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Reflexões sobre o desenvolvimento da psicologia soviética: focando algumas omissões da interpretação ocidental

Reflections on the development of soviet psychology: focusing on a few omissions of western interpretation

Resumos

O presente artigo discute algumas questões desconhecidas na Psicologia Ocidental em relação com a Psicologia Soviética, a qual se tem representado de forma dominante no Ocidente a partir de seu núcleo hegemônico de Moscou. Este artigo constrói uma nova interpretação em relação a alguns dos eixos relevantes da Psicologia Soviética que permaneceram ocultos sob o domínio da Teoria da Atividade, a qual norteou a Psicologia Soviética até meados dos anos setenta do século passado. Junto com essa análise histórica, são trazidos à luz alguns psicólogos soviéticos muito pouco conhecidos no Ocidente, cujas posições são discutidas em diálogo com algumas das posições mantidas por L. S. Vygotsky em diferentes momentos de sua obra.

psicologia soviética; personalidade; comunicação; história; reflexão


This paper discusses issues which have remained unknown concerning Soviet psychology in Western Psychology, which has been dominantly represented on the basis of its Moscow's dominant core. The paper builds a new interpretation concerning some of the axis of the history of that psychology which remained in dark under dominant Theory of activity, which ruled Soviet psychology until the middle of the seventies decade of the last century. Besides this historical analysis, some of the more relevant Soviet psychologists, who have been quite unknown in the Western, are bringing into the light in dialog with some of L.S.Vygotsky's positions in different moments of his work.

soviet psychology; personality; communication; history; reflection


ARTIGOS

Reflexões sobre o desenvolvimento da psicologia soviética: focando algumas omissões da interpretação ocidental

Reflections on the development of soviet psychology: focusing on a few omissions of western interpretation

Fernando Luis González Rey

Universidade de Brasília, Brasília-DF, Brasil

RESUMO

O presente artigo discute algumas questões desconhecidas na Psicologia Ocidental em relação com a Psicologia Soviética, a qual se tem representado de forma dominante no Ocidente a partir de seu núcleo hegemônico de Moscou. Este artigo constrói uma nova interpretação em relação a alguns dos eixos relevantes da Psicologia Soviética que permaneceram ocultos sob o domínio da Teoria da Atividade, a qual norteou a Psicologia Soviética até meados dos anos setenta do século passado. Junto com essa análise histórica, são trazidos à luz alguns psicólogos soviéticos muito pouco conhecidos no Ocidente, cujas posições são discutidas em diálogo com algumas das posições mantidas por L. S. Vygotsky em diferentes momentos de sua obra.

Palavras-chave: psicologia soviética; personalidade; comunicação; história; reflexão.

ABSTRACT

This paper discusses issues which have remained unknown concerning Soviet psychology in Western Psychology, which has been dominantly represented on the basis of its Moscow's dominant core. The paper builds a new interpretation concerning some of the axis of the history of that psychology which remained in dark under dominant Theory of activity, which ruled Soviet psychology until the middle of the seventies decade of the last century. Besides this historical analysis, some of the more relevant Soviet psychologists, who have been quite unknown in the Western, are bringing into the light in dialog with some of L.S.Vygotsky's positions in different moments of his work.

Keywords: soviet psychology; personality; communication; history; reflection.

Introdução

Um dos grandes problemas que a psicologia apresentou em seu desenvolvimento histórico foi a falta de atenção às questões teóricas em decorrência não apenas da orientação francamente positivista de sua institucionalização como ciência, mas também de sua incapacidade para lidar com o teórico. As teorias em psicologia com grande frequência têm aparecido e se desenvolvido basicamente como dogmas, orientadas por adesões acríticas e posicionamentos a-históricos que as usam como verdades, e não como sistemas de inteligibilidade em permanente movimento. De outra parte, a orientação empírica hegemônica na pesquisa psicológica ignorou o caráter gerador das ideias, subordinando-as às evidências empíricas. Esse contexto ateórico dominante é uma das questões que limitou a consideração da história dos sistemas teóricos como recurso de inteligibilidade e desenvolvimento de suas próprias propostas.

No Ocidente, de forma geral, uma leitura de Vygotsky, definida pelas interpretações de autores norte-americanos que se popularizaram com força nas décadas dos anos setenta e oitenta do século anterior (Bruner, 1985 e Werscht, 1985, entre outros), tem sido dominante. Essas valiosas interpretações, que permitiram introduzir Vygotsky no contexto da psicologia norte-americana e ocidental de uma forma geral, ficaram inseparáveis das posições teóricas dos intérpretes, o que implicou uma ênfase naqueles conceitos e ideias do autor que eram mais afins aos posicionamentos dos intérpretes, o que em geral acontece em toda interpretação.

O desconhecimento acerca da Psicologia Soviética no Ocidente, assim como o caráter dominante que teve a Teoria da Atividade na Psicologia Soviética, facilitou que os primeiros contatos dos autores ocidentais com aquela psicologia fossem com representantes e seguidores da Teoria da Atividade, pois eram, inclusive, os que mais possibilidades tinham para se relacionar com estrangeiros de forma geral. Esse foi outro fato que dificultou o conhecimento de algumas das tendências e contradições principais daquela psicologia no Ocidente, apresentando-nos as figuras de Vygotsky e Leontiev como a Psicologia Dialética ou a Psicologia Marxista.

Este artigo apresenta um breve panorama de algumas tendências importantes que caracterizaram o advento da Psicologia Soviética, de algumas de suas contradições iniciais e discute alguns dos autores que marcaram o desenvolvimento das diferentes linhas de pensamento naquela psicologia e que até hoje são desconhecidos na Psicologia Ocidental.

A obra de Vygotsky na época soviética foi publicada de forma irregular e incompleta e muitos de seus trabalhos só apareceram depois das profundas mudanças que aconteceram na psicologia soviética logo após o V Congresso da Sociedade de psicólogos soviéticos ocorrido em Moscou em 1977, que teve como tema central "O problema da atividade na psicologia soviética". Esses tempos coincidiram com mudanças no próprio poder institucional da psicologia soviética, processos que aconteceram ainda dentro da época soviética.

Em vários trabalhos anteriores tenho apontado o risco de uma leitura descontextualizada da obra de Vygotsky (González Rey, 2007, 2009). Vygotsky foi parte inseparável de uma época e de um sistema de pensamento, e a separação desse autor desse contexto e desse clima intelectual representa uma fonte de distorção para a interpretação de suas próprias ideias.

Assim, pretende-se no presente artigo trazer ao leitor o momento histórico e os caminhos de um sistema em desenvolvimento, do qual formam parte as teorias mais conhecidas de Vygotsky e Leontiev no Ocidente.

Os primórdios do desenvolvimento da Psicologia Soviética: tendências e contradições.

A psicologia na Rússia teve duas fontes essenciais antes do período soviético que foram profundamente influentes nas suas primeiras obras: a neurofisiologia e a filosofia. Ambas eram preponderantes nos meios intelectuais Russos. A primeira no campo das ciências, de firme orientação materialista e experimental. As figuras mais destacadas nesse campo foram Sechenov (1829-1905) e seus discípulos Pavlov (1849-1936), Bechterev (1857-1927) e Ujtomski. A filosofia, porém, influenciou mais as ciências sociais de forma geral, e foi responsável pela criação do primeiro Instituto de Psicologia da Universidade de Moscou, em 1912, ainda que a inauguração oficial tenha acontecido somente em 1914. Nela predominava uma orientação idealista (Chelpanov, 1912; Schpet, 1996; Troistki, 1882).

No período pré-revolucionário, a filosofia se orientou fortemente ao desenvolvimento da psicologia e foi através desses filósofos idealistas que se destacou o lugar da cultura na gênese e desenvolvimento da psique humana. Troitski foi pioneiro desse movimento, fazendo importantes aportes para uma compreensão cultural e histórica da psique humana. Budilova, uma das historiadoras da psicologia mais importantes do período soviético, afirmou que a tese doutoral dele "foi o primeiro trabalho psicológico Russo de caráter histórico" (Budilova, 1983, p. 19).

Troistki ocupou a cátedra de psicologia na carreira de filosofia da Universidade de Moscou e foi organizador e presidente da Sociedade de Psicologia de Moscou. Mesmo que a psicologia ainda não existisse como campo independente de formação e saber, antes do triunfo da Revolução de Outubro já existia essa sociedade associada principalmente à filosofia.

A importância da cultura no desenvolvimento do pensamento é colocada por Troitski, que sobre essa relação nos diz: "Os conceitos configuram a forma cultural do pensamento humano, se apresentando como um poderoso órgão de relações sociais" (p.62) (citado por Budilova, 1983, p. 25).

Esse movimento da filosofia orientado à psicologia teve sua mais forte expressão no grupo que se reunia ao redor de Chelpanov (1862-1936), também filósofo. Chelpanov conheceu a Psicologia Europeia pessoalmente, visitou os laboratórios de psicologia de importantes instituições europeias, destacando-se seu relacionamento com Wundt em Leipzig, com quem estabeleceu excelentes relações pessoais. Em 1907, Chelpanov volta a Moscou de onde tinha saído entre 1892 e 1906 para Kiev, onde trabalhou e fez seu doutorado em Filosofia. Em seu retorno, ocupa a cátedra de Filosofia na Universidade de Moscou, convidando o seu amigo e discípulo Schpet para vir a Moscou. Desde a cátedra de filosofia da Universidade de Moscou organiza um seminário de psicologia, no qual participam algumas das pessoas que seriam alguns anos depois os pioneiros da Psicologia Soviética, entre eles, P. Blonsky, K. Kornilov e P. Rudik. O grande sucesso desse seminário e seus contatos com figuras e institutos da Psicologia Europeia levam Chelpanov a pensar na fundação de um Instituto de Psicologia na Universidade de Moscou. Chelpanov foi o gestor e primeiro diretor desse Instituto, inaugurado oficialmente em 1914, como foi dito antes.

Chelpanov desde antes da Revolução de Outubro tinha advertido sobre os perigos do reducionismo fisiologista para a psicologia: "Os defensores do materialismo, falando sobre os processos psíquicos, de fato, sempre pensam nos processos fisiológicos" (Chelpanov, 1912, p. 108). Essa tendência a reduzir a psique humana a processos de outra natureza será criticada nos anos cinquenta por Rubinstein, o que evidencia que foi uma tendência que se consolidou na Psicologia Soviética.

Como resultado do embate de Chelpanov contra o materialismo fisiologista que ia se impondo na psicologia nos primeiros anos posteriores à Revolução de Outubro, dois dos seus antigos discípulos, Kornilov e Blonsky, se enfrentaram com ele, no que foi uma disputa de caráter político, e Chelpanov deixou de ser diretor do Instituto de Psicologia em 1923. Kornilov passou a ser o novo diretor, exercendo o cargo entre 1923 e 1930 e posteriormente entre 1938 e 1941. Kornilov teve um papel essencial na orientação da psicologia sobre as bases do Marxismo, e seria o homem que iria trazer Vygotsky à Universidade de Moscou logo depois de II Congresso de Psiconeurologia de toda Rússia ocorrido em 1924.

Mesmo apesar de suas diferenças com Chelpanov, Kornilov compartilhou com ele a ideia da irredutibilidade dos processos psíquicos aos processos neurofisiológicos. Entretanto, diferentemente dele, vai a procurar a materialidade do psiquismo humano no princípio do reflexo, que foi assumido como premissa para a definição da psicologia marxista durante todo o período soviético.

A partir do princípio do reflexo, tomou forma na psicologia o que fora definido na Filosofia Marxista Soviética como o problema fundamental da filosofia: o caráter primário do ser em relação à consciência. Esse princípio é assumido integramente por Kornilov quando escreve:

Uma vez que as nossas percepções não são mais nada do que o reflexo subjetivo do ser que existe independentemente da consciência, fica claro que, sem esse ser não pode existir a consciência, ou seja, nada será refletido sem ele, sem mudanças no ser não existiriam mudanças na consciência. (Kornilov, 1925, pp. 93-94)

Opondo-se ao idealismo no sentido de que sem existência humana não existe consciência, que é uma colocação legítima, Kornilov, entretanto, retira todo poder ativo e gerador da consciência ao enfatizar que sem mudanças no ser não existiriam mudanças na consciência. A consciência é considerada como um reflexo do externo, o que levou à afirmação da identidade entre o externo e o interno, o propriamente psicológico, que durante muito tempo vai nortear a psicologia soviética, posição que não foi alheia a nenhuma das tendências que foram marcantes naquela psicologia.

A partir desse princípio, o externo passa a ter um caráter hegemônico, razão pela qual a compreensão da gênese e desenvolvimento da psique se orienta mais por um determinismo mecanicista do que por um posicionamento dialético. O interno passa a ser considerado apenas como uma imagem do externo, o que favorece uma psicologia centrada no objeto, onde sujeito e relações passam a ter um lugar completamente secundário, posição que se expressa em toda sua plenitude na Teoria da Atividade de A. N. Leontiev.

Em minha opinião, esse lugar passivo e secundário atribuído à consciência na concreção do problema fundamental da filosofia na psicologia teve três consequências que irão marcar a Psicologia Soviética durante todo o seu desenvolvimento:

Primeiro, a "objetualização" do ser, que aparecia definido pelos atributos da realidade concreta e que levou à consideração do externo como objeto. O objeto material, concreto, foi a forma mais tranquila de pensar o mundo externo sem preocupações de confusão com um posicionamento idealista. O objeto representou uma categoria idônea para garantir o caráter objetivo da psique sem desconsiderar a sua natureza social, toda vez que esse objeto é socialmente produzido, porém, concreto e material.

Segundo, ao desconsiderar os processos de relação entre as pessoas, essa "objetualização" do externo implicou a desconsideração de categorias que já tinham avançado o suficiente para serem consideradas no contexto daquela psicologia, pelo menos na época em que a Teoria da Atividade universalizou sua definição de atividade objetal. As categorias de diálogo e comunicação ficaram excluídas daquele marco teórico centrado no objeto.

Terceiro, a "objetualização" da definição de atividade na obra A. N. Leontiev foi dominante em relação à consideração da unidade inseparável da consciência e à atividade defendida por Rubinstein, a qual, na opinião de Zinchenko (2002), terminou funcionando apenas na direção da atividade à consciência. Paradoxalmente, essa ênfase na atividade com objetos implicou que a procura por uma definição marxista da psicologia culminasse em uma definição individualista da atividade humana centrada na díade "sujeito – objeto". Não é à toa que as psicologias clínica e social, nas quais o foco é a relação "sujeito – sujeito" em seus múltiplos níveis de expressão, foram as áreas menos desenvolvidas da Psicologia Soviética.

O caminho aberto por Kornilov estabeleceu as bases para uma psicologia objetiva centrada no reflexo, na qual o sujeito e a subjetividade desapareciam, aparecendo a consciência como um epifenômeno do externo. Essa definição marcou de forma geral toda a Psicologia Soviética, mas de forma muito particular a psicologia que se desenvolveu em Moscou, onde o grupo liderado por Kornilov foi dominante. O próprio Vygotsky foi fortemente influenciado por essa tendência e seu trabalho sempre esteve atravessado pela contradição entre a procura das bases para o desenvolvimento de uma psicologia objetiva, caminho indicado por Kornilov para o desenvolvimento de uma Psicologia Marxista, e sua convicção mais profunda do caráter ativo e gerador da psique, que o fez se aproximar aos processos afetivos através da procura da unidade da cognição e o afeto (González Rey, 1983, 1999, 2002, 2009a, 2009b).

A tendência defendida por Kornilov em Moscou não foi a única tendência que alimentou o desenvolvimento da Psicologia Soviética, ainda que tenha sido muito relevante na consideração estudo do comportamento como a via essencial da objetividade na psicologia, tendência essa que influencio alguns dos primeiros trabalhos de Vygotsky (Veresov, 1999; Yarochevsky,1993).

Algumas das tendências centrais da Psicologia Soviética externas ao "mainstream" de Moscou liderado pela Teoria da Atividade

Neste tópico irei apresentar a obra de alguns dos autores soviéticos que desenvolveram todo seu trabalho ou partes importantes dele fora de Moscou, e que de forma geral se opuseram às interpretações dominantes de A. N. Leontiev, apresentadas até hoje no Ocidente como as legítimas herdeiras da obra de Vygotsky. Esse pensamento vigorou mesmo com as contundentes críticas que nos últimos anos tem recebido essa tendência orientada a identificar ambos os autores (Yarochevsky, 1993; Zinchenko, 1997; Veresov, 1999).

Todos os autores apresentados aqui sobreviveram a Vygotsky e também foram seus contemporâneos, com exceção de Ananiev que se doutorou já nos últimos momentos da vida de Vygotsky. O que caracterizou cada um deles foi o fato de ter sido pioneiro de uma linha própria de trabalho dentro daquela psicologia, o que implicou o desenvolvimento de discípulos e instituições em torno deles que continuam sendo relevantes até hoje na Psicologia Russa.

B. G. Ananiev (1907-1972) desenvolveu sua obra em Leningrado, e defendeu seu doutorado no "Instituto para o estudo do cérebro V. M. Bechterev" em 1937. Centrou-se no desenvolvimento dos estudos sobre a sociogênese da psique humana, não limitando o social à relação dos indivíduos com os objetos, mas se aprofundando em processos mais abrangentes do funcionamento social, incluindo os temas institucionais.

Ananiev enfatizou o papel da cultura na formação social da consciência, sobre o qual escreveu (1977):

O condicionamento histórico-social das inter-relações entre o homem e a natureza representa um importante elo na cadeia da determinação material da consciência ... nessa cadeia tem um papel fundamental o meio artificial criado pela sociedade como conjunto das condições materiais e culturais da vida do homem (p. 152).

O autor explicitou algo que não apareceu em outros autores soviéticos; o caráter artificial, produzido, da cultura como construção humana, o que lhe separa da representação da cultura como reflexo das condições materiais, mesmo que possa se observar que em seu linguajar se conserva a ideia da "determinação material da consciência", jargão litúrgico que passou a ser um requerimento implícito da reflexão teórica.

Outro aspecto importante da obra de Ananiev foi o resgate do sujeito no processo de formação social da mente, ideia que ficava de fora da noção de interiorização defendida por Vygotsky entre 1928 -1931, e que fora o conceito central empregado por Leontiev para explicar a formação social da psique.

Sobre a relevância do sujeito, Ananiev escreveu:

O problema da determinação social diferentemente do problema mais geral do condicionamento causal da consciência pela matéria, inclui em si mesmo a qualidade do homem como sujeito de sua atividade, num processo em que transforma seu próprio meio social. (1977, p. 152)

A pessoa é definida como sujeito pela sua posição ativa no processo da atividade, mesmo que numa linguagem bem cuidadosa para evitar qualquer tipo de suspeita sobre idealismo, tema que ainda era tabu nos anos sessenta do século XX. A escola de Ananiev enfatizou o lugar do sujeito, das relações sociais e da comunicação, e seus discípulos, em particular Lomov1 1 Boris Fedorovich Lomov. Diretor do Instituto de Psicologia da Academia de Ciências da União Soviética até 1993. Membro correspondente da Academia de Ciências da União Soviética. Figura de maior peso político na Psicologia Soviética entre os anos setenta e oitenta do século passado. Abriu uma polêmica frontal sobre as limitações da Teoria da Atividade na Psicologia Soviética (Lomov, 1979). , desenvolveram uma forte crítica ao caráter central dado por A. N. Leontiev à atividade com objetos. Essa não foi apenas uma confrontação Lomov-Leontiev, mas representou uma expressão de formas diferentes de ver a psicologia no interior da Psicologia Soviética.

Ananiev, assim como Rubinstein como veremos mais adiante, fez uma crítica ao conceito de interiorização que foi congruente com o papel que atribuiu ao sujeito na sua obra. Ele escreveu:

Só pelo caminho da interiorização do objetivo não se pode realizar essa atividade cognitiva ativa no processo de inter-relação entre a personalidade e a comunicação. A participação imediata no desenvolvimento histórico dos valores morais da sociedade se realiza como resultado da atividade criadora, da produção de novos conhecimentos, de novos valores espirituais da sociedade. O mundo objetivo interno do homem, seus projetos criativos e a realização de suas potencialidades constituem um momento necessário da influência da personalidade na sociedade, da transformação do pessoal em social. (Ananiev, 1977, p. 165)

O autor enfatiza o posicionamento ativo e criativo da pessoa como momento necessário de transformação do social pela pessoa, superando dessa forma a ênfase na assimilação que foi produto da identificação da estrutura interna e externa da atividade como resultado da compreensão do interno através da interiorização.

Em relação com a linguagem, outro tema forte da Psicologia Soviética, Ananiev expressa:

a linguagem representa aquele meio essencial da comunicação por meio do qual o processo de assimilação dos conhecimentos mais complexos da criança se realiza, é dizer, o processo do estabelecimento do pensamento lógico e de outras formas mediadas de sua atividade cognitiva. Mas esses processos não acontecem só na linguagem, como frequentemente tem se tratado como fetiche ao considerar ele como fator do desenvolvimento psíquico, mas na síntese da comunicação e o conhecimento que constituem a base da linguagem e da fala. (1977, pp.164-165)

Ananiev apresenta a linguagem dentro do contexto social da comunicação mediada pelo sujeito que fala através do conhecimento, colocando assim a significação da linguagem como sendo inseparável do contexto social e psicológico em que ele se expressa. Com isso, o autor desmistifica o lugar absoluto que às vezes se atribui à linguagem, tanto na definição de psique quanto de cultura nos rumos que a teoria de Vygotsky tomou no Ocidente, mesmo com as limitações que expressa ao reduzir os fatores do sujeito ao conhecimento e os processos cognitivos.

Ananiev considerou a comunicação como o processo central para o desenvolvimento da pessoa, representando a personalidade como a expressão mais integral desse desenvolvimento. A definição de Ananiev de comunicação será um relevante antecedente do importante lugar que se atribuirá mais tarde a esse conceito na Psicologia Soviética. Sobre a comunicação, Ananiev colocou:

No processo de comunicação ocorre não apenas um intercâmbio de idéias por meio da fala, mas como claramente aparece em qualquer atividade conjunta, a comunicação se associa com umas ou outras vivências de simpatia e com um conjunto de resultados de cooperação, assim como também com diferentes conflitos e contradições morais. (1977, p. 166)

Ananiev vai considerar os aspetos emocionais e contraditórios da comunicação como processo vivo que inclui os sujeitos envolvidos nela. O peso dado à comunicação por Ananiev lhe permite trazer à Psicologia Soviética um tema que também esteve ausente naquela psicologia: a questão dos grupos.

A obra de Ananiev em conjunto com a de Miasichev constituiu a base para uma autêntica psicologia social e institucional na psicologia soviética, estas que foram duas de suas áreas menos desenvolvidas.

V. Miasichev foi o principal discípulo de Lazursky e, como ele, manteve um forte interesse pela personalidade e pelo desenvolvimento da psicologia clínica, ainda que incorpore ativamente nesses campos a questão da comunicação e das relações sociais.

Miasichev foi um dos psicólogos mais contestatórios da época soviética, sendo ele o que expressou uma crítica social mais ativa, e também um dos que mais cedo se posicionou criticamente sobre a Teoria da Atividade de A. N. Leontiev, tida nos anos sessenta e princípios dos setenta do século passado como a "Psicologia Marxista" oficialmente reconhecida. A partir dos processos de comunicação social implicados na gênese das neuroses e do estudo das relações institucionais não sadias, esse autor cria as bases para o desenvolvimento de uma psicologia social crítica na União Soviética, tendência que foi retomada por Bodaliev na década dos anos oitenta do século XX2 2 Nessa década dos anos oitenta Bodaliev foi presidente da Academia de Ciências Pedagógicas da URSS.

As posições críticas de Miasichev aparecem com força desde fins dos anos cinquenta do século passado. O autor tocou temas nessa época que nenhum outro psicólogo soviético se arriscou a tratar. Assim, em relação à liberdade, ele afirmou:

Nas condições de livre inter-relação podem ser expressas relações autênticas, mas em condições submetidas à pressão e a repressão, nas condições de ausência de liberdade e de dependência de uma pessoa a outra, as relações não se expressam em inter-relações autênticas, mas em relações que se ocultam e se mascaram. (1960, p.216)

Ao centrar no estudo das relações sociais, Miasichev não desconsidera o contexto em que elas se desenvolvem, avançando na compreensão do social como um sistema que não se esgota no intersubjetivo atual, o que fica claro na seguinte afirmação:

O caráter das inter-relações humanas se define pela qualidade dessas relações, isso fica claro, mas essa qualidade não depende só dos processos envolvidos nessas relações, ela depende das condições externas em que essas relações tem lugar, assim como da posição social das pessoas em relação. (1960, p. 216)

Os temas da liberdade e do clima social em que as pessoas se desenvolvem nas instituições e as consequências desses processos na personalidade representam uma das preocupações centrais do autor. O externo deixa de ser analisado na dimensão ascética dos objetos, como propôs a Teoria da Atividade, e passa a ser compreendido como a complexa teia dos processos sociais, algo que tinha ficado completamente fora da atenção dos psicólogos soviéticos nessa época.

Essa preocupação de Miasichev abre temas inéditos para diferentes áreas da psicologia soviética, temas esses que foram assumidos e desenvolvidos na década de oitenta do século XX. Aprofundando nesses temas de caráter social e institucional, Bodaliev escreve:

É preciso o desenvolvimento de pesquisas especiais para conhecer o efeito da personalidade do dirigente sobre as esferas cognitiva, emocional e volitiva de seus subordinados. Como continuação dessa pesquisa é preciso descobrir, sistematizar e generalizar os erros típicos cometidos pelos dirigentes em relação aos subordinados e analisar as causas de sua aparição, assim como as conseqüências de cada um desses erros. (1983, p. 134)

A citação anterior corresponde a um momento de balanço muito crítico da psicologia soviética que já tinha começado no V Congresso da Sociedade de Psicólogos da União Soviética que teve lugar em 1977. Nela o autor destaca o que, em minha opinião, foi o traço principal do trabalho de Miasichev: a definição da personalidade dentro dos acontecimentos mais relevantes da vida social que aconteceram no país naquele momento histórico, assumindo uma vida social real, formada por homens em relação dentro de instituições e contextos sociais e políticos bem definidos, o que vai muito além do individuo abstrato nas suas relações com objetos concretos a - subjetivados.

O enfoque que o autor apresenta orienta-se à compreensão da personalidade como expressão da qualidade da vida social das pessoas, transformando assim essa categoria num tema essencial de estudo para as psicologias clínica e social. A ênfase na personalidade permitiu discutir questões que estiveram ausentes por um longo tempo naquela psicologia.

Miasichev, assim como Ananiev, apresentou uma concepção do social mais complexa e desenvolvida daquela que expressaram os pioneiros da psicologia soviética, indivíduos que também tinham vivido em um momento histórico diferente.

S. L. Rubinstein (1889-1960) foi, possivelmente, junto com Vygotsky, o psicólogo que mais influenciou teórica e metodologicamente a Psicologia Soviética. Quando foi convidado para dirigir a Cátedra de psicologia do Instituto Pedagógico Hertzen de Leningrado em 1930, Rubinstein, que tinha feito seu doutorado de filosofia na Alemanha, já tinha publicado importantes trabalhos sobre a teoria do conhecimento,os quais foram a base para muita de suas contribuições à psicologia.

Em 1934 e desde essa importante instituição pedagógica (lembrando-se que nessa época a psicologia estava subordinada à fisiologia, à filosofia e à pedagogia), Rubinstein escreveu seu importante artigo "Os problemas da psicologia nos trabalhos de Marx", no qual aplicou as posições essenciais do Materialismo Dialético e a categoria Marxista de atividade à psicologia, formulando um princípio metodológico essencial e que passaria a ser central na identidade da nascente Psicologia Soviética: o princípio da unidade da consciência e da atividade, destacando a categoria personalidade como sujeito dessa unidade (Abuljanova & Bruschlinsky, 1989).

A obra de Rubinstein teve um perfil filosófico, e suas análises principais estiveram orientadas ao desenvolvimento de princípios teóricos e metodológicos centrais da psicologia. Por causa de sua formação filosófica, Rubinstein foi capaz de uma crítica às matrizes do pensamento psicológico da época que, como no caso de Vygotsky, implicavam uma profunda crítica da psicologia daquele tempo.

Rubinstein, assim como Vygotsky, nos apresenta uma obra cheia de importantes e sugestivas ideias. Entretanto é uma obra também profundamente contraditória, pois nela as ideias do autor também assumem princípios da época que entram em contradição com alguns dos núcleos centrais do seu pensamento.

No centro das preocupações de Rubinstein está a pessoa como personalidade, que seria o sistema integral que vai desenvolver procurando a unidade entre a cognição e o afeto. Os termos de personalidade e consciência foram centrais no trabalho de Rubinstein, procurando com o uso de ambos sinalizar a presença da psique como sistema, tanto na atividade humana como na expressão das diferentes funções psíquicas. Porém não consegue ser consequente com esse posicionamento ao longo de sua obra, ficando ainda num nível exclusivamente gnoseológico e racionalista da compreensão da consciência. Em Rubinstein é possível constatar a mesma contradição que se expressa na obra de Vygotsky entre o caráter gerador da consciência e a compreensão da psique como um reflexo, que encontra na cognição uma via mais eficiente de expressão.

No seu livro O Ser e a Consciência, o autor coloca:

Todo processo psíquico tem um aspeto cognoscitivo, mas não se reduz a ele. Como regra geral, o objeto reflexo nos fenômenos psíquicos afeta as necessidades e os interesses do individuo pelo que provoca nele uma determinada atitude emocional e volitiva (ânsias, sentimentos). Todo ato psíquico concreto, toda "unidade" da consciência compreende ambos componentes: um intelectual ou cognoscitivo, e outro afetivo ... Porém, é precisamente no aspecto cognoscitivo do processo psíquico onde se manifesta com singular destaque a conexão dos fenômenos psíquicos com o mundo objetivo. (1965, p. 14)

Mesmo num esforço pela consideração do sujeito na relação com o objeto, Rubinstein não pôde evitar o reducionismo cognitivo de sua colocação ao destacar que é no aspecto cognitivo que melhor se manifesta a conexão dos fenômenos psíquicos com o mundo objetivo, sendo precisamente essa razão, que no fundo está orientada pelo destaque ao objeto material concreto, um dos elementos que motivou o caráter dominante do estudo da cognição na Psicologia Soviética.

Mas, assim como Vygotsky no primeiro e último momentos de sua obra, Rubinstein também tenta evitar o reducionismo mecanicista que pressupõe a noção do reflexo, e na maioria dos seus trabalhos nos fala de refração, e não de reflexo. Rubinstein também foi um crítico da forma que tomou o conceito de interiorização na obra de Leontiev. Sobre a interiorização, Rubinstein escreveu:

Ultimamente se apresenta entre nós essa concepção como "línha" de Vygotsky (refere-se à concepção defendida por Leontiev), mesmo que a variada e densa concepção psicológica de Vygotsky de nenhum modo possa ser reduzida ao principio da interiorização. A interiorização tal como ela foi compreendida por Vygotsky (ele a chamava de "reversão") referia-se diretamente ao que ele entendia como instrumento fundamental para estruturar as funções psíquicas "superiores" do homem: ao conceito de signo. (1964, p. 338)

Na referida citação, podem se observar duas questões muito importantes: uma é a especificação da forma em que Vygotsky compreendeu o termo de interiorização, que ele diferencia do uso do termo na obra de Leontiev; e a outra, o esclarecimento sobre o fato de que o uso do termo por Vygotsky esteve orientado à solução de uma questão pontual de sua obra, não sendo um termo central de toda sua obra. Rubinstein destaca a complexidade da obra da Vygotsky. Na realidade, foi Rubinstein o primeiro crítico à fusão das teorias de Vygotsky e Leontiev, que muitas décadas depois apareceria na Psicologia norte-americana como CHAT (Cultural Historical Activity Theory). Especificando sua crítica à forma em que Leontiev usou o conceito de interiorização, Rubinstein colocou:

Não é certo, porém, afirmar – colocando no lugar da atividade teórica ou mental do pensar, a atividade psíquica em geral – que a atividade mental surge só como resultado da "interiorização" da atividade prática. Toda atividade material externa do homem contém já no seu interior componentes psíquicos (fenômenos, processos) por meio dos quais aquela se regula. (1964, pp. 339-340)

Rubinstein expressa nessa citação algo que com o tempo foi sendo eliminado da representação sobre a atividade: a atividade contém em si mesma os aspetos subjetivos do sujeito da atividade, ela é inseparável da consciência, o que foi representado pelo princípio da unidade entre consciência e atividade, cujo criador foi o próprio Rubinstein. Porém, com o tempo, esse princípio só funcionou na direção da atividade à consciência, e não da consciência à atividade (Zinchenko, 2002).

Rubinstein, assim como Vygotsky, tem consciência e defende o caráter ativo, gerador, da psique humana, mas também, igual àquele, não dispõe do repertório teórico necessário para assumir essa defesa e demonstrar que com isso não viola um posicionamento materialista. Rubinstein fala de subjetividade ao nível da imagem, mas não consegue integrar nessa discussão o nível do emocional, que é o responsável pelo fato de a experiência ter um sentido que não coincide nem com o seu significado aparente, nem com as experiências concretas vividas pelo sujeito. As contradições de Rubinstein aparecem em vários momentos de sua obra, e são elas que levam esse autor a tratar o subjetivo como gnosiológico, o que sempre termina levando o seu raciocínio por um caminho cognitivista. Ele escreve:

A própria realidade determina a imagem subjetiva do mundo objetivo, mas ao determinar essa imagem a realidade atua não como coisa em si, desvinculada do sujeito, mas como um objeto e umas relações reais, vigentes, vitais, estabelecidas pelo sujeito. A imagem é um reflexo do objeto, e ele se reflete na imagem assim como aparece nas relações vitais que, com o objeto, estabelece o sujeito. (1965, p. 313)

Com esse posicionamento, o autor identifica o subjetivo com a imagem subjetiva do mundo, reduzindo assim o subjetivo ao interno; a expressão linear do externo sobre o interno. Ao fazer isso, ele cai numa dupla omissão. Por um lado omite que a realidade não se organiza apenas em objetos e que ela é uma complexa teia de processos simbólicos e relações com consequências múltiplas que não são definidas pela realidade em si, e sim pela sua relação com a estrutura psíquica do sujeito no momento em que vive uma experiência. A segunda omissão está dada pelo fato de que em toda experiência com a realidade o próprio sujeito com seu repertorio subjetivo é tão real como os fenômenos concretos que aparecem nessa experiência.

Mas esse mesmo Rubinstein que em O Ser e Consciência não consegue avançar sobre a condição subjetiva do homem, tema que se propõe a tratar como um dos tópicos específicos desse livro, em Princípios de Psicologia Geral vai além daquelas colocações e especifica com força a diferença entre os processos subjetivos e os atos explícitos na ação humana. Sobre essa relação, o autor coloca:

Os fatos imediatos da conduta podem ser tão desorientadores como os dados imediatos da consciência, da autoconsciência e da auto-observação. Eles requerem uma explicação que deriva deles, mas que não termina neles como algo definitivo como se eles se bastassem a si mesmos. Um único ato de conduta tomado isoladamente e tirado do contexto admite, pelo geral, varias interpretações. Seu valor interno, seu verdadeiro sentido, se descobre geralmente pelo contexto mais ou menos amplo da vida e da atividade humana. .Assim sempre existe entre as manifestações internas e externas do homem, entre a sua consciência e sua conduta, um vínculo por meio do qual se põe de manifesto a natureza interna e psíquica do ato prático. Se essa relação fosse sempre adequada como um reflexo, de maneira que o ato executado não necessitasse nenhuma interpretação de sua natureza interna, então todo conhecimento psicológico seria supérfluo. Mas essa relação existe e não é unívoca ou terminante, ela não é um reflexo. (1967, p. 40)

Rubinstein, nesse texto, entra em dois temas essenciais para avançar na questão da subjetividade nessa perspectiva cultural-histórica. Primeiro, o tema do sentido do ato, tema que Vygotsky tinha introduzido no último momento de sua obra e que tem sido profundamente ignorado, tanto pela Psicologia Soviética como pela interpretação Ocidental desse autor. E, segundo, a importância da interpretação como recurso epistemológico no estudo da subjetividade. A Psicologia Soviética norteada pelo princípio da atividade foi uma psicologia essencialmente experimental, mantendo uma franca inclinação metodológica positivista (González Rey, 1989). Unido ao anterior, o autor explicitamente se separa do princípio do reflexo.

Não foi à toa que o autor fora criticado e punido por esse livro, publicado em 1935 como Princípios de Psicologia e que na sua segunda edição aparece com o nome definitivo de Princípios de Psicologia Geral. A publicação desse livro coincide com o que tenho definido como o último momento da obra de Vygotsky, no qual esse autor volta de forma mais radical e aprofundada em alguns dos temas que marcaram o primeiro momento de sua obra, precisamente aqueles que enfatizam o caráter gerador e subjetivo da psique humana.

De forma ainda mais audaz, em seu último livro, Princípios e Vias do Desenvolvimento da Psicologia, Rubinstein expressa:

Se no sucessivo se desenvolve a tese de que as idéias e a mentalidade do homem são o produto do tecido social em que vive, para a avaliação correta da mesma é preciso lembrar que se lhe antecipa a tese inversa, segundo a qual o próprio tecido social é produto das idéias. (1959, p.11)

O caráter gerador, produtor da psique humana, essencial para a consideração da subjetividade como produção de sentido (González Rey, 2001, 2002), é o centro da última mensagem que Rubinstein nos legou a partir de suas últimas obras, o que teve outra grande semelhança com Vygotsky. Ambos, Vygotsky e Rubisntein, foram a meu ver os autores mais importantes da nascente psicologia cultural-histórica que emergiu no devir da Psicologia Soviética. Comparando-se a de Vygotsky, a obra de Rubinstein tem sido menos conhecida no Ocidente e, de forma particular, quase desconhecida nos Estados Unidos.

Dentre os autores que não estiveram no "mainstream" da Psicologia Soviética, não se pode deixar de mencionar a L. I. Bozhovich, aluna de Vygotsky, importante crítica de A. N. Leontiev e integrante do grupo de Jarkov, de quem logo se afasta para desenvolver as ideias de Vygotsky no estudo da motivação e da personalidade, temas abandonados por um longo tempo pelos seguidores da Teoria da Atividade. Ela foi uma das figuras chaves de psicologia em Moscou, razão pela qual não trataremos dela neste artigo, que intencionalmente se limitou aos núcleos da Psicologia Soviética fora de Moscou e que são menos conhecidos em Ocidente.

Algumas reflexões finais

- Contrariamente a como é frequentemente representada, a Psicologia Soviética não pode se reduzir às figuras Vygotsky, Luria e Leontiev. Não é casual que o importante historiador russo Yarochevsky (1993) tenha acrescentado a "piaterka" (Bozhovich, Zaparochets, Levina, Morozova e Slavina) como núcleo muito significativo no grupo de Vygotsky. As relações e contradições no interior do grupo de Jarkov, que também existiram e que explicam muitas das diferenças posteriores entre esses autores, ainda devem ser estudadas em profundidade.

- Não existiu uma psicologia monolítica que possa ser identificada como a "Psicologia Marxista", como com frequência tem sido trabalhada essa "unidade inventada", monolítica e coerente Vygotsky-Luria-Leontiev. Não existe nada mais distante da dialética do que os processos unitários congelados no tempo. Existe certo Marxismo doutrinário que, negando a dialética, adora verdades a priori, coerentes e a-históricas. É precisamente esse "Marxismo" que tem pretendido fazer das posições desses autores uma unidade não contraditória, prescindindo para isso de algo tão caro ao Marxismo como a historicidade.

- O estudo histórico não se faz juntando peças descritivas sobre um passado, mas com produções teóricas essenciais para o conhecimento de um campo teórico em seus movimentos e contradições. Com grande frequência, muitas das implicações das teorias em algumas de suas formas institucionalizadas atuais só são possíveis de serem conhecidas acompanhando suas histórias. Isso se faz evidente, por exemplo, nas pressões que se exerceram sobre a Psicologia Soviética ante a hegemonia imaginária de um Marxismo centrado no concreto e no objeto como vitais para uma definição de objetividade condizente com o materialismo.

- É difícil compreender o alcance e as tensões de um sistema de pensamento fora do contexto e da época em que esse sistema se desenvolveu. Foi essa reflexão que me levou a escrever este artigo, tentando integrar nele a maior quantidade possível de citações dos autores tratados. A Psicologia Soviética foi um movimento rico e múltiplo, fato que precisa ser entendido para acompanhar seus caminhos atuais, tanto na Psicologia Russa, como no resto do mundo.

Notas

Recebido em: 03/11/2010

Aceite em: 15/09/2011

Fernando Luis González Rey é Doutor em Psicologia. Professor da Faculdade de Educação, Centro Universitário de Brasília. UniCEUB - UNB. Endereço: SQS 407 bloco R apto. 206. Asa Sul. Brasília/DF, Brasil. CEP 70256-180. Email: gonzalez_rey49@hotmail.com

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  • 1
    Boris Fedorovich Lomov. Diretor do Instituto de Psicologia da Academia de Ciências da União Soviética até 1993. Membro correspondente da Academia de Ciências da União Soviética. Figura de maior peso político na Psicologia Soviética entre os anos setenta e oitenta do século passado. Abriu uma polêmica frontal sobre as limitações da Teoria da Atividade na Psicologia Soviética (Lomov, 1979).
  • 2
    Nessa década dos anos oitenta Bodaliev foi presidente da Academia de Ciências Pedagógicas da URSS.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      23 Ago 2012
    • Data do Fascículo
      Ago 2012

    Histórico

    • Recebido
      03 Nov 2010
    • Aceito
      15 Set 2011
    Associação Brasileira de Psicologia Social Programa de Pós-graduação em Psicologia, Universidade Federal de Pernambuco, Centro de Filosofia e Ciências Humanas (CFCH), Av. da Arquitetura S/N - 7º Andar - Cidade Universitária, Recife - PE - CEP: 50740-550 - Belo Horizonte - MG - Brazil
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