos, 1995). Redução, portanto, não é a mera transposição de conhecimentos de um contexto social e histórico a outro; mas a própria quintessência do fazer-sociológico: uma revisão crítica do real em suas várias expressões situadas (Ramos, 1996).

Guerreiro Ramos salienta três sentidos de sua “redução sociológica”:

  • i. é um método de “assimilação crítica” da produção estrangeira ajustada situacionalmente;

  • ii. é uma atitude “parentética”, orientada por um reajuste das nossas perspectivas analíticas, ou seja, uma disposição para “pôr entre parênteses” os fatos sociais em busca dos problemas essenciais, descolando-os dos possíveis vieses ideológicos de nossas lentes teóricas e conceituais, a partir de um treino sistemático do olhar - o que permitiria perceber o mundo a partir de outra posição epistêmica;

  • iii. é um caminho de superação sociológica em sua dimensão institucional e meramente academicista, que leva em conta o potencial da sociologia como ciência do fazer e por se fazer, projeto inacabado de “elaboração de um novo saber” (Ramos, 1996RAMOS, Alberto Guerreiro. A redução sociológica. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 1996 [1958]., p. 11), cujos elementos estão postos no social concreto.

A proposta de Ramos (1996RAMOS, Alberto Guerreiro. A redução sociológica. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 1996 [1958].) converge com os procedimentos analíticos destacados por Maia (2011______. Ao sul da teoria: a atualidade teórica do pensamento social brasileiro. Sociedade e Estado, v. 26, n. 2, p. 71-94, 2011.), na medida em que a redução sociológica convida tanto à crítica conceitual a partir de outros lugares de enunciação quanto à proposição de novas abordagens analíticas para fenômenos específicos. Ademais, a releitura de sua obra - em especial, de sua proposta de redução sociológica - pode render contribuições inventivas à fortuna crítica das epistemologias pós-coloniais, na medida em que adentra a seara das discussões sobre os desafios metodológicos colocados ao fazer-sociológico em contextos periféricos.

Adrián Scribano (2012SCRIBANO, Adrián. Teorías sociales del Sur. Córdoba, AR: Universitas, 2012.) salienta que a construção de um corpus teórico envolve o cruzamento de cinco formas de apreensão do social: o epistemológico, o ontológico, o crítico, o teórico e o metodológico. Segundo o sociólogo argentino, os aportes pós-coloniais dão ênfase sobretudo aos quatro primeiros domínios, mas pouca sistematização tem sido produzida a respeito de questões metodológicas. Talvez esse seja um indício de que a sociologia não tem tido muito impacto nas epistemologias “anti, pós e decoloniais”, o que nos leva a concordar com algumas críticas levantadas por Gurminder Bhambra (2007BHAMBRA, Gurminder K. Sociology, and postcolonialism: another “missing” revolution? Sociology, v. 41, n. 5, p. 871-884, 2007.) e Julian Go (2016GO, Julian. Postcolonial thought and social theory. New York: Oxford University Press, 2016.), para quem o pensamento pós-colonial periga ser mais uma “revolução perdida” da sociologia.

Guerreiro Ramos não foge ao desafio intelectual de refletir sobre questões metodológicas. Nesse sentido, destacamos alguns elementos da sua “redução sociológica”. É uma atitude, ainda que indutiva, sistematicamente metódica, na medida em que se exime de apreender a realidade social da forma como ela se mostra imediatamente aos nossos olhos, sem que sejam avaliados os seus fundamentos e pressupostos teóricos, ideológicos e estruturais, as suas condições de possibilidades e as suas conexões de sentido. É, também, perspectivista e situada, porquanto postula uma noção de mundo em que indivíduos e objetos se encontram em uma infinita e complicada “trama de referências”, a partir da qual eles mutuamente se constituem - logo, se deslocarmos o foco analítico para outra perspectiva, tanto os problemas formulados inicialmente como os objetos analisados deixam de ser o que eram. Em decorrência dessa variabilidade, um problema sociológico não pode ser enfrentado como “desligado de um contexto historicamente determinado”. A redução sociológica, mesmo pressupondo um suporte coletivo (as vivências populares e a experiência da formação nacional) - o que sugere que a sociologia, em sentido genérico, não é um “ato de lucidez individual”, mas fundamenta-se em uma espécie de “lógica material imanente à sociedade” -, é altamente rigorosa e elaborada em termos metodológicos, apropriando-se do conhecimento histórico, do estudo sistemático dos fatos sociais e do raciocínio cientificamente embasado.

Por fim, a redução constitui um procedimento crítico-assimilativo e seletivo de influências estrangeiras, o que não implica “isolacionismo” científico e desconexão com o que é produzido a nível global, tampouco exaltação romântica de tradições endógenas. Pelo contrário: orienta-se pela “aspiração ao universal” mediatizada pela força das circunstâncias locais, regionais e nacionais, modulando o método analítico a partir do tensionamento dos problemas reais à medida que esses problemas nos são oferecidos, sem “deformá-los” para que melhor se enquadrem ao repertório teórico adotado. Desse modo, Ramos parece advogar por certa flexibilidade dos conceitos e da própria teoria à luz da realidade empírica e dos interesses pragmáticos da sociologia nacional.

Ao criticar os fascismos filosóficos (Ramos, 1996RAMOS, Alberto Guerreiro. A redução sociológica. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 1996 [1958]., p. 13), que emergem no modo chauvinista de reivindicar nacionalismos metodológicos, ele distinguia ciência em ato de ciência em hábito. Esta última pressupõe uma imaginação fictícia acerca das relações entre teoria e prática no domínio do trabalho intelectual, e por isso mesmo tende a “hipostasiar” a disciplina sociológica, tornando-a um conhecimento superprivilegiado e restrito a poucos(as). Nesse sentido, a sociologia seria ideológica e informacional, mais um legado europeu.

Já a “ciência sociológica em ato” refletiria uma atitude metódica diante da realidade concreta. Em virtude de seu lastro social, a “sociologia em ato” erige seu método e modula seus conceitos a partir do que encontra na realidade, na dinâmica das vivências. Por isso, seu futuro é deixar de ser conhecimento de especialistas, para tornar-se conhecimento prático dos cidadãos e cidadãs. No “Prefácio à Segunda Edição” de A redução sociológica, escrito em meados de 1963, Ramos (1996RAMOS, Alberto Guerreiro. A redução sociológica. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 1996 [1958]., p. 27) preconiza um tipo-ideal de sociologia pública e militante como horizonte de expectativa. Segundo ele, “a vocação da sociologia [no Brasil], aliás, é tornar-se um saber vulgarizado. A sociologia se volatizará no próprio processo social global”.

Esses elementos nos mostram o virtuosismo da redução sociológica, um programa de pesquisa rigoroso e criativo que permite a apropriação antropofágica de teorias sociais, de conceitos, de experiências intelectuais e de ideais normativos produzidos nos países do Norte Global, mas sempre orientada para a construção de um conhecimento sociológico autônomo, autoconsciente, reflexivo, crítico e preocupado com o enfrentamento de problemas sociais concretos, com vistas à conquista da autodeterminação política e intelectual de sociedades periféricas. Portanto, entendemos que a “redução” converge e complementa projetos mais radicais de descolonização do saber encontrados nas epistemologias pós-coloniais.

Considerações finais

Reler a sociologia brasileira implica revisitar diversas tradições - algumas consolidadas, outras veladas - e lançar olhares renovados sobre elas. Contudo, conforme argumentamos no início deste texto, não se trata de operar um “reencaixe” de autores(as) do passado em dinâmicas epistemológicas contemporâneas; tampouco de atribuir a eles(as) preocupações que não eram suas. Ambas as operações constituiriam deslizes anacrônicos. Assim, ainda que Guerreiro Ramos mencione em seus trabalhos intelectuais como Frantz Fanon, Cheik Anta Diop, Aimé Césaire, Abdoulaye Ly, dentre outros, não nos cabe, aqui, situá-lo como autor integrante de certo movimento pós-colonial, especialmente porque ele operacionaliza categorias que são objetos de crítica desse movimento10 10 There are various examples of it: “social evolution”, “modern history”, “development”, “universal man”, “human nature”, and “progress”, concepts of their time and place, and of the circumstances of the intellectual and political debate between the 1950s and 1970s. . Mas isso não nos impede de conjecturá-lo como autor com inspirações pós-coloniais e, mais que isso, como teórico genuinamente anticolonial, anti-eurocentrista e antirracista que cada vez mais constitui uma referência teórica relevante para os debates contemporâneos e que pode contribuir para o desenvolvimento futuro das epistemologias pós-coloniais a nível global.

Nossa proposta neste artigo foi apresentar uma releitura possível e mais arqueológica de Guerreiro Ramos, sugerindo que seus aportes devem ser pensados não só como objeto de estudo da história intelectual e das ideias no Brasil, mas como fonte de inspiração teórica e metodológica. Defendemos que sua proposta de “redução” possa ser avaliada como contribuição importante da teoria sociológica brasileira para as epistemologias pós-coloniais. Guerreiro Ramos, como teórico rigoroso e polêmico, demarcou os temas fundamentais da sociologia de seu tempo, propôs um método de investigação inovador para examinar sociedades periféricas (que ele taxava de “semicoloniais”) e ofereceu uma crítica contundente às formas de dominação, servidão, imperialismo, colonialismo e dependência. O fazer-sociológico, para Guerreiro Ramos, não é mera especulação filosófica, é trabalho de “mangas de camisa”, uma praxis, já que tem lastro e impactos empíricos e práticos.

Se os enfoques pós-coloniais já estabeleceram questões incontornáveis à teoria social e têm provocado um descentramento necessário de suas principais tradições intelectuais, apostamos na interlocução entre tais enfoques e a sociologia brasileira, considerando que esta última pode contribuir para o avanço e o aprofundamento desse movimento crítico.

A proposta de releituras possíveis da teoria sociológica brasileira permite recuperar as principais contribuições desse campo intelectual no que diz respeito, sobretudo:

  • i. à importância assumida pelas dimensões metodológicas da análise social, até mesmo como caminho para a superação das relações de dependência epistêmica entre Norte e Sul;

  • ii. ao enfrentamento dos desafios que se colocam à análise do “sujeito colonizado”, que recupera parte do legado filosófico e sociológico europeu; e

  • iii. à ênfase no caráter contraditório, variável e descentrado da ideia de “modernidade” das teorias da modernização, observada como convite a novas teorizações de alcance global, voltadas à construção crítica de novos horizontes emancipatórios e de novas articulações políticas a nível Sul-Sul.

Todas essas contribuições sugerem que, mais do que dilatar o cânone da disciplina, a sociologia brasileira parece engajada, com todas as suas especificidades e limitações, no movimento de descolonização de nosso campo disciplinar.

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  • i.
    Agradecemos aos(às) editores(as) da Sociedade e Estado e, em especial, aos(às) pareceristas pelas relevantes sugestões, que ajudaram a aperfeiçoar as hipóteses e os argumentos do artigo.
  • 1
    A diferença entre teoria social e teoria sociológica, às vezes, é considerada tênue. Por teoria social, entendemos o modo abstrato e metateórico da pesquisa nas ciências sociais (Go, 2016; Patel, 2020), pois, ao buscar esquemas mais gerais de análise, esquematiza, conceitua e explica as dinâmicas das interações, classificações, hierarquizações, reproduções e mudanças sociais. A teoria sociológica, por sua vez, é “menos geral e mais concreta, oferecendo uma reflexão sobre uma sociedade ou qualquer conjunto determinado de sociedades” (Vandenberghe, 2011, p. 19). Assim, enquanto a teoria sociológica tende a ser mais disciplinar e histórica, as proposições metateóricas e analíticas da teoria social se tornam pressupostos da teoria sociológica, que, por sua vez, informam a pesquisa empírica na sociologia.
  • 2
    Cabe mencionar, nesse sentido, as críticas à teoria da modernização estadunidense encontradas na produção de Florestan Fernandes, nos anos 1960, quando o intelectual paulista desenvolve a noção de capitalismo dependente. Fernandes destaca o caráter ideológico de seu ideário progressista e coloca em xeque a necessária relação entre modernidade e democracia. Em sua análise, a vinculação entre modernidade e autocracia constitui a condição normal imposta pelo capitalismo dependente, e não uma falha nos processos de modernização que têm lugar na periferia do capitalismo. Longe de sugerir a mera retificação das teorias hegemônicas da modernidade, tais limitações teóricas e empíricas exigiriam uma “rotação ótica” da sociologia e a formulação de novos instrumentos conceituais, capazes de abranger suas variações, bem como as condições internas e externas às sociedades que atuam sobre o caráter assumido pelos seus processos de modernização (Brasil Jr., 2017; Fernandes, 1975; 2006).
  • 3
    Entre os teóricos da tradição personalista, esse caráter pré-moderno seria resultante de uma herança cultural vinculada ao personalismo e ao patrimonialismo, legada pelo passado colonial e pelo escravismo, o que impediria a modernização plena da sociedade nacional. Já Florestan Fernandes teria destacado a persistência de elementos arcaicos, estamentais, portanto pré-modernos na constituição de uma sociedade de classes, decorrente da forma como se deu a abolição e o desenvolvimento do capitalismo, marcados pela aguda marginalização da população negra.
  • 4
    Contudo, diferentemente da linha “presentista” (Pyythnen, 2010), a releitura que estamos propondo neste trabalho não retoma “os clássicos” da sociologia para atualizá-los em vista de problemas e temas hodiernos, mas retira aqueles(as) que foram desvalorizados pela tradição de seu papel secundário, requalificando suas contribuições à luz de novas possibilidades teóricas e metodológicas abertas pelas viradas epistêmicas na teoria social contemporânea.
  • 5
    Cumpre destacar que a preocupação com a autonomia científica figurava em outros campos sociológicos do Sul Global da época, a exemplo de Alatas (1977) na Malásia, Casanova (1969) no México, e Abdel-Malek (1972) no Egito.
  • 6
    A crítica à “mentalidade colonial” se aproxima do fenômeno da “mente cativa”, que Alatas acusava ser persistente em tradições científicas periféricas. Sobre Alatas e Ramos, ver: Maia (2011; 2014).
  • 7
    Décadas depois, essa questão aparecerá no centro da análise de sociólogos(as) preocupados(as) com a reflexividade na sociologia, como Alberto Melucci (2005) e Pierre Bourdieu (2012), que enfatizaram a necessidade de conhecer os pressupostos do conhecimento sociológico, bem como os efeitos sociais que pesam sobre a produção desse conhecimento.
  • 8
    A redução sociológica “é algo diverso de uma ciência eidética do social. O que tomamos de Husserl foi menos o conteúdo filosófico do seu método do que um fragmento de sua terminologia. Além disso, jamais passou pela cabeça de Gurvitch a ideia da redução sociológica como concebida e exposta neste livro. Essa ideia é estranha a Gurvitch, que não vive o problema da descolonialização do trabalho sociológico” (Ramos, 1996, p. 35).
  • 9
    O procedimento “crítico-assimilativo” não é avesso às influências teóricas internacionais e, por isso, não é possível dizer que Guerreiro Ramos rompa, radicalmente, com as epistemes do Norte Global. Ele mesmo diz: “É esdrúxulo advogar ou condenar a importação de conhecimentos. Todos os países são importadores de ciência. O que se trata - no caso - é de como importar [...]; é a substituição da ‘atitude hipercorreta’ em face de tal produto pela atitude crítico-assimilativa” (Ramos, 1996, p. 20).
  • 10
    Como “evolução social”, “história moderna”, “desenvol-vimentismo”, “homem universal”, “natureza humana”, “progresso”, termos de seu tempo e das circunstâncias presentes no debate intelectual e político do pós-Guerra.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    05 Jun 2023
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2023

Histórico

  • Recebido
    24 Set 2022
  • Aceito
    14 Fev 2023
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