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O SEXO DA POBREZA: Homens, mulheres e famílias numa "avenida" em Salvador da Bahia

The sex of poverty. Men, women and families at an alley of the city of Salvador, Bahia

Resumos

Com base na observação etnológica de uma "avenida" do bairro da Liberdade, em Salvador, BA, o autor se propõe mostrar como as "subjetivações" dos indivíduos sobre sua condição e seu destino fazem sentido em relação à organização atual das famílias pobres e às posições distintas que homens e mulheres ocupam nesta organização familiar.

pobreza; cultura da pobreza; mulher; feminização da pobreza; família; parentesco; relações de gênero; vizinhança; papéis sexuais; redes sociais; homens/mulheres


Based on systematic observation carried on on an alley in the poor Liberdade section of the city of Salvador, State of Bahia, the author wants to show how symbolic representations of the individuals about their condition and fate make sense when reported to the current organization of the poor, black families, and to the different positions that men and women occupy in such families.

poverty; culture of poverty; woman; "feminisation of poverty"; family; kinship; gender relationship; neighbourhood; sex rols; social networks; men/women


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  • Há uma linha de descendência entre a antropologia nos seus terrenos "tradicionais" e a antropologia do "gueto", que vários autores apontam como uma das vertentes da antropologia urbana, a outra vertente se encontrando na sociologia das redes que, aplicada às mesmas realidades urbanas, dá resultados geralmente opostos (Fox, 1977FOX, Richard. Urban Anthropology. Cities in their culture settings. Englewood Cliffs, New Jersey, Prentice Hall, 1977., Hannerz, 1983HANNERZ, Ulf. Explorer la ville. Eléments d'anthropologie urbaine. Paris, Minuit, 1983., Joseph, 1984JOSEPH, Isaac. Urbanité et ethnicité. Terrains. Paris, 3:20-31, 1984.).
  • 2
    Sobre a distinção entre condição e posição social, ver Bourdieu, 1966BOURDIEU, Pierre. Condition de classe et position de classe. Archives européennes de Sociologie, VII:201-229, 1966.. Alba Zaluar faz uma crítica desta assimilação freqüente, nas teorias da pobreza, entre condição social, "cultura" e identidade social (1985, p. 33-63). Do mesmo modo, Valentine sublinha que a confusão de Oscar Lewis entre os diferentes níveis de análise (indivíduo, família, cultura) é "uma das dificuldades básicas primordiais do enfoque de Lewis" (Valentine, 1970VALENTINE, Charles. La cultura de la pobreza. Critica y contrapropuesta. Buenos Aires, Amorrortu, 1970., p. 62).
  • 3
    "O apelo ao conceito de desorganização social para explicar sua família ‘desagregada' [a pobreza] nada mais seria do que manifestação da estranheza dos que escrevem sobre a pobreza diante de costumes diferentes do seu" (Zaluar, 1985ZALUAR, Alba. A máquina e a revolta. As organizações populares e o significado da pobreza. São Paulo, Brasiliense, 1985., p. 41).
  • 4
    Uma discussão das interpretações gerais da "feminização da pobreza" encontra-se em Castro, 1989CASTRO, Mary Garcia. Family, Gender, and Work: The Case of Female Heads of Household in Brazil (State of São Paulo and Bahia), 1950-1980. Tese Ph.D., University of Florida,1989. , p. 25-58. Recuperamos aqui esta noção no sentido descritivo, privilegiando o enfoque da produção familiar das desigualdades de "papéis" e de práticas sociais na situação de pobreza.
  • 5
    Em certos casos, as avenidas de Salvador são comparáveis aos "cortiços", forma de habitação desenvolvida no início do século em São Paulo e Rio. Alojamento para as camadas urbanas mais pobres (até seu deslocamento para as periferias nos anos 60), os cortiços são alinhamentos de "cubículos", construídos por um mesmo dono geralmente especializado nesse tipo de operação financeira (Kowarick e Ant, 1988KOWARICK, Lúcio, ANT, Clara. Cem anos de promiscuidade: o cortiço na cidade de São Paulo. In: KOWARICK, Lúcio, org. As lutas sociais e a cidade. São Paulo: passado e presente. São Paulo. Paz e Terra. 1988.). Segundo um antigo morador do bairro apresentado aqui, muitas das suas avenidas eram originalmente (e algumas ainda são) autênticos cortiços, formados nos anos 1940 e 1950. Alguns proprietários, três ou quatro ("Coronel T.", "Família B." etc.), dividiam entre si os terrenos baldios do bairro (comprando o seu uso ao dono do terreno, a Ordem Terceira do Carmo) nos quais eles construíam e alugavam habitações sumárias.
  • 6
    A posição social dos trabalhadores das novas indústrias baianas no espaço e na estrutura social desse bairro antigo é analisada em Agier, 1990AGIER, Michel. "Espaço urbano, família e status social. O novo operariado baiano nos seus bairros". Cadernos do CRH , nº 13, Salvador, CRH/UFBa (no prelo), 1990. .
  • 7
    Interessante é notar aqui o uso de duas expressões estigmatizantes para os não-siblings, que sugere uma diferença de tratamento dentro de uma primeira diferença. Conforme levantada em vários discursos concordantes, a expressão "de fora" é usada para quem nasceu de pai diferente: o "fora" designa então uma exclusão do grupo de descendência, isto é, daqueles que carregam e transmitirão (em princípio eternamente quando em linhas masculinas) o mesmo "último nome", o status e a "essência" da família. Por sua vez, a expressão "da rua" designa quem nasceu de mãe diferente: o nível do estigma é menor, envolve uma oposição casa/rua que remete à composição do grupo doméstico, sem alterar o pertencimento do filho vindo "da rua" à descendência patrilinear.
  • 8
    Todos os estudos antropológicos evidenciam, de uma maneira ou de outra, essa diferença de papel entre o homem e a mulher, decorrente da imposição do dever social masculino: a mulher ligada ao interior, ao lar, à manutenção da casa e à moral (sua e a dos filhos e filhas); o homem ligado ao exterior e à providência da família, na sua "luta" pela feitura ou pelo respeito do nome da família. Cf. principalmente Abreu Filho, 1982ABREU Filho, Ovídio de. Parentesco e identidade social. Anuário antropológico, 80:95-118, 1982.; Alvim, 1979; Quiroga, 1982QUIROGA FAUSTO NETO, Ana Maria. Família operária e reprodução da força de trabalho. Petrópolis, Vozes, 1982.; Hirata e Humphrey, 1987HIRATA, Helena e HUMPHREY, John. Familles ouvrières face à la crise. Une enquête dans les quartiers ouvriers de São Paulo. Les Temps Modernes , Paris, 491:103- 120, 1987.; Fonseca, 1985FONSECA, Claudia. Valeur marchande, amour maternel et survie: aspects de la circulation des enfants dans un bidonville brésilien. Annales E.S.C. Paris, 991- 1022, 1985. e 1987_______. Aliados e rivais na família o conflito entre consagüíneos e afins em uma vila portoalegrense. Revista Brasileira de Ciências Sociais. São Paulo, Anpocs, vol. 2 (4): 88-104, 1988.; Woortmann, 1982WOORTMANN, Klass. Casa e Família Operária. Anuário antropológico. Rio de Janeiro, 80:119-150, 1982. e 1987_______. A família das mulheres. Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 1987.; Telles, 1988TELLES, Vera da Silva. Família, trabalho e modos de vida: notas de uma pesquisa sobre trabalhadores urbanos em São Paulo. São Paulo, UNICAMP (mimeo), 1988.. Quiroga (1982)QUIROGA FAUSTO NETO, Ana Maria. Família operária e reprodução da força de trabalho. Petrópolis, Vozes, 1982. mostra, notadamente, a diferença da participação dos lados maternos e paternos na vida econômica da casa; em famílias operárias de Belo Horizonte, o lado materno interfere no quotidiano da família (cuidado das crianças, troca de comida etc.), enquanto o lado paterno intervém de maneira prioritária num caso só: o do empréstimo de dinheiro (op. cit.: 82-83). Nesse caso, os consangüíneos do homem chefe de família se solidarizam numa questão essencial (o dinheiro), que coloca em jogo a honra do homem "provedor" e, por conseqüência, o status do nome de família que ele carrega.
  • 9
    Numa cidade como Salvador, onde as diferenças raciais permeiam as relações hierárquicas, a possibilidade de negociação do peso de cada lado familiar em função da importância dos assuntos se verifica nas "estratégias" de identificação racial envolvidas no casamento: segundo Thales de Azevedo, o homem sendo "fatalmente absorvido" pela família da sua esposa, um homem de cor "ascende" pela sua integração à família branca ou mais clara de sua esposa, enquanto uma mulher de cor que se casa com um branco será mais exposta à hostilidade sócio-racial da família do marido (Azevedo, 1953, p. 44).
  • 10
    Entender como os meios pobres produzem simbolicamente a alteridade dos homens mal sucedidos inscrevendo-os nos domínios da doença e da "margem", é um tema de pesquisa ao qual leva a análise da lógica familiar de formação das casas matri-centradas. O papel da pessoa transgressora se define como parte de uma "rede" de papéis (responsabilidades e poderes) que permite aos sujeitos entenderem seu próprio destino (Velho, 1974VELHO, Gilberto. Acusações: projeto familiar e comportamento desviante. Rio de Janeiro, UFRJ, Museu Nacional (mimeo), 1974.).
  • 11
    No conjunto das mulheres da avenida que têm uma atividade remunerada (21 num total de 32 mulheres de mais de 15 anos), e qualquer que seja o seu status na casa, contam-se:
    - 6 assalariadas de empresas privadas (3 escriturárias, 1 ajudante de enfermagem, 1 ajudante de creche, 1 faxineira);
    - 6 empregadas domésticas;
    - 7 não-assalariadas trabalhando em casa (lavadeiras, cozinheiras, costureiras);
    - 2 não-assalariadas trabalhando fora de casa (1 vendedora na feira e 1 costureira tendo sua própria sala no Largo).
    No total, pode-se considerar que apenas 4 mulheres em 21 (3 escriturárias e 1 vendedora na feira) desempenham uma atividade profissional que não seja diretamente a mercantilização de tarefas domésticas.
  • 12
    Na prática, há variações na "deserção masculina" (Azevedo, 1966_______. Família, casamento e divórcio. In: Cultura e situação racial no Brasil. Rio, Civilização Brasileira, 1966., p. 124). Um homem pode ser ausente da casa sem estar totalmente fora do espaço familiar disponível, se participa ainda de algumas funções de reprodução da família elementar.
  • 13
    A partir de uma pesquisa quantitativa feita na região de Salvador sobre os motivos invocados pelos pobres para explicar sua situação de pobreza, Inaiá Carvalho e Nadya Castro concluíram: "No caso das camadas mais baixas das populações urbanas (...) a crença na fatalidade ou na própria ausência de méritos justifica, para uma parte dessas camadas, as carências experimentadas, que passam a ser correlatas a uma posição social que ‘obviamente' lhes corresponde. Enquanto outros visualizam a superação dessas carências através do esforço, iniciativa e capacidades individuais" (Carvalho e Castro, 1977CARVALHO, Inaiá Maria Moreira de & CASTRO, Nadya Araújo. Atitudes políticas e marginalidade urbana: um estudo de caso. Ciência e Cultura, vol.29 (5), 1977., p. 536).
  • 14
    Este recurso se dá dentro de uma religiosidade na qual o sujeito entra em relação com as divindades da mesma maneira que entra em relação com os humanos. As divindades (sejam elas santos católicos ou divindades afrobrasileiras) são figuras meio-divinas, meio-humanas, que acompanham a vida quotidiana.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jul-Dec 1990

Histórico

  • Recebido
    Maio 1990
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