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O Mercosul Importa. A Política Regional de Mobilidade Territorial* * Artigo recebido em 4 de novembro de 2013 e aprovado para publicação em 10 de abril de 2015.

Mercosur Matters. Territorial Mobility Regional Policy

Resumo

Tanto os Estados como os blocos de integração, formados por estes, são considerados instâncias de poder, exercido através de várias ferramentas. No caso do Mercosul, o exercício do poder pode ser analisado através das políticas regionais, constituindo a mobilidade territorial um exemplo delas. O tratamento multilateral do fenômeno da mobilidade territorial é novo para a região. Sendo tradicionalmente associado à política interna dos Estados, está hoje se tornando um assunto de decisão coletiva. A lógica da integração exige uma abertura política de migração seletiva regional, que contrasta com a política restritiva para os cidadãos de terceiros países. Como consequência, surge a distinção entre os cidadãos mercosulinos e os não mercosulinos, tendendo-se para o aprofundamento do processo de integração regional. Esta política regional se encontra em constante construção e debate.

Mercosul; Política Regional; Migração; Tratamento Multilateral

Abstract

Both States and integration blocs formed by them are considered instances of power that is exercised through various tools. In the case of Mercosur, the exercise of power could be studied through regional policies, being the territorial mobility an example of them. The multilateral treatment of the territorial mobility is new to the region. A subject traditionally associated to the states' internal policy is becoming a collective decision. Also, the integration logic demands a selective opening regional migration policy which contrasts with the restrictive policy towards citizens from third countries. As a consequence, a distinction between mercosurean and non-mercosurean citizens arises, tending towards the deepening of the regional integration process. This regional policy is in constant construction and debate

Mercosur; Regional Policy; Migration; Multilateral Treatment

Introdução

Tanto os Estados como os blocos de integração conformados por eles se consideram instâncias de poder exercido através de diversas ferramentas. No caso do Mercado Comum do Sul (Mercosul), o exercício do poder pode ser apreendido por meio de políticas regionais, constituindo-se a mobilidade territorial como um exemplo delas.

As políticas regionais formam parte do conjunto de processos de transformação institucionais, estratégicos e normativos induzidos pela construção mercosulina, citando Palier e Surel (2007PALIER, Bruno; SUREL, Yves et al. L'Europe en action. L'européanisation dans une perspective comparée. Paris: L'Harmattan, 2007., p. 39), que definiram o conglomerado de elementos como "europeização" com o fim de dar conta do impacto efetivo que a União Europeia (UE) provoca no acionamento dos Estados-membros.

Alguns autores pretendem abordar as políticas regionais como objetos particulares, detentoras de uma natureza diferente das nacionais (ANDERSEN; ELIASSEN, 1993ANDERSEN, Svein; ELIASSEN, Kjell. Making Policy in Europe, the Europeification of National Policy Making. Londres: Sage, 1993.; MARKS et al., 1996MÁRMORA, Lelio. Las políticas de migraciones internacionales. Buenos Aires: OIM/Alianza, 1997.). Sem desconhecer certas especificidades pontuais, este artigo as analisa a partir de instrumentos gerados nas teorias tradicionais, como as que propõem Solanas (2007)STOLCKE, Verena. Hablando de la cultura: nuevas fronteras, nueva retórica de la exclusión en Europa. Current Anthropology, v. 36, n. 1, p. 1-24, 1995., Hassenteufel e Surel (2000)JIMÉNEZ DE PARGA MASEDA, Patricia. El derecho a la libre circulación de las personas físicas en la Europa comunitaria. Madri: Tecnos, 1994., entre outros. Característica comum da política nacional ou regional é que tanto uma como outra são o "resultado de uma interação" (LAGROYE, 1993LIROLA DELGADO, Maria. Libre circulación de personas y Unión Europea. Madri: Civitas, 1994., p. 45) na qual participam múltiplos atores com interesses e ideias próprias, seguindo uma visão pluralista.

Vários trabalhos têm sido publicados sobre políticas regionais no Mercosul. Assim, Solanas (2007)SOLANAS, Facundo. El Mercosur y las políticas públicas de reconocimiento de títulos universitarios: el caso argentino. Tese (Doutorado em Ciências Sociais) - Universidad de Buenos Aires, Buenos Aires, 2007. aporta o conceito de "mercosulização das políticas públicas" para explicar o desenvolvimento da política regional de revalidação de títulos na educação superior. O autor assegura que existe um alto grau de permeabilidade das recomendações dadas pelos organismos internacionais, na qual a construção de políticas públicas resulta extremamente receptiva e suscetível de se adaptar a tais sugestões.

Contudo, Botto (2011)CASEY, John. Open Borders: Absurd Chimera or Inevitable Future Policy? International Migration, n. 48, p. 14-62, 2010. argumenta, a partir da análise de cinco políticas regionais (educação, ciência e tecnologia, produção e consumo sustentável, integração produtiva e assimetrias), que o Mercosul constitui um processo de harmonização de políticas desde o nacional ao regional, mais do que um processo de transferência do global ao regional. Sendo assim, os países mais desenvolvidos do bloco - Brasil e Argentina - seriam os que impõem suas políticas aos menores.

Por sua parte, Perrotta e Vazquez (2010) ______; VAZQUEZ, Mariana. El Mercosur de las políticas públicas regionales. Las agendas en desarrollo social y educación. Montevidéu: Trilce, 2010. descrevem e analisam as políticas públicas regionais de educação e desenvolvimento social, nas quais as dinâmicas nacionais e regionais se influenciam mutuamente e se retroalimentam, imprimindo características particulares ao processo de integração.

Finalmente, Moguillansky (2011)MOGUILLANSKY, Marina. Pantallas del Sur. La integración cinematográfica en el Mercosur. Tese (Doutorado em Ciências Sociais) - IDES, Buenos Aires, 2011. estuda a política regional audiovisual e encontra deficiências, tanto no seu desenho quanto na sua implementação. A autora identifica três obstáculos para a implementação: conflito de interesses entre os países e dentro dos mesmos, assimétrica capacidade de ação e a existência de um espaço pouco legitimado para impor decisões.

As pesquisas mencionadas não pretendem fazer generalizações aplicáveis a todas as políticas regionais mercosulinas, mas correspondem a estudos de casos cujas conclusões podem ou não se replicar em outras matérias. Contudo, todos coincidem sobre o impacto efetivo - em maior ou menor grau segundo o assunto - que provoca o Mercosul sobre o acionar dos Estados e vice-versa. No caso da política de mobilidade territorial, a irrupção do Mercosul acarreta uma reconfiguração das relações entre seus habitantes e os países do bloco.

Apesar de diversos instrumentos bilaterais terem sido gerados ao longo da história regional, pela primeira vez se institucionalizaram acordos multilaterais (MÁRMORA, 1997). Dita abordagem multilateral, aspiração geral dos blocos regionais em maior ou menor medida, constitui um aspecto que se deseja aprofundar neste artigo. Além dos meios e procedimentos, o trabalho ocupa-se do resultado do consenso coletivo final.

Com o objetivo de desenvolver a política regional de mobilidade territorial nestes blocos, recompilou-se e analisou-se a legislação e bibliografia publicada sobre o objeto de estudo. A legislação do Mercosul desde 1991 até a atualidade compõe a principal fonte utilizada neste trabalho. Considera-se a normativa emitida dos órgãos regionais como um instrumento válido para conhecer os princípios organizadores que se dão na matéria. Por último, aclara-se que se trata de uma reconstrução não exaustiva, senão de alguns elementos sociojurídicos-chave para dar conta da temática que nos ocupa.

A partir da revisão bibliográfica realizada, descobriram-se lacunas, informação básica sem profundidade, nem densidade sobre o conhecimento da migração no quesito da política regional. Tal situação poderia se explicar pelo forte cunho economicista do início do processo de integração, da pouca valorização ou até subestimação do assunto migratório, e da relativa contemporaneidade do processo de integração que apenas supera os vinte anos de vida.1 1 . De modo ilustrativo, a procura de artigos - desde 1991 a 2012 - sobre a questão imigratória mercosulina em revistas especializadas detém escassos resultados. De fato, não se encontraram artigos dedicados ao bloco nas principais referências internacionais em matéria migratória: International Migration Review, International Migration e Population and Development Review. De fato, o tratamento do tema migratório constitui um exemplo da invisibilidade acadêmica e política da agenda social (PERROTTA, 2012) que caracterizou os primeiros anos de vida do Mercosul.

Na primeira parte, apresentam-se brevemente as experiências de outros blocos regionais que resultam úteis para efeitos comparativos. Logo, chega-se à abordagem multilateral mercosulina, identificando e sistematizando a política regional de mobilidade territorial dividida em dois eixos: circulação e residência. Deste modo, analisam-se as diversas ferramentas que possuem como instrumento básico a distinção entre cidadãos do bloco e extrablocos, para facilitar direitos de trânsito, circulação, residência etc. Na última parte, condensam-se as principais conclusões e reflexões obtidas da investigação levada adiante, ao tempo que se abrem interrogações para futuros estudos.

A Gestão da Mobilidade desde a Multilateralidade

Os blocos regionais formulam uma cooperação voluntária entre os Estados, que pode adotar diferentes formas, seja pelo seu objeto, mecanismo, ou pela sua natureza. A teoria funcionalista assegura que, dada a incapacidade de os Estados fornecerem ótimas respostas a determinadas necessidades, estes decidem se integrar com vistas a alcançar seus objetivos. Na atualidade, os blocos podem ser explicados como resposta aos efeitos de uma nova ordem internacional, que possui como pano de fundo a tensão dialética entre os Estados e as forças da globalização (DE SOUSA SANTOS, 2003).2 2 . De Sousa Santos (2003) prefere se referir às globalizações e não à globalização. Existem globalizações que respondem a um conjunto de relações sociais que tentam se impor umas às outras. Assim, aquela que triunfa designa as outras como locais.

A globalização, segundo Giddens (1991)GIDDENS, Anthony. The Consecuences of Modernity. Cambridge: Polity Press, 1991., revela-se como uma dinâmica de movimento e trânsito permanente de recursos materiais e simbólicos: a relação espaço-tempo tende a desaparecer, fenômeno concebido por alguns autores como uma erosão da capacidade dos Estados de enfrentar determinadas questões por si sós. Borón (2002) critica a tese sustentada por Hardt e Negri (2000)HASSENTEUFEL, Patrick; SUREL, Yves. Des politiques publiques comme les autres? Construction de l'objet et outil d'analyse des politiques européennes. Politique Européenne, n. 1, p. 8-24, 2000., entre outros, sobre a declinação e futura desaparição dos Estados e exemplifica com as migrações. No mesmo sentido, Tapinos e Delaunay (2001)UGUR, Mehmet. Freedom of movement vs. exclusion: a re-interpretation of the "insider"-"outsider" divide in the European Union inmigration policy. International Migration Review, n. 29, p. 964-999, 1995. afirmam a existência de uma "globalização sem mobilidade global" ou, como bem explica Bauman (1999, p. 115)BAUMAN, Zigmaunt. La globalización, consecuencias humanas. Buenos Aires: Fondo de Cultura Económica, 1999., "o acesso à mobilidade global" tem se tornado o mais elevado de todos os fatores de estratificação, onde se inscrevem as medidas de facilitação à entrada de turistas ou pessoas com certo nível de qualificação.

Seja qual for a causa, alguns blocos regionais têm decidido - em maior ou menor medida - gerir a mobilidade territorial em conjunto. Assim, uma matéria tradicionalmente associada à política interna dos Estados se torna uma decisão coletiva. A gestão multilateral é um produto histórico recente (APPLEYARD, 2001APPLEYARD, Reginald. International Migration Policies: 1950-2000. International Migration, n. 96, p. 7-20, 2001.), que pode se traduzir tanto em políticas restritivas como de abertura (MÁRMORA, 1997). Mármora (1997) identifica uma nova lógica de políticas de livre circulação associadas a processos de integração regional em que se perseguem três objetivos: a segurança do espaço comum, o incentivo ao turismo e a regulação do movimento dos trabalhadores.

No nível mundial, existem vários acordos regionais que facilitam os direitos de mobilidade de pessoas, questão que leva Casey (2010CASTLES, Stephen. Jerarquías de ciudadanía en el nuevo orden global. Anales de la Cátedra Francisco Suárez, n. 37, p. 9-33, 2003., p. 46) a se perguntar se a abertura de fronteiras é uma absurda quimera ou uma política possível no futuro. Para formular a questão, o autor tem em conta a UE e o Mercosul como exemplos do primeiro caso. Por outro lado, Castles (2004______. The Factors that Make and Unmake Migration Policies. International Migration Review, n. 38, p. 852-884, 2004., p. 875) destaca a cooperação em assuntos migratórios da UE, do Mercosul e outros blocos, resgatando o caso europeu como o único que possui políticas comuns integrais, todavia reconhecendo o longo processo que este precisou. Igualmente, Martínez Pizarro e Stang (2006)MARTÍNEZ PIZARRO, Jorge; STANG, Maria. Migratory Treatment in the South-American Sub-Regional Integration Spaces. Papeles de Población, n. 48, p. 64-92, 2006. analisam comparativamente as iniciativas destinadas ao tratamento da migração na Comunidade Andina e o Mercosul, destacando seu caráter interestatal. Os autores ressaltam o pioneiro Instrumento Andino de Migrações Laborais (1973) e o avanço conseguido no Mercosul através dos Acordos de Residência (2002).

Dentro do continente americano, o Tratado de Livre Comércio da América do Norte (na sigla em inglês, NAFTA), assinado em 1994 entre o Canadá, os Estados Unidos da América e o México, permitiu a livre circulação de bens, serviços e informação entre esses países. Contudo, não se regulamentou o movimento de pessoas em geral, embora se regulasse a concessão dos vistos TLC ou "NAFTA visas" para quatro categorias: visitantes de negócios, comerciantes e investidores, pessoal trasladado internamente por empresas, e profissionais.

Outra experiência a se ter em conta surge dos arranjos da Asia-Pacific Economic Cooperation (APEC), que atualmente contra com dezoito países,3 3 . Austrália, Brunei, Chile, China, Hong Kong (China), Indonésia, Japão, Coreia, Malásia, México, Nova Zelândia, Papua Nova Guiné, Peru, Filipinas, Singapura, Taiwan, Tailândia e Vietnã. entre eles o Chile e o Peru. O cartão de viagens de negócios (APEC Business Travel Card) facilita aos empresários, investidores e comerciantes entrar sem visto, permanecer por um mínimo de sessenta dias, permitir entradas múltiplas, utilizar pistas especiais para a entrada e saída de aeroportos, entre outros benefícios.4 4 . Para mais informação, ver: <http://www.apec.org/>.

A Comunidade Andina formulou medidas que regulamentam a mobilidade territorial. As principais iniciativas adotadas no marco comunitário se relacionam com a facilitação da circulação e da migração laboral no espaço intercomunitário e o controle migratório em fronteiras (SECRETARÍA GENERAL DE LA COMUNIDAD AN DI NA DE NACIONES, 2012SECRETARÍA GENERAL DE LA COMUNIDAD ANDINA DE NA CIO NES. Avances y recomendaciones para la implementación de la normativa de la Comunidad Andina en materia de migraciones. Lima: OIM, 2012.).

Finalmente, as elaborações sobre o tratamento regional da migração na UE constituem valiosa referência para o caso do Mercosul, já que este possui uma longa trajetória e um maior grau de avanço como bloco (MALAMUD; SCHMITTER, 2006MARKS, Gary et al. Governance in the European Union. Londres: Sage, 1996.). A questão da mobilidade territorial representa uma das áreas mais sensíveis na UE, forma parte da agenda central e resulta objeto de infinidade de discussões. A evolução desta temática, não carente de obstáculos, abrange a circulação desde trabalhadores até de pessoas em geral (JIMÉNEZ DE PARGA MASEDA, 1994; LIROLA DELGADO, 1994MALAMUD, Andres; SCHMITTER, Philippe. La experiencia de integración europea y el potencial de integración del Mercosur. Desarrollo Económico, n. 148, p. 3-31, 2006.; entre outros). Em 1992, o Tratado de Maastricht formalizou a livre mobilidade territorial ao estabelecer o "direito de todo cidadão da União a circular e residir livremente nos territórios dos Estados-membros".5 5 . Os cidadãos da União Europeia são aquelas pessoas que detêm a nacionalidade de algum dos Estados-membros. A partir dessa data, algumas categorias utilizadas até aquele momento perderam relevância, enquanto surgiram outras vinculadas ao novo contexto histórico.

O processo de integração europeu consiste em um duplo processo: por um lado, revela-se a permeabilidade das fronteiras no interior da Europa; e, por outro, o resseguro das mesmas para o exterior, estabelecendo rigorosos controles jurídicos que excluem da comunidade europeia os imigrantes (STOLCKE, 1995TAPINOS, Georges; DELAUNAY, Daniel. Se puede hablar realmente de la globalización de los flujos migratorios. Revista Notas de Población, n. 73, 2001.). Existe um forte contraste entre o regime de livre mobilidade para os cidadãos europeus que conformam um "clube exclusivo" (UGUR, 1995UGUR, Mehmet. Freedom of movement vs. exclusion: a re-interpretation of the "insider"-"outsider" divide in the European Union inmigration policy. International Migration Review, n. 29, p. 964-999, 1995.) e o regime restritivo aos imigrantes extrabloco. Historicamente, os incluídos e os excluídos dos direitos de mobilidade não foram sempre os mesmos. O conceito de "o outro legal" (ACOSTA, 2011ACOSTA, Diego. The Long-term Residence Status as a Subsidiary Form of EU Citizenship. Boston: Brill, 2011.), termo que designa os imigrantes de terceiros países, transforma-se com o passar do tempo. Assim, por meio do processo de ampliação do bloco, incorporaram-se milhões de pessoas ao regime europeu, estes mesmos que antes foram considerados cidadãos de terceiros países.

O Caso do Mercosul

O Mercosul constitui um bloco regional nascido do Tratado de Assunção (1991) e conformado por países que, embora estejam perto geograficamente, possuem profundas assimetrias em termos econômicos, demográficos e sociais. Apesar de se tratar de um processo multidimensional, predominam desde o início as questões econômicas sobre as questões regionais. Neste sentido, resulta sugestivo o título da obra compilada por De Sierra (2001)DE SIERRA, Gerónimo. Los rostros del Mercosur. El difícil camino de lo comercial a lo societal. Buenos Aires: CLACSO, 2001.Los rostros del Mercosur: el difícil camino de lo comercial a lo societal,6 6 . Tradução nossa: As caras do Mercosul: o difícil caminho do comercial ao social. em que se descreve o atraso de uma esfera em relação à outra. Assim, nos primeiros anos, a agenda econômica superou a social, situação que foi revertida na medida em que se modificava o cenário político dos Estados do bloco. Da retórica neoliberal - apoiada pelos governos da região nas décadas de 1980 a 1990 -, passou-se a um projeto popular com uma visão latino-americanista compartilhada por vários presidentes da região.

O artigo 1o do Tratado de Assunção, no qual se define o mercado comum, não faz referência à livre mobilidade de pessoas em geral, mas sim à "livre circulação de serviços e fatores produtivos". Deste modo, dentro do bloco integrado, a livre circulação de pessoas tem em suas origens um caráter essencialmente econômico e instrumental. Contudo, com o passar do tempo, ditaram-se no nível regional uma variedade de disposições em um universo mais amplo na temática referida à mobilidade territorial.

Os órgãos decisórios nutrem-se de informes, propostas, consultas etc. elaborados pelos órgãos auxiliares para gerar disposições jurídicas mercosulinas. No início do bloco, o então Subgrupo de Trabalho no 2, chamado de Assuntos Alfandegários - dependente do Grupo Mercado Comum (GMC) -, deu origem a algumas iniciativas que tendiam a facilitar a circulação fronteiriça.7 7 . Substituído pela Comissão Técnica no 2 dependente da Comissão de Comércio em 1995. Nos últimos anos, a Reunião de Ministros do Interior (RMI) tem se mostrado como a mais ativa em relação aos direitos de mobilidade territorial diferenciada. Resulta interessante destacar que, no Parlamento do Mercosul (Parlasul), nenhuma de suas dez comissões8 8 . As Comissões Temáticas são: 1) Assuntos Jurídicos e Institucionais; 2) Assuntos Econômicos, Financeiros, Comerciais, Fiscais e Monetários; 3) As suntos Internacionais, Inter-regionais e de Planejamento Estratégico; 4) Educação, Cultura, Ciência, Tecnologia e Esporte; 5) Trabalho, Política de Emprego, Seguridade Social e Economia Social; 6) Desenvolvimento Regional Sustentável, Ordenamento Territorial, Habitação, Saúde, Meio Ambiente e Turismo; 7) Cidadania e Direitos Humanos; 8) Assuntos Interiores, Segurança e Defesa; 9) Infraestrutura, Transportes, Recursos Energéticos, Agricultura, Pecuária e Pesca; 10) Orçamentos e Assuntos Internos. leva como título "Migrações", "Mobilidade" ou "Circulação". Provavelmente o assunto está submetido às agendas de trabalho de várias comissões, mas ao não ter um espaço específico para este assunto se evidencia a escassa importância outorgada à temática.

A seguir, descreve-se brevemente, de forma não taxativa, as principais normas por meio das quais se outorgam direitos de mobilidade diferenciados. As principais regulamentações têm como princípio básico a distinção entre cidadãos do bloco e extrabloco para facilitar direitos de trânsito, circulação, residência etc. As mesmas foram classificadas em dois eixos temáticos: circulação e residência.

A) Eixo Circulação

Uma das primeiras disposições ditadas pelo Conselho do Mercado Comum (CMC) em 19919 9 . Decisão CMC 12/91. propiciou a instalação em portos e aeroportos de canais preferenciais para a atenção dos cidadãos nacionais e residentes legais dos países da região para facilitar sua circulação. No ano 2000, acordou-se a instalação de canais privilegiados nos aeroportos internacionais para que se outorgasse um tratamento preferencial e aceleraram-se os trâmites para os nacionais do Mercosul. Nas considerações das normas, aclara-se a importância de cooperar na circulação de pessoas e no controle migratório.10 10 . Decisões CMC 46/00 e 47/00. A primeira compreende os Estados-membros e a segunda os Associados. Contudo, essas iniciativas são mais estritas em relação à primeira, pois aquela também incluía os residentes legais do Mercosul.

A questão da documentação foi considerada fundamental para os objetivos de controle e facilitação da circulação. Em 1993, consti tuiu-se um grupo ad hoc11 11 . Resolução GMC 38/93. para analisar a viabilidade de confeccionar um documento único do Mercosul. Um ano mais tarde, estabeleceram-se as características comuns que deveriam ter os documentos de identificação12 12 . Resolução GMC 112/94. e os passaportes13 13 . Resolução GMC 40/98. Substitui a Resolução GMC 114/94, que também estipulava uma série de características comuns. com o fim de melhorar as medidas de segurança e unificar critérios em matéria registral e documentária. Os passaportes devem ser da cor azul-escuro e na capa deve aparecer a legenda "Mercosul". Também se concordou em criar o Documento de Viagem Provisório Mercosul, que habilita unicamente para retornar ao país de origem, com validade que poderá ser ampliada pelas representações dos Estados-membros do Mercosul a nacionais de qualquer país que não tenham representações consulares que pudessem outorgar o Documento de Viagem Nacional.14 14 . Decisão CMC 38/04.

Com a finalidade de aperfeiçoar o sistema de identificação de pes soas, considerou-se oportuno criar um mecanismo de consulta para possibilitar o intercâmbio direto de informação relativa à autenticidade dos documentos de viagem dos nacionais dos Estados-membros.15 15 . Resolução GMC 113/94. Em relação aos aspectos institucionais, criaram-se os Centros de Consulta de Documentos Pessoais do Mercosul (CCDM), que canalizaram os informes vinculados às identidades das pessoas. Estes deverão, em primeira instância, "facilitar aos Estados-membros informação sobre todas as pessoas cujo endereço conste em seu território e de todos os cidadãos, qualquer que seja o lugar aonde venham morar". A norma procura obter informação dos cidadãos para ser compartilhada entre os Estados, contribuindo assim para facilitar o controle sobre o movimento de suas populações. Recentemente, acordou-se criar a Rede de Especialistas em Segurança Documental Migratória do Mercosul e Estados Associados (REDE SEGDOC),16 16 . Decisão CMC 8/12. dedicada à análise de documentação e à cooperação entre funcioná rios que integrem dita Rede, com o objetivo de prevenir e evitar a fraude documental migratória na região.

Outra prematura preocupação dentro do bloco tem sido a definição dos documentos de identificação pessoal que seriam considerados válidos para a circulação de pessoas dentro do Mercosul. Neste sentido, durante a década de 1990, apareceram várias normas que nunca entraram em vigor.17 17 . Resolução GMC 44/94. Nunca esteve vigente. Foi revogada pela Resolução GMC 63/96, que também continha uma série de documentos que habilitava viagens, que por sua vez foi substituída pela Resolução GMC 75/96, a qual especificava os documentos dos nacionais e adicionava os dos estrangeiros com residência legal nos países do Mercosul. Esta última também nunca entrou em vigor. Finalmente, no ano 2008, assinou-se um novo Acordo sobre Documentos de Viagem dos Estados-membros do Mercosul e Estados Associados18 18 . Decisão CMC 18/08. especificando para cada um dos dez países quais documentos de viagem seriam aceitos (passaporte, cédula de identidade, documento de identidade etc.). Este Acordo foi modificado em junho de 2011, e atualizaram-se os documentos que habilitam as viagens.19 19 . Decisão CMC 14/11, "Acordo modificado do anexo do Acordo sobre documentos de viagens dos Estados-membros do Mercosul e Associados". Deste modo, não é imprescindível o passaporte dos nacionais mercosulinos para viajar entre os países do bloco. Os estrangeiros com residência legal, pertencentes ao bloco, devem utilizar, para ingressar ao país que requerer visto consular, o passaporte de sua nacionalidade, ou sua permissão de residência, no caso de não se requerer o visto.

Em 1999, instituiu-se o Trânsito Vicinal Fronteiriço (TVF), que regulamentou de forma diferenciada os movimentos das fronteiras.20 20 . Decisões CMC 18 e 19/99 e suas correspondentes regulamentações, Decisões CMC 14 e 15/00. Autorizou-se aos nacionais e residentes legais de um Estado-membro ou Associado com endereço em localidades contíguas de dois ou mais Estados-membros ou Associados obter uma credencial que habilita seu beneficiário a atravessar a fronteira através de um procedimento ágil e diferenciado das outras categorias migratórias; assim como a permanecer no território do país vizinho por um prazo máximo de 72 horas a contar do último ingresso, salvo acordo bilateral ou trilateral que estabeleça um prazo maior. Por meio dessa regulamentação, estabeleceu-se que os Estados com fronteiras comuns definirão quais residentes legais se beneficiaram da credencial.

Em relação às viagens de turismo, os cidadãos do Mercosul não precisam de visto e se harmonizaram os prazos de permanência em noventa dias.21 21 . Decisão CMC 10/06.

Já no quesito de controle de fronteiras, através do Acordo de Recife22 22 . Decisão CMC 5/93, "Acordo para a aplicação dos controles integrados de fronteiras entre os países do Mercosul". Substituída pela Decisão CMC 4/00. e seu Protocolo Adicional Regulamentado23 23 . Decisão CMC 12/93. Substituída pela Decisão CMC 5/00. de 1993, procurou-se unir esforços entre os Estados com o objetivo de avançar no controle unificado da entrada e saída de pessoas, mercadorias e meios de transportes pelos pontos de fronteira entre os países da região. Para isso, estabeleceu-se a figura de "controle integrado de fronteiras". Um ano mais tarde, determinaram-se os pontos de fronteira nos quais se aplicam dito sistema de controle fronteiriço.24 24 . Resolução GMC 8/94. Para seu eficaz e pleno funcionamento, acordaram-se os recursos financeiros e humanos necessários para as áreas de controle integrado.25 25 . Resolução GMC 111/94. Uma das inovações adotadas foi o estabelecimento de um modelo único de Cartão de Entrada/Saída (CES),26 26 . Resolução GMC 58/96. que unificou critérios para controlar os passageiros do transporte aéreo, fluvial, marítimo e terrestre. Na Cúpula de Mendoza, realizada em 2012, aprovou-se o Segundo Protocolo Adicional ao Acordo de Recife,27 27 . Decisão CMC 7/12. com o objetivo de facilitar a circulação no Mercosul e agilizar os tempos na fronteira por meio do estabelecimento de novas modalidades do controle migratório simultâneo e do reconhecimento recíproco de capacidades dos Estados.

B) Eixo Residência

Em relação a este eixo, analisam-se duas normas de caráter laboral que têm por objetivo regulamentar um segmento específico de pessoas. A primeira surge das deliberações levadas adiante em setembro de 2000 pelo Grupo Especializado em Trabalho Migratório dependente da Reunião de Ministros do Interior (RMI).28 28 . Segundo a Ata 3/00 do Grupo Especializado de Trabalho Migratório. Rio de Janeiro, setembro de 2000. Por meio do Acordo sobre a Exceção de Vistos entre os Estados-membros, autorizaram-se os artistas, professores, cientistas, esportistas, jornalistas, profissionais e técnicos especializados, cujo propósito seja desenvolver atividades no âmbito das suas categorias, viajar a outro Estado sem necessidade de visto, por noventa dias, prorrogáveis por um período equivalente.29 29 . Decisão CMC 48/00. Este direito só é destinado aos nacionais mercosulinos. Nas considerações da norma, aparece a justificação de ser uma solução jurídica em relação ao livre trânsito e à permanência dos cidadãos com o fim de fortalecer o processo de integração.

No tocante à segunda norma, dentro da estrutura do GMC, criou-se o Grupo Ad Hoc de Serviços,30 30 . Resolução GMC 20/95. Foi substituída pelo Grupo de Serviços pela Resolução GMC 31/98. com a ordenação de realizar tarefas técnicas necessárias para a redação de um texto sobre o comércio de serviços no Mercosul. Assim, em 1997, surgiu o Protocolo de Montevidéu sobre Comércio de Serviços do Mercosul31 31 . Decisão CMC 13/97. e seu Anexo sobre o Movimento de Pessoas Físicas Provedoras de Serviços,32 32 . Decisão CMC 9/98. que entraram em vigência no dia 7 de dezembro de 2005, colocando aos Estados perante o desafio concreto de completar em um prazo de dez anos, a partir dessa data, a liberação desse setor. Antes disso, no final de 2003 - ainda não vigente o Protocolo -, aprovou-se o Acordo de Criação do Visto Mercosul,33 33 . Decisão CMC 16/03. que estabelecia regras comuns para o movimento temporal de pessoas físicas prestadoras de serviços com o objetivo de "executar políticas de livre circulação de pessoas no Mercosul". Sua aplicação se limitava a nacionais mercosulinos que fossem gerentes e diretores executivos, administradores, representantes legais, cientistas, investigadores, professores, artistas, esportistas, jornalistas, técnicos altamente qualificados, especialistas e profissionais de nível superior. Autorizava-se a permanência de até dois anos, prorrogáveis uma vez por igual período para desenvolver a atividade.

Vale destacar que a população objeto dessas duas normas resulta numericamente pouco significativa e, mesmo assim, sua circulação não encontrava antes grandes obstáculos para a obtenção de vistos de trabalho. Contudo, ambas as normas nunca entraram em vigência, e através da Declaração de Brasília34 34 . Assinada no marco da XXVIII RMI realizada em novembro de 2010 e intitulada "Declaração de Brasília sobre a vigência das normas migratórias emanadas das Reuniões de Ministros do Mercosul e Estados Associados". acabaram ficando sem efeito.

Além dessas medidas parciais, a verdadeira diferença se estabeleceu através do Acordo de Residência de 2002. Este se apresenta como um instrumento fundamental na regulamentação da mobilidade territorial, abrangendo a circulação de trabalhadores, um dos pilares do mercado comum. O critério de nacionalidade impõe-se como um requisito para obter o visto de permanência que garante uma série de direitos de reunificação familiar, associação e liberdade de culto. Deste modo, compreende-se a totalidade do cidadão mercosulino e já não só apenas como um trabalhador. Contudo, na prática, alguns requerimentos podem limitar o seu alcance, como o pedido de ausência de antecedentes penais, suficientes recursos econômicos, certificado médico etc.

No Preâmbulo do Acordo, estabeleceu-se que a implementação de uma política de livre circulação de pessoas na região resulta essencial para fortalecer e aprofundar o processo de integração, assim como os vínculos fraternais entre os mercosulinos. Igualmente, fornece a solução ao problema da irregularidade administrativa que em geral se relaciona com a vulnerabilidade.

O Acordo de Residência define os princípios que em todo momento devem reger para que um nacional mercosulino obtenha permissão de residência dentro do bloco. Os quase sete anos passados desde a assinatura do Acordo até a sua vigência formal evidenciam o complexo processo que representa avançar neste quesito. A efetivação plena do conteúdo do Acordo, tal como expressa na Declaração de Montevidéu (2009) e Brasília (2010), revela-se como o principal desafio futuro.

Apesar do importante passo dado, Bizzozero e Pastorino (2003, nota de rodapé)BIZZOZERO, Lincoln; PASTORINO, Ana. Los acuerdos migratorios y de circulación laboral en el ámbito del Mercosur. Cena Internacional, n. 1, p. 5-13, 2003. destacam "a escassa relevância que em geral a mídia re gional deu à notícia e, sobretudo, às consequências que poderia gerar no amplo espaço regional". Coincidentemente, a revisão dos jornais nacionais (argentinos)35 35 .Na sua tese de doutorado, Castiglioni realiza uma revisão exaustiva das notas publicadas nos jornais argentinos Clarín, La Nación e Página 12 - desde 2002 até 2007 - sobre política migratória no Mercosul. mostra a insuficiente cobertura e a imprecisa, se não errada, informação publicada. O pouco interesse que gerou este Acordo migratório se evidencia até no próprio espaço regional, resultando curioso que, na Declaração de Princípios Migratórios do Mercosul (2004),36 36 .Aprovada na Reunião Extraordinária de Ministros do Interior do dia 17 de maio de 2004. não se mencionem nem uma só vez esses instrumentos, e só se faça referência à Convenção de Genebra e a seu Protocolo Complementário sobre refugiados, à Carta das Nações Unidas e à Convenção de Viena sobre relações consulares, mas nada sendo dito sobre os Acordos regionais nesta matéria.

Por outro lado, tudo aquilo relativo aos cidadãos de terceiros países se encontra sob a órbita exclusiva de cada Estado. Por ora, as regras de admissão e permanência, assim como as condições de residência, são outorgadas aos estrangeiros de terceiros países sem que haja intervenção do bloco regional. Neste sentido, a UE tem desenvolvido alguns avanços. O bloco europeu pactuou condições comuns para a expulsão (Diretiva de Retorno) e atração de pessoal qualificado (Cartão Azul) de nacionais de terceiros países, entre outros.

Em resumo, por enquanto, desde o bloco, não se tem avançado na gestão regional da migração proveniente de terceiros países. Observa-se um tratamento diferenciado que os deixa por fora dos benefí cios migratórios, de medidas específicas como o Acordo de Residência. Aliás, esta política de residência não se encontra isolada, devendo ser entendida em um contexto amplo de política que distingue mercosulinos e não mercosulinos em relação aos direitos mais abrangentes de mobilidade territorial, controles de fronteiras, intercâmbio de informação, canais diferenciados em aeroportos e na exigência de vistos etc. De igual modo, aumentam as restrições e o controle aos migrantes de terceiros países ou fora do Mercosul. Por um lado, tem se construído uma política que distingue os estrangeiros uns dos outros em relação aos direitos amplos de mobilidade territorial; por outro, consolidam-se procedimentos administrativos e operativos de coordenação e cooperação entre os Estados em matéria de controle fronteiriço.

Embora haja real avanço na geração de mais direitos de mobilidade territorial inter-regional, o lado negativo se revela na negação desses direitos aos cidadãos de terceiros países. Ceriani (2004CERIANI, Pablo. Nueva ley: un paso hacia una concepción distinta de la migración. In: GIUSTINIANI, Roberto. (Org.). Migración: un derecho humano. Buenos Aires: Prometeo, 2004. p. 113-135., p. 126) critica essa diferenciação no Mercosul, "o qual constrói cidadãos de distintas categorias e direitos segundo a sua nacionalidade", gerando políticas de caráter discriminatório e excludente, além de legitimar práticas de exploração e marginalização social, econômica e cultural, como ocorre na União Europeia. O Mercosul reproduz o mesmo sistema de diferenciação que tem sido e é atualmente criticado do bloco europeu (STOLCKE, 1995; UGUR, 1995; SANTAMARÍA, 2002SANTAMARÍA, Enrique. Inmigración y barbarie. La construcción social y política del inmigrante como amenaza. Papers, n. 66, p. 59-75, 2002.; CASTLES, 2003; ACOSTA, 2011, entre outros).

Considerações Finais

Em relação à experiência do Cone Sul, numerosas pesquisas (SOLA NAS, 2007; PERROTTA; VAZQUEZ, 2010; BOTTO, 2011; MO GUILLANSKY, 2011) concordam sobre o impacto que o Mercosul provoca - em maior ou menor medida - sobre o acionamento dos Estados que o integram e vice-versa: o exercício do poder pode ser apreendido através de suas políticas regionais, sendo a mobilidade territorial um exemplo deste.

A normativa regional (Tratados, Acordos, Decisões do Conselho do Mercado Comum, Resoluções do Grupo do Mercado Comum) conforma o corpus documental central deste artigo e é considerada a consolidação e a expressão, no plano discursivo do objeto, da finalidade e do conteúdo das políticas públicas. Através de sua análise, valoraram-se avanços na materialização da livre mobilidade no Mercosul. De fato, a circulação e a migração têm sido facilitadas por meio de uma série de medidas como a harmonização de documentos de viagens, a existência de canais privilegiados de acesso em portos e aeroportos, a eliminação de vistos, a criação do visto de residência, entre outros. Em relação à migração, superou-se o objetivo inicialmente proposto no Tratado de Assunção, que só se referia à circulação dos fatores produtivos, e expandiu-se o direito de todas as pes soas físicas e não apenas referente à mão de obra.

O Mercosul importa. Desde a sua criação, o bloco posicionou-se como uma nova instância de poder, em que as iniciativas tomadas coletivamente por consenso repercutem em maior ou menor medida nos países que fazem parte dele. A regulamentação dos deslocamentos da população surge como uma temática na qual o bloco joga um papel crucial. Desde os diversos foros, instâncias, órgãos auxiliares etc., surgiram propostas que logo seriam as políticas regionais do bloco. Os órgãos decisórios traduziram essas recomendações em ações obrigatórias através das normas ditadas, consideradas discursos que criam ou reproduzem as relações de desigualdade.

Contudo, em simultâneo, desenvolveram-se mecanismos para gerenciar os deslocamentos de pessoas, por meio do sistema de identificação e controle integrado de fronteiras. Do mesmo modo, o Mercosul institui novas relações de poder que são excludentes para alguns e inclusivas para outros. Os benefícios da livre mobilidade são reconhecidos somente para os cidadãos nacionais dos Estados que conformam o bloco, e não se desdobram para terceiros países. Excepcionalmente, os cidadãos extrabloco são incorporados de forma limitada através da reunificação familiar, vistos especiais etc. Assim, a discriminação com base na nacionalidade constitui a principal linha de demarcação dos processos de integração.

Através do Acordo de Residência, legislou-se bem além do objetivo do Tratado de Assunção (1991), que somente incluía a circulação dos fatores produtivos, e expandiu-se o direito de residência a todas as pessoas e não só àqueles que representavam mão de obra. Contudo, a migração ainda não é livre, mas sim facilitada por meio da regulamentação: estabeleceram-se regras comuns que permitem a tramitação da autorização de residência e garantem aos cidadãos mercosulinos direitos amplos de mobilidade (entrar, sair, circular e permanecer no território do país do bloco da sua escolha).

Tanto a inserção na agenda regional como a formulação da política mercosulina surgem da decisão das cúpulas superiores, sendo este um processo "desde cima", onde grande parte da sociedade civil se mantém à margem das negociações. Entre os atores relevantes que influenciam na construção da política regional, pode-se mencionar os chefes de Estado e ministros nacionais (do Interior, Segurança, Chancelarias etc.). Pelo contrário, no plano da aceitação e implementação por parte de cada um dos países em nível doméstico, ou seja, se estes são legitimados e se recebem a força da lei (LAGROYE, 1993LAGROYE, Jacques. Sociología política. Buenos Aires: Fondo de Cultura Económica, 1993.), outra série de atores interage na etapa de formulação. Aqui, cunham-se as resistências, os apoios, tensões etc. gerados entre os legisladores nacionais, nas diversas instâncias burocráticas e organizações da sociedade civil, que sustentam a visão pluralista do Estado.

Faz-se necessário aprofundar, nas pesquisas sobre os procedimentos da tomada de decisão, assunto associado à questão do déficit democrático. Existe uma concentração de poder nos Executivos e em algumas agências como as Chancelarias, que procurariam diminuir a legitimidade da integração. Assim, no bloco, encontra-se sem resolver o desenvolvimento e a expansão de mecanismos de participação com o fim de reduzir a lacuna entre os destinatários e os formuladores da normativa. Por outra parte, ainda se revela como uma incógnita o papel que o Parlamento do Mercosul poderia vir a ter como órgão da representação cidadã.

A questão mencionada anteriormente se relaciona com o tipo de desenho institucional do Mercosul, que tem gerado uma infinidade de debates em torno das responsabilidades pelas deficiências do processo de integração. Resulta discutível a ideia de que a reforma institucional solucionaria os problemas do Mercosul. O objetivo de criar um marco adequado para que o processo de integração seja eficaz e se adapte às exigências atuais é, sem dúvida, um desafio.

Por último, os Estados tornam-se responsáveis pela aplicação de políticas regionais dentro de seus próprios territórios, questão que dá origem a uma série de "traduções": processos que visam adequar os conteúdos da normativa regional no âmbito nacional. A análise da forma ou do modo de implementar a política regional no plano doméstico permitiria identificar as particularidades de cada país, e por meio de estudos comparativos descobrir e explicar as especificidades nacionais. Entretanto, no caso da mobilidade territorial, deve-se lembrar que os Estados possuem outros procedimentos migratórios, como acordos bilaterais, anistias, regimes gerais por causa de estudo, contrato laboral, investimentos e outros, que coexistem com a aplicação do Acordo de Residência e até o superam em benefícios, tal o caso do Convênio Argentina-Brasil ou o Convênio Peru-Argentina. Do mesmo modo, na Comunidade Andina, conformada por países que também integram o Mercosul (Bolívia, Colômbia, Equador e Peru), observam-se em algumas áreas superposição com o regime de mobilidade do Mercosul, circunstância que abre a interrogação sobre a futura aproximação e coordenação de ambos os blocos para efeitos de maximizar recursos e esforços.

Por outro lado, percebe-se certa insegurança jurídica, dado que toda a normativa mercosulina pode ficar sem efeito pela vontade expressa dos Estados, já que se possibilita a denúncia e a revogação através de um simples mecanismo de notificação. Igualmente, também não há mecanismos regionais que castiguem a inação ou inoperância dos Estados, questão que reforça a fragilidade na aplicação dos consensos atingidos.

Além da eliminação das fronteiras legais, existem impedimentos concretos para a mobilidade das pessoas, tais como o idioma, as diferenças culturais e econômicas, o reconhecimento de qualificações ou segurança social, entre outras, que afetariam os mercosulinos.

Contribuir-se-ia muito em refletir sobre a livre mobilidade territorial como um direito humano universal, a ser desfrutado por todas as pessoas, independentemente da nacionalidade, gênero, etnia, formação e idade. Os nacionais de terceiros países deveriam também poder usufruir de um trato de igualdade, ainda mais quando desde o Mercosul sempre tem se criticado a União Europeia por essa questão.

Neste sentido, aparecem interrogações que revelam novas questões e futuras linhas de pesquisa, tanto para o desenvolvimento do bloco em geral como para a política regional de mobilidade em particular. O surgimento de estudos que respondam às perguntas levantadas fomentará a geração de ferramentas teóricas próprias da região, o descobrimento das especificidades e o conseguinte avanço no campo da disciplina. Finalmente, considerando o Mercosul como um processo aberto e em constante mudança, abre-se a possibilidade de inquirir sobre temas ainda sem resolver e desafios inéditos.

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  • 1
    . De modo ilustrativo, a procura de artigos - desde 1991 a 2012 - sobre a questão imigratória mercosulina em revistas especializadas detém escassos resultados. De fato, não se encontraram artigos dedicados ao bloco nas principais referências internacionais em matéria migratória: International Migration Review, International Migration e Population and Development Review.
  • 2
    . De Sousa Santos (2003) prefere se referir às globalizações e não à globalização. Existem globalizações que respondem a um conjunto de relações sociais que tentam se impor umas às outras. Assim, aquela que triunfa designa as outras como locais.
  • 3
    . Austrália, Brunei, Chile, China, Hong Kong (China), Indonésia, Japão, Coreia, Malásia, México, Nova Zelândia, Papua Nova Guiné, Peru, Filipinas, Singapura, Taiwan, Tailândia e Vietnã.
  • 4
    . Para mais informação, ver: <http://www.apec.org/>.
  • 5
    . Os cidadãos da União Europeia são aquelas pessoas que detêm a nacionalidade de algum dos Estados-membros.
  • 6
    . Tradução nossa: As caras do Mercosul: o difícil caminho do comercial ao social.
  • 7
    . Substituído pela Comissão Técnica no 2 dependente da Comissão de Comércio em 1995.
  • 8
    . As Comissões Temáticas são: 1) Assuntos Jurídicos e Institucionais; 2) Assuntos Econômicos, Financeiros, Comerciais, Fiscais e Monetários; 3) As suntos Internacionais, Inter-regionais e de Planejamento Estratégico; 4) Educação, Cultura, Ciência, Tecnologia e Esporte; 5) Trabalho, Política de Emprego, Seguridade Social e Economia Social; 6) Desenvolvimento Regional Sustentável, Ordenamento Territorial, Habitação, Saúde, Meio Ambiente e Turismo; 7) Cidadania e Direitos Humanos; 8) Assuntos Interiores, Segurança e Defesa; 9) Infraestrutura, Transportes, Recursos Energéticos, Agricultura, Pecuária e Pesca; 10) Orçamentos e Assuntos Internos.
  • 9
    . Decisão CMC 12/91.
  • 10
    . Decisões CMC 46/00 e 47/00. A primeira compreende os Estados-membros e a segunda os Associados.
  • 11
    . Resolução GMC 38/93.
  • 12
    . Resolução GMC 112/94.
  • 13
    . Resolução GMC 40/98. Substitui a Resolução GMC 114/94, que também estipulava uma série de características comuns.
  • 14
    . Decisão CMC 38/04.
  • 15
    . Resolução GMC 113/94.
  • 16
    . Decisão CMC 8/12.
  • 17
    . Resolução GMC 44/94. Nunca esteve vigente. Foi revogada pela Resolução GMC 63/96, que também continha uma série de documentos que habilitava viagens, que por sua vez foi substituída pela Resolução GMC 75/96, a qual especificava os documentos dos nacionais e adicionava os dos estrangeiros com residência legal nos países do Mercosul. Esta última também nunca entrou em vigor.
  • 18
    . Decisão CMC 18/08.
  • 19
    . Decisão CMC 14/11, "Acordo modificado do anexo do Acordo sobre documentos de viagens dos Estados-membros do Mercosul e Associados".
  • 20
    . Decisões CMC 18 e 19/99 e suas correspondentes regulamentações, Decisões CMC 14 e 15/00.
  • 21
    . Decisão CMC 10/06.
  • 22
    . Decisão CMC 5/93, "Acordo para a aplicação dos controles integrados de fronteiras entre os países do Mercosul". Substituída pela Decisão CMC 4/00.
  • 23
    . Decisão CMC 12/93. Substituída pela Decisão CMC 5/00.
  • 24
    . Resolução GMC 8/94.
  • 25
    . Resolução GMC 111/94.
  • 26
    . Resolução GMC 58/96.
  • 27
    . Decisão CMC 7/12.
  • 28
    . Segundo a Ata 3/00 do Grupo Especializado de Trabalho Migratório. Rio de Janeiro, setembro de 2000.
  • 29
    . Decisão CMC 48/00.
  • 30
    . Resolução GMC 20/95. Foi substituída pelo Grupo de Serviços pela Resolução GMC 31/98.
  • 31
    . Decisão CMC 13/97.
  • 32
    . Decisão CMC 9/98.
  • 33
    . Decisão CMC 16/03.
  • 34
    . Assinada no marco da XXVIII RMI realizada em novembro de 2010 e intitulada "Declaração de Brasília sobre a vigência das normas migratórias emanadas das Reuniões de Ministros do Mercosul e Estados Associados".
  • 35
    .Na sua tese de doutorado, Castiglioni realiza uma revisão exaustiva das notas publicadas nos jornais argentinos Clarín, La Nación e Página 12 - desde 2002 até 2007 - sobre política migratória no Mercosul.
  • 36
    .Aprovada na Reunião Extraordinária de Ministros do Interior do dia 17 de maio de 2004.
  • Artigo traduzido por Laura Emilse Brizuela. E-mail: laurabrizuela@hotmail.com.
  • *
    Artigo recebido em 4 de novembro de 2013 e aprovado para publicação em 10 de abril de 2015.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    May-Aug 2015

Histórico

  • Recebido
    04 Nov 2013
  • Aceito
    10 Abr 2015
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