Acessibilidade / Reportar erro

Dissecando um “novo” mercado ilegal?

Feltran, Gabriel. (eds.). Stolen Cars: A Journey Through São Paulo’s Urban Conflict . Londres, John Wiley & Sons, 2022.

Sábado, véspera do dia das eleições mais esperadas desde a redemocratização. O prazo para a entrega da resenha era domingo e não tinha escrito uma linha sequer. Voltava de uma festa com o meu marido num táxi, preocupada se iria dar conta de produzir algo no dia seguinte em meio à ansiedade da votação. Um Chevette antigo parou ao nosso lado, mas o seu motor era claramente novo, porque “roncava”. O meu marido perguntou como isso era possível e o taxista começou a nos contar um pouco da história que também se descortina no livro Stolen Cars.

Segundo o nosso taxista, todos os belo-horizontinos apaixonados por carros sabem do esquema que transforma carros roubados em mercadorias “limpas” disputadas em leilões. Especialmente colecionadores ou engenheiros mecânicos, interessados em dar um novo motor ou uma nova roupagem a carros antigos, estão associados a empresas de compra de pedaços de carros. Segundo ele, essas pessoas estão de olho, sobretudo na estrutura de baixo de grandes caminhonetes, como a Hilux, para que possam erguer sobre elas um novo carro. Por isso, os leilões são disputadíssimos, demandando toda uma articulação prévia sobre quem vai comprar qual carro e como um veículo pode ser transformado em distintos novos carros - mantendo ou não a estrutura original. Eu me fingi de desentendida e perguntei ao taxista: “mas isso é legal?”.

Meu interlocutor se animou, respondendo: “moça, ilegal é, mas até as autoridades estão lá participando. Chegam mais cedo, escolhem as melhores mercadorias. Se até os policiais, que deveriam investigar, dizem antes o que eles vão comprar, quem vai combater?”. E emendou: “Eu adoro ir para observar. Você deveria ir também, tem muita mulher neste negócio”. Infelizmente, tínhamos chegado ao nosso destino. Informei meu código para pagamento e desci desejando a ele uma boa votação no dia seguinte.

Essa cena anedótica com o taxista me fez refletir como os padrões encontrados por Gabriel Feltran e seus colaboradores acerca da estruturação e funcionamento do mercado de carros roubados acontecem em distintas cidades do país, em que pese a análise de Stolen Cars ser centrada em São Paulo e nas conexões que essa megalópole estabelece com outras metrópoles ao redor do mundo. Com base nas notícias divulgadas pela imprensa e pelas redes sociais, fica parecendo que o crime urbano no Brasil se reduz ao tráfico de drogas e, assim, uma organização que surgiu no sistema prisional (como o Primeiro Comando da Capital) só pode ter esse como principal negócio. Estamos muito equivocados.

Se o “crime organizado” tem no mercado de drogas a sua faceta mais visível, ela não é o seu único pilar. Essa é a novidade trazida por Stolen Cars, obra que disseca um tipo de crime que quase nunca é foco de pesquisas acadêmicas: os carros roubados. Trata-se de um mérito que precisa ser destacado, porque boa parte dos estudos sobre “crime organizado” centra-se no tráfico de drogas, como se esse fosse o único ilícito a articular distintos atores (públicos e privados, lícitos e ilícitos) e a gerar valores inacreditáveis. Exatamente por isso, é preciso destacar que outro mérito do livro é o fato de ele ser escrito originalmente em inglês, o que abre a possibilidade de pesquisas verdadeiramente transnacionais sobre um assunto que conecta distintos países por meio das idas e vindas de mercadorias (que variam desde carros até pequenas peças), sujeitos e moedas. Ao dialogar no idioma nativo das principais referências acionadas no texto, abre-se a possibilidade de uma troca mais equânime. Afinal, as citações dos autores podem acionar neles próprios o interesse em conhecer mais sobre o tema e em se aprofundar nessa temática que ainda não se destaca entre os objetos de análise das ciências sociais. Em resumo, trata-se verdadeiramente de uma contribuição transnacional.

Outro mérito de Stolen Cars é sua narrativa cativante. Por meio dos caminhos de cinco carros roubados, escolhidos para retratação dos intercâmbios entre sujeitos e instituições, é possível compreender como um mesmo veículo permite a confluência de atores distintos. Carros roubados interligam desde garotos pobres, negros e de baixa escolaridade que irão se arriscar no furto da mercadoria, perpassando por executivos de venda e gestão de seguros; por policiais responsáveis por correr atrás dos carros e dos “ladrões” e que, simultaneamente garantem a viabilidade do próprio negócio; por leilões, administrados por homens brancos, ricos e engravatados que procuram maneiras nem sempre lícitas de aumentar a sua renda; por desmanches que irão extrair a parte mais rendável do veículo, deixando o restante (não menos lucrativo) para as oficinas mecânicas, entre outros atores. Trata-se, portanto, de um mercado ilegal que, aparentemente, é tão velho quanto a invenção do automóvel e do sistema de seguro a ele associado. Porém, é um mercado que conecta personagens que, à primeira vista, não têm nada em comum, mas que são unidos por meio de interações distintas que compõem um mesmo fluxo. As dinâmicas que enrolam os stolen cars são situadas em distintos espaços territoriais e momentos do tempo, de acordo com os regimes normativos aos quais os sujeitos se submetem num continuum que dá uma certa estrutura a esse fluxo.

Se a pesquisa inicial coordenada por Feltran é centrada em algumas conexões latino-americanas, uma chave que se abre é em que medida a migração de indivíduos leva consigo algumas dinâmicas de vida e conhecimentos (inclusive ilegais), a modo de como acontece, por exemplo, com a religião (Vásquez, 2016 Vásquez, Manuel A. (2016), “Religion, globalization, and migration”. In: Woodhead, L. et al (Eds.). Religions in the Modern World. Routledge, p. 447-468.). Com isso, Stolen Cars se torna também um ponto de partida para um estudo transnacional de amplo alcance, capaz de interligar mecânicos que se mudam para a França em busca de melhores condições de vida, de brasileiros apaixonados por carros que vão tentar a vida nos Estados Unidos e levam consigo a expertise de desmanchar um veículo em partes tão pequenas que chega a ser impensável vê-las como parte de um carro. Com uma equipe de pesquisadores em distintos níveis de formação como a que compõe o livro, é possível afirmar que temos aqui um programa de pesquisa que pode se desdobrar por décadas em várias universidades ao redor do mundo, sem correr o risco de ser redundante ou cansativo. Para entender como isso pode ser possível, farei um breve relato do livro.

Partindo do cotidiano da cidade de São Paulo, por meio de etnografias densas, complementadas com dados quantitativos extraídos de registros oficiais, Stolen Cars nos obriga a mergulhar nas dinâmicas que envolvem, inicialmente, a negociação por detrás do roubo de um carro. Em seguida, são acionadas estratégias múltiplas para transformar a mercadoria roubada, que é inicialmente uma “fria” (porque é alvo de busca por instituições públicas e privadas), em um negócio “quente” (capaz de gerar um grande lucro porque a mercadoria foi esquecida por um tempo no leito do Rio Tietê). Afinal, roubar um carro é um crime previsto no Código Penal, cabendo o acionamento da polícia para a recuperação do bem e para apontamento do responsável pelo ilícito, que deveria ser processado e punido por sua ação pelo sistema de justiça criminal, que envolve o Ministério Público, Defensoria Pública e o Judiciário (instituições pouco mencionadas neste livro). Todavia, são poucas as situações em que o procedimento criminal por roubo de carro é iniciado, sendo dois os principais destinos dos ladrões: (i) receber um pequeno valor pela mercadoria, quase irrisório perto do que os atravessadores da rede lucram com o desmanche e, depois, com os leilões para venda dos restos; (ii) morrer na abordagem policial que busca recuperar o carro, especialmente, quando se trata de um veículo de luxo. Comecemos pelo primeiro destino.

Caso o carro não seja recuperado e a vítima tenha seguro, ela pode acionar a empresa que vendeu a apólice para a recuperação do valor do veículo. A seguradora pagará o prêmio do seguro à vítima, mas continuará a busca do carro, o que a permitirá lucrar talvez até mais do que o valor pago ao segurado. Como num thriller de aventura, somos guiados por um passeio nas redes de compra e venda de automóveis, nos contratos de seguro que, provavelmente, julgávamos como um “negócio acima de qualquer suspeita” e nos leilões de carros, que transformam partes de mercadorias ilícitas em lícitas, satisfazendo consumidores ávidos por barganhas lucrativas. Exatamente por isso, Gabriel Feltran e seus colaboradores nos lembram que “as regulamentações criadas sob forte influência das seguradoras e seus executivos criam barreiras à entrada de novos concorrentes (associações, instituições religiosas, milícias ou quadrilhas de traficantes) e criminalizam os operadores tradicionais do mercado informal (como os proprietários de lojas tradicionalmente ilegais)” (p. 131). São negócios manejados por uma elite de homens brancos, com muita influência política, religiosa e, por que não dizer, criminal, o que faz com que o lucro de um carro roubado seja exponencial.

A abordagem proposta por Feltran e colaboradoresFeltran, Gabriel. (2018), Irmãos: uma história do PCC. São Paulo, Editora Companhia das Letras., em termos analíticos, guarda alguma semelhança com o argumento desenvolvido por Marcelo Bergman em More Money, More Crime. Trata-se de uma obra que também procura compreender como o lícito e o ilícito se entrelaçam produzindo dinâmicas que terminam por desaguar em mais violência e homicídios na América Latina. Para Bergman (2018)Bergman, Marcelo. (2018), More money, more crime: Prosperity and rising crime in Latin America. Oxford University Press., os atores ilegais que tinham uma posição mais subordinada (do ponto de vista econômico) até a ditadura militar passam a trabalhar sucessivamente para a debilitação dos atores e agências responsáveis pela aplicação da lei (policiais, promotores, defensores e juízes) como forma de aumentar a sua lucratividade. A proposta de Bergman traz mais luzes sobre como a ineficiência das agências que compõem o sistema de justiça criminal é condição necessária para que todas as classes (pobres e ricos) possam usufruir de bens roubados. Lamentei que Feltran et al (2022)Gabriel Feltran et al. (eds.). Stolen Cars: A Journey Through São Paulo’s Urban Conflict. Londres, John Wiley & Sons, 2022 não tenham conhecido o livro de Bergman antes da publicação desta resenha, pois sua apropriação os ajudaria a pensar como o sistema de justiça criminal como um todo (e não apenas a polícia) colabora com a sustentação da rede de carros roubados.

No entanto, essa visão nublada do sistema de justiça criminal é compensada em Stolen Cars pela proposição de uma nova teoria sobre os regimes normativos, problematizando a percepção mais corrente na sociologia sobre a existência de uma fronteira borrada entre o legal e o ilegal pela emergência de vasos comunicantes (Godói, 2015 Godói, Rafael. (2015), “Vasos comunicantes, fluxos penitenciários: entre dentro e fora das prisões de São Paulo”. Vivência: Revista de Antropologia, 1(46).). Feltran e seus colaboradores argumentam que nessa rede tão diversa não há qualquer delimitação fixa acerca de certo/errado, justo/injusto, porque o que guia a ação dos sujeitos é a “coexistência de ordens plurais, ou regimes normativos” (p. 11), centrados nos códigos e valores compartilhados por quem interage naquele momento, que nem sempre são orientados pelos códigos legais preponderantes. Em diversas situações, a lei posta pelo Estado cede espaço para outras estruturas a condicionar a agência individual naquele momento. Essas podem ser as que emergem do “crime organizado” (que irá regular os possíveis usos da violência armada) e da religião, com destaque para as ações de igrejas católicas, ainda que as vertentes neopentecostais ganhem cada vez mais espaço (Beraldo, 2022Beraldo, Ana. (2022), “The Social Dynamics of Violence and Respect: State, Crime and Church in a Brazilian Favela”. Journal of Latin American Studies, p. 1-23.). É a interação entre essas estruturas que irá trazer novas molduras, a depender do contexto, sobre o que pode e não pode resultar de ações individuais, sob pena de retirada da vida pela polícia ou pelo “crime organizado”.

Os regimes normativos são, portanto, “uma regulação realizada com intensidades e ritmos diversos e por diferentes atores - agentes do Estado atuando juridicamente, agentes do Estado negociando mercados de proteção, bem como os agentes criminosos, religiosos e os empresários liberais e morais de cada sociedade” (Feltran et al, 2022Gabriel Feltran et al. (eds.). Stolen Cars: A Journey Through São Paulo’s Urban Conflict. Londres, John Wiley & Sons, 2022 , p. 222). Por isso, as posições de poder nunca são fixas ou determinadas à priori, mas altamente plásticas, a depender do contexto e de como ele se desnuda diante de um objeto concreto, como é o carro roubado. Esse, à medida que se desfaz em uma miríade de pedaços, pode empoderar atores considerados irrelevantes, da mesma maneira que é capaz de legitimar formas de governo outrora consideradas ultrapassadas (Feltran et al., 2022Gabriel Feltran et al. (eds.). Stolen Cars: A Journey Through São Paulo’s Urban Conflict. Londres, John Wiley & Sons, 2022 , p. 227). O destino de morte do “ladrão” pelas mãos da polícia talvez nos ajude a pensar essa questão.

A polícia brasileira está entre as que mais matam em todo o mundo, sendo São Paulo um dos palcos principais desse conflito (Ryngelblum e Peres, 2021 Ryngelblum, Marcelo; Peres, Maria Fernanda Tourinho. (2021), “Social segregation and lethal police violence in the city of São Paulo, Brazil (2014-2015)”. Ciência & Saúde Coletiva, 26: 4275-4286.). Diversos casos de letalidade acontecem na “busca” de carros roubados, o que implica na produção de óbitos em áreas ricas, onde os veículos de luxo (mais caros) encontram-se amplamente disponíveis. É claro que a maneira como a polícia mata em áreas de periferia é muito distinta daquela que tem lugar nas áreas mais abastadas da megalópole, onde o policial será chamado a prestar contas e a se submeter a algum processo de responsabilização. Então, ao matar alguém na busca por um veículo, o policial está protegendo a mercadoria mais do que a vida, o que termina por ser legitimado por várias das autoridades e dos “cidadãos de bem” que, numa situação semelhante, querem que o seu patrimônio seja mais importante que a longevidade do “ladrão de carro”. Contudo, essa “distribuição desigual da força letal no tempo e no espaço é fundamental para a percepção de muitos moradores de favelas de que os governos nunca os protegerão” (Feltran et al, 2022Gabriel Feltran et al. (eds.). Stolen Cars: A Journey Through São Paulo’s Urban Conflict. Londres, John Wiley & Sons, 2022 , p. 84). Afinal, a vida dos pobres vale menos do que um automóvel de luxo. Ou seja, até a violência policial contará com “práticas e entendimentos normativos variáveis” (p. 71), dependendo de qual é a mercadoria que se busca (se carro de luxo ou popular), qual é a cor da pele do condutor e em que território se dá essa perseguição.

É nesse ínterim que emerge a legitimidade do crime organizado, que se alimenta da “desigualdade histórica na implementação da violência do Estado” (Feltran et al, 2022Gabriel Feltran et al. (eds.). Stolen Cars: A Journey Through São Paulo’s Urban Conflict. Londres, John Wiley & Sons, 2022 , p. 84). Ao perceber-se como subcidadão numa perseguição em que o policial o alveja para matar na ânsia de recuperar o automóvel e ser simbolicamente congratulado por sua bravura, o ladrão se torna completamente descrente da capacidade do Estado em garantir qualquer tipo de lei universal. Afinal, até a vida tem valor variável a depender do que o policial pode ganhar direta ou indiretamente com a sua eliminação. A violência da polícia seria, portanto, uma condição necessária (e talvez suficiente) para “o surgimento de distintas fontes de autoridade que coexistem com o Estado e são geralmente fiscalizadas por organizações criminosas - em São Paulo nas últimas décadas pelo PCC” (Feltran et al, 2022Gabriel Feltran et al. (eds.). Stolen Cars: A Journey Through São Paulo’s Urban Conflict. Londres, John Wiley & Sons, 2022 , p. 84). É nesse ponto que começam as minhas divergências com a narrativa apresentada em Stolen Cars.

A minha visão sobre o Estado Latino-Americano está longe de ser a apresentada por Charles Tilly, posto que fomos uma colônia de impérios europeus. A formação do nosso Estado não se deu por meio de conflitos abertos, mas por dinâmicas mais escusas, orientadas para a satisfação do interesse das metrópoles. Como sublinham Carrington, Hogg e Sozzo (2016)Carrington, Kerry; Hogg, Russell; Sozzo, Máximo. (2016), “Southern criminology”. The British Journal of Criminology, 56(1): 1-20., a sociedade latino-americana em geral, e o Brasil em especial, carrega marcas pesadas desse sistema colonial, que envolveu a escravidão, a servidão, a expropriação indígena e a satisfação do norte por mercadorias lícitas e ilícitas. É imprescindível lembrar como as colônias foram tematizadas como lugar de desordem, demandando o transporte de institutos jurídicos e legais que emolduravam a ação de burocracias trazidas do império, voltadas para a contenção e exploração máxima dos nativos/escravos, e controle social dos “criminosos” que vinham cumprir suas penas na “selvageria” colonial. Nesse processo, os órgãos imperiais vão forjar a criação de uma elite local que estará cada vez mais interessada em riqueza, exploração e controle social para seus objetivos (e não para os coloniais propriamente ditos). Manter a ordem se torna uma frase de sentido variável a depender de quem a enuncia: pode ser tanto eliminar os que questionam privilégios até mesmo garantir que os negócios escusos crescem numa relação comensal com o estado precário que se começa a formar. Por isso, temos que o conluio da polícia com as dinâmicas criminais é a regra desde o período colonial, razão pela qual as teorias sobre crime organizado na América Latina precisam partir desse ponto e não de uma leitura europeia sobre o processo de construção do Estado (Pereda, 2022 Pereda, Valentin. (2022), “Why Global North criminology fails to explain organized crime in Mexico”. Theoretical Criminology, 26(4): 620-640.).

Talvez, o que tenha mudado é que agora o Norte está já incluído no Sul, por meio das elites herdeiras dos imigrantes, que vieram para constituir os Estados Coloniais. São eles os responsáveis por regular os mercados de seguro e leilões, por forjar regimes normativos que podem deixá-los à margem do sistema de justiça criminal. Afinal, essas instituições servem para administrar os filhos dos escravos que residem nas áreas periféricas, os casos de “selvageria” e as mercadorias ilícitas que não geram muita riqueza. Por isso, a incorporação de uma literatura mais decolonial sobre os processos de construção do Estado, como a desenvolvida por Aníbal Quijano Quijano, Aníbal. (2009), “Des/colonialidad del poder: el horizonte alternativo”. Estudios Latinoamericanos, 25: 27-30., talvez ajude os autores a repensar o desenvolvimento dos regimes normativos. Concordo que eles são resultado da interação entre Estado, Crime Organizado e Religião, mas estão longe de ser uma novidade de tempos modernos em áreas de periferia, devendo ser percebidos como uma constante desde os tempos de colonização. Parece-me que a mudança operada tanto nas áreas mais nobres como nas mais periféricas é a fluidez das regulações acerca de quem, quando e como podem perder a vida, o que introduz mais imprevisibilidade, uma novidade talvez inexistente no passado colonial.

A minha segunda discordância com Stolen Cars diz respeito ao lugar das mulheres. Na introdução, Gabriel Feltran e colaboradores destacam que uma característica fundamental da rede por eles descrita é o papel do gênero, já que “os mercados de automóveis no Brasil e na América Latina são majoritariamente masculinos, sexistas e heteronormativos” (p. 41). Não há como negligenciar o papel do patriarcado na criação de estruturas de controle social que colocam as mulheres em mais espaços domésticos do que públicos, forjando uma estrutura de relações sociais hierárquicas difícil de ser suplantada (Chesney-Lind, 2006Chesney-Lind, Meda. (2006), “Patriarchy, crime, and justice: Feminist criminology in an era of backlash”. Feminist criminology, 1(1): 6-26.). Se concordo com o argumento dos autores, discordo da impossibilidade de uma análise dos papéis do gênero que, na visão de Lúcia Lamounier Sena, vão ajudar a fomentar uma funcionalidade moral que, inclusive, irá determinar a função que o sujeito poderá operar num mercado ilícito.

Penglase (2010) Penglase, Ben. (2010), “The owner of the hill: Masculinity and drug‐trafficking in Rio de Janeiro, Brazil”. The Journal of Latin American and Caribbean Anthropology, 15(2): 317-337. ao analisar as relações que se impõe no comércio de drogas no Rio de Janeiro sublinha que “não só é importante identificar o componente generificado da autoridade do narcotraficante, mas também devem ser analisados os processos que tornaram eficaz esse uso performativo do gênero” (p. 318). Podemos juntar essa noção com a funcionalidade moral de Sena (2017) Sena, Lúcia Lamounier. (2017), “Funcionalidade moral: gênero e diferença no tráfico ilegal de drogas”. Contemporânea-Revista de Sociologia da Ufscar, 7(2): 393-393. para dizer que os operadores visíveis do mercado de carros roubados são sem dúvida homens que precisam performar um certo tipo de masculinidade. Carro é historicamente um produto associado à masculinidade, que tanto a reforça como em algumas situações a enuncia. Os homens usam do veículo para se mostrar como “machos”, ou seja, homens que sabem impor a sua vontade ao transacionar no mercado de bens, o que pode envolver roubar um carro, negociar o pagamento de uma apólice, comprar uma mercadoria em leilão, negociar com a polícia uma incursão e, até mesmo, desmanchar um carro. Caso esses homens não sejam adequadamente remunerados, eles deverão acionar um dos elementos mais primários (ou precários) da masculinidade, qual seja, a força para acionar ou executar diretamente um castigo àquele que desrespeitou o acordo.

É possível argumentar que Stolen Cars nos apresenta uma trama complexa de como distintas masculinidades se intercambiam e possuem gradações variadas a depender do porte físico, da classe social e da cor da pele de quem a representa. É, portanto, uma análise que complementa a problematização de Sena (2017) Sena, Lúcia Lamounier. (2017), “Funcionalidade moral: gênero e diferença no tráfico ilegal de drogas”. Contemporânea-Revista de Sociologia da Ufscar, 7(2): 393-393. sobre como “a diferença na atuação de um agente é dada pela sua funcionalidade moral, em que o gênero é constituído como identificador social estratégico para a operacionalidade de uma rede” (p. 394). Nesse ponto, ao contrário dos homens, que trazem a expectativa de força (e, portanto, de morte caso o comércio não seja lucrativo como eles esperam), as mulheres trazem expectativas de confiança na sua essência feminina, qual seja, a de “cuidado com o outro, apreço pela vida, aversão natural à violência; por ser a geradora da vida, o instinto materno, ser companheira” (p. 407). Todos esses papéis são longamente representados ao longo do livro de Feltran et al, 2022Gabriel Feltran et al. (eds.). Stolen Cars: A Journey Through São Paulo’s Urban Conflict. Londres, John Wiley & Sons, 2022 , quando os autores descrevem as oficinas mecânicas como negócios de família de pessoas que residem em áreas de periferia, no qual as mulheres ajudam com as tarefas burocráticas. São também as mulheres que administram as obras sociais das igrejas, ou os cuidados das mães na proteção de seus filhos negros.

Todavia, para Sena (2017) Sena, Lúcia Lamounier. (2017), “Funcionalidade moral: gênero e diferença no tráfico ilegal de drogas”. Contemporânea-Revista de Sociologia da Ufscar, 7(2): 393-393., o papel das mulheres nesses regimes normativos não se restringe aos lados da Igreja e do Estado, transbordando para as dinâmicas criminais. É o pressuposto de que as mulheres “naturalmente” não estão relacionadas ao crime que sedimenta os “lugares femininos no crime”. Por isso, a questão que fica em aberto após a leitura de Stolen Cars é sobre o lugar da mulher nas redes de carro roubado, nos mercados de desmanche e revenda de peças, nas ações das seguradoras para pagamento da apólice ou para recuperação dos veículos e, até mesmo, nos leilões que lavam as ilegalidades por detrás daqueles restos roubados. Se elas não estão na linha de frente, porque essa função demanda performances de masculinidade que dependem do sexo (ou do ser macho), é bem provável que elas sejam as responsáveis pela burocracia, pela contabilidade e, sobretudo, pelas relações com os órgãos públicos que se dão na base de documentos que precisam ser entregues em pessoa. Afinal, é essa funcionalidade do sexo que se representa no gênero feminino que irá despertar a confiança de que não se trata de nada ilegal. Espero que numa próxima versão do livro, haja vista a sua enorme repercussão poucos meses após seu lançamento, essa lacuna possa ser preenchida. Afinal, como diria o meu taxista, as mulheres estão sempre lá nos leilões e, por isso, precisam vir com mais destaque para o livro que tenho o prazer de resenhar.

Referências Bibliográficas

  • Beraldo, Ana. (2022), “The Social Dynamics of Violence and Respect: State, Crime and Church in a Brazilian Favela”. Journal of Latin American Studies, p. 1-23.
  • Bergman, Marcelo. (2018), More money, more crime: Prosperity and rising crime in Latin America Oxford University Press.
  • Carrington, Kerry; Hogg, Russell; Sozzo, Máximo. (2016), “Southern criminology”. The British Journal of Criminology, 56(1): 1-20.
  • Chesney-Lind, Meda. (2006), “Patriarchy, crime, and justice: Feminist criminology in an era of backlash”. Feminist criminology, 1(1): 6-26.
  • Feltran, Gabriel. (2018), Irmãos: uma história do PCC São Paulo, Editora Companhia das Letras.
  • Gabriel Feltran et al (eds.). Stolen Cars: A Journey Through São Paulo’s Urban Conflict Londres, John Wiley & Sons, 2022
  • Godói, Rafael. (2015), “Vasos comunicantes, fluxos penitenciários: entre dentro e fora das prisões de São Paulo”. Vivência: Revista de Antropologia, 1(46).
  • Penglase, Ben. (2010), “The owner of the hill: Masculinity and drug‐trafficking in Rio de Janeiro, Brazil”. The Journal of Latin American and Caribbean Anthropology, 15(2): 317-337.
  • Pereda, Valentin. (2022), “Why Global North criminology fails to explain organized crime in Mexico”. Theoretical Criminology, 26(4): 620-640.
  • Quijano, Aníbal. (2009), “Des/colonialidad del poder: el horizonte alternativo”. Estudios Latinoamericanos, 25: 27-30.
  • Ryngelblum, Marcelo; Peres, Maria Fernanda Tourinho. (2021), “Social segregation and lethal police violence in the city of São Paulo, Brazil (2014-2015)”. Ciência & Saúde Coletiva, 26: 4275-4286.
  • Sena, Lúcia Lamounier. (2017), “Funcionalidade moral: gênero e diferença no tráfico ilegal de drogas”. Contemporânea-Revista de Sociologia da Ufscar, 7(2): 393-393.
  • Vásquez, Manuel A. (2016), “Religion, globalization, and migration”. In: Woodhead, L. et al (Eds.). Religions in the Modern World Routledge, p. 447-468.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    19 Jun 2023
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2023

Histórico

  • Recebido
    31 Out 2022
  • Aceito
    23 Nov 2022
Departamento de Sociologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo Av. Prof. Luciano Gualberto, 315, 05508-010, São Paulo - SP, Brasil - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: temposoc@edu.usp.br