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"Tem que ser uma escolha da mulher"!representações de maternidade em mulheres não-mães por opção

"It has to be a woman's choice"!representations of motherhood in women who are not mothers by option

Resumos

A concepção de maternidade como um destino inevitável vem sendo questionada na contemporaneidade, a partir do crescente posicionamento de mulheres que optam por não viver essa experiência e não cumprir, dessa forma, uma das normas sociais mais fortemente ligadas à constituição da identidade feminina. O presente trabalho buscou compreender como se constituem as identidades femininas de mulheres de classe média, casadas, ou que coabitam com o companheiro, e que optaram por não ter filhos, residentes em cidade do interior do Rio Grande do Sul. Para tanto, realizou-se uma pesquisa qualitativa a partir de entrevistas semiestruturadas que foram avaliadas por meio da técnica de análise de conteúdo. Os resultados sugerem que as mulheres que optam por não viver a maternidade constituem suas identidades a partir da negação de representações culturais dominantes que afirmam a maternidade como destino natural de toda mulher, e o amor materno como sentimento inerente à existência feminina.

maternidade; não-maternidade; identidade


The concept of motherhood as an inevitable fate is being questioned in the contemporary, from the growing importance of women who choose not to live this experience and does not comply, thus, one of the social norms more strongly linked to the formation of feminine identity. This study sought to understand how they constitute the identities of female middle-class women, married or cohabiting with a partner, and have chosen not to have children, living in the countryside cities of Rio Grande do Sul. Therefore, we held a qualitative study from semi-structured interviews that were evaluated using the technique of content analysis. The results suggest that women who choose not to live up to leave their identities from the denial of dominant cultural representations that claim motherhood as natural destination of every woman, and maternal love as a feeling in the existence of women.

maternity; non-maternity; identity


ARTIGOS

"Tem que ser uma escolha da mulher"! representações de maternidade em mulheres não-mães por opção

"It has to be a woman's choice"! representations of motherhood in women who are not mothers by option

Naiana Dapieve Patias; Caroline Stumpf Buaes

Centro Universitário Franciscano, Santa Maria, Brasil

RESUMO

A concepção de maternidade como um destino inevitável vem sendo questionada na contemporaneidade, a partir do crescente posicionamento de mulheres que optam por não viver essa experiência e não cumprir, dessa forma, uma das normas sociais mais fortemente ligadas à constituição da identidade feminina. O presente trabalho buscou compreender como se constituem as identidades femininas de mulheres de classe média, casadas, ou que coabitam com o companheiro, e que optaram por não ter filhos, residentes em cidade do interior do Rio Grande do Sul. Para tanto, realizou-se uma pesquisa qualitativa a partir de entrevistas semiestruturadas que foram avaliadas por meio da técnica de análise de conteúdo. Os resultados sugerem que as mulheres que optam por não viver a maternidade constituem suas identidades a partir da negação de representações culturais dominantes que afirmam a maternidade como destino natural de toda mulher, e o amor materno como sentimento inerente à existência feminina.

Palavras-chave: maternidade; não-maternidade; identidade.

ABSTRACT

The concept of motherhood as an inevitable fate is being questioned in the contemporary, from the growing importance of women who choose not to live this experience and does not comply, thus, one of the social norms more strongly linked to the formation of feminine identity. This study sought to understand how they constitute the identities of female middle-class women, married or cohabiting with a partner, and have chosen not to have children, living in the countryside cities of Rio Grande do Sul. Therefore, we held a qualitative study from semi-structured interviews that were evaluated using the technique of content analysis. The results suggest that women who choose not to live up to leave their identities from the denial of dominant cultural representations that claim motherhood as natural destination of every woman, and maternal love as a feeling in the existence of women.

Keywords: maternity; non-maternity; identity.

Introduzindo o assunto: identidade feminina e maternidade

Os dados demográficos brasileiros demonstram que a diminuição da taxa de natalidade, o aumento da escolarização das mulheres e da sua inserção no mercado de trabalho e a maior expectativa de vida da população acarretam alterações nos arranjos familiares. Dentre elas, destaca-se a diminuição no número de filhos por mulher e o aumento dos casais sem filhos nas camadas médias da população. Conforme Pesquisa Nacional de Domicílios – PNAD (2007), a taxa de fecundidade das mulheres brasileiras vem diminuindo. Entre os anos de 1940 e 1960 girava em torno de 6,0 filhos/mulher, já no ano de 2007 passou para 1,95, ficando abaixo do nível de reposição da população (2,1 filhos por mulher). Comparando-se o censo de 1997 e o de 2007 (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, 2009), constata-se um aumento de 3,1% de casais sem filhos, que passou de 12,9% para 16% da população.

No entanto, ao analisar esses dados populacionais, deve-se considerar o fato de que, segundo a PNAD, a família é entendida como o conjunto de pessoas ligadas através de laços de parentesco e que possuem normas de convivência, residindo na mesma unidade doméstica. Dessa maneira, casais sem filhos são considerados aqueles que não possuem filhos morando na unidade domiciliar. Nesse aspecto, não é considerado o fato desses serem pais ou não voluntariamente, bem como se há a possibilidade dessa família, futuramente, possuir filhos ou não (Rios & Gomes, 2009). Mesmo com estas ressalvas, os índices apontam para mudanças significativas nas configurações familiares que estão relacionadas a novas posições sociais ocupadas pelas mulheres.

Pondera-se que a figura feminina vem ganhando novo status. Além de mãe, ela também se faz presente na esfera pública, inserida no mercado de trabalho, podendo optar por uma profissão que lhe traga benefícios pessoais e prestígio profissional. Tornando-se também fonte de renda e autoridade, além de continuar cumprindo as tarefas do domínio privado. Desse modo, a opção das mulheres por não ter filhos é um fenômeno crescente nas sociedades ocidentais. Contudo, cabe destacar que essa realidade não é vivida de forma universal por todas as mulheres. A escolha pela não-maternidade tem relação direta com o contexto histórico, econômico, social e cultural em que a mulher está inserida.

Meyer (2003), ao retomar as perspectivas de estudo da maternidade no campo dos estudos feministas, afirma sua opção de abordagem a partir do conceito de gênero. Nesse sentido, gênero aponta para a compreensão de que, ao longo da vida, através das mais diversas instituições e práticas sociais, nos constituímos como homens e mulheres, sendo variadas as formas de constituição da feminilidade e da masculinidade. Assim, entende-se o caráter plural do conceito de gênero expresso pela articulação com muitas outras dimensões sociais, tais como classe, raça/etnia, geração, religião, nacionalidade.

Nesse sentido, Louro (2007) afirma que historicamente as atribuições de significados e valores dados aos corpos modificam-se através dos tempos e das comunidades. A maioria das sociedades estabeleceu a divisão sexual masculino/feminino relacionada com o biológico. Desse modo, o corpo ganhou papel primordial de causa e justificativa das diferenças entre os sexos e, com isso, características físicas passaram a ser tomadas como marca de distinções e de exercer poder entre homens e mulheres (Beauvoir, 1980). Logo, às mulheres, por sua condição biológica, a maternidade foi determinada como destino inevitável e, consequentemente, o privado, colocando-as em um local onde se poderia manter a ordem vigente, exercendo poder sobre o feminino através dos seus corpos (Meyer, 2003).

Nesse sentido, a identidade feminina foi historicamente construída a partir da diferença entre os sexos, que fixou uma verdade biológica, utilizando-se o argumento do corpo para definir o que é ser mulher a partir do outro – homem. Assim, pode-se dizer que a identidade feminina foi definida através de representações de maternidade - biologicamente fundamentada (Arán, 2003; Beauvoir, 1980; Colling, 2004; Woodward, 2000).

Desse modo, a mulher foi interpelada a exercer a função social limitada à maternidade, justificando sua permanência no espaço privado. Permaneceu reduzida à força de seu sexo, domesticada para que seus desejos não destruíssem a ordem social e familiar (Kehl, 2008), dedicando-se à família e às tarefas domesticas, zelando pelo bem-estar do marido e filhos, vocação que beneficiava toda a sociedade (Colling, 2004; Scavone, 2001).

A invenção de um padrão de feminilidade, existente até hoje, deriva do nascimento da família moderna, burguesa, nuclear, que caracterizou a criação de uma representação feminina que adequou a mulher à esfera privada. A partir de atributos biológicos – possibilidade procriadora do corpo feminino -, à mulher coube o destino materno, definido como o único lugar social. Para que isso pudesse ser possível, esperava-se que elas ostentassem virtudes próprias da feminilidade, como o recato, a docilidade, a passividade em relação aos desejos e necessidades dos homens e dos filhos (Kehl, 2008).

Assim, o modelo de família privilegiado pela cultura ocidental, tomado como referência do início do século XX até a década de 60, tinha na sua organização a clara diferenciação de papéis de gênero para homens e mulheres. Enquanto a representação masculina foi associada ao "homem público"- sujeito que sustenta a família -, a feminina foi vinculada à imagem da "mulher privada" – que cuida dos afazeres domésticos e dos filhos (Pratta & Santos, 2007).

Confere-se, dessa forma, às mães, um aumento do status social, ao mesmo tempo em que se culpabiliza as mulheres que fugiam a essa regra (Ariès, 1981). Os significados da maternidade associados ao amor e ao cuidado passaram a afirmar referenciais de valores considerados ideais. Discursos culturais, durante séculos, recrutaram mulheres a se identificarem com eles, tomando-os como verdades e constituindo suas identidades femininas.

As representações culturais de maternidade possibilitam às mulheres entenderem aquilo que são e devem fazer enquanto mães, por meio de diferentes discursos circulantes na sociedade. Falar na não-maternidade é falar a partir de um lugar de negação de outra identidade, de uma identidade que não se é – mãe – mas que fornece condições para que ela exista (Woodward, 2000).

Na contemporaneidade, novos significados produzem sentido para as experiências femininas. As identidades que estabilizaram o mundo social moderno por meio da fixação de papéis para as mulheres estão em declínio. Em relação à maternidade, pontua-se que diferentes significados atribuídos à experiência de ser mãe nas sociedades em que vivemos hoje tornam incertezas e transitórias as identidades sociais.

Diante do exposto, é relevante pensar sobre os novos modos de subjetivação da mulher, não unicamente pelo viés da maternidade, sendo que, na contemporaneidade, principalmente nas camadas médias, as mulheres tendem a priorizar projetos individuais (Barbosa & Rocha-Coutinho, 2007; Fonseca, 2005). Assim, como questão central, o artigo apresenta uma discussão sobre as representações de maternidade de mulheres que optam por não viver a maternidade. Cabe destacar que no interior de determinadas configurações de poder, algumas dessas representações adquirem status de autoridade e acabam por se naturalizar, funcionando em um determinado tempo – espaço como a melhor ou a verdadeira representação, transformando-se em referências para outras identidades (Meyer, 2000), inconclusas, incompletas, sempre em processo construção (Silva, 1999).

Método

O presente trabalho encerra uma pesquisa qualitativa acerca da constituição de identidades femininas de mulheres que optam por não viver a experiência da maternidade.

Participaram da pesquisa seis mulheres, de classe média, casadas ou que coabitavam com companheiro. A faixa etária variou entre 29 e 44 anos, e todas possuíam nível superior completo ou incompleto. Esse perfil foi selecionado considerando-se os limites biológicos da possibilidade de ter filhos (Mansur, 2003), e também a compreensão de que a opção pela não-maternidade é um fenômeno mais fortemente associado à classe média, bem como das mulheres que possuem nível superior (Barbosa & Rocha-Coutinho 2007; Mansur, 2003; PNAD, 2007). A escolha das participantes foi aleatória, a partir de contatos da rede social da pesquisadora, constituindo uma amostra por conveniência (Gil, 2006).

Os dados foram gerados por meio de entrevistas semiestruturadas, com o intuito de compreender como se constituem as identidades femininas de mulheres que optam pela não-maternidade. Nesse ínterim, as entrevistas seguiram um roteiro pré-determinado, a partir do foco deste estudo: a experiência da não-maternidade por opção. As perguntas foram especificadas, ao mesmo tempo em que o pesquisador sentiu-se livre para ir além das respostas, buscando o esclarecimento ou a reelaboração das respostas coletadas (May, 2004). Concomitantemente, foram utilizados diários de campo, para que a comunicação pudesse ser mais bem captada e fornecesse subsídios à interpretação dos dados. Para tanto, efetivou-se uma sistematização da observação, registrando-se tudo o que foi percebido no momento das entrevistas (Winkin, 1998).

Como técnica de análise dos dados, utilizou-se a análise de conteúdo, conforme a proposta de Minayo (1994). Segundo a autora, essa técnica refere-se a um procedimento que visa a examinar a comunicação para obter indicadores que permitam a inferência de conhecimentos relativos às condições de produção das mensagens.

Resultados e discussões

A interpretação dos dados deste estudo orientou-se na direção de compreender os significados que interpelam mulheres a optar por não viver a experiência de ser mãe. Os resultados indicaram que as representações do que é ser mãe estão implicadas em vários discursos e práticas culturais. Esses, no decorrer da história, produziram determinados modos e modelos de ser e de se comportar como a equação mulher = mãe, adquirindo status de verdade e naturalizando-se. São múltiplos discursos sociais que se fizeram presente nas narrativas das mulheres produzindo diferentes sentidos à não-maternidade. Dessa forma, os resultados foram organizados e discutidos em dois eixos principais que derivaram da perspectiva de uma negação de significados sociais instituídos, quais sejam: Definidas pela negação de um lugar materno e Responsabilizadas pelo cuidado dos filhos: uma função de sacrifício?

Definidas pela negação de um lugar materno

A construção teórica da definição através da negação remete ao reconhecimento das mulheres a partir de um não-lugar materno. Entende-se que as mulheres produzem concepções de família bem como de maternidade, posicionando-se em outro lugar de reconhecimento que não o da família tradicional nuclear e de recusa da identidade feminina ligada, necessariamente, à maternidade.

Os discursos femininos a respeito da opção pela não-maternidade são sustentados a partir de um lugar de negação, isto é, a opção pela qual decidiram viver é falada através da negação de outra identidade – a identidade materna. Trata-se de uma concepção que diz respeito às formas como o sujeito se reconhece, a partir de um lugar e não de outro (Hall, 2003). No trabalho de Bonini-Vieira (1996), com mulheres não-mães, as mulheres assim se definem - pela negação da maternidade. Essa noção também está presente nas falas das participantes desta pesquisa.

As representações dos filhos como destino natural de toda mulher produziu a perspectiva de que a maternidade é o caminho da plenitude e realização da feminilidade. Trilhar esse caminho implica ter uma vida de renúncia e sacrifícios prazerosos indispensáveis à constituição da identidade feminina. A gravidez daria uma visibilidade ao feminino representado por discursos científicos como faltante e fonte de mistérios (Braga & Amazonas, 2005; Meyer, 2003). Com a inserção da mulher em outras dimensões da vida que também lhe proporcionam satisfação, como nos campos profissional, político e acadêmico, ganham força os discursos que questionam estas concepções. Assim menciona uma das participantes

Uma das coisas que mais irrita assim é o discurso de que "ai, tu só vai te completar quando tu for mãe", né. É "a realização máxima da mulher é a maternidade". Não, não é... Pode ser, mas não é assim, não é necessariamente. (36 anos)

A negação da maternidade como fenômeno que completaria a mulher problematiza algumas concepções sobre o lugar e a função dos filhos na vida da mulher. Algumas narrativas das mulheres que participaram deste estudo produziram posicionamentos que se contrapõem à perspectiva dos filhos como forma de completude de um vazio vivido pelo sujeito na sua condição de ser mulher.

Porque eu sei de pessoas assim que tem filhos pra suprir carências né, tipo solidão, eu acho isso o fim né, uma mulher querer filho pra não ser sozinha né. Não é assim, não é por ai, mas enfim são escolhas né. (44 anos).

"Se eu quiser é porque eu quero, independente do que eu vou receber de retorno" (36 anos).

"Eu acho que filho não é pra preencher as nossas necessidades, eu acho que isso seria egoísmo da minha parte eu vejo assim né" (35 anos).

A produção de outros significados associados à maternidade por mulheres não-mães, também encontrados na pesquisa de Bonini-Vieira (1996), também aponta para a desconstrução da tradicional representação de que os filhos unem o casal e mantêm laços corroídos. Filhos, para as participantes deste estudo, parecem representar renúncia e sacrifícios, não significando garantia de família feliz.

"Muitas mulheres resolvem ainda, isso eu me surpreende, ter filhos para segurar marido e, e pelo contrário, filho não segura ninguém, às vezes só contribui pra separar mais". (36 anos).

Estes significados associados à geração de filhos derivam da invenção do amor romântico, ligado à maternidade, que produziu a criação do lar e a modificação na relação dos pais e filhos. Essa se constituiu mais sentimental, sendo que os adultos passaram a dar maior atenção às crianças, movimento que valorizou a família (Scavone, 2001). Nesse ínterim, desenvolveu-se um novo clima afetivo e moral, devido à maior intimidade dos pais com os filhos. Para que isso se tornasse possível, houve a reorganização da casa e a reforma dos costumes, resultando em um espaço maior para a intimidade, preenchida por uma família reduzida aos pais e às crianças (Ariès, 1981).

No entanto, a crescente presença de mulheres no mercado de trabalho, a difusão e a utilização de práticas anticoncepcionais, bem como a fragilização dos laços matrimoniais (Carvalho & Almeida, 2003) e o adiamento da maternidade até que se tenha condição apropriada para isso ou até mesmo a opção pela não-maternidade (Barbosa & Rocha-Coutinho, 2007) fundamentaram novas representações do ser mulher, que produzem discursos de feminilidade associados à busca de autonomia e independência. Contudo, cabe destacar que essas concepções coexistem com discursos sociais que ainda afirmam o amor materno ligado a questões biológicas, como um instinto que prevalece sobre outras preferências femininas (Szapiro & Férez-Carneiro, 2002).

Responsabilizadas pelo cuidado dos filhos: uma função de sacrifício?

Para as mulheres entrevistadas, um filho seria mais um compromisso ao qual a mulher é interpelada a assumir. As suas narrativas produzem problematizações acerca das verdades que constituíram a concepção da equação social mulher = mãe. Com a intencionalidade de pôr em xeque a maternidade como destino conformado pela condição biológica de ter nascido mulher, novas representações da maternidade como uma escolha feminina estão sendo produzidas.

Eu acho que atualmente, ou enfim, na minha geração é, ter ou não ter filhos tem que ser uma escolha da mulher, eu não acho que a mulher tenha nascido para gerar, ela tem que escolher se ela quer isso ou não. (44 anos)

Nesse sentido, discursos que questionam a ideia romântica da gratificação por ter filhos também ganham força na esfera social quando argumentos como trabalho e tempo – ideias próprias dos modos de vida contemporâneos – ganham força para fundamentar uma escolha por não ser mãe.

"Ah, quando eu convivo com crianças eu acho muito lindo, muito bonitinho, mas por outro lado também vejo né o trabalho que dá e o tempo que a gente tem que demandar pra ter, pra estar com eles" (35 anos).

Nessa direção, a narrativa abaixo insere mais dois elementos a esta perspectiva: a ideia da impossibilidade de realizar projetos de futuro associada à eterna responsabilidade por um outro: o filho.

As pessoas acham lindo 'ai que lindo o bebe, a criança' eu nunca achei assim lindo, eu acho legal, acho que é bom, pra quem tem pra quem quer, mas eu acho que tem que ter muita disponibilidade e ai a tua vida vai mudar e ai tu não vai poder ter determinados projetos de futuro porque tu vai estar, tu vai ser responsável pela criança né. (36 anos)

Para as participantes da pesquisa, os cuidados com os filhos tendem a posicionar a mulher como a cuidadora da família - concepção tradicional de feminilidade transmitida ainda presente no imaginário social (Kehl, 2008; Meyer, 2003). Essa representação produz a noção de que a mulher é responsável pela integridade física e psíquica do filho, tendo que estar disposta a abdicar de certos prazeres para "vigiá-los", o que, consequentemente, acarreta sacrifício, abnegação, renúncia a seus próprios desejos e projetos de vida (Bonini-Vieira, 1996). Os efeitos desses discursos ao oferecerem sentido para as experiências da maternidade interpelam a mulher a projetar-se como cuidadora, inclusive das gerações seguintes da família, como menciona a participante ao afirmar a preocupação com os netos no futuro.

Todas dizem "ah, filho é bom, é maravilhoso, é isso, aquilo e aquele outro, mas tu não dorme mais, nunca mais tu vai dormir e depois adolescente ele sai, daí tu não sabe onde ele ta, depois ele se casou e tu se preocupa com os netos, dia eles ficam doentes daí tu tem que cuidar deles. (31 anos)

Essas representações de maternidade socialmente produzidas ainda nos séculos XVIII e XIX e presentes nas narrativas das mulheres participantes do estudo, mesmo que sob forma de negação, são reforçados na contemporaneidade. Uma possibilidade de discutir as representações e identidades de mãe que são reafirmadas na sociedade é veiculada no âmbito de programas de educação e saúde voltados à população materno-infantil. São elas que "continuam sendo interpeladas e responsabilizadas pelos programas de promoção de saúde e ou daqueles que se guiam por imperativos sociais que determinam que todas as crianças devem estar na escola" (Meyer, 2003)

No contexto brasileiro, por exemplo, existem programas sociais tais como o Bolsa-Família e o Programa de Incentivo ao Aleitamento Materno (PNIAM). Os mesmos veiculam representações de que o cuidado dos filhos liga-se exclusivamente à figura feminina, responsável pelo cumprimento dos afazeres maternos, tanto no que diz respeito às tarefas afetivas e de cuidado como de educação. Para que estas funções sejam cumpridas, os discursos políticos valorizam o cuidado feminino, sustentando em argumentações acerca das vantagens da participação da família – centralizada no poder materno, responsabilidade da mãe – no contexto escolar (Bolsa-Família) e a responsabilidade pela saúde da criança (PNIAM) (Klein, 2005; Meyer, 2000, 2003).

Klein (2005) destaca que as políticas sociais, tal como o Bolsa-Família, no contexto brasileiro, conferem à maternidade valor social, interpelando as mulheres a (re)posicionarem-se como as melhores "cuidadoras" das crianças, transmitindo-lhes o controle e o poder de decisões sobre os filhos. Do mesmo modo, Meyer (2000), ao referir-se ao Programa Nacional de Incentivo ao Aleitamento Materno (PNIAM), destaca que o mesmo (re)produz representações de maternidade, partindo de princípios biológicos e de características e sentimentos historicamente atribuídos às mulheres. Nesse contexto, as mulheres teriam uma missão social delegada pelos gestores políticos ligados à educação e à saúde das crianças, como funções naturais do feminino, posicionando-as como as únicas responsáveis pelos filhos que elas devem cuidar e manter. Nesse sentido, as políticas públicas (re)produzem nos corpos identidades sociais e culturais construídas a partir de características anatômicas – ter ou não ter mamas e útero, capacidade de engravidar ou produzir e secretar leite vinculado a comportamentos de amor e devoção ilimitados – inscritas nos corpos femininos (Meyer, 2003).

Argumentos como esses a tornam a principal responsável pela família (Meyer, 2000, 2003), produzindo determinados modos de ser mãe. Quando há fracasso nas relações familiares, o principal alvo é a ausência ou o descaso materno/feminino (Klein, 2005). Tal discurso atravessa as narrativas femininas e entram em jogo como uma das forças na trama de significação que responderá pela opção pela (não) maternidade.

Ser mãe é uma profissão também, quando tu decide ser mãe, tu ta assumindo mais uma profissão na tua vida, que além de tu ser mulher enfim, ser profissional, seja o que for, tu vai ser mãe. Tem uma responsabilidade muito grande até mesmo porque na nossa sociedade, todo o problema do filho a responsável é a mãe. (31 anos)

A construção social do feminino ligada à representação de maternidade, delineada por sacrifício, renúncia, resignação e santificação é um discurso internalizado e reproduzido pelas mulheres. As narrativas das entrevistadas veiculam uma ideologia de maternidade que concebe a mãe como aquela que deve renunciar a certos prazeres, abdicar pelo filho, sacrificar-se por ele, bem como ser a responsável pela saúde física e psíquica dos mesmos (Bonini-Vieira, 1996). Trata-se de uma posição de sujeito negada pelas mulheres que optam por não serem mães.

Sacrificadas em favor de outro ser: o lugar da dúvida em relação à escolha

Divergentes significados de família e de maternidade circulam e coexistem nas diferentes sociedades em um mesmo período de tempo. Com base em Hall (1997b), afirma-se que esses significados são tomados no intuito de produzir sentidos que expressem o pensamento e mobilizem eficazes sentimentos e emoções, tanto positivos quanto negativos, sendo que, às vezes, põem em dúvida as próprias identidades. São as representações de maternidade que permitem às mulheres entender suas experiências e definir o que elas devem ser, fazer e sentir enquanto mães (Meyer, 2003). Portanto, são os significados atribuídos à maternidade que as definem como mulheres outras, isto é, mulheres não-mães.

"Porque eu vi tantos horrores assim de mães fazendo projeções em cima dos filhos, carregando coisas em cima dos filhos que eu disse meu deus eu não quero fazer isso" (44 anos).

Contudo, para Bauman (2004), com a possibilidade de o sujeito escolher entre vários tipos de inclinações/preferências/identidades, há uma ausência de definições e uma consciência de ambivalência e incertezas que culminam em dúvidas persistentes quanto à condição escolhida.

"Não quer dizer que eu não vá mudar também, mas eu a princípio, não vou dizer que dessa água não vou beber né" (31 anos).

"Ainda fico assim com a pulguinha, sabe hoje.. ai, como teria sido né, e se eu tivesse filho, acho que eu seria uma boa mãe" (44 anos).

As narrativas das participantes, acerca da opção por não viver a maternidade, veiculam questionamentos e dúvidas em relação a sua opção. Dessa forma, é possível pensar que, ao mesmo tempo em que o sujeito se diz ser livre para escolher, toda escolha traz em si ambivalência, cobranças e consequências para o sujeito que por ela é responsável. A criação de outras posições para os sujeitos, no tecido social, desestabiliza referenciais que conformaram a identidade feminina na modernidade.

Considerações finais

A maternidade, no decorrer da história, foi construída através de diferentes discursos que afirmavam ser essa uma tarefa primordial e essencial à "natureza" da mulher. Ligada diretamente ao feminino, as representações culturais da maternidade foram produzidas por práticas discursivas que prescrevem que toda mulher deveria cuidar, amar, alimentar e dar educação aos filhos, abdicando de si mesma, para cuidar de outro, totalmente dependente dela. Atualmente, embora a mulher possa ser reconhecida por sua participação em outros cenários sociais, essas representações atravessam os depoimentos das entrevistadas, configurando-se como um discurso social dominante e constitutivo das identidades femininas.

Através de dispositivos políticos e ideológicos, como os programas Bolsa-Família e o Programa Nacional de Incentivo ao Aleitamento Materno (PNIAM), as representações de maternidade são fundamentadas em discursos que remetem aos modelos tradicionais de maternidade a partir do entendimento da identidade feminina essencialmente ligada à maternidade. Esses contribuem para definir formas pelas quais as identidades femininas são moldadas e os valores das sociedades mantidos, mesmo que na contemporaneidade as concepções tradicionais de maternidade pareçam estar em processo de desconstrução.

Percebe-se a influência contraditória e ambivalente dos significados que constituem as representações de maternidade e não-maternidade das entrevistadas, que, muitas vezes, parecem colocar em dúvida suas próprias identidades. Elas afirmam suas identidades femininas, muitas vezes, através da negação dos modelos tradicionais da equação social mulher = mãe. Nesse sentido, as narrativas são atravessadas por discursos sociais circulantes que interpelam os sujeitos a investirem em projetos em que se realizem individualmente. Ganham força os discursos que valorizam a realização profissional e financeira, contestando as representações de maternidade associadas à abnegação e sacrifícios de uma vida inteira em favor de outra pessoa. A não-maternidade por opção pode estar significando a preferência por constituição de vínculos mais fluidos, maior liberdade e possibilidades de participação em outros cenários sociais. É nesta arena de significações que as mulheres estão construindo outras "fórmulas" de ser mulher, coexistentes com mulher = mãe na contemporaneidade.

Na contemporaneidade, diferentes discursos – antigos e novos que competem entre si – produzem efeitos nas representações de maternidade que ditam ordem sobre ser mulher e/ou mãe coexistem atualmente, e são algumas delas que, dentro de determinadas configurações de poder, acabam constituindo legitimidade e transformando-se em referenciais para a constituição das identidades femininas.

Por muito tempo, a identidade feminina foi diretamente associada às representações de maternidade, funcionando como sendo a melhor ou verdadeira imagem de feminilidade a partir da qual a não-maternidade passou a ser encarada como desviante. Contudo, estudos que buscam dar voz às mulheres não-mães indicam que ganham força as problematizações que questionam as representações de maternidade que acabaram transformando-se em senso comum. Estariam estas narrativas atravessadas por discursos que estão cada vez mais se tornando novos regimes de verdade? É possível generalizar em termos de se pensar a constituição de identidades femininas na contemporaneidade? Quem estaria incluído e excluído destas representações de mulheres não-mães? São questionamentos que conduzem à importância da realização de estudos que busquem aprofundar a discussão do tema, ampliando a reflexão sobre a articulação de outras dimensões sociais como classe, raça/etnia, religião e nacionalidade com a opção pela não-maternidade.

Por fim, reafirmamos que a constituição das identidades é o resultado de um processo de identificação, permitindo que os sujeitos se posicionem no interior das definições que os discursos culturais (exteriores) fornecem, ou que se subjetivem (dentro deles). Portanto, está mais difícil mantermos a tradicional distinção entre "interior" e "exterior", entre o social e o psíquico, quando a cultura intervém (Hall, 1997a, p. 27). Assim, na contemporaneidade, interessar-se cada vez mais pelos discursos culturais representa um grande desafio à psicologia.

Recebido em: 26/02/2010

Revisão em: 08/10/2010

Aceite em: 15/04/2011

Naiana Dapieve Patias é Psicóloga (UNIFRA), Mestre em Psicologia da Saúde (UFSM), Especialista em Criança e Adolescente em Situação de Risco (UNIFRA).

Endereço: Rua André Marques, 536/202. Santa Maria/RS, Brasil. CEP 97010-040. Email: naipatias@hotmail.com

Caroline Stumpf Buaes é Psicóloga (UPF), Mestre em Educação (UFRGS), Doutora em Educação (UFRGS). Docente do curso de Psicologia da UNIFRA. Email: carolinebuaes@gmail.com

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    23 Ago 2012
  • Data do Fascículo
    Ago 2012

Histórico

  • Recebido
    26 Fev 2010
  • Aceito
    15 Abr 2011
  • Revisado
    08 Out 2010
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