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O Brasil, a modernidade política e uma esquerda para o século XXI

DOMINGUES, José Maurício. Uma esquerda para o século XXI: horizontes, estratégias e identidadesColeção “Esquerda em Movimento”, Rio de JaneiroMauad X2021

Depois da queda do socialismo real, da hegemonia do neoliberalismo e da ascensão do multiculturalismo, a esquerda e suas vertentes mostraram-se bastante desorientadas para construírem projetos de transformação profunda da realidade. Dentro desse contexto, formular saídas de cunho revolucionário representaria, por exemplo, ortodoxia e anacronismo. No Brasil, a esquerda passa por uma profunda crise iniciada com as jornadas de junho de 2013, e que teve como consequências o golpe parlamentar de 2016 (Santos, 2017SANTOS, Wanderley Guilherme dos. A democracia impedida: o Brasil no século XXI. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2017.) e a eleição de Jair Bolsonaro em 2018. A partir de uma conjuntura bastante adversa, o sociólogo José Maurício Domingues propõe uma análise crítica sobre a esquerda e uma série de encaminhamentos político-normativos que têm como fim colocá-la junto às demandas do século XXI, através de sua teoria crítica de matriz ecumênica (Domingues, 2011; 2013; 2021b). O livro também é o aprofundamento da reflexão iniciada em Esquerda: crise e futuro (2017), em um contexto decisivo para a combalida democracia brasileira, e está organizado em uma apresentação e sete capítulos, dos quais apresentarei os elementos principais para, em seguida, tecer alguns comentários.

Na Introdução, Domingues expõe o contexto descendente em termos civilizatórios no qual o Brasil está inserido por conta da ascensão da extrema-direita à Presidência da República, da hegemonia do neoliberalismo e do rebaixamento global da cultura e de seus particulares efeitos no país. A partir da teorização de fundo que descarta essencialismos políticos, Domingues sustenta que a forte oligarquização do sistema político brasileiro foi responsável por não acolher os participantes e as demandas positivas das jornadas de junho de 2013 (p. 11), evento decisivo para a compreensão da crise brasileira atual. Também estão inseridos na Introdução os temas que serão trabalhados nos capítulos, juntamente com a defesa da construção de uma frente ampla contra os retrocessos civilizatórios e o argumento provocativo de que o livro vem para produzir incômodo e fomentar o debate (p. 12).

No primeiro capítulo, Domingues apresenta a teorização crítica sobre os elementos oligárquicos da democracia liberal e representativa, bem como do Estado contemporâneo em perspectiva global, pois defende que a modernidade política dispõe de regimes outros que a democracia, como autocracia e oligarquia (p. 15). A teorização crítica é fundamental para a análise sobre o bolsonarismo, pois não o caracteriza como singularidade política brasileira de cunho pré-moderno. Nesse sentido, defende que durante os séculos XIX e XX houve uma tendência democratizante da democracia liberal (p. 16), mas que, no século XXI, foi sobrepujada pela desdemocratização global e consequente constituição de uma oligarquia liberal avançada no controle do sistema político (p. 17). A partir desses elementos, podemos compreender a ascensão contemporânea das forças de extrema-direita, como Trump nos Estados Unidos e Bolsonaro no Brasil.

Dentro do contexto global de ascensão da extrema-direita, Domingues argumenta que a América Latina, em que pese os impulsos democráticos nos anos 1980 e 1990, tem nos sistemas políticos aspectos oligárquicos que se associam a traços neopatrimonialistas do Estado. Assim, o autor apresenta os elementos que foram decisivos para a chegada de Jair Bolsonaro à Presidência de República. Domingues procura caracterizar o governo Bolsonaro de modo a distingui-lo de seu personagem principal, pois apesar de apresentar fortes características autocráticas, o Brasil não possui um governo completamente de extrema-direita (p. 26). Domingues também articula, no primeiro capítulo, os elementos que devemos esperar da oposição democrática à extrema-direita, bem como enfoca a mudança social como traço central para a formulação de inovações políticas que renovem a democracia e o pensamento democrático (p. 28). Nesse sentido, aponta a necessidade de democratização dos partidos, bem como a incorporação de agendas relativas às mudanças climáticas, às modificações radicais no capitalismo contemporâneo e no trabalho, de forma a envolver trabalhadores plebeus, jovens e mulheres, indo assim além das políticas públicas convencionais (p. 32). O autor, contudo, não deixa de reconhecer o cenário complicado para as mudanças, sobretudo pelo protagonismo de Lula e do PT, que tendem a paralisar os movimentos de renovação e mudança que ocorriam na esquerda e na centro-esquerda. Domingues finaliza o capítulo citando Adorno e conclamando os leitores para o uso da razão no enfrentamento do irracionalismo da extrema-direita.

No segundo capítulo, o sociólogo centra sua atenção na teoria crítica e na possibilidade de utilizá-la para projetar mudanças sociais e políticas de grande envergadura. Nesse sentido, enfatiza a pouca atenção dispensada à análise política na teoria crítica e no marxismo ocidental (p. 35). Também chama atenção para a grave crise enfrentada pela teoria crítica amplamente concebida, sobretudo em razão dos avanços conceituais muito limitados. Após analisar criticamente as proposições de

Laclau, Mouffe, Hard, Negri, Dardot e Laval, o sociólogo propõe uma saída além da modernidade para a construção de um novo imaginário calcado em instituições que possam incorporá-lo, de forma a ter na democracia radical o horizonte crítico imanente (p. 48-49). Domingues encerra o capítulo defendendo a necessidade de democratizar a modernidade política de modo a fazer com que os seus valores - como liberdade igualitária e solidariedade - possam ser profundamente institucionalizados (p. 52). Também existe a defesa da união entre as correntes mais radicais com as moderadas, como a centro-esquerda, para possibilitar mudanças efetivas.

No terceiro capítulo é realizada a análise das três vertentes da esquerda nos séculos XIX e XX, isto é, social-democracia, socialismo/comunismo e anarquismo, com o objetivo de formular saídas a partir e além das matrizes que conformam amplamente a esquerda (p. 57). A exposição é iniciada pela social-democracia, especificamente por suas raízes, que fizeram como que a matriz tivesse uma adesão formal ao marxismo e convivesse com o capitalismo, pois foi descartando projetos de mudanças mais amplas que pudessem ir além do sistema e da democracia liberal (p. 61). A partir da crise do capitalismo, nos anos 1970, a social-democracia sofre uma importante mudança com a adoção do social-liberalismo, a defesa da racionalidade do mercado e a perspectiva de suporte aos mais pobres, mesmo que Espanha e Portugal tenham buscado um retorno a políticas sociais de caráter forte e universalista (p. 62).

Logo após, o sociólogo sumariza os elementos centrais do materialismo histórico, bem como o seu encaminhamento teleológico em torno da constituição final do comunismo, que representaria emancipação da espécie (p. 63). Domingues também realiza um balanço crítico da experiência soviética iniciada através de Lênin, sobretudo as mudanças que levaram o comunismo soviético a constituir uma autocracia brutal por meio do domínio de Stalin e do partido-Estado, que se configurava como grupo oligárquico fechado, o coletivismo autoritário (p. 69). Domingues também aborda o maoismo e sua relação com o partido-Estado, e sustenta que a revolução do século XX foi marcada pelo coletivismo autoritário, que não está presente na teorização de Marx (p. 77). Mesmo com a apreciação crítica, o sociólogo não deixa de expor os elementos positivos, como a ascensão social, por exemplo.

Domingues também aborda os elementos centrais do anarquismo, como suas variações desde a concepção originária e o papel de Proudhon como principal personagem dessa corrente de esquerda, além de enfocar as dificuldades que esta ideologia política carrega consigo para levar a cabo sua proposta sem ter de recorrer a hierarquias vastas e quase sem controle que existem na sociedade moderna e complexa (p. 80-81). Contudo, o sociólogo argumenta que a visão dos teóricos e militantes anarquistas em torno da horizontalização do poder político não deve ser desqualificada. No entanto, defende que não é cabível nem democrático imaginar o fim da burocracia racional-legal do Estado moderno, pois o que deve ser feito é sua democratização (p. 81).

No quarto capítulo, Domingues delimita os pontos mais problemáticos de cada uma das correntes, como a falência do socialismo real e dos seus congêneres e as limitações do Estado de bem-estar social (p. 84-86). Nesse sentido, é necessário aprofundar as tendências emancipatórias, enfrentar a questão do trabalho e fazer com que a perspectiva socialista possa se unir ao feminismo, ao antirracismo e ao ambientalismo de modo a servir de parâmetro para as utopias concretas (p. 98).

Após realizar um balanço crítico das três vertentes da esquerda, Domingues retoma sua abordagem sobre o caso brasileiro para defender a necessidade de visões de longo prazo e de estratégia para a esquerda, isto é, a formulação de projeto para a transformação profunda da realidade, pois o que predomina é uma visão imediatista na militância que, no caso do Partido dos Trabalhadores, existe desde a fundação do partido (p. 103).

No quinto capítulo, o sociólogo analisa as ações do PT e de Lula, como a questão das alianças políticas e a ausência de programa e objetivos claros e de longo prazo quando assumiu o governo (p. 107). Sobre o Partido Socialismo e Liberdade (PSOL), outro importante partido de esquerda, Domingues afirma que ele reproduz em grande parte a cultura política do PT, baseada na experiência e no imediatismo (p. 109). Como saídas, o pragmatismo e o taticismo precisam ser questionados, uma vez que foram responsáveis por levar ao oportunismo, à ausência de princípios e aos conchavos de cúpula (p. 114). É necessário também democratizar o oligárquico sistema de partidos, cujo caráter é radical na América Latina.

Após apontar ações necessárias para a reconstrução da esquerda, Domingues aborda algumas experiências recentes na Europa - o Vedes alemão e o Podemos espanhol. Apesar das diferenças entre os partidos europeus e latino-americanos, existe a defesa de que é possível a esquerda brasileira aprender com os exemplos europeus (p. 121). Mas o sociólogo afirma que, na conjunta imediata, em que o horizonte de possibilidades se mostra fechado, o imperativo principal é a construção de uma aliança em defesa da democracia (p. 122). Apenas a partir da democracia é que será possível um processo de transformação sustentável, democrático e socialista (p. 123).

No sexto capítulo, Domingues aborda o consequencialismo e os equívocos da esquerda, uma vez que os fins nobres cobraram um custo muito alto, como é o caso da Bolívia (p. 127). Domingues defende que houve a acomodação da esquerda ao sistema político marcado pela corrupção e o neopatrimonialismo - elementos limitadores da democracia na modernidade política. Existe a defesa da colocação do consequencialismo ao mínimo, de modo a possibilitar a construção de uma perspectiva efetivamente de esquerda, isto é, baseada nos ideais de igualdade e liberdade, para gerar condições para a democratização do sistema político e da própria democracia.

No sétimo capítulo, Domingues articula proposições de transformação da realidade com as questões concretas, isto é, a necessidade de se pensar no curto e médio prazos e vislumbrar o futuro em longo prazo (p. 139). O sociólogo também sustenta a necessidade de a esquerda sair do isolamento para que possa enfrentar a oligarquia liberal do governo Bolsonaro com possibilidade efetiva de transformação. Para a construção e defesa de uma democracia de alta intensidade, propõe o estabelecimento de conselhos nos entes federados, democratização dos partidos de centro-esquerda e esquerda, participação paritária das mulheres, reforma democratizadora do Judiciário. Domingues termina o livro defendendo a necessidade de superar o dogmatismo, de abrir o horizonte de possibilidade e de encarar o futuro (p. 150).

O livro de José Maurício Domingues possui muitos méritos dos pontos de vista teórico e político. O sociólogo realiza uma análise da modernidade política para além de sua caracterização idealizada e restrita às democracias liberais do Atlântico Norte, pois o autor apresenta uma teorização que oferece um diagnóstico bifurcado da modernidade política entre democracia e autocracia (Dutra & Ribeiro, 2021DUTRA, Roberto; RIBEIRO, Marcos Abraão. Existe um autoritarismo brasileiro? Uma interpretação alternativa à tese da singularidade política nacional. Revista Brasileira de Sociologia, v. 9, n. 22, p. 246-273, 2021.). Domingues nos proporciona, portanto, uma teoria política a partir da periferia e, conjuntamente, a possibilidade de questionarmos os limites de interpretações como a de Jessé Souza, que reporta uma imagem simplificada do sistema político através da defesa da dominação da elite do atraso e do consequente ódio aos pobres (Souza, 2017), que não permite que observemos, por exemplo, que o autoritarismo também é um componente dos partidos de esquerda e que a democratização desses é condição crucial para a possibilidade efetiva de reabertura do horizonte histórico em termos de mudanças sociais e políticas substantivas. Também é um contraponto à leitura de Lilia Schwarcz (2019SCHWARCZ, Lilia Moritz. Sobre o autoritarismo brasileiro. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.), que analisa o autoritarismo contemporâneo como fruto do passado tradicional e como singularidade política brasileira (Ribeiro, 2020). O livro recusa, portanto, explicações de grande convencimento público e de pouca densidade teórica e analítica.

Ao mesmo tempo, o livro de Domingues amplia análises críticas sobre a esquerda brasileira como presente em Luís Felipe Miguel (2019MIGUEL, Luís Felipe. O colapso da democracia no Brasil. Da Constituição ao golpe de 2016. São Paulo: Fundação Rosa Luxemburgo; Expressão Popular, 2019.), que constrói uma interpretação crítica da democracia e do Partido dos Trabalhadores e de seu pragmatismo desenfreado ao ocupar a Presidência da República. Assim, o livro resenhado nos permite compreender dialeticamente a generalidade e a particularidade dos dilemas da esquerda brasileira em um momento histórico decisivo para o país. A ênfase no caso brasileiro, portanto, representa uma espécie de tipo extremo dos dilemas enfrentados na modernidade política de feição global. O livro torna-se, portanto, uma referência fundamental para que possamos refletir sobre os dilemas da esquerda brasileira em um contexto político em que não há projetos de transformação profunda da realidade. A teorização de Domingues demonstra convincentemente a necessidade de a esquerda observar os seus descaminhos de modo a poder, intelectual e politicamente, construir projetos de mudança em longo prazo calcados em condições realistas para serem efetivamente realizados.

Referências

  • DOMINGUES, José Maurício. Uma esquerda para o século XXI: horizontes, estratégias e identidades. Rio de Janeiro: Mauad X, 2021a.
  • ______. Teoria crítica e modernidade política. São Paulo; Rio de Janeiro: Hucitec; Editora PUC-Rio, 2021b.
  • ______. Esquerda: crise e futuro. Rio de Janeiro, Maud X, 2017.
  • ______. Modernidade global e civilização contemporânea: para uma renovação da teoria crítica. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2013.
  • ______. Teoria crítica e (semi)periferia. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2011.
  • ______. A América Latina e a modernidade contemporânea: uma interpretação sociológica. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2009.
  • DUTRA, Roberto; RIBEIRO, Marcos Abraão. Existe um autoritarismo brasileiro? Uma interpretação alternativa à tese da singularidade política nacional. Revista Brasileira de Sociologia, v. 9, n. 22, p. 246-273, 2021.
  • MIGUEL, Luís Felipe. O colapso da democracia no Brasil. Da Constituição ao golpe de 2016. São Paulo: Fundação Rosa Luxemburgo; Expressão Popular, 2019.
  • RIBEIRO, Marcos Abraão. Lilia Schwarcz e a persistência do nacionalismo metodológico nas interpretações do Brasil. Sociologias, n. 54, p. 358-373, 2020.
  • SANTOS, Wanderley Guilherme dos. A democracia impedida: o Brasil no século XXI. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2017.
  • SCHWARCZ, Lilia Moritz. Sobre o autoritarismo brasileiro. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.
  • SOUZA, Jessé. A elite do atraso: da escravidão à Lava Jato. São Paulo: LeYa, 2017.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    05 Jun 2023
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2023

Histórico

  • Recebido
    14 Set 2022
  • Aceito
    11 Out 2022
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