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Crianças hospitalizadas com necessidades de saúde especiais complexas: estudo de casos múltiplos

Infantes hospitalizados con necesidades de salud especiales complejas: estudio de casos múltiples

Resumo

Objetivo

Descrever os casos clinicamente complexos de crianças com necessidades de saúde especiais em hospitalização contínua e analisar a natureza das demandas de cuidados clinicamente complexos durante a hospitalização.

Métodos

Estudo de casos múltiplos de três crianças clinicamente complexas hospitalizadas. A coleta de dados ocorreu, entre janeiro e março de 2020, em prontuário, na observação de cuidados e interação espontânea registrada em diário de campo e entrevista. Participaram sete pessoas, sendo dois familiares, três técnicos de enfermagem e duas enfermeiras. Aplicou-se a análise temática, orientando-se pela tipologia de demandas de cuidados de crianças com necessidades de saúde especiais e classificação de Collière.

Resultados

Os casos de meninas e menino, com três, dez e 11 anos de idade, e tempo de internação de 4 meses a 6 anos, geraram linhas de convergências com as demandas de cuidados de crianças com necessidades de saúde especiais, proporcionando sobrevivência, bem-estar e conforto. Desses casos extraíram-se demandas contínuas e complexas de cuidados de estimulação, apaziguamento, confortação e parecer convergentes com o de desenvolvimento e habituais modificados (banho, arrumar-se, alimentação e mobilidade); os cuidados de compensação, no manejo de tecnologias corporais e a administração de medicamentos de uso contínuo, convergiram para demandas de cuidados tecnológicos e medicamentosos

Conclusão

A necessidade de sobrevivência, determinada pela natureza clinicamente complexa da criança, direciona a prioridade dos cuidados no uso contínuo de múltiplos medicamentos e manejo de tecnologias, na segurança do ambiente hospitalar. Embora essenciais, precisa-se contemplar as outras demandas de cuidados de desenvolvimento e social integrando-as às clinicamente complexas.

Criança hospitalizada; Múltiplas afecções crônicas; Cuidado da criança; Assistência integral à saúde

Resumen

Objetivo

Describir los casos clínicamente complejos de infantes con necesidades de salud especiales en hospitalización continua y analizar la naturaleza de las demandas de cuidados clínicamente complejos durante la hospitalización.

Métodos

Estudio de casos múltiples de tres infantes hospitalizados clínicamente complejos. La recopilación de datos se realizó de enero a marzo de 2020, en la historia clínica, en la observación de cuidados e interacción espontánea registrada en un diario de campo y en entrevista. Participaron siete personas, de las cuales dos eran familiares, tres técnicos de enfermería y dos enfermeras. Se aplicó el análisis temático, orientándose por la tipología de demandas de cuidados de infantes con necesidades de salud especiales y clasificación de Collière.

Resultados

Los casos de las niñas y el niño, de 3, 10 y 11 años, entre 4 meses y 6 años de tiempo de internación, generaron líneas convergentes con las demandas de cuidados de infantes con necesidades de salud especiales, donde se proporciona supervivencia, bienestar y consuelo. De estos casos se observaron demandas continuas y complejas de cuidados de estimulación, apaciguamiento, consuelo y opinión convergentes con los del desarrollo y los habituales modificados (baño, arreglarse, alimentación y movilidad); los cuidados de compensación, con el manejo de tecnologías corporales y la administración de medicamentos de uso continuo, convergieron en las demandas de cuidados tecnológicos y medicamentosos.

Conclusión

La necesidad de supervivencia, determinada por la naturaleza clínicamente compleja del infante, direcciona la prioridad de los cuidados en el uso continuo de múltiples medicamentos y en el manejo de tecnologías para la seguridad del ambiente hospitalario. Aunque sean esenciales, es necesario contemplar otras demandas de cuidados de desarrollo y sociales e integrarlas a las clínicamente complejas.

Niño hospitalizado; Afecciones crónicas múltiples; Cuidado del niño; Atención integral de salud

Abstract

Objective

To describe the medically complex cases of children with special healthcare needs in continuous hospitalization and to analyze the nature of medically complex care demands during hospitalization.

Methods

This is a multiple case study of three hospitalized medically complex children. Data collection occurred between January and March 2020 in the medical records in the observation of care and spontaneous interaction documented in a fieldwork note and interview. Seven people participated, two family members, three nursing technicians, and two nurses. Thematic analysis was applied, guided by the typologies of Collière’s care and the demands of children with special healthcare needs.

Results

The cases included girls and a boy aged three, ten, and 11 years, and hospitalization time from 4 months to 6 years. They all generated lines of convergence with the care demands of children with special healthcare needs, providing survival, well-being, and comfort. These cases extracted continuous and complex care demands of stimulation, pacification, and comfort; and seemed convergent with developmental and modified daily life activities (bath, grooming, feed, and mobility) care. Compensating care in managing bodily technologies and administering continuous-use medication converged with demands for technological and medication care.

Conclusion

The need for survival, determined by children’s medically complex nature, directs the priority of care to the continuous use of multiple medications, the management of technologies, and the safety of hospital environments. Although essential, it is necessary to consider the other developmental and social care demands, integrating them with the medically complex ones.

Child, hospitalized; Multiple chronic conditions; Child care; Comprehensive health care

Introdução

Definem-se crianças clinicamente complexas (CCC) como um subgrupo de Children with Special Health Care Needs (CSHCN ) que levam as famílias a buscarem mais os serviços de saúde ou que apresentam diagnóstico de fragilidade clínica, limitação funcional severa e/ou associada ao uso contínuo de tecnologia e faz uso de serviços de saúde e cuidados especializados.( 11. Cohen E, Kuo DZ, Agrawal R, Berry JG, Bhagat SK, Simon TD, et al. Children with medical complexity: an emerging population for clinical and research initiatives. Pediatrics. 2011;127(3):529-38. Review. )

A expressão CSHCN foi introduzida pelo Maternal and Child Health Bureau dos Estados Unidos da América, em 1998, para designar uma população emergente de crianças com necessidades de saúde especiais devido ao comprometimento físico crônico, emocional, de desenvolvimento, comportamental, percebidos ou com diagnósticos definidos e dependência contínua de serviços de saúde, em quantidade superior às crianças em geral.( 22. McPherson MG, Arango P, Fox H, Lauver C, McManus M, Newachek PW, et al. A new definition of children with special health care needs. Pediatrics. 1998;102(1):137-41. ) No Brasil, CSHCN foi traduzido como Crianças com Necessidades de Saúde Especiais (CRIANES), tendo sua definição adaptada ao contexto local como aquelas que têm ou estão em maior risco para desenvolver uma condição física, de desenvolvimento, de comportamento, emocional ou crônica, e que, no geral, exige um tipo e quantidade dos serviços de saúde para além das requeridas por outras crianças.( 33. Cabral IE, Jesus SJ, Oliveira DZ, Rezende JM, Conceição ER. A criança egressa da terapia intensiva na luta pela sobrevida. Rev Bras Enfem. 2004;57(1):35-9. )

A natureza do cuidado clinicamente complexo centra-se na transição do perfil epidemiológico de crianças que, em razão dos avanços tecnológicos, melhor acesso a serviços de saúde e condições de vida, sobreviveram a condições complexas. Nas últimas décadas, por um lado, registrou-se menor mortalidade infantil, por outro, aumentou o número de crianças com doenças crônicas e/ou incapacitantes.( 44. Brenner M, Kidston C, Hilliard C, Coyne I, Eustace-Cook J, Doyle C, et al. Children’s complex care needs: a systematic concept analysis of multidisciplinary language. Eur J Pediatrics. 2018;177:1641–52. Review. ) Embora, muitas dessas crianças possam melhorar, no curso do tempo, ao receberem um cuidado ideal, as sequelas são potencialmente duradouras, levando a necessidade de internações prolongadas e dependência total de diferentes demandas de cuidados específicos, complexos e especializados.( 44. Brenner M, Kidston C, Hilliard C, Coyne I, Eustace-Cook J, Doyle C, et al. Children’s complex care needs: a systematic concept analysis of multidisciplinary language. Eur J Pediatrics. 2018;177:1641–52. Review. , 55. López MP, Fernández AL, Fiquepron K, Meregalli K, Ratto C, Serrate SM. Prevalence of children with complex chronic conditions in PICUs of Argentina: a prospective multicenter study. Pediatric Critical Care Medicine. 2020;21(3):e141-53. )Somado a isso, aquelas crianças que passam parte da sua infância, vivendo por longos períodos em hospitais, sofrem impacto direto sobre sua qualidade de vida, com prejuízos à convivência sócio familiar. Muitas vezes, os familiares não tem condições de acompanhar continuamente sua criança hospitalizada, seja por questões financeiras ou dificuldade de realizar os cuidados clinicamente complexos.( 66. Novais MC, Victor DS, Rodrigues DS, Freitas BO, Barreto NM, Mendes DJ, et al. Saquetto Factors associated with de-hospitalization of children and adolescents with complex chronic condition. Rev Paul Pediatr. 2021;39:e2020118. )

Dentre as principais causas de hospitalização prolongada de criança clinicamente complexa, destacam-se as respiratórias, neoplasias e as neurológicas. No Brasil, no ano de 2013, estimava-se que a cada 331 crianças por 100 mil habitantes que se hospitalizaram, 240 mil (13,5%) exigiram cuidados de alta complexidade.( 66. Novais MC, Victor DS, Rodrigues DS, Freitas BO, Barreto NM, Mendes DJ, et al. Saquetto Factors associated with de-hospitalization of children and adolescents with complex chronic condition. Rev Paul Pediatr. 2021;39:e2020118. ) A baixa representatividade epidemiológica pode comprometer a definição de estratégias e ações a serem promovidas por profissionais e pouca visibilidade na formulação de políticas públicas destinadas a esse subgrupo da população infantil. Especialmente, em razão da natureza especializada, prolongada e ininterrupta dos cuidados contínuos dessas CRIANES, há para o sistema de saúde, um alto custo com as terapias farmacológicas, de oxigênio, alimentação especial e com equipe de saúde, tanto no Brasil como em outros países; mesmo aquelas que estão em homecare .( 77. Pinto M, Gomes R, Tanabe RF, Costa AA, Moreira MC. Análise de custo da assistência de crianças e adolescentes com condições crônicas complexas. Cien Saude Colet. 2019; 24(11):4043-52. , 88. Cohen E, Berry JG, Sanders L, Schor EL, Wise PH. Status complexus? The emergence of pediatric complex care. Pediatrics. 2018;141(3):e20171284. Review. )Análise de custos de 146 crianças com condições crônicas complexas em uso contínuo de dispositivos tecnológicos (drenos, gastrostomias e cateteres) foi associado à maior número de reinternações e alto custo da atenção hospitalar.( 77. Pinto M, Gomes R, Tanabe RF, Costa AA, Moreira MC. Análise de custo da assistência de crianças e adolescentes com condições crônicas complexas. Cien Saude Colet. 2019; 24(11):4043-52. )

A dependência como impossibilidade de satisfazer uma ou várias necessidades de sobrevivência vem sendo descritas em suas dimensões quantitativas e qualitativas, especialmente aquelas que analisam o impacto sobre a família. Na primeira, evidencia-se a magnitude do problema e sua relevância para a formulação de políticas direcionadas à internação/cuidado domiciliar, diante de famílias economicamente mais vulneráveis.( 88. Cohen E, Berry JG, Sanders L, Schor EL, Wise PH. Status complexus? The emergence of pediatric complex care. Pediatrics. 2018;141(3):e20171284. Review. , 99. Bazemore A, Petterson S, Peterson LE, Bruno R, Chung Y, Phillips RL Jr. Higher primary care physician continuity is associated with lower costs and hospitalizations. Ann Fam Med. 2018;16(6):492-7. ) Nas qualitativas, determina-se a complexidade dos cuidados contínuos para a equipe de enfermagem, família e transição hospital-casa-comunidade.( 1010. de Carvalho AJ, Ferreira HM, Borges EF, Borges Junior LH, de Paula AL, Hattori WT, et al. Analyses of the effectiveness of a Brazilian pediatric home care service: a preliminary study. BMC Health Serv Res. 2019;19(1):324. , 1111. Ferro F, Tozzi AE, Erba I, Dall’Oglio I, Campana A, Cecchetti C, et al. Impact of telemedicine on health outcomes in children with medical complexity: an integrative review. Eur J Pediatr. 2021;180(8):2389-400. Review. ) Contudo, a especificidade da natureza contínua desse cuidado que é complexo, não foi sistematizado para compreender as demandas específicas desse subgrupo populacional de CRIANES.

Em face do exposto, tem-se como objetivos descrever os casos clinicamente complexos de crianças com necessidades de saúde especiais em hospitalização contínua e analisar a natureza das demandas de cuidados clinicamente complexos durante a hospitalização.

Métodos

Estudo qualitativo, descritivo-analítico, desenvolvido com o método de estudo de casos múltiplos, considerando-se como recorte da realidade, o indivíduo com um conjunto de características específicas a ser pesquisado.( 1212. Yin RK. Estudo de caso: planejamento e métodos. 5a ed. Porto Alegre: Bookman; 2015. ) O método utiliza múltiplas fontes de informações científicas e é amplamente utilizado nas pesquisas em enfermagem pela aplicabilidade em diferentes orientações epistêmicas. Permite investigar num contexto real de cuidado de enfermagem, levando a reflexão sobre solução de problemas com avanço do conhecimento.( 1313. Silva LA, Mercês NN. Multiple case study applied in nursing research: a case report. Rev Bras Enferm. 2018;71(3):1194-97. )

Os casos foram intencionalmente selecionados segundo critérios de elegibilidade: ser CRIANES na faixa etária de três a 12 anos de idade, com demandas de cuidados clinicamente complexos e dependência total, tempo ininterrupto de hospitalização superior a três meses. Quanto aos profissionais de enfermagem, incluíram-se enfermeiros e técnicos de enfermagem que atuavam no cuidado direto às CRIANES e com tempo de atuação no setor de no mínimo um ano, presentes no cenário da pesquisa no dia da observação de campo. Em relação aos familiares, incluíram-se aqueles que estavam acompanhando e prestando cuidados direto às CRIANES durante o evento observado no dia da coleta.

Destaca-se que, entre os familiares presentes no dia autorizado pela instituição cenário da pesquisa, para conduzir a observação, apenas um familiar não permitiu que a sua criança fosse observada. Todos os profissionais de enfermagem envolvidos na observação concordaram em participar do estudo. Desse modo, as observações dos eventos de cuidado e interação ocorreram nos meses de janeiro a primeira semana de março de 2020 (em média oito semanas), de uma a três vezes por semana durante uma a três horas por turno de observação, totalizando 35 horas de registro em diário de campo.

Nesse mesmo período, procedeu-se o levantamento de informações no prontuário e a entrevista semiestruturada com profissionais de enfermagem e familiar, totalizando três horas de gravação. Tais técnicas foram utilizadas para aprofundar os dados relativos a história das CRIANES-CCC, bem como, elucidar o significado dos eventos observados.

Antes de o trabalho de campo da pesquisa iniciar-se, a primeira autora ambientou-se na enfermaria por uma semana, convivendo com a equipe de enfermagem e familiares, o que facilitou seu acolhimento e receptividade no ambiente da observação. O cenário foi a enfermaria clínica de um hospital pediátrico, mantido pelo Ministério da Saúde e da Educação, que interna crianças com idade de 30 dias a 14 anos, que é referência para os cuidados de CRIANES-CCC, na rede de atenção à saúde de média e alta complexidade do Sistema Único de Saúde do Rio de Janeiro. Estudo realizado com 21 CRIANES internadas nesta instituição, revelam que 23,8% apresentaram problemas neurológicos, possuíam dispositivos tecnológicos (traqueostomia e gastrostomia) e dependiam de cuidados clinicamente complexos.( 1414. Carvalho CC, Pimentel TG, Cabral IE. Child with special health needs at one hospital of the brazilian unified health system. Rev Fun Care Online. 2021;13(1):1296-302. )Desse modo, os dados justificam a existência da unidade de análise dos casos múltiplos, indicam a validade de constructo e a confiabilidade necessárias a implementação desse tipo de estudo de caso como metodologia de investigação qualitativa,1212. Yin RK. Estudo de caso: planejamento e métodos. 5a ed. Porto Alegre: Bookman; 2015. a despeito da baixa representatividade epidemiológica na população geral.

O relatório das fontes de dados primários (prontuário, observação e entrevista) foi submetido a análise temática,( 1515. Nowell LS, Norris JM, White DE, Moules NJ. Thematic analysis: striving to meet the trustworthiness criteria. Int J Qual Meth. 2017;16:1-13. ) iniciando-se com a leitura sucessiva das informações para familiarizar-se com os elementos comuns e singulares de cada caso. Em seguida, atribuíram-se códigos (palavras e expressões-chave) com auxílio do WebQDA®,( 1616. Costa AP, Moreira A, Souza FN, “webQDA - Qualitative Data Analysis”. MicroIO and University of Aveiro: Aveiro; 2019. ) um software de análise de dados qualitativos. Os códigos foram agrupados e reagrupados em movimentos sucessivos de leitura e releitura para constituir os temas interpretados segundo a natureza dos cuidados contínuos associada a tipologia de demandas de cuidados de CRIANES( 1717. Góes FG, Cabral IE. Discourses on discharge care for children with special healthcare needs. Rev Bras Enferm. 2017;70(1):163-71. ) e da classificação de cuidados de Collière.( 1818. Colliére MF. Cuidar: a primeira arte da vida. 2a ed. Loures: Lusociência; 2003. )

Na primeira unidade temática, as CRIANES são classificadas em seis grupos de demandas de cuidados - desenvolvimento, habituais modificados, tecnológico, uso contínuo de medicamentos, mistos, clinicamente complexos e sociais. Entre as demandas de cuidados de desenvolvimento, estão as atividades que envolvem a reabilitação contínua e a interação social. As demandas de cuidados tecnológicos requerem o manejo seguro de dispositivos tecnológicos tais como: gastrostomia, traqueostomia, cateteres implantáveis. Os cuidados medicamentosos implicam no manejo seguro, ao usá-lo de forma contínua para garantir a sobrevivência da CRIANES. As demandas de cuidados habituais modificados consistem em vestir a criança, arrumá-la, alimentá-la e higienizá-la usando recursos adaptativos que assegurem a integridade física, o bem-estar e o conforto. Nas demandas de cuidados mistos há combinação de uma ou mais demandas de cuidado, excluindo-se àqueles relacionados ao manejo de tecnologias implantadas no corpo. As de cuidados clinicamente complexos consistem numa combinação de todas as anteriores somadas à dependência total de tecnologia para sustentação da vida.( 1818. Colliére MF. Cuidar: a primeira arte da vida. 2a ed. Loures: Lusociência; 2003. ) Nas demandas de cuidados sociais, as intervenções (sociais, educacionais, financeiras) dirigem-se às vulnerabilidades sociais que podem determinar maior fragilidade clínica da criança.( 1919. Precce ML, Moraes JR. Educative process with relatives of children with special health needs in the hospital-home transition. Texto Contexto Enferm. 2020;29:e20190075. , 2020. Brasil. Companhia Nacional de Abastecimento (CNA). Tabelas e taxas de diárias hospitalares. Brasília (DF): CNA; 2018 [citado 2023 Fev 5]. Disponível em: https://www.conab.gov.br/institucional/conab-corporativa/assistencia-a-saude/tabelas-referenciais/item/9356-ro-tabela-de-taxas-diarias-servicos-hospitalares-e-gases
https://www.conab.gov.br/institucional/c...
)

Na tipologia de cuidados de Collière são apresentados sete tipos de cuidados - reparação, manutenção, estimulação, compensação, parecer, apaziguamento e confortação. Os de reparação são realizados para limitar a doença incidindo sobre suas causas. Os de manutenção se relacionam ao cotidiano, as necessidades psicológicas, afetivas e sociais, que contribuem para o desenvolvimento pessoal. Os de estimulação despertam os sentidos, desenvolvem a capacidade motora, criam expectativas, desejos e reações afetivas. Os cuidados de compensação substituem o que não foram adquiridos e/ou compensados quando não é capaz de fazer por si só. Os cuidados do parecer são implementados para despertar e fortalecer o senso de identidade. Os cuidados de apaziguamento promovem o repouso e a libertação de tensões, apaziguando a turbulência e o desassossego. Os cuidados de confortação favorecem a aquisição de confiança, identificando o que precisa ser confortado.( 1818. Colliére MF. Cuidar: a primeira arte da vida. 2a ed. Loures: Lusociência; 2003. )

O estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa sob parecer nº 3.790.972 (Certificado de Apresentação de Apreciação Ética: 20670219.7.3001.5264), atendendo às recomendações contidas na Resolução nº 466 de 2012 do Conselho Nacional de Saúde. Todos os participantes assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido e para preservar o anonimato utilizou-se a codificação alfanumérica, sendo C (1, 2,3) para criança, F (1, 2,3) para familiar, TE (1, 2...) para técnico de enfermagem e E (1,2) para enfermeira.

Resultados

Os casos envolvem duas meninas e um menino, com idade de três, dez e 11 anos, com tempo de internação de 4 meses a 6 anos, pertencentes a famílias de baixa renda vivendo em contexto de pobreza, residentes na área do grande Rio (cidade do Rio de Janeiro). Uma criança estava em idade para frequentar a educação infantil, outra deixou a escola quando adoeceu; a terceira criança não está inserida no sistema formal de ensino. Duas crianças integram o Programas de Transferência de Renda e outra não. Mantém vínculo com acompanhamento diário da mãe (F3, Caso C3), uma recebe visita da avó paterna nos finais de semana (F2, Caso C2) e a outra raramente tem acompanhamento familiar (F1, Caso 1). A observação dos eventos de cuidados e os momentos de interação espontânea envolveram duas técnicas de enfermagem (TE3 e TE5) com a criança aqui denominada de C1; uma técnica de enfermagem (TE2) com C2; uma familiar (F3, mãe) de C3; uma familiar (F2, avó) de C2; e a entrevista com uma enfermeira (E2). Tantos os profissionais de enfermagem como os familiares, eram mulheres com quem as crianças mantinham vínculo profissional e afetivo na prestação de cuidados contínuos e prolongados em razão do longo tempo de convivência na hospitalização, superior a um ano. Os casos permitiram a criação de linhas de convergência e singularidades ao apreender a natureza das demandas de cuidados clinicamente complexas, apresentadas em necessidades de saúde especiais e demandas clinicamente complexas, comuns aos três casos, e singular de cada caso.

Necessidades de saúde especiais e demandas clinicamente complexas comuns aos três casos

As crianças com idades pré-escolar e escolar possuíam diagnóstico de encefalopatia crônica, limitação motora, sensorial, cognitiva e física crônica, respiração por traqueostomia (TQT); uma estava em ventilação mecânica e as outras em ar ambiente. A alimentação para atender à necessidade nutricional de duas crianças é feita por gavagem na gastrostomia (GTT) e uma pela sonda nasoentérica (SNE), porém com cirurgia agendada para inserção do botton ( Quadro 1 ).

Quadro 1
Síntese dos casos que demonstram a complexidade clínica da criança com dependência de cuidados contínuos e prolongados durante a hospitalização

A fragilidade clínica também estava demarcada pelo uso contínuo de mais de uma classe de medicamentos devido ao quadro de encefalopatia crônica e vulnerabilidade social por não terem o familiar em acompanhamento contínuo (Caso C1 e C2) ou não receber o benefício (Caso C3), são dependentes do Sistema Único de Saúde para manter a sobrevivência com os recursos de sustentação no hospital, sendo este de alto custo conforme ilustrado no valor previsto para internação em enfermaria clínica e cobertos pelo setor público de saúde ( Quadro 2 ).

Quadro 2
Custo da internação, em enfermaria clínica, e tipos de medicamentos de uso contínuo para CRIANES-CCC hospitalizadas

Necessidades de saúde especiais e demandas clinicamente complexas singular de cada caso

A trajetória da necessidade de saúde especial é única para cada um dos casos. No Caso C1, foi constatada a partir do diagnóstico do Zika Vírus e encefalopatia crônica. No curso do tempo, houve várias tentativas para manter a criança em homecare , porém, devido a família (mãe) viver em condições precárias de moradia, a criança teve piora da sua condição de saúde e várias reinternações. No Caso 2 se deu a partir do diagnóstico da Síndrome de Leigh e complexifica com a pneumonia diagnosticada aos dois anos de idade que evoluiu para uma encefalopatia crônica. Não houve tentativas de homecare em decorrência das condições de moradia e dos cuidadores da criança que trabalhavam em tempo integral. No último caso, resultou de complicações da apendicectomia que levou à parada cardiorrespiratória com várias tentativas de reanimação sem sucesso e o quadro de encefalopatia crônica. Não houve tentativa de homecare pois a criança está aguardando cirurgia para colocação de botton de GTT. Considerou-se a tipologia de demandas de cuidados de CRIANES associados àquelas descritas por Collière, indicando a complexidade das ações que envolvem as necessidades de cada um dos casos ( Quadro 3 ).

Quadro 3
Especificidade dos cuidados complexos segundo a tipologia das demandas de cuidados de CRIANES e a classificação de Collière

A partir do exposto, a dependência de cuidados contínuos e complexos dessas crianças, leva à necessidade de dedicação e uma intensa agenda diária de cuidados prestados pelos familiares, profissionais de enfermagem e demais membros da equipe de saúde.

Discussão

Na descrição dos três casos complexos de CRIANES em hospitalização contínua, observa-se demanda de cuidados sociais que estão intrinsecamente associadas às vulnerabilidades da família para recebê-las em casa. Mesmo aquelas que estão incluídas no Programa de Transferência de Renda, os recursos recebidos pela criança são insuficientes para garantir o custeio mensal hospitalar variável entre R$13mil e R$19mil reais, relativo à internação. Esses valores incluem o custo da alimentação especial, ventilação e medicamentos de uso contínuo, que se sabe serem insuficientes para a cobertura de todas as despesas necessitadas pela criança.

Estudo realizado nos Estados Unidos da América demonstrou que crianças clinicamente complexas, com média de internação de 7,2 dias, apresentam gastos com hospitalização em torno de U$3.928 dólares com os cuidados contínuos e prolongados. As crianças com doenças neurológicas ou neuromusculares representaram 40,5% daquelas com maior número de dias de internação.( 2323. Ruth AR, Boss RD, Donohue PK, Shapiro MC, Raisanen JC, Henderson CM. Living in the hospital: the vulnerability of children with chronic critical illness. J Clin Ethics. 2020;31(4):340-52 ) Muitas hospitalizações se associam à vulnerabilidade social das famílias de baixa renda, baixo nível de educação e condições de moradia precárias.( 2323. Ruth AR, Boss RD, Donohue PK, Shapiro MC, Raisanen JC, Henderson CM. Living in the hospital: the vulnerability of children with chronic critical illness. J Clin Ethics. 2020;31(4):340-52 )

No Brasil, a comparação do custo de hospitalização entre crianças com e sem condições crônicas evidenciou maior custo no subgrupo das clinicamente complexas. Além disso, esses custos aumentavam entre aquelas que apresentavam mais de uma condição crônica (mais prevalentes as doenças respiratórias e as neuromusculares), com dispositivos tecnológicos (drenos e/ou cateteres e a gastrostomia) e necessidade de longos períodos de internação.( 66. Novais MC, Victor DS, Rodrigues DS, Freitas BO, Barreto NM, Mendes DJ, et al. Saquetto Factors associated with de-hospitalization of children and adolescents with complex chronic condition. Rev Paul Pediatr. 2021;39:e2020118. )

Destaca-se a quantidade e variedade de medicamentos e suplementos de uso contínuo, o que determina demandas de cuidados envolvendo o agendamento de horários para evitar incompatibilidade e toxicidade medicamentosa, manejo adequado do volume e sua compatibilidade com as etapas de crescimento da criança. Esses dados corroboram outros estudos realizados com mães de CRIANES dependentes de cuidados tecnológicos e medicamentos (anticonvulsivantes, relaxantes musculares, antibióticos, vitaminas, corticoides e broncodilatadores), determinando dedicação integral a essas crianças e sobrecarga do cuidado contínuo e complexo. Relatam ainda que, os médicos prescrevem medicamentos que não são padronizados e de alto custo, além de requerimento formal para sua aquisição e a necessidade para o controle do caso.( 2424. Okido AC, Cunha ST, Neves ET, Dupas G, Lima RA. Technology-dependent children and the demand for pharmaceutical care. Rev Bras Enferm. 2016;69(4):718-24. , 2525. Pereira HV. Paralisia cerebral. Residência Pediátrica. 2018;8(Supl 1):49-55. )

Os medicamentos, em especial os anticonvulsivantes, indicados para as crianças com encefalopatia crônica ou paralisia cerebral, visam a compensação dos efeitos da lesão permanente e não progressiva do sistema nervoso central, que comprometem o desenvolvimento global (cognitivo, motor, sensorial e pessoal-social) do indivíduo. Dois dos três casos foram causados pela hipoxemia cerebral e um pela microcefalia associada à Zika congênita.

As crianças apresentam trajetórias de necessidades de saúde especiais distintas, porém, todas determinam elevadas cargas de cuidados habituais modificados. Observa-se dependência total na higienização (banho no leito, troca de fraldas, oral, couro cabeludo e cabelos), no arrumar-se, na manutenção da integridade da pele, da lubrificação e oclusão ocular, mobilidade, posicionamento e transferência. Para garantir a perviedade da TQT, as demandas de cuidados tecnológicos implicam em apropriar-se de conhecimentos do campo da enfermagem fundamental para atender a necessidade de oxigenação sem riscos adicionais à segurança da criança. Na alimentação enteral por SNE e GTT, busca-se garantir o atendimento à necessidade nutricional, mantendo-se o funcionamento adequado dos dispositivos tecnológicos implicando na necessidade de treinamento pela equipe de enfermagem.

Estudo com cuidadores de crianças com TQT, reforçaram a importância de receber orientações adequadas, em especial, nas situações de urgência e também daqueles que fazem uso de ventilação mecânica.( 2626. Mai K, Davis RK, Hamilton S, Robertson-James C, Calaman S, Turchi RM. Identifying caregiver needs for children with a tracheostomy living at home. Clinical Pediatrics. 2020;59(13):1169-81. )Outro estudo com mães de crianças com GTT demonstrou a necessidade de treinamento no manuseio e manutenção do dispositivo comparado àqueles que não receberam orientações. Os resultados evidenciaram as dificuldades com a administração da dieta e medicação pelo tubo, cuidados com o óstio e botton e fixação do tubo.( 2727. Pars H, Soyer T. Home Gastrostomy Feeding Education Program: Effects on the caregiving burden, knowledge, and anxiety level of mothers. JPEN J Parenter Enteral Nutr. 2020;44(6):1029-37. )

Assim, para um conjunto de muitos cuidados contínuos há necessidade do conhecimento técnico-científico pela sua complexidade, com sobrecarga para seus cuidadores. Esse achado é convergente com um estudo cujas mães de crianças com demandas de cuidados mistos experimentaram maior sobrecarga quando comparadas aquelas que apresentavam demandas de cuidados medicamentosos ou habituais modificados, separadamente.( 2828. Rodrigues DZ, Ferreira FY, Okido AC. The burden of family caregiver of children with special health needs. Rev Eletr Enf. 2018;20:20a48. )

Esse conjunto de cuidados corresponde ao que Collière denomina de cuidados de manutenção da vida, de compensação e de reparação.( 1818. Colliére MF. Cuidar: a primeira arte da vida. 2a ed. Loures: Lusociência; 2003. )Eles estão associados à manutenção da perviedade das vias aéreas superiores e inferiores, que garantem a vida; bem como, a integridade cutâneo-periestomal, da fixação e limpeza dos dispositivos tecnológicos (GTT, TQT, SNE e circuito de ventilação mecânica) que visam reparar funções vitais.

Os cuidados de reparação não devem predominar sobre outras tipologias de cuidado e nem paralisar ou limitar a dinâmica da vida, no caso de alguma doença. Assim, cuidar precisa de movimento e diversidade quanto às necessidades de saúde que faça sentido a vida das pessoas, independente da condição de saúde e de hospitalização.( 1818. Colliére MF. Cuidar: a primeira arte da vida. 2a ed. Loures: Lusociência; 2003. )

Nas hospitalizações prolongadas, a instituição substitui a convivência da casa e dos familiares pelos profissionais de saúde. A restrição ao leito, pela limitação da condição crônica ou a conexão ao sistema de ventilação ou dispositivos de monitoramento contínuo, pode limitar o conforto e bem-estar da criança, suas necessidades interativas e de participação social.( 2929. Pordes E, Gordon J, Sanders LM, Cohen E. Models of care delivery for children with medical complexity. Pediatrics. 2018;141(Suppl 3):S212-23. )

A participação social limitada de uma CRIANES pode acarretar um isolamento do contato com outras crianças, uma vez que elas passam a interagir apenas com adultos, em especial, aqueles que cuidam dela. Uma vez que são crianças que residem no hospital, sendo que duas passam a maior parte do tempo desacompanhadas em razão de vínculo familiar interrompido. Esses achados vão ao encontro de estudo que revelou as impossibilidades de interação social que podem ser potencializadas quando a criança afasta-se daquelas atividades de vida diária habituais que são comuns para as crianças em geral, privando-as de relações com os demais membros das famílias.( 3030. Aragão LR, Maia FN, Mitre RM. Os estímulos sensoriais recebidos por crianças com hospitalização prolongada. Cad Bras Terapia Ocupacional. 2018;26(1):45–51. )

Ao permanecer um longo tempo no hospital, criam-se vínculos afetivos dessas crianças com profissionais de saúde. Além disso, há uma autonomia limitada das famílias para conduzir a tomada de decisão que pode implicar em risco à segurança e integridade da criança devido à complexidade das tecnologias que melhoram ou prolongam a vida.( 77. Pinto M, Gomes R, Tanabe RF, Costa AA, Moreira MC. Análise de custo da assistência de crianças e adolescentes com condições crônicas complexas. Cien Saude Colet. 2019; 24(11):4043-52. , 3131. Graaf G, Annis I, Martinez R, Thomas KC. Predictors of unmet family support service needs in families of children with special health care needs. Matern Child Health J. 2021;25(8):1274-84. )

Suas limitações motoras e sensoriais foram determinadas pelo quadro de encefalopatia crônica nos três casos apresentados, exigem demandas de cuidado de desenvolvimento, atividades prazerosas, interacionais que estimulem seus sentidos. Para Collière, as mãos e a voz apaziguam, confortam e dão segurança, podendo ser um cuidado que estimule os sentidos e desejos por meio do toque, do canto, do embalo, por exemplo.( 1818. Colliére MF. Cuidar: a primeira arte da vida. 2a ed. Loures: Lusociência; 2003. )

Neste sentido, os achados deste estudo demonstram a importância de, na mediação dos cuidados às CRIANES, comunicar-se com elas por meio da voz com tom suave e melodioso, do toque carinhoso e chamando por apelidos carinhosos. Tais ações, podem promover o bem-estar, conforto e diminuir a ansiedade durante procedimentos invasivos e dolorosos,( 3232. Gjærde LK, Hybschmann J, Dybdal D, Topperzer MK, Schrøder MA, Gibson JL, et al. Play interventions for paediatric patients in hospital: a scoping review. BMJ Open. 2021;11:e051957. Review

33. Efendi D, Caswini N, Tane R, Kurniasari MD, Hasanul HM, Farid RI. Comparison of mother’s therapeutic touch and voice stimulus in reduce pain in premature infants undergoing invasive procedures. La Pediatria Medica Chirurgica 2021;43(259):1-5.
- 3434. Viana IS, Silva LF, Cursino EG, Conceição DS, Góes FG, Moraes JR. Educational encounter of nursing and the relatives of children with special health care needs. Texto Contexto Enferm. 2018;27(3):e5720016. ) além de promover cuidados estimuladores, apaziguadores e de confortação.( 1818. Colliére MF. Cuidar: a primeira arte da vida. 2a ed. Loures: Lusociência; 2003. )

A análise da natureza das demandas de cuidados clinicamente complexos revela que cuidar desse subgrupo de CRIANES, a complexidade implica numa diversidade de atividades que objetivam sustentar e/ou manter a vida, permitindo a ela viver em todo seu potencial. Porém, na literatura, é visto que a maior parte dos cuidados feitos pelos familiares são centrados nos dispositivos tecnológicos, por exemplo, a TQT, GTT ou a bolsa de colostomia, pois relatam sentir-se inseguros quanto ao seu manuseio e manutenção.( 3434. Viana IS, Silva LF, Cursino EG, Conceição DS, Góes FG, Moraes JR. Educational encounter of nursing and the relatives of children with special health care needs. Texto Contexto Enferm. 2018;27(3):e5720016. )

A tomada de consciência da tipologia de cuidados associada às demandas permite nortear a prática do enfermeiro no provimento de uma assistência que visa a sustentação da vida, bem como, na promoção do bem-estar e conforto no ambiente hospitalar. Além disso, os três casos geraram linhas de convergências com as demandas de cuidados de crianças com necessidades de saúde especiais, proporcionando sobrevivência, bem-estar e conforto. Desses casos extraíram-se demandas contínuas e complexas de cuidados de estimulação, apaziguamento, confortação e parecer convergentes com o de desenvolvimento e habituais modificados (banho, arrumar-se, alimentação e mobilidade); os cuidados de compensação, no manejo de tecnologias corporais e a administração de medicamentos de uso contínuo, convergiram para demandas de cuidados tecnológicos e medicamentosos. Embora esses dois últimos tipos de cuidados sejam essenciais à sobrevivência das CRIANES clinicamente complexas, precisa-se contemplar as outras demandas de cuidados de desenvolvimento e social integrando-as às clinicamente complexas. Para tanto, precisa-se assegurar um conjunto de cuidados que engloba ações promotoras de interação e conforto, manejo das necessidades de oxigenação, alimentação e integridade da pele, e enfrentamento das vulnerabilidades como parte do cuidado social.

As demandas de cuidados de desenvolvimento precisam ser mais bem integradas àqueles que fazem parte dos habituais modificados. Já as demandas de cuidados sociais precisam ser reforçadas no sentido de ampliar a rede social e de convivências dessas crianças para além dos profissionais e familiares (irmãos, terapia assistida por animais, classe hospitalar especial). Portanto, recomenda-se a realização de estudos que ampliam o foco e a análise da natureza dos cuidados clinicamente complexos em outros contextos de saúde.

Como limitação metodológica do estudo, tem-se a restrição a um único cenário hospitalar de referência a atendimento de CRIANES-CCC; o que poderia não espelhar a realidade de outros contextos hospitalares. Somado a isso, em consequência da pandemia da COVID-19, houve a interrupção do trabalho de campo para assegurar a proteção sanitária, especialmente dessas crianças clinicamente frágeis e vulneráveis. Outra limitação refere-se ao número limitado de crianças, não permitindo uma análise interseccional de etnia, raça e gênero, por exemplos.

Conclusão

Estudos de casos múltiplos permitem o aprofundamento na elucidação de quadros crônicos de morbidade que determinam complexidade clínica. Os três casos de crianças com necessidades de saúde especiais clinicamente complexas (CRIANES-CCC), com idade de três, dez e 11 anos, que permanecem em hospitalização por um período variável de quatro meses a seis anos, determinam demandas de cuidados contínuos e clinicamente complexos devido sua fragilidade clínica e vulnerabilidade social. A necessidade de sobrevivência, determinada pela natureza clinicamente complexa da criança, direciona a prioridade dos cuidados no uso contínuo de múltiplos medicamentos e manejo de tecnologias, na segurança do ambiente hospitalar. Nos três casos, há dependência tecnológica e uso de medicamentos para sua sobrevida, dada sua trajetória de necessidade de saúde especial e diagnóstico de encefalopatia crônica. São crianças, que independente da idade, permanecem acamadas com limitação funcional e dependência total de cuidados. As demandas de cuidados, classificadas como habituais modificadas, independente da idade, implicarão neste grupo uma dependência contínua de um adulto para a transferência da CRIANES-CCC do leito para a cadeira de rodas; cuidados na administração de medicamentosos de uso contínuo (anticonvulsivantes); cuidado tecnológico corporal para alimentação por gastrostomia e sonda nasoenteral e manutenção das vias aéreas para respirar pela traqueostomia. Ademais, o cuidado de desenvolvimento, mediado pela conversa com tom de voz suave, promove a interação social. A restrição da convivência dessas crianças a profissionais e a pouco familiares, determina demanda de cuidado social restrita. Esse conjunto de demandas estão incluídos nos cuidados de parecer, confortação, manutenção, reparação, compensação, estimulação e apaziguamento implementados em segurança para garantir a integridade e a sobrevida dessas crianças.

Agradecimentos

Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) pela concessão da Bolsa de Doutorado de Jéssica Renata Bastos Depianti. Bolsa de Produtividade em Pesquisa, Processo nº 303149/2019-1, a Ivone Evangelista Cabral, coordenadora do Projeto de Pesquisa financiado pelo Edital Universal 2018-CNPq, Processo nº 430213/2018-2, CRIANES VII. Conhecimento-em-ação na transição de crianças com demandas de cuidados clínicos e complexos do hospital para casa.

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Editado por

Editor Associado (Avaliação pelos pares): Myriam Aparecida Mandetta ( https://orcid.org/0000-0003-4399-2479 ) Escola Paulista de Enfermagem, Universidade Federal de São Paulo, São Paulo, SP, Brasil.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    30 Jun 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    30 Jun 2022
  • Aceito
    24 Abr 2023
Escola Paulista de Enfermagem, Universidade Federal de São Paulo R. Napoleão de Barros, 754, 04024-002 São Paulo - SP/Brasil, Tel./Fax: (55 11) 5576 4430 - São Paulo - SP - Brazil
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