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Relações antagônicas entre sentido e significado do trabalho no capital: uma análise na perspectiva ontológica

Antagonistic relations between sense and meaning of work under capital: an ontological analysis

Resumos

O estudo discute, à luz da ontologia marxiana, o caráter antagônico que marca as relações de trabalho na sociabilidade do capital. Assumindo o trabalho como complexo fundante do ser social e em articulação com a psicologia histórico-cultural, averigua o construto teórico de Leontiev, especificamente no que diz respeito ao antagonismo entre sentido e significado do trabalho, o estatuto ontológico do referido fenômeno e as condições de sua resolutividade. Por fim, revisita as elaborações de Mészáros sobre a crise estrutural do capital, a qual, estreitando sobremaneira o campo das possibilidades de realização de objetivações humano-genéricas, torna imperativa a luta emancipatória.

trabalho; crise do capital; Leontiev


The study discusses, from the standpoint of Marxian ontology, the antagonistic character that constitutes labor relationships in the sociability of capital. Assuming labor as the founding complex of social being, and, in conjunction with historical-cultural psychology, it examines the theoretical construct of Leontiev, specifically with regard to the antagonism between the meaning and sense of labor, the ontological status of this phenomenon as well as its resolution conditions. Moreover, it revisits Mészáros elaborations on the structural crisis of capital, which, significantly narrowing the field of possibilities for the achievement of human-generic objectivations, makes the emancipatory struggle virtually imperative.

work; capital crisis; Leontiev


ARTIGOS

Relações antagônicas entre sentido e significado do trabalho no capital: uma análise na perspectiva ontológica

Antagonistic relations between sense and meaning of work under capital: an ontological analysis

Ruth Maria de Paula Gonçalves; Susana Vasconcelos Jimenez

Universidade Estadual do Ceará, Fortaleza/CE, Brasil

RESUMO

O estudo discute, à luz da ontologia marxiana, o caráter antagônico que marca as relações de trabalho na sociabilidade do capital. Assumindo o trabalho como complexo fundante do ser social e em articulação com a psicologia histórico-cultural, averigua o construto teórico de Leontiev, especificamente no que diz respeito ao antagonismo entre sentido e significado do trabalho, o estatuto ontológico do referido fenômeno e as condições de sua resolutividade. Por fim, revisita as elaborações de Mészáros sobre a crise estrutural do capital, a qual, estreitando sobremaneira o campo das possibilidades de realização de objetivações humano-genéricas, torna imperativa a luta emancipatória.

Palavras-chave: trabalho; crise do capital; Leontiev.

ABSTRACT

The study discusses, from the standpoint of Marxian ontology, the antagonistic character that constitutes labor relationships in the sociability of capital. Assuming labor as the founding complex of social being, and, in conjunction with historical-cultural psychology, it examines the theoretical construct of Leontiev, specifically with regard to the antagonism between the meaning and sense of labor, the ontological status of this phenomenon as well as its resolution conditions. Moreover, it revisits Mészáros elaborations on the structural crisis of capital, which, significantly narrowing the field of possibilities for the achievement of human-generic objectivations, makes the emancipatory struggle virtually imperative.

Keywords: work; capital crisis; Leontiev.

Introdução

O presente estudo trata do caráter antagônico assente à relação entre capital e trabalho constituinte da sociabilidade regida pela mercadoria, hoje agudizado diante da crise estrutural do capital, como bem argumenta Mészáros (2000, 2002), trazendo, de modo mais particular, as análises de Leontiev (1978) em torno da oposição entre sentido e significado do trabalho, engendrada por sua divisão social.

Por essa via ou por outra, na contracorrente de uma miríade de teorias que defendem a resolução desta contradição sob o viés do irracionalismo pós-moderno1 1 De acordo com a crítica severa de Costa (2004), no movimento de ascensão do pós-modernismo, "o prestígio de alguns conceitos – o de alteridade, o de micro, o de diferença, o de ‘pós’, por exemplo – enfeitam ‘teorias’ e ‘metodologias’ para todos os apetites, que infladas por engendragens poderosas de publicidade, exercem imediato fascínio para uma intelectualidade de subfilósofos, subsociólogos, subpedagogos, subteorizadores da periferia dita desenvolvida" (Costa, 2004, p. 67). , tentamos buscar, em Marx, o estatuto ontológico de tal contradição, reconhecendo que sua resolutividade só pode ser divisada numa sociabilidade para além do capital. Nesse sentido, encontramos nas teses lukacsianas, por um lado e meszarianas, por outro, o suporte necessário para referendar os postulados últimos de Leontiev, no que toca à necessidade de superação do trabalho alienado e, por princípio, do próprio metabolismo do capital, com vistas à objetivação da livre consciência dos homens.

Revisitando o trabalho como categoria fundante do ser social

No rastro da ontologia marxiano-lukacsiana2 2 O marxismo foi apreendido por Gyorgy Lukács (1885-1971), em sua obra de maturidade, como uma ontologia materialista, capaz de revelar a essência ontohistórica do homem, fundada no ato do trabalho. Nesse sentido, como assevera Tertulian (1996, p. 58), a Ontologia do Ser Social de Lukács (1981) representaria "um gigantesco esforço para examinar, passo a passo, as categorias fundamentais do pensamento marxiano, a fim de restituir-lhe a densidade e a substancialidade, revelando ao mesmo tempo as raízes da sua degradação devida ao stalinismo". , ao mesmo tempo em que evidenciamos a origem animal do homem, reconhecemos que este é qualitativamente diferente de seus antepassados animais – marca do salto ontológico resultante do trabalho como complexo que funda o homem como ser social, valendo recuperar que o salto ontológico consiste na passagem de uma forma de ser a outro qualitativamente novo.

Na já clássica formulação de Lukács (1978, p. 6):

O trabalho é formado por posições teleológicas que, em cada oportunidade, põem em funcionamento séries causais. ... Ao contrário da causalidade, que representa a lei espontânea na qual todos os movimentos de todas as formas de ser encontram a sua expressão geral, a teleologia é um modo de pôr – posição sempre realizada por uma consciência.

Por conseguinte, como elucida Lessa (2007, pp. 142-143), "o trabalho não é apenas a categoria que faz a relação entre o homem e a natureza, mas também a forma germinal da articulação entre teleologia e causalidade característica do ser social".

Como se sabe, Lukács (1978) registra três esferas ontológicas distintas, a inorgânica, a orgânica e o ser social: o ser inorgânico, mineral, não possui vida, sua evolução consiste apenas em tornar-se outro; o ser biológico configura um mero repor o mesmo da reprodução da vida; por fim, o ser social tem como particularidade a contínua produção do novo, de maneira conscientemente orientada e teleologicamente posta. Ainda que persista uma distinção ontológica entre a esfera inorgânica, a esfera biológica e o ser social, estas três dimensões estão ineliminavelmente articuladas, consistindo, ademais, em passagens preparatórias, processadas em milhões ou bilhões de anos, de uma a outra forma de ser. Poderíamos, então, confirmar com Lukács (1981) que, relacionadas entre si, a esfera inorgânica, a esfera da vida e o ser social traduzem o evolver histórico da processualidade humana.

Devemos ressaltar, contudo, que a formação do ser social não é produzida fortuitamente no interior das esferas inorgânica e biológica, mas só vem a se tornar possível a partir da presença de um órgão e de um médium próprio desse estatuto de ser, que é a consciência3 3 No capítulo dedicado à Reprodução Social, em sua obra "Per una ontologia dell’essere sociale", Lukács (1981) define a linguagem como um complexo fundado pelo trabalho. Desse modo, a produção da linguagem se encontra vinculada, desde sua origem, à atividade produtiva. Leontiev (1978) vai colocar-se de pleno acordo, reiterando que a linguagem surge na atividade prática dos homens, desempenhando a função de comunicação, além de ser um meio da consciência e do pensamento humanos, não destacado ainda da produção material, tornando-se, portanto, a forma e o suporte da generalização consciente da realidade. .

O pensador húngaro atesta, com efeito, a partir de Marx, que o trabalho possibilita aos seres vivos ir além da fixação na competição biológica com seu mundo ambiente, sendo a consciência a mediadora da relação sujeito-objeto no ato do trabalho:

O momento separatório [entre o homem e os animais] é constituído não pela fabricação de produtos, mas pelo papel da consciência, a qual, precisamente aqui, deixa de ser mero epifenômeno da reprodução biológica: o produto, diz Marx, é um resultado que no início do processo existia "já na representação do trabalhador", isto é, de modo ideal. (Lukács, 1978, p. 4)

Vai adiante Lukács (1981, p. 65) para elucidar que "a consciência é... um componente do ser social, do qual deriva sua continuidade, fazendo com que este alcance um ser para-si, que não existe nas outras esferas." Nesse sentido, o autor designa o homem, o animal que se torna homem através do trabalho, como um ser que dá respostas. Esse movimento, por sua vez, só é possível porque opera em meio ao desenvolvimento social em caráter contínuo e crescente. É importante assinalar que o trabalho enquanto protoforma originária do ser social tem o poder de lançar-se sobre si mesmo, fazendo derivar dele novas categorias de tipos extremamente complexos. Dito de outro modo: "produzindo mais do que o necessário para a reprodução do seu produtor, o trabalho inaugura um processo de complexificação", dando origem "a novos e diferenciados complexos sociais, com os quais estabelece relações e forma uma totalidade social, um complexo de complexos, em cujo cerne pode se efetivar" (Lima & Jimenez, 2011, p. 74).

Nesse processo, o homem transforma em perguntas seus próprios carecimentos e as possibilidades de satisfazê-los. Por esse prisma, é possível destacar o carecimento material como propulsor da reprodução individual ou social, uma vez que este põe em movimento o complexo do trabalho. Desse modo, as mediações existem ontologicamente no sentido de satisfazer o carecimento material produzido, conquanto o processo reprodutivo que se efetiva sobre a base da sempre mais complexa dinâmica carecimento-resposta toma formas e direcionamentos distintos, ao longo do evolver histórico.

Assim é que, desde o advento da divisão social do trabalho, fundada sobre a apropriação privada dos meios e produtos do trabalho, a produção da base material que garante a reprodução da sociedade vem se efetivando a partir do princípio da exploração do homem pelo homem. Como discutiremos adiante, tal desdita vai dilacerar, na concepção de Leontiev (1978), a unidade entre o sentido e o significado da atividade do homem, o que, por sua vez, implica na fragmentação de sua consciência, cerceando, nesse processo, o desenvolvimento de sua personalidade.

O antagonismo entre sentido e significado do trabalho: De Marx a Leontiev

Como é largamente assinalado na literatura marxista, Marx e Engels (2006, p. 45) reconhecem que:

os homens, ao produzirem sua existência, produzem, indiretamente sua vida material. ... o que eles são coincide, portanto, com sua produção, tanto com o que produzem como com o modo como produzem. O que os indivíduos são, por conseguinte, depende das condições materiais de sua produção.

Ocorre que a produção, a qual aparece inicialmente com o aumento da população, pressupõe o intercâmbio entre indivíduos, condicionado à própria produção. Conforme Marx e Engels (2006, p. 102), na divisão social do trabalho está posta, desde o início, a divisão das condições de trabalho, dos instrumentos e dos materiais. Desse antagonismo inicial, derivam todas as formas de fragmentação, seja a do capital acumulado entre diferentes proprietários, seja aquela entre capital e trabalho, além dos diferentes tipos de propriedade. Assim sendo, "à medida que a divisão do trabalho se desenvolve e a acumulação aumenta, mais se torna aguda a fragmentação. O próprio trabalho só pode subsistir sob o pressuposto dessa fragmentação" (Marx & Engels, 2006, p. 102).

Em decorrência do crescimento da cadeia de exploração do homem sobre o homem, o trabalhador perde o que, para ele, é da maior importância no ato do trabalho: a conexão com sua própria existência, com as forças produtivas e consigo mesmo enquanto força produtiva. Desse modo, esvai-se do trabalho toda aparência de protoforma da atividade humana, ou seja, da atividade de si do homem. O trabalho desponta inversamente como um meio enquanto a produção da vida material aparece como um fim.

Isto implica em alienação econômica dos meios de produção, uma vez que o resultado da atividade do homem toma um caráter impessoal, demarcando sua vida de mercadoria, fruto da divisão social do trabalho.

Lukács (1981, p. 26), recuperando em Marx lineamentos da reprodução do ser social, assinala que:

Os indivíduos sempre partem de si mesmos, sempre se iniciam de si mesmos. As suas relações são relações do seu processo real de vida. Como acontece que as suas relações se tornem autônomas em oposição a eles? Que as potências da sua própria vida se tornem mais potentes que eles?

Para Marx e Engels (2006), divisão do trabalho e propriedade privada são expressões afins, a primeira referindo-se à atividade do homem e a segunda ao produto dessa atividade. Nesse sentido, à distribuição desigual do trabalho e de seus produtos perfila-se a propriedade privada, a qual, vale notar, surge de forma embrionária na divisão sexual do trabalho. Esta, por sua vez, encontra expressão primordial na organização familiar. Aí estão fincadas as contradições entre o interesse individual ou da família isolada e o interesse coletivo dos indivíduos que se relacionam entre si. O primeiro, orientado por interesses pessoais, imprime na humanidade um movimento que resvala em fragmentação da relação sujeito-objeto e, regido pelo individualismo, consubstancia a forma social capital. O segundo, norteado pela consciência das necessidades da totalidade dos indivíduos, postas na realidade concreta, segue em busca da emancipação humana. A possibilidade de harmonia entre esses elementos só se torna efetiva a partir da supressão da divisão social do trabalho.

Na verdade, o que os estudos de Marx e Engels (1976, p. 21) revelam, primordialmente, é a negação da processualidade do gênero humano4 4 Engels (2010) refere-se ao senador romano Menennius Agripa, que teria dissuadido plebeus revoltados contando-lhes uma fábula sobre a relação entre o estômago e os membros, na qual as partes de um corpo com inveja de seu estômago deixam de alimentá-lo, o que resulta no definhamento de todo o corpo. Desse modo, Engels critica os industriais que através de argumentos falaciosos da economia política, tentam de forma violenta demonstrar a inutilidade das associações de operários. imposta pela sociabilidade capitalista, como podemos observar na afirmação a seguir:

não só o trabalho é dividido e suas diferentes frações distribuídas entre os indivíduos, mas o próprio indivíduo é mutilado e transformado no aparelho automático de um trabalho parcial tornando-se, assim, realidade a fábula absurda de Menennius Agrippa que representa um ser humano como simples fragmento de seu próprio corpo. Originariamente, o trabalhador vendia sua força de trabalho ao capital por lhe faltarem os meios materiais para produzir uma mercadoria. Agora, sua força individual de trabalho não funciona se não estiver vendida ao capital.

A rigor, para o capital:

pouco importa o que a consciência sozinha empreenda; de toda essa podridão surge apenas um resultado, isto é, que esses três momentos – a força de produção, o estado social e a consciência podem e devem entrar em contradição entre si. (Marx & Engels, 2006, p. 58)

A sociedade comunista segue outra via, pela qual os indivíduos não são limitados a uma única atividade, mas se reservam àquelas atividades com as quais possuem afinidade e lhes trazem satisfação, constituindo-se tal modo de vida a base sobre a qual os homens se relacionam entre si com perspectivas de consolidação da livre consciência.

Na esteira dos dois teóricos revolucionários, Leontiev (2004) resgata que a divisão social do trabalho tem "igualmente como consequência, que as aquisições do desenvolvimento histórico possam separar-se daqueles que criam este desenvolvimento" (p. 293), ou, como também sublinha o mesmo autor, "que a atividade material e intelectual, o prazer e o trabalho, a produção e o consumo se separem e pertençam a homens diferentes" (p. 294), interferindo, assim, diretamente nas formas de sentimento, pensamento e ação humanas5 5 Rossler (2004) refere-se à formação de um psiquismo cotidiano, cristalizado na esfera da vida cotidiana, portanto afeito ao pragmatismo, ao economicismo e ao utilitarismo assentes às formas de pensar, sentir e agir cotidianas, impedido de ser alçado à individualidade para-si. , uma vez que a concentração de riquezas materiais nas mãos de uma minoria dominante direciona também a concentração da cultura intelectual. Com a divisão social do trabalho, instaura-se, fatalmente, um efeito devastador no mundo dos homens, uma vez que esta põe em movimentos estanques e contrários o trabalho material e espiritual, a consciência e a consciência da práxis. Em conformidade com a lógica da reprodução do capital, envolve a distribuição desigual tanto quantitativa quanto qualitativa do trabalho e de seus produtos.

Rejeitando "as concepções metafísicas que isolam a consciência da vida real", como anota corretamente Asbahr (2011, p. 6), Leontiev esforça-se por demarcar a relação entre a atividade produtiva e a estrutura da consciência dos homens. No intuito, pois, de precisar o antagonismo entre o sentido e significado da referida atividade no escopo da divisão social do trabalho, examina as condições de trabalho vigentes na sociedade primitiva, assinalando os rebatimentos da forma comunal de trabalho no plano da consciência dos homens, apurando, em contrapartida, as transformações sofridas nas relações entre os homens a partir da divisão social do trabalho, em que tudo se converte em mercadoria.

Conforme Leontiev (1978), nas condições da comunidade primitiva, tanto os meios quanto os frutos da produção encontravam-se sob a vigência da propriedade coletiva, sendo tais produtos refletidos na consciência individual e coletiva. Assim, os homens detinham os meios de produção e o que eles produziam não os colocava em posições sociais distintas.

Dito de outro modo, o que resultava da produção era refletido nos planos individual e coletivo. Da mesma forma, na ausência de uma situação de exploração do homem pelo homem, o produto do trabalho coletivo era dotado de um sentido social. Tal característica do trabalho conferia tanto um sentido objetivo na vida da comunidade como um sentido subjetivo para cada um de seus membros. Leontiev (1978, p. 114) chama especial atenção para o fato de as significações linguísticas socialmente elaboradas naquele momento histórico revelarem "o sentido social objetivo dos fenômenos, [podendo], igualmente, constituir a forma imediata da consciência individual destes fenômenos".

Com o surgimento da sociedade de classes, a consciência passa a operar de outra forma. A estrutura inicial da consciência cede lugar a uma nova, com vistas a responder às exigências embutidas na sociabilidade classista. Fundamentalmente, a transformação que se opera nesta nova estrutura da consciência refere-se às ligações entre seus principais componentes, os sentidos e as significações, em cuja relação se produz a tomada de consciência, tendo como base o conteúdo sensível (sensações, imagens de percepção, representações). O desenvolvimento da linguagem e da palavra estaria, mais uma vez, no centro desta discussão, tendo em conta que a palavra surge no interior do processo de atividade coletiva dos homens.

Como já referido, a divisão social do trabalho direciona a atividade espiritual e a atividade material a pessoas diferentes e, em assim operando, promove o isolamento da atividade intelectual, que passa a ser tomada, não como uma das formas de atividade surgidas historicamente do processo único da vida real dos homens, mas como manifestação de um princípio espiritual particular, o que significa que o mundo da consciência opõe-se ao mundo da matéria e de toda sua extensão. É bem verdade que Leontiev (1978, p. 117) reconhece que a atividade interior é profundamente original e qualitativamente particular, o que, todavia, para o autor, não a impede de converter-se em uma verdadeira atividade.

A transformação sofrida na estrutura interna da consciência ocorre a partir da divisão social do trabalho. A maioria dos produtores separa-se dos meios de produção e as relações entre os homens transformam-se cada vez mais em relações de coisas que se separam e se alienam do próprio homem. Assim, a atividade humana deixa de ser para o homem fonte de realização. A alienação passa a determinar a formação do homem e as condições concretas de sua existência que, pautadas na desumanização, acabam por descaracterizar o homem como ser social capaz de atividade plenamente livre e consciente.

Nesse ponto de nossa exposição, cabe-nos reiterar com Lukács (1981) a essência histórica da propriedade privada e da edificação da sociabilidade de classes, a qual num movimento complexamente mediado desponta, em função das necessidades geradas no contexto das relações de produção dos meios de subsistência. Desde o advento do trabalho alienado e da propriedade privada, conforme assinala o autor magiar, na esteira de Marx, a produção da base material que garante a reprodução da sociedade vem se efetivando a partir de diferentes modos de exploração do homem pelo homem, prevalecendo, a partir da revolução burguesa, o trabalho assalariado. O percurso histórico realizado pela humanidade desde o escravismo até o sistema capitalista é permeado, pois, pela lógica da reprodução social fundamentada nas relações alienadas. O que o autor faz questão de postular, quando resgata na obra marxiana as bases ontológicas da problemática da alienação, é que, por hipótese alguma, o complexo da alienação se configura em mediação inerente à natureza humana, configurando-se como um complexo universal. Ao contrário, como também pontua Mészáros (2009, pp. 23-24), o núcleo central dos "Manuscritos Econômico-Filosóficos" de Marx é, precisamente, a possibilidade de "transcendência... como a negação e supressão da ‘auto-alienação do trabalho’".

Ao mesmo tempo, ambos os discípulos de Marx ressaltam a intensificação dos níveis de degradação da essência humana ao longo do desenvolvimento do sistema capitalista, mormente, na contemporaneidade, como discutiremos adiante, com Mészáros (2002).

Como ressalta Duarte (2004), para Leontiev o trabalho alienado é igualmente um fenômeno de natureza histórico-social, fundado pelo desenvolvimento das formas de propriedade e das relações de troca. Nesse cenário, a relação entre homem e natureza sofre uma significativa desagregação, sendo desfeita a unidade natural entre o homem e as condições objetivamente necessárias à vida. Sobre o solo da alienação, o desenvolvimento das forças produtivas introduz outros tipos de propriedade e a ligação inicial do homem à terra, aos instrumentos de trabalho e ao próprio homem se esvai.

O que isso significa para a vida dos produtores? Como tampouco não nos deixa ignorar o próprio Marx (1978), no capitalismo, os produtores transformam-se em operários assalariados, tendo como propriedade única sua força de trabalho. Para sobreviverem, para satisfazer suas necessidades vitais em condições objetivas de produção, as quais lhes são estranhas, os homens sentem-se, a partir de então, coagidos a vender sua força de trabalho, a alienar seu trabalho. Leontiev (1978) recupera que, se o trabalho é o conteúdo mais essencial da vida do homem, na sociabilidade do capital, ele é forçado a alienar o conteúdo de sua própria vida. Entendendo por alienação, em última instância, a discordância entre o resultado objetivo da atividade humana e seu motivo, Leontiev (1978, p. 121) declara categoricamente:

Isolando os produtores, este processo isola na mesma cajadada as próprias condições que, sob a forma de capital, são a propriedade dos capitalistas. Para o trabalhador, o capitalista é a encarnação das condições que se opõem a ele. Todavia o capital tem também a sua própria existência, distinta do capitalista e que domina a sua vida e a submete. Estas relações objetivas engendradas pelo desenvolvimento da propriedade privada determinam as propriedades da consciência humana nas condições da sociedade de classes.

Outra vez traçando um paralelo entre as condições do trabalho e da produção na comunidade primitiva e na sociedade burguesa, em particular, Leontiev (1978) recorda que, na atividade primitiva, o caçador tem como motivo a parte da presa que lhe caberá e que corresponde a uma necessidade sua; já a presa é resultado objetivo de sua atividade, no contexto da atividade coletiva. Na produção capitalista, o operário assalariado não produz para si, nem a seda que tece, nem o palácio que constrói. O que ele produz para si mesmo é o salário, o que ele produz se reduz a uma minguada quantidade de meios de subsistência, de onde se conclui que o sentido da atividade de trabalho para o operário não coincide com sua significação social. Nas condições da sociedade capitalista, adjunta o parceiro de Vigotski e de Luria, a tecelagem, enquanto resultante da atividade humana de tecer, não tem o sentido subjetivo da tecelagem, apesar de o operário assalariado ter conhecimento sobre tecelagem. Há que se reconhecer, então, que o operário assalariado desenvolve as significações correspondentes à atividade de tecer apenas porque é necessário trocar seu tecer por dinheiro.

Sempre em consonância com a crítica marxista ontológica, admite Leontiev (1978) que a significação social do produto do trabalho não está escondida do operário, mas lhe é estranha devido ao sentido que este produto tem para ele, sendo o mesmo tomado como natural para o outro polo da sociedade onde está o capitalista, cujo sentido da fiação ou da tecelagem concentra-se no lucro que tira do trabalho do operário. Este processo é estranho às propriedades do fruto da produção e de sua significação objetiva, daí que, se ao operário fosse dada a possibilidade de escolher o seu trabalho, por exemplo, entre a tecelagem e a fiação, ainda assim seria tolhido em sua escolha quanto aos valores de uso e de troca. Tal prerrogativa impõe ao homem um dos vieses mais perversos da dimensão quantitativa do capital. O reino da propriedade privada e a alienação das relações pessoais dos homens conferem, efetivamente, um poder infinito ao dinheiro, modo de troca universal na vida do homem e, através deste poder, as relações entre pessoas transformam-se em relações entre coisas.

As palavras de Marx (1978, p. 11) tornam mais nítido o efeito destrutivo que opera sobre as qualidades essencialmente humanas, a regência da propriedade privada:

A propriedade privada nos tornou tão estúpidos e unilaterais que um objeto somente é nosso quando o temos, quando existe para nós como capital ou quando é imediatamente possuído, comido, bebido, vestido, habitado, em resumo, utilizado por nós. Se bem que a propriedade privada concebe, por sua vez, todas essas efetivações imediatas da posse apenas como meios de subsistência e a vida, à qual elas servem de meios é a vida da propriedade privada, o trabalho e a capitalização.

As condições da produção capitalista e o trabalho alienado implicam em transformações negativas na estrutura da consciência, uma vez que o sentido da vida está onde o operário não desenvolve atividades de trabalho, quais sejam, à mesa, na cama, em casa. No contexto do trabalho alienado, o operário assalariado aliena tanto o seu trabalho quanto a relação que estabelece com os outros homens. No entanto, o explorador capitalista contraditoriamente impulsiona a luta, derivada do aspecto desumano que fragmenta o homem em sua totalidade:

Na sociedade capitalista uma vez mais o trabalhador só tem esta alternativa: aceitar a sua sorte, tornar-se um "bom operário", servir "fielmente" aos interesses da burguesia – e, neste caso, cai de certo ao nível animal – ou então resistir, lutar quanto possa pela sua dignidade de homem, e isto só lhe é possível lutando contra a burguesia. (Leontiev, 1978, p. 126)

O homem esforça-se para se contrapor à ideologia dominante através da conscientização de si, da sua vida e do seu meio circundante. A consciência se reflete a partir da apropriação que o homem faz da realidade, refletindo-se também através do prisma das significações, dos conhecimentos e das representações socialmente elaboradas. Ademais, como anteriormente anotado, o conteúdo sensível (sensações, imagens de percepção, representações) constitui um dos componentes da consciência criando a base a as condições de sua efetivação, no entanto, não exprime em si, a consciência em toda sua especificidade.

Sendo uma condição necessária à vida, o homem busca a devida adequação no âmbito da própria consciência, concebendo que aquilo que ocorre na esfera do trabalho é diferente do que ocorre na esfera do capital. No movimento dialético que enlaça atividade prática e consciência, opera-se, de um lado, o abandono à vida real, a negação do sentido do trabalho para o homem; do outro, a apropriação das significações adequadas que refratam verdadeiramente a vida, na consciência. As contradições que pesam sobre a consciência, é importante elucidar, não exercem, contudo, determinação absoluta sobre o homem, tornando-o, a toda força, revoltado contra si mesmo, ou irremediavelmente passivo diante de seu destino. Ao contrário, abrem a possibilidade de levá-lo a posicionar-se contra a ideologia que escraviza a consciência, buscando compreensão e saber autênticos. Esta nova correlação confere à consciência traços psicológicos novos, tratando-se, portanto, de uma forma superior de enfrentamento à ideologia dominante, com vistas à superação teórico-prática da dominação.

Como tentaremos argumentar, a seguir, as advertências consolidadas por Leontiev (1978), após Marx e Engels (2006), acerca dos efeitos fragmentários do trabalho alienado sobre a conformação da consciência dos homens, encontram relevância redobrada, se tomarmos em conta os agravos incomensuráveis que desabaram sobre as relações de trabalho nas condições do capitalismo contemporâneo, quando, num quadro de crise estrutural do capital (Mészáros, 2000, 2002), o antagonismo entre trabalho e capital agrava-se de forma inédita, com desdobramentos severos sobre todas as dimensões da vida humana6 6 Reconhece Duarte (2004, p. 59), nesse sentido, que "Do ponto de vista da sociedade como um todo, [a] ruptura entre e o significado e o sentido das ações humanas atinge níveis absolutamente destrutivos na sociedade capitalista contemporânea". Aponta, outrossim, o autor, sob a referência meszariana, "a necessidade de uma mudança radical na lógica do metabolismo social". .

A crise estrutural do capital e o agravamento da divisão do trabalho

É fato largamente reconhecido que a sociedade contemporânea vem experimentando transformações tanto na esfera material como na espiritual, alcançando, direta e profundamente, a relação subjetividade-objetividade.

Sob o prisma da ontologia marxiana, devemos entender que tais transformações não descem do céu à terra, ou seja, não se fazem por obra de um desígnio ou de uma vontade alheia ao homem, sequer pela força desencarnada do desenvolvimento tecnológico, como ditam os adeptos da assim chamada sociedade do conhecimento7 7 A dita sociedade do conhecimento, também referida como sociedade da informação, dentre outras denominações, teria suplantado a forma social fundada no trabalho e na luta de classes. Em acordo com Lessa (2005, p. 19), advogamos que o conjunto de formulações associadas ao paradigma da sociedade do conhecimento cumpriria a função ideológica de "conferir uma aparência de ciência à tese de que hoje não há mais proletariado nem burguesia e que, portanto não teria mais qualquer sentido falar-se de luta de classes e de um projeto revolucionário de transição para uma sociabilidade para além do capital na acepção marxiana". . Ao contrário, permanecem em última instância, atadas aos reclamos das relações sociais de dominação, agora, acirradas por uma crise de caráter estrutural do próprio sistema do capital.

De acordo com Mészáros (2000, 2002), com efeito, o capital vem atravessando no último meio século uma crise de profundidade e extensão inéditas na história. Tal crise teria se alojado na própria estrutura do sistema de acumulação, atingindo seu tripé de sustentação, materializado nas relações capital-trabalho-Estado. No enfrentamento de tão severa crise, o capital deve recorrer a medidas extremas, na tentativa de perpetuação de seu metabolismo, o que vem repercutindo em todas as dimensões da sociabilidade, as quais se veem afetadas pela intensificação, em grau igualmente inédito, da barbárie social.

Caracterizada pelo antagonismo entre capital e trabalho, a forma social capital, conforme explicita Mészáros (2000, p. 11), "prevalece em todo lugar, do menor microcosmo constitutivo ao macrocosmo, abarcando as relações e estruturas reprodutivas mais abrangentes". Desse antagonismo estrutural, depreende-se a natureza irreformável do sistema, sendo a falência do reformismo histórico um testemunho desse fato, conquanto as mudanças introduzidas a pretexto de remediar as mazelas produzidas no seio do sistema não passam de meros ajustes que servem, no limite, para garantir sua reprodução, assegurando a boa governabilidade do sistema.

Pelo prisma da incontrolabilidade do metabolismo do capital, sobre a base daquele antagonismo primário, com todos os desdobramentos no plano da desumanização do homem, Mészáros (2000, p. 11) entende que a superação de tal estado de coisas somente será possível,

[Isto só pode ser atingido] colocando [-se] em seu lugar uma forma radicalmente diferente de reprodução do metabolismo social, orientada para o redimensionamento qualitativo e a crescente satisfação das necessidades humanas, um modo de intercâmbio humano controlado não por um conjunto de determinações materiais fetichizadas, mas pelos próprios produtores associados.

Na esteira do exame meszariano sobre o caráter de incontrolabilidade do capital, é oportuno atentar para a contradição entre as mediações de primeira e segunda ordem, reconhecendo com Antunes (2002) que a sobreposição das mediações de segunda ordem sobre as de primeira ordem, constitui, justamente, o ponto nodal da empreitada do capital em busca de perpetuar sua reprodução. Ora, o metabolismo social do capital opera na lógica antagônica hierárquica que subsume o trabalho ao capital; desse modo, descarta as mediações estabelecidas entre os seres sociais, cujas finalidades são afeitas à reprodução humana, as quais passam a ser regidas por mediações que pretendem blindar o capital, mormente em seus momentos de crise.

As formas essenciais de mediação primária, como reconhece Mészáros (2002, pp. 212-213), dizem respeito a "relações em cujo quadro tanto os indivíduos da espécie humana como as entrelaçadas condições culturais\intelectuais\morais\materiais cada vez mais complexas de sua vida são reproduzidos segundo a margem de ação sócio-histórica disponível e cumulativamente ampliada". Dentre essas condições, destaca a regulação da atividade reprodutora biológica em consonância com os recursos disponíveis, a regulação do processo de trabalho pelo qual o intercâmbio orgânico com a natureza produz elementos necessários a satisfação das necessidades humanas, assim como instrumentos de trabalho e conhecimento por meio dos quais pode-se garantir e manter a reprodução social.

As funções vitais decorrentes das mediações primárias se apoiam em um sistema de trocas que busca atender às necessidades humanas no decurso da história, com vistas à transformação dos recursos tanto naturais quanto produtivos. No sentido de atender a um sistema de reprodução social que se complexifica continuamente, estas mediações buscam organizar, coordenar e controlar a infinidade de atividades materiais e culturais produzidas pelo homem.

Orientadas para a autoprodução e reprodução societal, incluem, ainda, a distribuição dos recursos disponíveis de modo a atender de forma igualitária e racional a todos os homens, buscando utilizar os meios de produção de forma econômica, tendo em vista as restrições socioeconômicas e os níveis de produtividade. Ademais, as funções vitais atinentes à mediação primária dizem respeito à organização e consolidação de regulamentos sociais que atendam ao conjunto dos homens em sua totalidade, avessos, portanto, à divisão do agrupamento humano em uma classe que explora e outra que é explorada.

As mediações de segunda ordem, por seu turno, coadunam-se com a lógica reprodutiva do capital, uma vez que produzem no contexto metabólico social do capital, como bem discerniu Marx (2006), a alienação do homem em relação à natureza, à sua própria atividade, ao produto de seu trabalho e ao próprio gênero. A emergência dessas mediações não tem como finalidade a inteireza dos seres em suas relações entre si, mas o caráter expansionista do valor de troca, pondo em jogo tanto as ações quanto o pensamento e o sentimento dos indivíduos. Desse fato, depreende-se que o valor de troca impõe a subordinação das necessidades humanas, sobrepondo-se ao valor de uso, assim como também nos revelou Marx (1978).

Assumindo lugar no mundo dos homens com o advento do capitalismo e seguindo rumos opostos às mediações primárias, secundárias, ou de segunda ordem, por sua vez, trazem, como explicita Mészáros (2002), dentre os elementos principais: (a) a família nuclear como o "microcosmo" da sociedade, participando de todas as relações reprodutoras do "macrocosmo" social, atendendo a reprodução do Estado, através das mediações de suas leis para todos os indivíduos; (b) a produção e seus meios alienados, através dos quais o capital exerce com vontade de ferro e consciência rígida a desumanização do homem, em nome da continuidade de sua ordem sociometabólica; (c) o dinheiro em todas as suas formas históricas e falaciosas, atingindo a opressão global vigente; (d) o fetichismo da produção objetivando a submissão da satisfação das necessidades humanas, para atender cegamente a expansão e a acumulação do capital; (e) o trabalho assalariado engolfado estruturalmente pela expansão econômica nas sociedades capitalistas, prosseguindo sob o capital pós-capitalista como força de trabalho politicamente dominada.

Como não poderia deixar de ser, o princípio da subsunção das mediações de primeira ordem, de caráter genérico-universal, às mediações de segunda ordem, atinentes às necessidades de reprodução do capital, perdura no quadro da crise estrutural do capital, com o agravante, se assim podemos dizer, de que, esgotadas as possibilidades de deslocamento de suas contradições no âmbito da produção orientada para o consumo de bens, destinados em razoável medida ao atendimento das necessidades humanas (Mészáros, 2002), o capital assume a pura e simples produção do desperdício como norma, por excelência, de sua lógica expansionista.

Pari passu a esse deslocamento, acentua a fragmentação do trabalho, explorado exacerbadamente, na forma do desemprego estrutural e da precarização do emprego, em todas as suas dimensões, o que inclui a subcontratação e a terceirização levadas ao extremo, ao lado da perda acentuada de direitos conquistados através de lutas históricas, pela classe trabalhadora, fenômeno que alcança tanto os países pobres como os países do capitalismo central.

A humanidade sofre, então, em sua expressão máxima, os revezes da destrutividade do capital. No plano da consciência, em associação orgânica com o recuo da razão, cultivada com supremo rigor no quadro de sua crise estrutural, naturaliza-se a referida destrutividade. Forçosamente, erige-se uma objetividade inumana, prenhe, em seu caráter pragmático-utilitário, enquanto uma subjetividade limitada aos contornos de si mesma esvazia-se em sua práxis.

Ainda assim, Paniago (2007, p. 146) postula, muito apropriadamente, que:

Na verdade, é para o capital que "não há nenhuma alternativa", e "jamais poderá haver", pois ele não pode existir sem a dependência estrutural da exploração do trabalho, ao contrário deste último, que nem sempre ocupou uma posição subordinada na história da humanidade.

E, na continuidade de suas ponderações, reitera, com Mészáros (2002), a possibilidade de ruptura com "a dependência estrutural que [o trabalho] mantém com o capital", assinalando, com a devida precisão, que "o único sujeito capaz de apresentar uma alternativa viável ao modo de controle iníquo e autoritário do capital é o trabalho, rearticulado num movimento socialista que supere os fracassos das tentativas anteriores" (Paniago, 2007, p. 146).

Em suma, como vem explicitando mais contemporaneamente Mészáros (2002) e seus intérpretes, à radical incontrolabilidade do capital, ou, em outros termos, à impossibilidade ontológica de humanizar-se um sistema que só pode se reproduzir pela via da desumanização, alinha-se, dialeticamente, a possibilidade concreta de sua superação, o que, certamente impõe condições muitíssimo complexas, dentre as quais não tem valor secundário a consciência adequada do real e dos meios de transformá-lo.

Notas conclusivas

A exposição que finalizamos reafirma a essência ontohistórica do homem, fundada no ato do trabalho, pelo qual, este transforma o meio natural e, ao mesmo tempo em que cria o novo, cria-se como um ser radicalmente novo, capaz de atividade livre e consciente. O trabalho como protoforma da atividade humana, complexo social que funda o mundo dos homens, conforme as prerrogativas da ontologia marxiana, recuperada por Lukács (1981), torna-se historicamente esvaziado diante da divisão social do trabalho, a qual separa os produtores daquilo que produzem, consolidando a exploração do homem sobre o homem.

Como vimos em Leontiev (1978), o significado atribuído ao trabalho na sociabilidade capitalista opõe-se frontalmente ao sentido que o trabalhador confere a sua produção material, o que interfere diretamente nas formas humanas de pensar, sentir e agir. A partir desses subsídios, tentamos demonstrar que a relação antagônica entre sentido e significado do trabalho realçado por Leontiev articula-se, de forma cabal, ao imperativo da divisão social do trabalho, ou, seja, ao próprio antagonismo inerente às relações entre capital e trabalho.

Assinalamos, por princípio, que os elementos teóricos que fundam os estudos de Leontiev (1978), no seio da Psicologia Histórico-Cultural, corroboram com as premissas centrais do marxismo ontológico, possibilitando-nos, ao fim e ao cabo, afirmar que somente no seio de uma sociabilidade fundada pelo trabalho livre e associado, a contraposição entre o sentido e o significado da atividade propriamente humana encontra sua plena resolutividade. Apartam-se, desse modo, do conjunto de teorias hegemônicas da ordem do neopragmatismo, da ação comunicativa, do construtivismo etc., que defendem a resolução de tal contraposição sob a regência do imediatismo, do empiricismo ou dos jogos intersubjetivos, cujas luzes são lançadas sobre um sujeito plenamente desgarrado da esfera da objetividade e da totalidade.

Com efeito, na perspectiva marxista ontológica sobre a qual se erige a psicologia de Vigotski (1998), Leontiev (1978) e Luria (1991), explicita-se a necessidade da luta pela transformação socialista do homem8 8 Conferir, a esse respeito, o texto de Vigotski (1998), constante de suas elaborações de 1930, intitulado "A transformação socialista do homem". , referenciada na emancipação humana. Tal movimento opõe-se frontalmente às tentativas inócuas de promover nas entranhas da sociabilidade do capital uma inversão do processo de desumanização, garantindo, sobre a base mesma do trabalho alienado, uma vida plena de sentido.

Como, a rigor, esclarece Mészáros (2002), o desenvolvimento das forças produtivas oriundas do sistema capitalista em vez de reduzir o nível da miséria material e espiritual, abrindo possibilidades por dentro de seu metabolismo, para uma sociedade mais humana, vem intensificando, de forma inaudita, a precariedade das condições objetivas de vida e de trabalho dos homens. O caráter destrutivo do capital, exponenciado pela crise estrutural do sistema, ora em curso, segue fragmentando a classe trabalhadora, descaracterizando cada vez mais a finalidade humana do trabalho em seu sentido ontológico.

Com base na ontologia marxiana, entendemos, contudo, que a sociabilidade edificada na exploração de uma classe sobre outra classe é resultado das relações sociais construídas pelo conjunto dos homens, cabendo a nós mesmos lutar por um novo homem e uma nova sociedade, livre da exploração e voltada para finalidades assentes à processualidade do gênero humano.

Notas

Referências

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Recebido em: 01/05/2013

Revisão em: 2013-08-06

Aceite em: 2013-10-28

Ruth Maria de Paula Gonçalves é Professora da Universidade Estadual do Ceará. Centro de Humanidades. Curso de Psicologia. Formada em Pedagogia. Doutora em Educação. Pesquisadora Colaboradora do Instituto de Estudos e Pesquisas do Movimento Operário - IMO. Coordenadora do Núcleo de Psicologia Social e do Trabalho – NUSOL. Endereço: Rua Monsenhor Bruno 1242 ap. 401 Aldeota. Fortaleza/CE, Brasil. CEP 60115-190. E-mail: ruthm@secrel.com.br

Susana Vasconcelos Jimenez é PhD em Educação. Professora da Universidade Federal do Ceará, com atuação na Linha Marxismo, Educação e Luta de Classes. Líder do Grupo de Pesquisas Trabalho, Educação e Luta de Classes, cadastrado na Plataforma Lattes do CNPq. Email: susana_jimenez@uol.com.br

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  • 1
    De acordo com a crítica severa de Costa (2004), no movimento de ascensão do pós-modernismo, "o prestígio de alguns conceitos – o de alteridade, o de micro, o de diferença, o de ‘pós’, por exemplo – enfeitam ‘teorias’ e ‘metodologias’ para todos os apetites, que infladas por engendragens poderosas de publicidade, exercem imediato fascínio para uma intelectualidade de subfilósofos, subsociólogos, subpedagogos, subteorizadores da periferia dita desenvolvida" (Costa, 2004, p. 67).
  • 2
    O marxismo foi apreendido por Gyorgy Lukács (1885-1971), em sua obra de maturidade, como uma ontologia materialista, capaz de revelar a essência ontohistórica do homem, fundada no ato do trabalho. Nesse sentido, como assevera Tertulian (1996, p. 58), a Ontologia do Ser Social de Lukács (1981) representaria "um gigantesco esforço para examinar, passo a passo, as categorias fundamentais do pensamento marxiano, a fim de restituir-lhe a densidade e a substancialidade, revelando ao mesmo tempo as raízes da sua degradação devida ao stalinismo".
  • 3
    No capítulo dedicado à Reprodução Social, em sua obra
    "Per una ontologia dell’essere sociale", Lukács (1981) define a linguagem como um complexo fundado pelo trabalho. Desse modo, a produção da linguagem se encontra vinculada, desde sua origem, à atividade produtiva. Leontiev (1978) vai colocar-se de pleno acordo, reiterando que a linguagem surge na atividade prática dos homens, desempenhando a função de comunicação, além de ser um meio da consciência e do pensamento humanos, não destacado ainda da produção material, tornando-se, portanto, a forma e o suporte da generalização consciente da realidade.
  • 4
    Engels (2010) refere-se ao senador romano Menennius Agripa, que teria dissuadido plebeus revoltados contando-lhes uma fábula sobre a relação entre o estômago e os membros, na qual as partes de um corpo com inveja de seu estômago deixam de alimentá-lo, o que resulta no definhamento de todo o corpo. Desse modo, Engels critica os industriais que através de argumentos falaciosos da economia política, tentam de forma violenta demonstrar a inutilidade das associações de operários.
  • 5
    Rossler (2004) refere-se à formação de um psiquismo cotidiano, cristalizado na esfera da vida cotidiana, portanto afeito ao pragmatismo, ao economicismo e ao utilitarismo assentes às formas de pensar, sentir e agir cotidianas, impedido de ser alçado à individualidade para-si.
  • 6
    Reconhece Duarte (2004, p. 59), nesse sentido, que "Do ponto de vista da sociedade como um todo, [a] ruptura entre e o significado e o sentido das ações humanas atinge níveis absolutamente destrutivos na sociedade capitalista contemporânea". Aponta, outrossim, o autor, sob a referência meszariana, "a necessidade de uma mudança radical na lógica do metabolismo social".
  • 7
    A dita sociedade do conhecimento, também referida como sociedade da informação, dentre outras denominações, teria suplantado a forma social fundada no trabalho e na luta de classes. Em acordo com Lessa (2005, p. 19), advogamos que o conjunto de formulações associadas ao paradigma da sociedade do conhecimento cumpriria a função ideológica de "conferir uma aparência de ciência à tese de que hoje não há mais proletariado nem burguesia e que, portanto não teria mais qualquer sentido falar-se de luta de classes e de um projeto revolucionário de transição para uma sociabilidade para além do capital na acepção marxiana".
  • 8
    Conferir, a esse respeito, o texto de Vigotski (1998), constante de suas elaborações de 1930, intitulado "A transformação socialista do homem".
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      24 Jan 2014
    • Data do Fascículo
      2013

    Histórico

    • Recebido
      01 Maio 2013
    • Aceito
      28 Out 2013
    • Revisado
      06 Ago 2013
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