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O profissional de saúde mental na reforma psiquiátrica

The mental health professional in the psychiatric reform

Resumos

O objetivo desse artigo é examinar criticamente produções da literatura científica sobre a Reforma Psiquiátrica Brasileira, publicadas entre 2003 e 2011, abordando estudos que focalizaram o trabalhador de saúde mental. A pesquisa organizou-se por meio de leitura sistemática e análise dos artigos, em termos de seus objetivos, metodologia, resultados e conclusão. Foram encontrados 14 artigos, que se revelaram convergentes quanto aos resultados obtidos na medida em que concluem que os trabalhadores manifestam-se favorável e engajadamente em relação ao processo da reforma, ao mesmo tempo em que apontam problemas e desafios no cotidiano - sem superar, como seria esperado, visões conservadoras e reducionistas da doença mental. Por outro lado, considerada em seu conjunto, esta produção indica que o interesse pelo trabalhador não inclui valorização de sua experiência emocional, dimensão certamente mobilizada pela questão da loucura. Esta lacuna deve ser preenchida por pesquisas que incluam atenção aos aspectos emocionais e se traduzam em intervenções que auxiliem os trabalhadores a lidar bem com suas tarefas do cotidiano.

Doença mental; Loucura; Profissionais de saúde; Reforma psiquiátrica; Saúde mental


The aim of this article is to systematically and critically review scientific literature productions, published between 2003 and 2011, regarding the Brazilian Psychiatric Reform, including articles which focus on mental health professionals. This research was performed by means of systematically reading and analyzing the articles, considering their aims, methodology, results and conclusions. Fourteen articles were found. The results obtained in these studies converged, as they concluded that the workers were shown to be favorable and engaging in relation to the reform process. They also indicated problems and challenges in the quotidian, without overcoming, as expected, the conservative and reductionist views of mental disease. There is a gap that must be filled by further studies which include attention to emotional aspects that can be translated into interventions that help workers cope with their daily tasks.

Mental disease; Insanity; Health professional; Psychiatric reform; Mental health


ARTIGOS

O profissional de saúde mental na reforma psiquiátrica

The mental health professional in the psychiatric reform

Cristiane Helena Dias SimõesI; Rafael Aiello FernandesI; Tania Maria José Aiello-VaisbergII

IPsicólogos. Campinas, SP, Brasil

IIPontifícia Universidade Católica de Campinas, Centro de Ciências da Vida, Programa de Pós-Graduação em Psicologia. Av. John Boyd Dunlop, s/n., Jd. Ipaussurama, 13060-904, Campinas, SP, Brasil. Correspondência para/Correspondence to: T.M.J. AIELLO-VAISBERG. E-mail: <tania.vaisberg@puc-campinas.edu.br>

RESUMO

O objetivo desse artigo é examinar criticamente produções da literatura científica sobre a Reforma Psiquiátrica Brasileira, publicadas entre 2003 e 2011, abordando estudos que focalizaram o trabalhador de saúde mental. A pesquisa organizou-se por meio de leitura sistemática e análise dos artigos, em termos de seus objetivos, metodologia, resultados e conclusão. Foram encontrados 14 artigos, que se revelaram convergentes quanto aos resultados obtidos na medida em que concluem que os trabalhadores manifestam-se favorável e engajadamente em relação ao processo da reforma, ao mesmo tempo em que apontam problemas e desafios no cotidiano - sem superar, como seria esperado, visões conservadoras e reducionistas da doença mental. Por outro lado, considerada em seu conjunto, esta produção indica que o interesse pelo trabalhador não inclui valorização de sua experiência emocional, dimensão certamente mobilizada pela questão da loucura. Esta lacuna deve ser preenchida por pesquisas que incluam atenção aos aspectos emocionais e se traduzam em intervenções que auxiliem os trabalhadores a lidar bem com suas tarefas do cotidiano.

Unitermos: Doença mental; Loucura; Profissionais de saúde; Reforma psiquiátrica; Saúde mental.

ABSTRACT

The aim of this article is to systematically and critically review scientific literature productions, published between 2003 and 2011, regarding the Brazilian Psychiatric Reform, including articles which focus on mental health professionals. This research was performed by means of systematically reading and analyzing the articles, considering their aims, methodology, results and conclusions. Fourteen articles were found. The results obtained in these studies converged, as they concluded that the workers were shown to be favorable and engaging in relation to the reform process. They also indicated problems and challenges in the quotidian, without overcoming, as expected, the conservative and reductionist views of mental disease. There is a gap that must be filled by further studies which include attention to emotional aspects that can be translated into interventions that help workers cope with their daily tasks.

Uniterms: Mental disease; Insanity; Health professional; Psychiatric reform; Mental health.

A Reforma Psiquiátrica Brasileira consiste em longo e complexo processo de reorientação do modelo assistencial em saúde mental, que envolve um amplo questionamento sobre formas de assistência e cuidado à população acometida por sofrimentos psíquicos graves. Seu início pode ser remontado ao final da década de 1970, e sua progressiva operacionalização vem ocorrendo desde a década de 1980.

É importante destacar que tal reformulação envolve uma grande variedade de indagações e críticas, que problematizam não apenas a dimensão do tratamento propriamente dito, mas também questões de ordem política e jurídica, epistemológicas e culturais. Ou seja, a Reforma Psiquiátrica pode ser identificada como um movimento que busca questionar o modelo de atendimento centrado no hospital psiquiátrico tanto na sua concretização em práticas assistenciais quanto nas suas configurações teórico-conceituais, designáveis como campo do saber psiquiátrico. Busca, além disso, superar preconceitos historicamente construídos a respeito da loucura, cristalizados no imaginário social e cultural, bem como na caracterização jurídica do doente mental.

No que se refere especificamente ao campo do tratamento, a Reforma Psiquiátrica caracterizou-se pela desativação de grande parte dos hospitais psiquiátricos, com o objetivo de substituí-los por redes alternativas de atendimento em saúde mental. Em menos de três anos, o número de hospitais psiquiátricos foi reduzido em 8%, ao mesmo tempo em que foram criados 2.156 leitos para atendimento psiquiátrico em 139 hospitais gerais e 3.500 vagas em hospitais-dias, Núcleos e Centros de Atenção Psicossocial (Venturini, 1998).

Em sintonia com os princípios da Reforma Psiquiátrica, instituída no País há 11 anos pela Lei nº 10.216/2001, o Governo Federal impulsionou, nos últimos anos, a construção de um modelo humanizado de atenção integral na rede pública de saúde, que mudou o foco da hospitalização como centro ou única possibilidade de tratamento aos pacientes. O tratamento, de acordo com o discurso oficial que orienta a reforma, deve ser pautado em uma concepção de saúde compreendida como processo, e não meramente como ausência de doença. Busca-se melhorar a qualidade de vida do usuário, com ênfase em ações integrais e promocionais de saúde, garantindo-se o cuidado, a inclusão e a emancipação das pessoas portadoras de sofrimento psíquico (Brasil, 2004).

Dentre a rede de equipamentos, um dos principais serviços substitutivos do Sistema Único de Saúde (SUS) são os Centros de Atenção Psicossocial (CAP), de caráter aberto e comunitário. Esses equipamentos de referência têm o objetivo de oferecer atendimento a pessoas que sofrem de transtornos mentais, psicoses e neuroses graves, entre outros quadros. Devem contar com uma equipe multiprofissional completa e preveem a assistência integral ao usuário de serviços de saúde, incluindo atendimento médico, assistência social, psicoterapia, oficinas terapêuticas, atividades artísticas, atendimento domiciliar e familiar, entre outros serviços (Brasil, 2004). Atualmente, a rede conta com 1.771 Centros de Atenção Psicossocial (CAP), que estão implementados em todos os estados. Essa quantidade é quase quatro vezes maior que em 2002, quando o País contava com 424 centros (Brasil, 2012).

Essa breve panorâmica dos princípios e objetivos que guiam a Reforma Psiquiátrica evidencia que esta, por apresentar tantas ambições em seu projeto, deve ser encarada como fenômeno complexo que pode e deve ser abordado por diversos ângulos. De fato, se for considerada a amplitude de áreas e temas que busca articular, pode ser vista como um campo aberto, plural e em movimento, que engloba discussões e práticas diversas. Aponta-se , desta maneira, que a Reforma Psiquiátrica requer mudanças paradigmáticas consistentes e não apenas alterações pontuais no cuidado e na postura dos profissionais. É um processo que caminha entre avanços e retrocessos, o que pode dificultar a apreensão, por parte dos trabalhadores de saúde mental, do paradigma psicossocial e sua aplicação cotidiana com os usuários.

Neste contexto, a investigação sobre seus sucessos, impasses, conquistas e fracassos demanda uma avaliação criteriosa e contínua e, para tanto, é necessária a adoção de uma postura crítica, entendida como um modo de diagnosticar problemas não resolvidos e contribuir para a conquista de avanços relevantes. Ao analisar a Reforma Psiquiátrica, deve-se ter em mente que a realidade cotidiana coloca constantemente desafios para a concretização, na prática, dos modelos ideais. Ou seja, nem sempre as intenções veiculadas pelos discursos oficiais encontram condições de trabalho adequadas para se realizarem. Sem negar reconhecidos progressos, é preciso evitar o risco de nos restringirmos a uma visão idealizada do processo, o que, evidentemente, não implica defender um retorno a práticas e discursos reacionários.

Segundo alguns autores (Amarante, 1995; Desviat, 1999; Venturini, 1998), a implantação do novo modelo de assistência preconizado pela Reforma Psiquiátrica teve expressivo e rápido desenvolvimento no País, em curto espaço de tempo, tendo se beneficiado de grande apoio político e legislativo. Além disso, mobilizou profissionais de saúde, órgãos governamentais e não governamentais e a sociedade em geral, estando todos de acordo sobre a falência da assistência psiquiátrica centrada no manicômio.

Entretanto, vale a pena considerar que o processo de operacionalização da reforma se constituiu historicamente, e consiste, ainda hoje, em um campo mais heterogêneo do que tal visão poderia fazer supor. Assim, é temerário afirmar que todos os setores envolvidos nas discussões sobre a reforma venham seguindo em pleno acordo sobre todos os pontos da mesma, ou que todos os grupos políticos e sociais defendam mudanças por motivos ideológicos comuns, embora possam concordar em algumas reivindicações gerais.

Pode-se afirmar que a implantação de um modelo de assistência extra-hospitalar no Brasil, em si, é um assunto complexo, e que sua concretização ainda coloca constantes dificuldades. Tal quadro provavelmente explica o motivo de a Reforma Psiquiátrica ser um tema muito pesquisado, fato facilmente constatável quando se realiza um levantamento bibliográfico por meio da base de dados Scientific Electronic Library Online (SciELO), na qual encontram-se trabalhos científicos dedicados a esse assunto, o que deixa clara a importância e relevância de analisar como esse movimento de desconstrução do modelo manicomial vem ocorrendo no Brasil.

Considerando o exposto, pretende-se com este artigo contribuir particularmente com uma investigação sobre o modo como os trabalhadores de saúde mental estão enfrentando, atualmente, as dificuldades concretas da implementação efetiva da Reforma Psiquiátrica. Para tanto, serão examinados estudos recentes que focalizaram a figura do trabalhador. Justifica-se a relevância de enfocar estes profissionais porque são eles que realizam no dia a dia as mudanças preconizadas pelo movimento antimanicomial, lidando com os impasses, problemas, dúvidas e angústias que o contato próximo e diário com os usuários pode gerar. A experiência destes profissionais pode ser verdadeiramente instrutiva se puder ser utilizada como material para reflexão e crítica. Além disso, investigações sobre diversos profissionais e o adoecimento no ambiente também parecem oportunas a partir do que tem sido apontado por alguns autores que concordam com a necessidade do desenvolvimento de estratégias de cuidado ao próprio trabalhador (Guimarães & Martins, 2010; Malagris & Fiorito, 2006; Souza & Silva, 2002).

Método

Em termos metodológicos, este trabalho foi organizado realizando-se um levantamento bibliográfico de artigos brasileiros, publicados no período de 2003 a 2011, em periódicos científicos incluídos na base de dados SciELO. Esta escolha justifica-se por se tratar de uma base que abrange todas as áreas de conhecimento, permitindo o acesso a periódicos de diversas ciências, biológicas, humanas, sociais, da saúde, entre outras. Além do mais, é reconhecida no meio científico, em virtude de suas exigências, permitindo acesso fácil e direto a textos completos. Procedeu-se a uma busca inicial usando as palavras-chave "reforma psiquiátrica", "doença mental", "loucura" e "saúde mental". Em um segundo momento foram selecionados, dentre os artigos encontrados, aqueles que apresentavam pelo menos uma das seguintes expressões em seus títulos: "profissional(is)", "trabalhadores", "equipe".

Realizou-se uma leitura sistemática dos textos selecionados adotando-se como guia o exame das dimensões que estruturam a comunicação de investigações científicas: objetivos; metodologia, incluindo procedimentos de coleta, procedimentos de registro, modos de interpretação; resultados e interpretação dos resultados. Essas divisões foram consideradas tanto na análise das pesquisas quantitativas quanto nas qualitativas, pois, mesmo que estas últimas não adotem formalmente este tipo de organização, não deixam de seguir a mesma lógica de pensamento.

Resultados

A primeira busca realizada em 9/8/2011, organizada a partir dos assuntos "reforma psiquiátrica", "doença mental", "loucura" e "saúde mental", considerando o período de 2003 a 2011, resultou em uma lista composta por 690 artigos. Foram encontrados 61, 11, 95 e 523 trabalhos científicos dos assuntos respectivamente citados.

Dentre o total de 690 artigos, foram encontrado - listado em ordem crescente da publicação -, 14 artigos que focalizaram diretamente a figura do trabalhador de saúde mental e sua prática profissional (Bernardes & Guareschi, 2004; Campos & Soares, 2003; Carvalho & Felli, 2006; Honorato & Pinheiro, 2008; Jorge, Randemark, Queiroz & Ruiz, 2006; Nardi & Ramminger, 2007; Pinho, Hernández & Kantorski, 2010a; Pinho, Hernández & Kantorski, 2010b; Rabelo & Torres, 2006; Rodrigues & Figueredo, 2003; Santos & Cardoso, 2010a; Santos & Cardoso, 2010b; Silva & Costa, 2010; Silveira & Santos Júnior, 2011) (Quadro 1). Tais pesquisas foram selecionadas pelo critério de apresentarem pelo menos uma das seguintes expressões em seus títulos: "profissional(is)", "trabalhadores", "equipe".


Os Quadros 1 e 2 apresenta uma breve descrição dos artigos levantados, que serão apresentados em ordem crescente pelo ano de publicação. O Quadro 1 expõe os objetivos e o método adotado, especificando procedimento de coleta, procedimento de registro, tratamento e análise dos dados. No Quadro 2 podem ser apreciados os resultados das pesquisas examinadas e sua interpretação. Optou-se por este tipo de apresentação dada a natureza qualitativa da totalidade dos textos examinados, que apresenta seus achados já sob uma perspectiva interpretativa.


Discussão

Este estudo permitiu uma constatação bastante interessante, relativa à ocorrência de evidente convergência nos resultados de pesquisas realizadas a partir de referenciais teóricos distintos entre si. Tal quadro aponta que os profissionais estão sendo escutados pelos estudiosos em termos de discurso manifesto - aquele que expressa os aspectos sobre os quais estão conscientes. Assim, todos averiguaram o fato de que a implantação dos princípios da Reforma Psiquiátrica, em andamento desde a década de 1980, ainda é um grande desafio, principalmente quando deixa o plano da discussão ética e política para se colocar como prática cotidiana no contexto institucional. Este quadro geral suscita, aparentemente, inúmeras questões, que apresentam, por seu turno, diversos desdobramentos. Contudo, é possível identificar uma tendência claramente predominante, que merece ser considerada de modo atento.

Percebe-se claramente, avaliando as pesquisas selecionadas, que os profissionais declaram-se , em seus discursos, favoráveis aos tratamentos propostos pelo movimento da Reforma Psiquiátrica. Entretanto, é possível notar, a partir do que foi dito, que sua prática ainda está impregnada por uma compreensão do processo de adoecimento fortemente calcada nos pressupostos teóricos do saber psiquiátrico tradicional. Consequentemente, a causa da doença é buscada, primária e essencialmente, na dimensão biológica do ser humano, sendo a cura concebida fundamentalmente como resultado de intervenção medicamentosa. A atuação da equipe multiprofissional apenas complementaria o ato médico (psiquiátrico) da prescrição farmacológica.

Para os objetivos deste texto, considera-se que a persistência de tal concepção do adoecer constitui um problema grave, tendo em vista que, conforme destacado anteriormente, as diretrizes políticas e legislativas que norteiam a Reforma Psiquiátrica preconizam outra visão do sofrimento psíquico, chamando atenção para seu caráter fundamentalmente complexo e pluridimensional. Entretanto, os agentes efetivos do processo de desinstitucionalização - que são os trabalhadores da área de saúde mental -, ainda mantêm uma visão etiológica conservadora, pelo que pode-se inferir a partir dos resultados das pesquisas analisadas. Esta perspectiva seria, num sentido radical, não compatível com as mudanças nas leis e políticas de assistência em saúde mental. Tal aspecto pode explicar profundas divergências entre o plano das ideias e discursos e o plano das atitudes concretas realizadas no cotidiano profissional. Assim, pode-se levantar a hipótese, com amparo em uma perspectiva psicanalítica, de que muitas das ideias preconcebidas acerca do louco e/ou doente mental emergem de um campo de sentido afetivo-emocional que não é consciente para os próprios trabalhadores.

Praticamente todos os estudos mencionaram reações emocionais dos técnicos perante os usuários, ainda que não tivessem estabelecido a análise deste dado como objetivo do trabalho. Contudo, mesmo escutando-as e argumentando a favor do reconhecimento de sua importância, tendem, coerentemente em relação aos seus pressupostos, a tratá-las como informações objetivas veiculadas por sujeitos puramente racionais. Deste modo, as dimensões afetivas presentes nas manifestações dos profissionais de saúde deixam, compreensivelmente, de ser suficientemente consideradas.

Como psicólogos que adotam uma abordagem psicanalítica, os autores deste texto reconhecem a importância do discurso manifesto e acreditam ser possível produzir conhecimento relevante mesmo quando os pesquisadores se limitam à sua focalização, sem se propor ao estudo de determinantes afetivo-emocionais inconscientes. Por outro lado, consideram que uma escuta psicanalítica ingênua - que realiza traduções apressadas entre o plano das condutas e supostas motivações inconscientes profundas, ignorando planos intermediários nos quais a vida transcorre -, deve ser desestimulada. É perigoso tanto desqualificar o chamado discurso manifesto, como se este fosse sempre um mero truque de ocultação de algo mais verdadeiro - desvalorizando-se , assim, a fala do outro -, quanto o pensamento que considera que o discurso verbal é unívoco e destituído de ressonâncias que apontem para questões emocionais encobertas.

É legitima a queixa de despreparo técnico enunciada pelos profissionais. Ao formular esta queixa, no entanto, estes profissionais expressam também, de modo indireto, dificuldades de ordem afetiva. Até em casos nos quais os profissionais dos serviços referiram esgotamento físico em decorrência do cotidiano com os doentes mentais, é possível encontrar - obviamente não ignorando as condições concretas de exigências feitas ao corpo no cotidiano de trabalho -, manifestações de desgaste emocional. Portanto, sugere-se que o problema tem duas faces: a do despreparo técnico-profissional e a do despreparo afetivo-emocional. A primeira seria solucionável por meio de cursos de atualização e aperfeiçoamento técnico e clínico; a segunda demandaria medidas diferenciadas, da ordem do cuidado emocional ao trabalhador, não porque este seria inerentemente frágil ou problemático, mas por reconhecer que o trabalho, em si, é inerentemente desgastante.

Em realidade, é preciso ter em mente que essas dimensões não são rigidamente separadas, o que fica especialmente evidente em profissões que lidam com situações de vida que as colocam em relação muito próxima com o sofrimento humano. O trabalho em saúde mental mobiliza intensamente questões de ordem emocional, não podendo ser reduzido ao seu aspecto técnico. O saber teórico-técnico só encontra sua razão de ser no encontro humano concreto com a alteridade, tal como se realiza no cotidiano de trabalho, configurando uma relação complexa entre teoria e prática, na qual a dimensão emocional se faz sempre presente.

A partir do momento em que se focaliza a atenção na dimensão emocional envolvida no trabalho em saúde mental, faz-se urgente constatar que simples mudanças na política, nas leis e nas redes de atendimento, ainda que inegavelmente necessárias, não são suficientes para promover automaticamente mudanças na relação com um tema complexo como a loucura, que se insere em um imaginário povoado por crenças preconceituosas que, por sua vez, estão ligadas a angústias profundas.

Neste quadro, os próprios trabalhadores destacam a importância de combater o preconceito contra usuários dos serviços de saúde mental, mas eles mesmos aparentam encontrar alguns entraves ao realizar tal objetivo, expressando grande dificuldade em lidar com os sentimentos despertados no cotidiano do trabalho.

A partir de tais considerações, algumas questões se colocam: as dificuldades emocionais devem ser resolvidas individualmente e de forma isolada por cada profissional, em processos psicoterapêuticos individuais ou na escola da vida? Como o próprio serviço de saúde pode desenvolver maneiras inovadoras para o cuidado de sua equipe, sem que a solução precise ser buscada fora da instituição e vista como uma necessidade não do coletivo, mas de cada sujeito individual?

Por fim, pode-se concluir que essa investigação permitiu visualizar que, tanto pesquisadores quanto profissionais de saúde, mesmo que vindos de linhas e vertentes teóricas diferentes, estão engajados em uma corrente defensora da causa inclusiva, que valoriza o fortalecimento de vínculos éticos, solidários, igualitários e respeitosos entre pessoas e grupos. Estão, em suma, mobilizados pela busca de melhoras a serem realizadas no âmbito da saúde mental. Entretanto, percebe-se também que o fato de o movimento, como um todo, não focalizar suficiente e satisfatoriamente a dimensão afetivo-emocional que se mobiliza quando a questão da loucura está em foco, possivelmente retardará avanços necessários e significativos.

Recebido em: 6/10/2011

Versão Final em: 30/5/2012

Aprovado em: 22/6/2012

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    02 Set 2013
  • Data do Fascículo
    Jun 2013

Histórico

  • Recebido
    06 Out 2011
  • Aceito
    22 Jun 2012
  • Revisado
    30 Maio 2012
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