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“OS JUÍZES DE PAZ SÃO TODOS UNS LADRÕES”: AUTORIDADES PÚBLICAS E O TRÁFICO DE ESCRAVOS NO INTERIOR DA PROVÍNCIA DA BAHIA (C.1831 - C.1841)

‘The Justices of the Peace Are All Thieves’: Public Authorities and the Slave Trade in the Province of Bahia (c.1831 - c.1841)

“Los jueces de paz son todos unos ladrones”: autoridades públicas y el tráfico de esclavos en el interior de la provincia de Bahia (h.1831 - h.1841)

Resumo

Este artigo analisa o envolvimento de autoridades públicas no tráfico de escravos no contexto da implementação da lei de 1831 que proibiu o comércio de africanos para o Brasil. Juízes, promotores e outros agentes públicos não só acobertaram atividades do tráfico como se beneficiaram do cargo para realizar negócios a partir das novas rotas de desembarque e de distribuição de africanos recém-chegados no interior da província da Bahia. Essas autoridades tiveram papel fundamental na continuidade das atividades do tráfico.

Palavras-chave:
Tráfico de escravos; Bahia; Século XIX; Autoridades públicas

Abstract

The present article analyzes the involvement of public authorities in the slave trade in the context of the implementation of the 1831 law that prohibited the trade of Africans to Brazil. Judges, prosecutors and other agents not only covered up the traffic but also benefited from their positions to conduct business in the new landing and distribution routes for newly-arrived Africans in the interior of the province of Bahia. These authorities played a key role in the continuity of slave trade.

Keywords:
Slave trade; Bahia; 19th century; Public officials

Resumen

Este artículo analiza la participación de autoridades públicas en el tráfico de esclavos en el contexto de la implementación de la ley de 1831 que prohibió el comercio de africanos para Brasil. Jueces, promotores y otros agentes públicos no sólo encubrieron actividades del tráfico como se beneficiaron del puesto para realizar negocios a partir de las nuevas rutas de desembarque y de distribución de africanos recién llegados en el interior de la provincia de Bahia. Esas autoridades tuvieron un papel fundamental para la continuidad de las actividades del tráfico.

Palabras clave:
Tráfico de esclavos; Bahia; Siglo XIX; Autoridades públicas

No dia 7 de novembro de 1831 foi promulgada no Brasil a lei, conhecida como Lei Feijó, que declarava livres todos os africanos que entrassem no País a partir daquela data, o que na prática equivalia a extinguir o secular comércio negreiro atlântico. Parecia ser o ponto final de uma longa disputa política travada entre Portugal - e, após 1822, o Brasil - e a Grã-Bretanha, com avanços e recuos, desde 1808. Uma conjunção de fatores, porém, engolfou a lei a partir da segunda metade daquela mesma década.1 1 Os estudos sobre a lei de 1831 e seus impactos no tráfico de escravos não são recentes e tampouco restritos. Alguns trabalhos marcaram a historiografia ao questionarem a eficácia da lei, engrossando o coro de que se tratava de uma “lei para inglês ver”: Leslie Bethell (2002), Ubiratan Castro de Araújo (1998) e Robert Conrad (1985) se situam nesse campo. Autores como João J. Reis (2003: 36), Tâmis Parron (2011: 125) e Beatriz Mamigonian (2017: 86) mostraram que, nos momentos imediatamente posteriores à 1831, houve uma sensível diminuição na importação de africanos para o Brasil e, consequentemente, uma diminuição na oferta; e um aumento de preços e a sensação de crise entre os proprietários de escravos, o que descarta a ideia de que a lei tivesse sido criada como mera tapeação. Jaime Rodrigues (2000) e Beatriz Mamigonian (2009) também apontaram que a lei foi um posicionamento do governo brasileiro contra os excessos de intervenção do Império Britânico na questão do tráfico, avocando para si a responsabilidade pela regulamentação do negócio. Além disso, o fato de a lei de 1831 nunca ter sido revogada possibilitou que, décadas mais tarde, abolicionistas, escravos e advogados recorressem aos tribunais exigindo a liberdade de africanos introduzidos ilegalmente no País após aquele ano (Azevedo, 2007; Grinberg, 2007; Silva, 2007). Além da retomada econômica de algumas regiões como a Bahia e o Vale do Paraíba, muito estimulada pela conjuntura internacional que se abria à exportação de produtos brasileiros, os acontecimentos políticos derivados da abdicação de d. Pedro I e a reorganização das forças políticas conservadoras criaram um clima favorável para que o debate a favor da escravidão, que tinha arrefecido em período anterior a 1831, ganhasse novamente espaço (Carvalho, 2003CARVALHO, José Murilo de. A construção da ordem: a elite política imperial. Teatro de sombras: a política imperial. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.). Por volta de 1838, reduziram-se dramaticamente os espaços de opinião pública que condenavam o contrabando e, no limite, o cativeiro (Parron, 2011PARRON, Tâmis Peixoto. A política da escravidão no Império do Brasil, 1826-1865. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011.: 101), enquanto boa parte da imprensa estava ocupada em atacar sistematicamente a ação dos cruzadores ingleses que perseguiam e apresavam navios negreiros (Reis; Gomes; Carvalho, 2010REIS, João José. GOMES, Flávio dos Santos; CARVALHO, Marcus J. M. O alufá Rufino: tráfico, escravidão e liberdade no Atlântico Negro (c.1822 - c.1853). São Paulo: Companhia das Letras, 2010.: 113).2 2 Para Reis, Gomes e Carvalho (2010: 257), “os defensores do tráfico no Brasil apropriaram-se de um discurso nacionalista segundo o qual o tráfico seria um direito dos brasileiros, que não deveriam se submeter ao império britânico”.

O comércio atlântico de africanos dificilmente se estabeleceria na forma de contrabando, após 1831, sem a anuência e a participação das autoridades (Parron, 2011PARRON, Tâmis Peixoto. A política da escravidão no Império do Brasil, 1826-1865. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011.: 125). Trata-se de um argumento semelhante ao utilizado por João Reis, Flávio Gomes e Marcus Carvalho (2010REIS, João José. GOMES, Flávio dos Santos; CARVALHO, Marcus J. M. O alufá Rufino: tráfico, escravidão e liberdade no Atlântico Negro (c.1822 - c.1853). São Paulo: Companhia das Letras, 2010.: ,78) no qual afirmam que “funcionários grandes e pequenos, no nível local, provincial e nacional, autoridades policiais e judiciais, parlamentares e governantes”, em todo canto havia alguém que era conivente com a ilegalidade. Ubiratan Castro de Araújo (1998ARAÚJO, Ubiratan Castro de. 1846: um ano na rota Bahia- Lagos. Negócios, negociantes e outros parceiros. Afro-Ásia, Salvador, n. 21-22, p. 83-110, 1998. : 102) já chamava atenção para isso ao indicar que os grandes cúmplices do tráfico eram os funcionários do Estado em suas mais diversas posições e funções, que enchiam os bolsos de propina para facilitar o negócio. Por fim, para Robert Conrad (1985CONRAD, Robert. Tumbeiros: o tráfico escravista para o Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1985.: 88), um “número significativo de autoridades brasileiras de todos os níveis estavam comprometidas com o princípio de que o tráfico escravista africano, legal ou não, era benéfico e precisava ser encorajado”. Motivado por essa conjuntura e sob a vigência da lei de 1831, o tráfico se reelaborou com novos agentes, novos lugares e novas estratégias.

Embora a historiografia frequentemente trate da colaboração de autoridades públicas, especialmente do Judiciário, no negócio negreiro, os estudos dedicados a entender o tipo e a abrangência desses atos ainda são poucos. Sem pretender esgotar o tema, este artigo discute como, no desempenho das suas funções, agentes públicos atuavam a favor do contrabando de escravos após 1831.

“Não há homem neste mundo como o nosso juiz de paz”

Era dia 8 de setembro de 1837 quando as águas calmas da localidade de Barra dos Carvalhos, na baía de Camamu, distrito da vila de Boipeba, foram sacudidas por uma lancha que se preparava para aportar, despertando a atenção dos moradores da povoação, que logo espalharam a notícia de que escravos novos estavam sendo desembarcados. A suspeita da população se explica por ser aquele litoral um habitual espaço de desembarque de escravos, especialmente naqueles anos da década de 1830.

A baía de Camamu, com extensas matas entrecortadas por inúmeros rios e ilhas de todos os tamanhos, era uma região com terras pouco habitadas, e que estava distante cerca de 300 quilômetros ao sul de Salvador.3 3 Segundo Luís dos Santos Vilhena (1969: 675-733), aquela região também tinha matas que estavam cheias de caças do ar e da terra, como porcos, pacas, peruas, tatus, coelhos, preás, entre outros; além de não faltar peixes e frutas silvestres abundantes, oferecendo condições excepcionais para quem quisesse procurar refúgio. Ali, após a tenebrosa viagem atlântica e antes de partir para uma longa e penosa caminhada sertões adentro pelas estradas que ligavam o litoral ao Alto Sertão e seguiam para Minas Gerais, traficantes e escravos poderiam ter acesso a alimento e água potável.4 4 Parte desse trânsito seguia pela Estrada do Salitre, uma das rotas de comércio mais conhecidas, partindo de Camamu e alcançando a vila de Montes Altos, já na fronteira com Minas Gerais. Era por ali que transitava boa parte dos escravos levados para a região. João J. Reis (2003: 36) tratou da exportação de escravos da Bahia e de outras províncias do Nordeste para as regiões cafeeiras na década de 1830. Ou seja, era um local propício para se esconder e realizar ilegalidades, longe de uma fiscalização mais ostensiva das autoridades, de modo que reunia as condições ideais para que negociantes de escravos continuassem com suas atividades. Por conta dessas características, a baía de Camamu foi uma importante porta de entrada para introduzir africanos no interior do País nas primeiras décadas do século XIX.5 5 Sobre o uso de áreas remotas do litoral para o desembarque de escravos após 1831, Jaime Rodrigues (2000: 143) confirma que neles a perseguição se tornava mais difícil “porque as bocas dos rios, enseadas e pequenas baías ofereciam refúgios que dificultam as ações dos temidos cruzeiros britânicos e das autoridades locais, em geral baseadas nas sedes das vilas”.

As notícias sobre o desembarque em Barra dos Carvalhos circularam rapidamente, em velocidade oposta às providências das autoridades. Quando soube do fato, o juiz de paz de Boipeba, Antônio José Bernardino, até que foi ágil, e, em dois dias, se reportou ao juiz de direito da comarca de Valença, João Antônio de Vasconcelos, o qual, estranhamente, demorou treze dias para repassar a investigação para o juiz da vizinha Camamu, Antônio José Bernardes.6 6 Arquivo Público do Estado da Bahia (Apeb). Seção Colonial Provincial. Juízes de Valença, maço 2.419. “Auto do exame que procedeu o juiz de paz do distrito, Antônio José Bernardes, da freguesia de Boipeba, por ofício que lhe dirigiu o doutor juiz de Direito da Comarca de Valença, João Antônio de Vasconcelos”. Boipeba, 10 de setembro de 1837.

Com o despacho em mãos, Bernardes se dirigiu à localidade de Barra dos Carvalhos e pôs-se a indagar os moradores sobre o acontecido, sendo informado pelo alferes Antônio Braz que na fazenda de um certo Antônio Pereira Franco, proprietário de terras na localidade, mas que morava na cidade de Salvador, “desembarcaram 84 escravos, pouco mais ou menos, entre africanos e crioulos, solteiros e casados, muitos já com três ou quatro filhos”.7 7 Ibidem. Seção Colonial Provincial. Juízes de Valença, maço 2.419. Correspondência enviada pelo Juiz de Paz Antônio José Bernardes ao Juiz de Direito da Comarca de Valença, João Antônio de Vasconcelos, 10 de setembro de 1837. Tais escravos, segundo o alferes, pertenciam a um senhor de engenho do Recôncavo que estava em vias de ter seus bens penhorados pela justiça, em virtude de falência, e “retirara a flor da escravatura e os mandara para a dita fazenda por consenso do seu proprietário, o que se verificava nas cartas encaminhados pelo senhor ao feitor”.8 8 Idem. Numa aparente tentativa de abreviar as investigações, o alferes antecipou ao juiz as conclusões sobre o caso, e procurava dar por finalizada aquela visita.

Depois das primeiras averiguações, o juiz somente voltou a se manifestar sobre o caso 36 dias após a lancha ter ancorado e cerca de 20 dias após ter feito a visita ao alferes. Chama atenção a morosidade em encaminhar os procedimentos investigativos, indicando uma atitude deliberada para atrasar o processo.

Em 14 de outubro, por volta das 4 horas da madrugada, o juiz de paz, o escrivão e um grupo de pessoas chegaram à fazenda de Antônio Pereira Franco. Achavam-se ali vários escravos acordados que correram para as matas, levando o juiz a ordenar a busca de todos. Enquanto a balburdia se instalava, o feitor da fazenda, Joaquim José de Almeida, indignado, indagou sobre “o motivo de toda aquela violência” e se adiantou a dar a sua versão sobre o caso, afirmando que se tratava de um desembarque legal de escravos pertencentes a um senhor de engenho do Recôncavo, que os mandara para ali, e que depois os conduziria para o Sul. Disse também que os escravos já eram ladinos, e que muitos deles tinham ofícios, como o de carpina, e se apressou a mostrar as ferramentas de trabalho deles. 9 9 Ibidem. Seção Colonial Provincial. Juízes de Valença, maço 2.419. “Auto de exame que procedeu o Juiz de Paz do distrito e freguesia de Boipeba por ofício que lhe dirigiu o Doutor Juiz de Direito desta Comarca”, 14 de setembro de 1837.

Mesmo com essas explicações, o juiz pediu que o feitor chamasse os escravos que estavam escondidos nos matos. A manhã se passou, e somente 35 dos 57 escravos que o feitor alegara ter recebido foram encontrados. Este número estava muito aquém dos mais de oitenta que os denunciantes afirmaram terem visto desembarcando. Com os escravos reunidos, o juiz passou a lhes fazer perguntas, no que os escravos também apresentaram suas ferramentas de trabalho, o dinheiro que possuíam e outros objetos.10 10 Idem. A insistência em apresentar ferramentas e dinheiro não aconteceu sem razão: serviam como comprobatórios da condição de ladinos.

Na tentativa de alargar os critérios que definiam um ladino eram utilizados os mais variados recursos como comprovação, podendo incluir a posse de algum bem, ferramentas de trabalho ou dinheiro, como se verifica no caso. Já o interrogatório dos escravos suspeitos de ingresso no Brasil após a lei de 1831 era geralmente feito de perguntas resumidas, objetivas e repetitivas, que se esperava que também fossem respondidas de forma monossilábica, e não raro eram memorizadas, com o fim de incluir o maior número de africanos na categoria de ladino.11 11 Sidney Chalhoub (2012: 95-108) discutiu as artimanhas utilizadas para driblar a legislação e “comprovar” que um africano recém-chegado era ladino. A falta de rigor e critérios no que diz respeito à prova de propriedade escrava pós-1831 permitiu que muitos africanos traficados ilegalmente não alcançassem a liberdade prevista pela lei, por conta “de mecanismos que isentavam o senhor de apresentar certificado de importação legal do africano escravizado e a prática de produção de papéis que davam aparência de legalidade ao que fora adquirido por contrabando” (Chalhoub, 2012CHALHOUB, Sidney. A força da escravidão: ilegalidade e costume no Brasil oitocentista. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.: 104). Para Beatriz Mamigonian (2017), os impactos dessa situação sobre os africanos que deveriam ser libertados a partir da lei de 1831 tiveram repercussão política e jurídica que se prolongou até o fim da escravidão.

Retornando ao caso do desembarque, chama atenção a discordância entre os números: na denúncia inicial, eram cerca de 84 os desembarcados; na explicação do feitor, o número caiu para 57; já a averiguação do juiz contabilizou somente 35 pessoas. Além de possíveis fugas e mortes, o tempo entre a denúncia e a investigação in loco pode ter sido imprescindível para que outros arranjos fossem feitos no sentido de ocultar, vender ou mesmo ladinizar esses africanos. Esses dados reforçam a ideia de que o atraso das autoridades na investigação foi proposital.

Além de um atraso intencional, outros fatores depõem contra a atuação do juiz de paz naquele caso, indicando uma conivência: o silenciamento em torno do nome do suposto proprietário dos desembarcados e a inesperada interrupção do processo ainda na fase dos depoimentos, sem nenhuma conclusão.

A lei de 7 de novembro de 1831 proibia o comércio de escravos da África para o Brasil, mas não especificava as responsabilidades e ritos das investigações e punições, o que só se deu com o decreto de 12 de abril de 1832. Esse decreto determinava, entre outras coisas, que a justiça local era a instância responsável pela apuração dos fatos relacionados ao tráfico ilegal, sendo que a condução do processo deveria ficar a cargo do juiz de paz.12 12 Coleção de Leis do Império do Brasil. Decreto de 12 de abril de 1832, página 100, v. 1, pt. II (publicação original). Segundo o decreto de 12 de abril de 1832 que regulamentava a lei de 7 de novembro de 1831, no artigo 6º, “o Intendente Geral da Polícia, ou o Juiz de Paz, que proceder à visita, encontrando indícios de ter o barco conduzido pretos, procederá às indagações que julgar necessárias para se certificar do fato, e procederá na forma da lei citada.”

O cargo de juiz de paz, por sua vez, foi instituído por lei de 15 de outubro de 1827 que elencava as variadas atribuições, que iam desde a destruição de quilombos a “fazer pôr em custódia o bêbado, durante a bebedice”, ou seja, uma espécie de faz-tudo na administração pública local.13 13 Brasil. Lei de 15 de outubro de 1827. Cria em cada uma das freguesias e das capelas curadas um Juiz de Paz e suplente. Artigo 5º, §1º. Disponível em: http://www2.camara.leg.br/legin/fed/lei_sn/1824-1899/lei-38396-15-outubro-1827-566688-publicacaooriginal-90219-pl.html. Acesso em: 4 de setembro de 2018. Era cargo eletivo, mas, considerando o perfil das pessoas aptas a elegerem e serem eleitas - senhores de escravos, proprietários de terras, as pessoas mais gradas da localidade -, entende-se que o juiz de paz sofria forte influência do grupo ao qual pertencia na tomada de decisões (Flory, 1986FLORY, Thomaz. El juez de paz y el jurado en el Brasil imperial (1808-1871). México, D.F.: Fondo de Cultura Económica, 1986.: 100).14 14 Segundo Flory (1986: 81-89), a instituição da função de juiz de paz absorveu as atividades desempenhadas por outras três personagens que atuavam no Judiciário desde o período colonial: o juiz ordinário, o juiz de vintena e o almotacel, cargos que, na época da extinção, não desfrutavam de quase nenhum prestígio, sendo seus ocupantes comumente acusados de incapacidade e de promover atos à revelia das leis e tirando proveito próprio ou para seu círculo de interesse.

O procedimento de eleição do juiz de paz foi estabelecido pela lei de 1º de outubro de 1828.15 15 Câmara dos Deputados. Lei de 1º de outubro de 1828. Dá nova forma às Câmaras Municipais, marca suas atribuições, e o processo para a sua eleição, e dos Juízes de Paz. Disponível em: http://www2.camara.leg.br/legin/fed/lei_sn/1824-1899/lei-38281-1-outubro-1828-566368-publicacaooriginal-89945-pl.html. Acesso em: 4 de setembro de 2018. Posteriormente, a legislação foi normatizando a função por meio de outras leis, como o Código Criminal do Império do Brasil de 1830, o Código do Processo Criminal de Primeira Instância de 1832, e a Lei de Reforma do Código Criminal de 1841. Destes, porém, o Código de 1832 foi o que causou maior impacto por estabelecer amplos poderes para os ocupantes do cargo, entre eles os de interrogar, solicitar o corpo de delito, inquirir testemunhas, emitir denúncia e sentenciar, mas, também, como cita o artigo 145 da mesma lei, o poder de dizer “nos autos que não julga procedente a queixa, ou denúncia”, inocentando o possível criminoso e finalizando o caso. Os poderes que o juiz de paz detinha tornavam-no tão poderoso que o artigo 325 da Lei de 1832 estabelecia que “ninguém é isento da jurisdição do Juiz de Paz, exceto os privilegiados pela Constituição, aos quais será imposta a pena pelo Juiz competente”.16 16 Brasil. Lei de 29 de novembro de 1832. Promulga o Código do Processo Criminal de primeira instância com disposição provisória acerca da administração da Justiça Civil. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/LIM/LIM-29-11-1832.htm>. Acesso em: 4 de setembro de 2018. Trata-se, portanto, de pessoas que, no interior do País, concentravam amplos poderes que podiam levá-los ao controle quase absoluto da localidade. Raymundo Faoro (1989FAORO, Raymundo. Os donos do poder: formação do patronato político brasileiro. Rio de Janeiro: Globo, 1989. V. 1.: 306) chegou a afirmar que talvez fosse o terceiro cargo de maior importância no País, depois da regência e dos ministros. Considerando as distâncias geográficas em relação à administração central, esse poder se agigantava.

A maré liberal que estava em alta no País naquele fim de década de 1820, mas que teve vida curta, provocou algumas reformas administrativas. Com as mudanças na legislação em 1828, as Câmaras tiveram o seu poder esvaziado em detrimento ao do juiz de paz. Para Faoro (1989FAORO, Raymundo. Os donos do poder: formação do patronato político brasileiro. Rio de Janeiro: Globo, 1989. V. 1.: 307), esses juízes se aproveitaram dessa onda para se transformar no “senhorio da impunidade”. Oliveira Viana (1999VIANNA, Francisco de Oliveira. Instituições políticas brasileiras. Brasília: Conselho Editorial do Senado Federal, 1999. V.1 e 2.: 274), na mesma linha, afirmou que esses agentes públicos atuavam de forma autoritária, com base em interesses privados, posto que prisões injustificadas e intimações policiais eram usadas para intimidar e perseguir desafetos.

Escrito em 1833 e publicado em 1838, ou seja, bem no auge dos acontecimentos relacionados à lei de 1831 e à criação do juizado de paz, a comédia O juiz de paz na roça, de autoria de Martins Pena, é uma crítica aguda à atuação desses agentes. Nesta peça de teatro estão presentes as práticas de corrupção, mandonismo e prevaricação por parte do juiz de paz, o protagonista. Astuto observador da sociedade daquele período, Martins Penna escreveu a sua peça imerso nos acontecimentos que o cercavam, tratando com ironia a inclinação do juiz de paz ao suborno, ao autoritarismo, e o pouco conhecimento que ele detinha da legislação. A peça ressalta a dificuldade de separação entre o público e o privado, além de destacar a atuação do juiz de paz em atender aos interesses dos seus mais chegados, fato exaltado nos versos: “Em cima daquele morro/há um pé de ananás; não há homem neste mundo/como o nosso juiz de paz” (Pena, 2007PENA, Martins. Comédias (1833 - 1844). São Paulo: Martins Fontes, 2007.: 103).

Eleitos por seus semelhantes, vizinhos e conhecidos, os juízes eram impactados pela proximidade da convivência com essas pessoas, o que tornava suas decisões mais suscetíveis às interferências de senhores de escravos, traficantes e demais interessados no negócio, sendo um dos responsáveis pelo êxito do contrabando de africanos após 1831.

Juízes: entre provas e convicções

A lei de 1831 forçou o redirecionamento do comércio de escravos, antes praticado livremente nos principais portos, para lugares alternativos e muitas vezes improvisados, por conta da intensa fiscalização que se estabeleceu. Antes, existiam rotinas estabelecidas nos portos das principais cidades costeiras para receber e negociar os africanos, mas, com o advento da lei, localidades mais distantes, e que normalmente adquiriam escravos por um valor majorado, se tornaram centros de desembarque e distribuição de escravos, como foi o caso da vila de Ilhéus, que passou a receber escravos diretamente da África, barateando o acesso para a população local, a tal ponto que um morador da vila se queixou da facilidade com que navios negreiros aportavam na cidade, dando prosseguimento ao “escandaloso e ilícito tráfico de africanos” (Mahony, 2001MAHONY, Mary Ann. “Instrumentos necessários”: escravidão e posse de escravos no Sul da Bahia no século XIX, 1822-1889. Afro-Ásia, n. 25-26, p. 95-139, 2001.: 103).

Estimativas mais recentes indicam que entre os anos de 1800 e 1830 foram realizadas 1.091 viagens da África para a Bahia, das quais desembarcaram cerca de 316.309 africanos. Já na vigência da ilegalidade, entre 1831 e 1850, o contrabando transatlântico teria realizado pelo menos outras 223 viagens que resultaram na entrada de estimados 84.401 africanos no mundo da escravidão do Brasil pelas praias da Bahia.17 17 Os dados foram cotejados do The Trans-Atlantic Slave Trade Database (TSTD). Disponível em: http://www.slavevoyages.org. Acesso em: 15 de agosto de 2018. Nesse mesmo período, dos locais de desembarque que foram identificados, The Trans-Atlantic Slave Trade Database registrou 14 desembarques que se deram em portos ao sul de Salvador, sendo um na vila de Porto Seguro e os treze restantes na localidade de Taipus.18 18 Na primeira metade do século XIX, Taipus correspondia ao termo da vila de Marau. Possivelmente “Taipus” foi usada como uma identificação genérica para as muitas localidades que tiveram desembarques em toda aquela região, o que incluía a baía de Camamu, ali bem próximo. Preferi utilizar a nomenclatura atualizada: Taipus. Nesse último local, os desembarques se deram no período entre 1836 e 1839, colocando em terra estimados 6.278 africanos, a maioria identificada como de origem centro-ocidental. De todo modo, não é crível que os desembarques na região tenham se limitado a esses treze. Em alguns desses anos, como no ano de 1837, os escravos postos em terras de Taipus superaram em muito o total que se estima ter entrado em toda província da Bahia e que não tiveram a especificação do local de desembarque: foram 6 carregamentos com aproximadamente 3.552 escravos em Taipus contra cerca de 567 escravos para todas as outras localidades da Bahia não especificadas, reforçando a importância dessa região no contexto pós-1831.19 19 Ver The Trans-Atlantic Slave Trade Database. Disponível em http://www.slavevoyages.org. Acesso em: 15 de agosto de 2018.

O afastamento dos grandes centros, porém, não foi total. Desembarques de africanos continuavam a acontecer, mesmo em menor número, tanto nas capitais quanto em seu entorno, mas “isso era um atrevimento de traficantes excessivamente ousados. Desobedecer à lei assim tão frontalmente era desafiar não apenas os governos provinciais, mas a Marinha Brasileira e a própria Coroa” (Carvalho, 2012CARVALHO, Marcus J. M. de. O desembarque nas praias: o funcionamento do tráfico de escravos depois de 1831. Revista de História, São Paulo, n. 167, p. 223-260, jul.-dez. 2012.: 227). Beatriz Mamigonian (2017: 86) lembra que:

A despeito da preocupação de certas autoridades com os desembarques de africanos novos, esses continuavam acontecendo ainda que em volume menor se comparado ao de anos anteriores a 1830. Além disso, mantinham-se abertas as rotas de redistribuição dos africanos recém-chegados pelo comércio interno graças a subterfúgios nos registros.

Foi nesse contexto que uma denúncia, em outubro de 1835, indicou um desembarque ilegal em plena vila de Itaparica, nas franjas de Salvador. Segundo a denúncia, havia “nessa cidade dois homens portugueses e irmãos, um de nome José Francisco da Costa, que mora defronte do Rosário da Baixa dos Sapateiros, e João Pedro Carreirão que mora no Maciel”,20 20 Apeb. Seção Colonial e Provincial. Escravos: Assuntos diversos, 1835, Mmço 2.896. Correspondência enviada por José da Silva e Azevedo ao presidente da província da Bahia, Joaquim Marcelino de Britto. Itaparica, 29 de outubro de 1835. ambas regiões centrais da cidade de Salvador, os quais “meteram nessa ilha uma embarcação de escravos de Angola, e não há quem não tenha seu escravo novo”.21 21 Idem.

Três anos antes, José Francisco já havia sido denunciado por crime semelhante, porém continuava em liberdade, indicando uma relação de cumplicidade, ou, no mínimo, de letargia das autoridades. A nova denúncia partiu de José da Silva e Azevedo, o qual afirmou que o desembarque acontecera na propriedade de um tal Pimentel, e que esse acontecimento seria apenas mais um entre tantos outros que frequentemente se davam naquelas terras. Inclusive, afirmava o denunciante, os mesmos traficantes estariam prontos para desembarcar uma nova remessa de africanos de Angola nos dias seguintes, levando-o a clamar pela imediata ação policial para impedir tal prática, endêmica na região. José da Silva e Azevedo recomendou que

Determine o juiz de Polícia para ir em casa destes dois homens e darem uma busca geral porque me consta, pelo mesmo Pimentel, que uns escravos doentes foram para lá para serem tratados e mesmo os escravos ladinos que eles têm em casa, me consta que já são vindos depois da proibição, a dois para três anos. [Grifo nosso]22 22 Idem.

Além de reforçar que a comprovação da condição de ladino era bastante frouxa, a fala de Azevedo advertia “que não mande pelo Juiz de Paz, que todos são uns ladrões, fazer as indagações”.23 23 Idem. A suspeição levantada contra o juiz João Ferreira de Oliveira tinha razão de ser, pois, durante o interrogatório, o traficante José Francisco da Costa revelou que era cunhado do juiz de paz. A informação dada pelo acusado durante a inquirição parece ter sido uma tentativa de usar o poder do cargo que seu parente ocupava para pressionar pelo fim das investigações.24 24 Os portugueses, como os acusados José Francisco da Costa e João Pedro Carreirão, eram os principais agentes do tráfico na Bahia (Silva Júnior, 2012: 176). De todo modo, se evidencia que o Judiciário, afamado por estar envolvido em malfeitos, não gozava de grande confiança de parte da população.

Com a Lei Feijó, a atuação das autoridades no combate ao tráfico de escravos se intensificou, mas era impossível que cobrissem toda a longa e desprotegida costa brasileira. A própria lei de 1831, considerando as dificuldades das autoridades em impedir a prática desse crime, incentivava a participação da população na fiscalização, estabelecendo no artigo 5º uma recompensa no valor de 30 mil réis por pessoa apreendida para aqueles que denunciassem o desembarque de africanos novos, o que pode ter motivado as denúncias.25 25 Apeb. Seção Colonial Provincial. Juízes de Valença, maço 2.419. “Auto do exame que procedeu o juiz de paz do distrito, Antônio José Bernardes, da freguesia de Boipeba, por ofício que lhe dirigiu o doutor juiz de Direito da Comarca de Valença, João Antônio de Vasconcelos”. Boipeba, 10 de setembro de 1837. O que se depreende é que o expediente da delação foi utilizado, mesmo na ausência de provas, tendo por base apenas a própria convicção.

A denúncia efetuada por José Azevedo se deu em outubro de 1835, poucos meses depois da insurreição dos escravos malês em Salvador, que ainda deixava inquieta a população por causa da grande presença e circulação de africanos por Salvador e pelo Recôncavo, além do medo de que a chegada de novos africanos engrossasse as fileiras rebeldes. Não por acaso o denunciante considerou as rebeliões e revoltas como um “grande mal que nos causa[m] os africanos nesta terra”.26 26 Ibidem. Seção Colonial e Provincial. Escravos: Assuntos diversos, ano de 1835, maço 2.896. Correspondência enviada por José da Silva e Azevedo ao presidente da província da Bahia, Joaquim Marcelino de Britto. Itaparica, 29 de outubro de 1835. José de Azevedo se sentia incomodado com o tráfico de africanos, mas deve ter ficado de olho, também, na recompensa advinda de tal denúncia, uma vez que o artigo 8º da lei de novembro de 1831 ampliava os alvos das denúncias de tráfico ilegal: não só os africanos, mas os comandantes das embarcações, mestres e contramestres também poderiam ser denunciados, e o delator, igualmente recompensado. Ao fim da carta, Azevedo insistiu na incapacidade do juízo local em resolver aquele caso, dizendo esperar as providências tomadas pela presidência da província, mas “nunca por via de juiz de paz”.27 27 Idem. Além da discordância em relação ao tráfico e o interesse na recompensa, outros motivos também poderiam justificar as denúncias, como a concorrência entre traficantes ou receptadores de escravos, cuja imputação do crime contribuiria para desestruturar os negócios de possíveis desafetos.

Ainda sobre os desembarques de africanos nas propriedades de Pimentel e de Antônio Pereira Franco, é possível que esses locais tenham servido não apenas para o desembarque, mas como fazendas especializadas em receber e abrigar africanos novos enquanto os negociantes articulavam as vendas e os deslocamentos. Como já foi apontado em pesquisas anteriores (Pessoa, 2013PESSOA, Thiago Campos. O comércio negreiro na clandestinidade: as fazendas de recepção de africanos da família Souza Breves e seus cativos. Afro-Ásia, Salvador, n. 47, p. 43-78, 2013.), essa foi uma das saídas encontradas para se resguardar de punições e perdas.

Outra denúncia feita em junho de 1838 alertava as autoridades sobre um iminente desembarque de africanos num dos rios da vila de Aldeia, ao Sul do Recôncavo, o que levou o juiz de Direito de Nazaré a ordenar a apreensão da embarcação com o uso da força policial.28 28 Ibidem. Seção Colonial e Provincial. Juízes de Nazaré, maço 2.502, caixa 815. Correspondência enviada pelo Juiz de Direito de Nazaré, André Corsino Pinto Chichorro da Gama, ao presidente da província da Bahia, Thomaz Xavier Garcia de Almeida. Nazaré, 18 de junho de 1838. Ao avistar a patrulha, Miguel Luis Vianna, que estava com onze africanos adultos e uma criança num barco de passageiros pertencente a Manoel A. da Silva indo em direção à vila de Aldeia, tentou fugir se jogando no rio e se embrenhando nos mangues, assim como os escravos, mas todos foram capturados. Miguel Luiz estava em companhia de Tomaz Antônio Pinheiro, sobre o qual a documentação silencia. Talvez fosse o comprador dos escravos.29 29 Idem.

Miguel Luiz Vianna era muito conhecido, pois, “figura de principal agente nesse negócio”.30 30 Idem. Ganhava a vida como um intermediador do tráfico, um repassador de escravos. Em localidades onde não havia grandes mercados de escravos e num momento em que o comércio atlântico de escravos atuava com discrição, essas pessoas eram as principais responsáveis pela interiorização dos cativos. Elas ficavam encarregadas de receber os pedidos e de levar os escravizados até o seu destino, gozando de algum prestígio e poder conferidos pela rede de comércio na qual estavam inseridas. Tanto é que Miguel Luiz passou poucos dias na cadeia, conseguindo fugir com a conivência do chefe da guarda policial, Jacinto Francisco dos Santos, o qual, embora tenha sido preso, também passou pouco tempo atrás das grades por ter “fugido com a maior desonra da cadeia” no dia 22 de junho de 1838. O juiz acusou o carcereiro de ter facilitado a fuga de ambos, mandando-o à prisão.31 31 Ibidem. Seção Colonial Provincial. Juízes de Nazaré, maço 2.502, caixa 815. Correspondência enviada pelo Juiz de Direito de Nazaré, André Corsino Pinto Chichorro da Gama, ao presidente da província da Bahia, Thomaz Xavier Garcia de Almeida. Nazaré, 22 de junho de 1838.

Os escravos traficados por Vianna foram conduzidos num barco de passageiros e eram em número reduzido - apenas onze, segundo os dados oficiais -, o que também era uma forma de despistar a fiscalização e evitar as denúncias. Entre as estratégias utilizadas pelos traficantes estava o deslocamento de africanos em pequenos grupos, evitando chamar atenção, e, caso ocorresse uma apreensão, os prejuízos seriam menores.32 32 Os lucros obtidos com o tráfico sempre foram enormes. Pessoas com poucos recursos que se aventurassem a investir nesse negócio podiam obter um bom incremento em suas economias. Sobre isso, Carlos Silva Júnior (2012) explica trajetórias de alguns traficantes e financiadores do tráfico, como o português Francisco Gonçalves Dantas, que, de caixeiro de um grande comerciante, obteve recursos suficientes para se lançar como financista do tráfico em Salvador no século XVIII. Toda essa instabilidade inflacionava o preço do escravo, favorecendo os lucros dos traficantes e justificando os riscos.

Durante as averiguações na embarcação, “foi achado um recibo entre os papéis que deixou Miguel, passado pelo proprietário do engenho em que estiveram depositados os africanos. Onde o proprietário afirma ter recebido a soma de 2:430$000 pela estada dos pretos no engenho durante a data”.33 33 Apeb. Seção Colonial Provincial. Juízes de Nazaré, maço 2.502, caixa 815. Correspondência enviada pelo Juiz de Direito de Nazaré, André Corsino Pinto Chichorro da Gama, ao presidente da província da Bahia, Thomaz Xavier Garcia de Almeida. Nazaré, 9 de julho de 1838. Esse valor, no entanto, era uma quantia muito alta para corresponder aos gastos de apenas onze escravos, pois, ao ficarem na prisão durante pelo menos dezoito dias após a apreensão, os onze escravos consumiram 104 libras de carne de sertão, ao custo total de 13$520; 3 alqueires e meio quarto de farinha, no valor de 8$100, e a lenha com a qual eles mesmos faziam o fogo da alimentação, no valor de $400, custando ao Estado o valor estimado em 23$020.34 34 Ibidem. Seção Colonial Provincial. Juízes de Nazaré, maço 2.502, caixa 815. Correspondência enviada pelo Juiz de Direito de Nazaré, André Corsino Pinto Chichorro da Gama, ao presidente da província da Bahia, Thomaz Xavier Garcia de Almeida. Nazaré, 23 de julho de 1838. Isso leva a crer que o número de africanos desembarcados e o tempo de espera no engenho foram muito maiores do que os encontrados nos registros do barco. Aparentemente, aqueles escravos eram parte de um grupo maior que devia ter chegado já havia algum tempo, e foram ali mantidos enquanto eram negociados em pequenos grupos e passavam pelo processo de “ladinização”. Trata-se de mais um indício de que naquela região havia propriedades, se não especializadas, com forte atuação na receptação e guarda de africanos recém-chegados.

Os desembarques pós-1831 contaram com uma forte conivência não só de juízes, como também de outros agentes da lei e autoridades públicas, favorecidos principalmente pela proximidade com que essas pessoas se relacionavam nos variados espaços sociais, tornando-os especialmente vulneráveis às pressões políticas e econômicas, bem como às práticas de corrupção e o envolvimento em negócios escusos.

“Não há roças nem alambiques que não tenham escravos angolas novos”35 35 Ibidem. Seção Colonial e Provincial. Escravos: Assuntos diversos, ano de 1835, maço 2.896. Correspondência enviada por José da Silva e Azevedo ao presidente Joaquim Marcelino de Britto. Itaparica, 29 de outubro de 1835.

Viajantes estrangeiros e autoridades provinciais que visitaram as vilas no entorno da baía de Camamu se depararam com uma população majoritariamente negra e mestiça. Também tiveram notícias dos inúmeros quilombos que ali existiam desde pelo menos o século XVII, levando-lhes a caracterizar aquela localidade como terra de homens insolentes, cheios de vícios e propícios a crimes diversos.36 36 De passagem pela região, Martius e Spix (1938: 70) ainda avaliaram que “os portugueses aí estabelecidos pertencem às classes baixas: são marinheiros, carregadores e lavradores aborrecidos do trabalho, que, se considerando iguais aos privilegiados, não podem elevar a moralidade, nem a indústria dessa população decaída”. Tais adjetivos, no entanto, são bastante pertinentes para identificar outros grupos que talvez não estivessem na mira dos viajantes: as autoridades locais. Como veremos adiante, membros da Justiça e do corpo militar, não raro, utilizaram-se do poder de seus cargos em benefício próprio, promovendo uma série de ilegalidades. Essa prática se tornou forte especialmente entre os anos de 1832 e 1843, que, não por coincidência, foi o período de auge da repressão ao tráfico atlântico e da incrementação do tráfico interprovincial, mas também um período de sobressaltos na política e na organização administrativa e da Justiça no País.

Após 1837, com a chegada dos conservadores ao poder, as manifestações favoráveis ao tráfico ficaram cada vez mais abertas. Nessa esteira, a reforma do Código Criminal e do Código de Processo Criminal (1839-1841) minguou as atribuições do juiz de paz: investigação dos fatos, auto de corpo de delito, interrogatório, inquirição das testemunhas e indicação do culpado, tudo isso passou a ser tarefa do chefe de Polícia e dos delegados (Flory, 1975FLORY, Thomaz. Judicial Politics in Nineteenth-Century Brazil. The Hispanic American Historical Review, Duke University Press, v. 55, n. 4, p. 664-692, nov. 1975.: 668). Essa perda de poderes por parte dos juízes de paz pode ser entendida como uma tentativa de flexibilizar a entrada de africanos contrabandeados, uma vez que nem todos os juízes eram favoráveis ao tráfico. Muitos desses agentes públicos trabalhavam para prender e punir os contrabandistas, seus escravos e embarcações.

No dia 17 de maio de 1838, o juiz da vila de Jequiriçá, Antônio Dias de Castro, encaminhou à presidência da província um ofício noticiando e pedindo providências para coibir o tráfico de escravos que “está introduzido no Recôncavo, e hoje em todo o sul, com grande prejuízo dos proprietários e pacíficos lavradores”.37 37 Apeb. Seção Colonial e Provincial. Judiciário, Juízes de Jequiriçá, anos de 1829 a 1877, maço 2.446. Correspondência enviada pelo juiz municipal de Jequiriçá, Antonio Dias de Castro, para o presidente da província da Bahia, Thomas Xavier Garcia de Almeida. Jequiriçá, 17 de maio de 1838. Essa não foi uma denúncia contra o tráfico atlântico, como era comum no período, mas uma queixa relacionada à existência de um intenso tráfico interno. Segundo o juiz, os traficantes agiam nas propriedades da região sempre na calada da noite, e roubavam escravos e até mesmo pessoas livres, dando-lhes destino ignorado. Aquela não foi a primeira correspondência que o juiz enviou às autoridades requisitando força policial, pois, segundo ele, nem sempre se podia contar com a guarda nacional, posto que também estava envolvida em atividades ilícitas. Nesse último ofício, o juiz já demonstrava uma certa impaciência com o governo e lembrava que, por vários motivos, já tinha entregue o cargo, estando somente no aguardo da oficialização da demissão.38 38 Idem.

A impotência do juiz em agir se justificava pela conivência da guarda com as ações dos traficantes, o que inviabilizava a repressão e pode ter influenciado o pedido de demissão da função. Embora o tráfico interno de escravos tenha alcançado o pico no período posterior à lei de 1850, ele já era praticado com uma certa regularidade e organização desde muito antes, sendo um importante vetor de abastecimento de mão de obra em vários lugares, integrando regiões mais distantes aos principais centros de receptação de africanos. O crescimento desse modelo de tráfico nos anos imediatamente posteriores a 1831 foi, de algum modo, uma resposta às dificuldades estruturais para a continuidade do comércio nos moldes anteriores, especialmente para as regiões com maior demanda (Motta, 2012MOTTA, José Flávio. Escravos daqui, dali e de mais além: o tráfico interno de cativos na expansão cafeeira paulista (Areias, Guaratinguetá, Constituição/Piracicaba e Casa Branca, 1861-1887). São Paulo: Alameda/Fapesp, 2012.; Pires, 2009PIRES, Maria de Fátima N. Fios da vida: tráfico interprovincial e alforrias nos Sertoins de Sima - BA (1860-1920), São Paulo: Annablume/Fapesp, 2009.; Graham, 2002GRAHAM, Richard. Nos tumbeiros mais uma vez? O comércio interprovincial de escravos no Brasil. Afro-Ásia, Salvador, n. 7, p. 121-160, 2002.).

O roubo de escravos para o tráfico interno não teria tanto fôlego se os efeitos da lei de 1831 não reverberassem Brasil adentro. Da mesma forma, a dinâmica do roubo de escravos e o deslocamento dos cativos até um novo comprador, em pequenas localidades, dificilmente funcionaria com êxito sem a participação direta ou a conivência de pessoas influentes e que tivessem livre trânsito entre os diversos grupos sociais, principalmente quando revestidas de Poder Público, como era o caso do promotor de Justiça Reginaldo Muniz Freire.

Reginaldo foi preso nos arredores de Jequiriçá em 1838, acusado de envolvimento com o tráfico de escravos. Mas essa não foi a primeira vez que ele se meteu em encrenca. Somente após tomar posse no cargo de promotor naquela vila foi que se tornou pública a notícia de que ele já havia sido expulso da cidade de Nazaré das Farinhas por “mal comportamento”, mas, por não ter apresentado a folha corrida - documento obrigatório para assumir funções públicas -, sua vida pretérita ficou oculta, e acabou sendo nomeado juiz interino de Jequiriçá.39 39 Segundo o regulamento 120, de 31 de janeiro de 1842: “Art. 216 Para exercer o cargo de promotor serão com preferência escolhidos bacharéis Formados, e quando os não haja idôneos para os lugares, serão nomeados indivíduos que tenham as qualidades requeridas pela Lei de 3 de Dezembro de 1841 para ser Jurado, a necessária inteligência, instrução, e bom procedimento, preferindo-se aqueles que nos desempenhos dos deveres de outros cargos públicos já tiverem dado provas de que possuem essas qualidades. Art. 217 - Os promotores serão nomeados pelo Imperador no Município da Corte, e pelos Presidentes nas províncias, por tempo indefinido; e servirão enquanto convier a sua conservação ao Serviço público, sendo, no caso contrário, indistintamente demitidos pelo Imperador, ou pelos Presidentes das Províncias nas mesmas províncias. Art. 218 - Na falta, ou impedimento dos promotores, os juízes de Direito nomearão quem interinamente os substitua, e no primeiro caso (o de falta) participarão a vaga aos Presidentes das Províncias, com informação circunstanciada acerca das pessoas que julgarem dignas de ser nomeadas, ficando porém inteiramente livre aos mesmos Presidentes a escolha d’outras, quando as julgarem mais idôneas.” Ministério Publico Federal. Procuradoria da República em Pernambuco. Regulamento n. 120, de 31 de janeiro de 1842. Disponível em http://www.prpe. mpf.gov.br /internet /Legislacao/Criminal/Regulamentos/REGULAMENTON.-120-DE-31-DE-JANEIRO-DE-1842. Acesso em 16 de julho de 2015. A prisão em 1838 foi justificada pelo fato de Reginaldo Freire ter tirado do aljube, de forma ilegal, um escravo que lá se encontrava por ter sido roubado ou estar em fuga. Ainda pesava sobre o promotor a acusação de que promovia falsificação de documentos, fazendo “requerimentos de partes com a sua mesma letra em nome de qualquer um”, com o objetivo de soltar escravos presos.40 40 Apeb. Seção Colonial e Provincial. Judiciário, Juízes de Jequiriçá, maço 2.446, anos de 1829 a 1877. Correspondência enviada por Manoel Nunes da Silva ao presidente da província da Bahia em 10 de outubro de 1839.

Reginaldo Freire não estava sozinho na empreitada. Atuava em conluio com o então juiz de paz Inocêncio R. de Olliveira, o qual, segundo a acusação, “sem respeito às leis e as autoridades constituídas [...] quis à força das armas ir à cadeia tirar o dito Reginaldo”, não conseguindo pelo fato de o juiz de direito se encontrar em visita na localidade e manter reforço policial.41 41 Idem. O juiz Inocêncio, a pedido de Reginaldo Freire, já havia nomeado um certo Antônio dos Santos como promotor interino, tendo se utilizado do poder que o cargo lhe conferia para obrigar o carcereiro a soltar da cadeia um grupo de ciganos ladrões de escravos, entre os quais estava Manoel Pinheiro, que, após ser solto, pagou 400 mil réis para que o carcereiro facilitasse a fuga de vários outros escravos que haviam sido apreendidos.42 42 Idem. Trata-se, enfim, de uma ampla rede de pessoas das mais diversas condições sociais usufruindo dos escravos roubados para realizar negócios no tráfico interno.

Em seu obsessivo combate ao tráfico, o juiz Manoel Nunes decretou a prisão do ex-promotor Reginaldo Muniz Freire, do juiz de paz Inocêncio de Olliveira, e dos ex-juízes Thomaz Joaquim Peroba e Antônio dos Santos Silva, todos acusados de se envolverem com os roubos de escravos e outros crimes.43 43 Idem. Em vez de deixá-los em Jequiriçá, onde considerou precária a segurança da cadeia, o juiz decidiu que seriam enviados para a vila de Valença como forma de também se distanciarem de suas zonas de influência, porém, até onde a documentação permite seguir, não há notícia da efetiva prisão deles.

Até o início do século XIX, o comércio de africanos para o Brasil se organizou sem maiores sobressaltos, mas o contexto de implantação da lei de 1831, somado às condições políticas e econômicas, provocaram a formação de novas estratégias que asseguravam o sucesso do desembarque e da comercialização dos escravos, coisa que seria facilitada com o envolvimento de autoridades de diferentes níveis e poderes, as quais, é bem verdade, nunca estiveram distantes do trato negreiro (Parron, 2011PARRON, Tâmis Peixoto. A política da escravidão no Império do Brasil, 1826-1865. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011.). Alavancado pela retomada econômica do início do século XIX, o contrabando de africanos criou artimanhas não só de manutenção, mas de estímulo ao negócio, uma vez que a escravidão estava integrada “no todo do sistema capitalista” (Tavares, 1988TAVARES, Luiz H. Dias. O capitalismo no comércio proibido de escravos. Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, São Paulo, n. 28, 1988.: 45).

O perfil do cargo de juiz de paz, as condições políticas em vigor a partir da segunda metade da década de 1830, e o distanciamento geográfico em relação ao poder central são fatores que contribuíram para que autoridades públicas do poder local estivessem diretamente envolvidas com o contrabando de escravos. Muitas dessas autoridades, como vimos, agiam visando garantir o funcionamento dessa engrenagem da qual podiam se beneficiar diretamente. Não se descarta, no entanto, que alguns desses agentes - em especial os juízes de paz, por ser um cargo eletivo e que, por algum tempo, concentrou poderes assombrosos - estivessem sob pressão e a serviço de grupos mais poderosos, com os quais mantinham relações de adulação e sujeição. Em pequenas vilas e distritos situados a longas distâncias da capital, autoridades públicas podiam se tornar sujeitas às ingerências externas, difundindo a percepção de impunidade e favorecendo a prática de ilicitudes. Isso explica a aversão que parte da população tinha em relação aos juízes, expressa, por exemplo, na afirmação de que “todos são uns ladrões”.44 44 Ibidem. Seção Colonial Provincial. Juízes de Valença, maço 2.419. Auto do exame que procedeu o juiz de paz do distrito, Antônio José Bernardes, da freguesia de Boipeba, por ofício que lhe dirigiu o doutor juiz de Direito da Comarca de Valença, João Antônio de Vasconcelos. Boipeba, 10 de setembro de 1837.

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  • VILHENA, Luis dos Santos. A Bahia no século XVIII. Salvador: Itapuã, 1969. V. 1.
  • 1
    Os estudos sobre a lei de 1831 e seus impactos no tráfico de escravos não são recentes e tampouco restritos. Alguns trabalhos marcaram a historiografia ao questionarem a eficácia da lei, engrossando o coro de que se tratava de uma “lei para inglês ver”: Leslie Bethell (2002)BETHELL, Leslie. A abolição do tráfico de escravos no Brasil. A Grã-Bretanha, o Brasil e a questão do tráfico de escravos, 1807-1869. Brasília: Senado Federal, 2002., Ubiratan Castro de Araújo (1998) e Robert Conrad (1985) se situam nesse campo. Autores como João J. Reis (2003REIS, João José. Rebelião escrava no Brasil: a história do levante dos malês em 1835. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.: 36), Tâmis Parron (2011: 125) e Beatriz Mamigonian (2017MAMIGONIAM, Beatriz G. Africanos livres: a abolição do tráfico de escravos no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2017.: 86) mostraram que, nos momentos imediatamente posteriores à 1831, houve uma sensível diminuição na importação de africanos para o Brasil e, consequentemente, uma diminuição na oferta; e um aumento de preços e a sensação de crise entre os proprietários de escravos, o que descarta a ideia de que a lei tivesse sido criada como mera tapeação. Jaime Rodrigues (2000)RODRIGUES, Jaime. O infame comércio: propostas e experiências no final do tráfico de africanos para o Brasil (1800-1850). Campinas: Editora Unicamp, 2000. e Beatriz Mamigonian (2009)MAMIGONIAM, Beatriz G. A proibição do tráfico atlântico e a manutenção da escravidão. In: GRINBERG, Keila; SALLES, Ricardo (org.). O Brasil Imperial:1808-1831. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2009. V. I. também apontaram que a lei foi um posicionamento do governo brasileiro contra os excessos de intervenção do Império Britânico na questão do tráfico, avocando para si a responsabilidade pela regulamentação do negócio. Além disso, o fato de a lei de 1831 nunca ter sido revogada possibilitou que, décadas mais tarde, abolicionistas, escravos e advogados recorressem aos tribunais exigindo a liberdade de africanos introduzidos ilegalmente no País após aquele ano (Azevedo, 2007AZEVEDO, Elciene. Para inglês ver? Os advogados e a Lei de 1831. Estudos Afro-Asiáticos, v. 29, n. 1-3, p. 245-280, jan.-dez. 2007.; Grinberg, 2007GRINBERG, Keila. Escravidão, alforria e direito no Brasil oitocentista: reflexões sobre a lei de 1831 e o “princípio da liberdade” na fronteira sul do Império brasileiro. In: CARVALHO, José Murilo de. Nação e cidadania no Império: novos horizontes. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007.; Silva, 2007SILVA, Ricardo Tadeu Caíres. O resgate da Lei de 7 de novembro de 1831 no contexto abolicionista baiano. Estudos Afro-Asiáticos, v. 29, n. 1-3, p. 301-340, jan.-dez. 2007.).
  • 2
    Para Reis, Gomes e Carvalho (2010: 257), “os defensores do tráfico no Brasil apropriaram-se de um discurso nacionalista segundo o qual o tráfico seria um direito dos brasileiros, que não deveriam se submeter ao império britânico”.
  • 3
    Segundo Luís dos Santos Vilhena (1969VILHENA, Luis dos Santos. A Bahia no século XVIII. Salvador: Itapuã, 1969. V. 1.: 675-733), aquela região também tinha matas que estavam cheias de caças do ar e da terra, como porcos, pacas, peruas, tatus, coelhos, preás, entre outros; além de não faltar peixes e frutas silvestres abundantes, oferecendo condições excepcionais para quem quisesse procurar refúgio.
  • 4
    Parte desse trânsito seguia pela Estrada do Salitre, uma das rotas de comércio mais conhecidas, partindo de Camamu e alcançando a vila de Montes Altos, já na fronteira com Minas Gerais. Era por ali que transitava boa parte dos escravos levados para a região. João J. Reis (2003: 36) tratou da exportação de escravos da Bahia e de outras províncias do Nordeste para as regiões cafeeiras na década de 1830.
  • 5
    Sobre o uso de áreas remotas do litoral para o desembarque de escravos após 1831, Jaime Rodrigues (2000: 143) confirma que neles a perseguição se tornava mais difícil “porque as bocas dos rios, enseadas e pequenas baías ofereciam refúgios que dificultam as ações dos temidos cruzeiros britânicos e das autoridades locais, em geral baseadas nas sedes das vilas”.
  • 6
    Arquivo Público do Estado da Bahia (Apeb). Seção Colonial Provincial. Juízes de Valença, maço 2.419. “Auto do exame que procedeu o juiz de paz do distrito, Antônio José Bernardes, da freguesia de Boipeba, por ofício que lhe dirigiu o doutor juiz de Direito da Comarca de Valença, João Antônio de Vasconcelos”. Boipeba, 10 de setembro de 1837.
  • 7
    Ibidem. Seção Colonial Provincial. Juízes de Valença, maço 2.419. Correspondência enviada pelo Juiz de Paz Antônio José Bernardes ao Juiz de Direito da Comarca de Valença, João Antônio de Vasconcelos, 10 de setembro de 1837.
  • 8
    Idem.
  • 9
    Ibidem. Seção Colonial Provincial. Juízes de Valença, maço 2.419. “Auto de exame que procedeu o Juiz de Paz do distrito e freguesia de Boipeba por ofício que lhe dirigiu o Doutor Juiz de Direito desta Comarca”, 14 de setembro de 1837.
  • 10
    Idem.
  • 11
    Sidney Chalhoub (2012: 95-108) discutiu as artimanhas utilizadas para driblar a legislação e “comprovar” que um africano recém-chegado era ladino.
  • 12
    Coleção de Leis do Império do Brasil. Decreto de 12 de abril de 1832, página 100, v. 1, pt. II (publicação original). Segundo o decreto de 12 de abril de 1832 que regulamentava a lei de 7 de novembro de 1831, no artigo 6º, “o Intendente Geral da Polícia, ou o Juiz de Paz, que proceder à visita, encontrando indícios de ter o barco conduzido pretos, procederá às indagações que julgar necessárias para se certificar do fato, e procederá na forma da lei citada.”
  • 13
    Brasil. Lei de 15 de outubro de 1827. Cria em cada uma das freguesias e das capelas curadas um Juiz de Paz e suplente. Artigo 5º, §1º. Disponível em: http://www2.camara.leg.br/legin/fed/lei_sn/1824-1899/lei-38396-15-outubro-1827-566688-publicacaooriginal-90219-pl.html. Acesso em: 4 de setembro de 2018.
  • 14
    Segundo Flory (1986: 81-89), a instituição da função de juiz de paz absorveu as atividades desempenhadas por outras três personagens que atuavam no Judiciário desde o período colonial: o juiz ordinário, o juiz de vintena e o almotacel, cargos que, na época da extinção, não desfrutavam de quase nenhum prestígio, sendo seus ocupantes comumente acusados de incapacidade e de promover atos à revelia das leis e tirando proveito próprio ou para seu círculo de interesse.
  • 15
    Câmara dos Deputados. Lei de 1º de outubro de 1828. Dá nova forma às Câmaras Municipais, marca suas atribuições, e o processo para a sua eleição, e dos Juízes de Paz. Disponível em: http://www2.camara.leg.br/legin/fed/lei_sn/1824-1899/lei-38281-1-outubro-1828-566368-publicacaooriginal-89945-pl.html. Acesso em: 4 de setembro de 2018.
  • 16
    Brasil. Lei de 29 de novembro de 1832. Promulga o Código do Processo Criminal de primeira instância com disposição provisória acerca da administração da Justiça Civil. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/LIM/LIM-29-11-1832.htm>. Acesso em: 4 de setembro de 2018.
  • 17
    Os dados foram cotejados do The Trans-Atlantic Slave Trade Database (TSTD). Disponível em: http://www.slavevoyages.org. Acesso em: 15 de agosto de 2018.
  • 18
    Na primeira metade do século XIX, Taipus correspondia ao termo da vila de Marau. Possivelmente “Taipus” foi usada como uma identificação genérica para as muitas localidades que tiveram desembarques em toda aquela região, o que incluía a baía de Camamu, ali bem próximo. Preferi utilizar a nomenclatura atualizada: Taipus.
  • 19
    Ver The Trans-Atlantic Slave Trade Database. Disponível em http://www.slavevoyages.org. Acesso em: 15 de agosto de 2018.
  • 20
    Apeb. Seção Colonial e Provincial. Escravos: Assuntos diversos, 1835, Mmço 2.896. Correspondência enviada por José da Silva e Azevedo ao presidente da província da Bahia, Joaquim Marcelino de Britto. Itaparica, 29 de outubro de 1835.
  • 21
    Idem.
  • 22
    Idem.
  • 23
    Idem.
  • 24
    Os portugueses, como os acusados José Francisco da Costa e João Pedro Carreirão, eram os principais agentes do tráfico na Bahia (Silva Júnior, 2012: 176).
  • 25
    Apeb. Seção Colonial Provincial. Juízes de Valença, maço 2.419. “Auto do exame que procedeu o juiz de paz do distrito, Antônio José Bernardes, da freguesia de Boipeba, por ofício que lhe dirigiu o doutor juiz de Direito da Comarca de Valença, João Antônio de Vasconcelos”. Boipeba, 10 de setembro de 1837.
  • 26
    Ibidem. Seção Colonial e Provincial. Escravos: Assuntos diversos, ano de 1835, maço 2.896. Correspondência enviada por José da Silva e Azevedo ao presidente da província da Bahia, Joaquim Marcelino de Britto. Itaparica, 29 de outubro de 1835.
  • 27
    Idem.
  • 28
    Ibidem. Seção Colonial e Provincial. Juízes de Nazaré, maço 2.502, caixa 815. Correspondência enviada pelo Juiz de Direito de Nazaré, André Corsino Pinto Chichorro da Gama, ao presidente da província da Bahia, Thomaz Xavier Garcia de Almeida. Nazaré, 18 de junho de 1838.
  • 29
    Idem.
  • 30
    Idem.
  • 31
    Ibidem. Seção Colonial Provincial. Juízes de Nazaré, maço 2.502, caixa 815. Correspondência enviada pelo Juiz de Direito de Nazaré, André Corsino Pinto Chichorro da Gama, ao presidente da província da Bahia, Thomaz Xavier Garcia de Almeida. Nazaré, 22 de junho de 1838.
  • 32
    Os lucros obtidos com o tráfico sempre foram enormes. Pessoas com poucos recursos que se aventurassem a investir nesse negócio podiam obter um bom incremento em suas economias. Sobre isso, Carlos Silva Júnior (2012)SILVA JR., Carlos. Tráfico, escravidão e comércio em Salvador do século XVIII: a vida de Francisco Gonçalves Dantas (1699-1738). In: REIS, João José; AZEVEDO, Elciene. (org.). Escravidão e suas sombras. Salvador: EDUFBA, 2012. p. 143-185. explica trajetórias de alguns traficantes e financiadores do tráfico, como o português Francisco Gonçalves Dantas, que, de caixeiro de um grande comerciante, obteve recursos suficientes para se lançar como financista do tráfico em Salvador no século XVIII.
  • 33
    Apeb. Seção Colonial Provincial. Juízes de Nazaré, maço 2.502, caixa 815. Correspondência enviada pelo Juiz de Direito de Nazaré, André Corsino Pinto Chichorro da Gama, ao presidente da província da Bahia, Thomaz Xavier Garcia de Almeida. Nazaré, 9 de julho de 1838.
  • 34
    Ibidem. Seção Colonial Provincial. Juízes de Nazaré, maço 2.502, caixa 815. Correspondência enviada pelo Juiz de Direito de Nazaré, André Corsino Pinto Chichorro da Gama, ao presidente da província da Bahia, Thomaz Xavier Garcia de Almeida. Nazaré, 23 de julho de 1838.
  • 35
    Ibidem. Seção Colonial e Provincial. Escravos: Assuntos diversos, ano de 1835, maço 2.896. Correspondência enviada por José da Silva e Azevedo ao presidente Joaquim Marcelino de Britto. Itaparica, 29 de outubro de 1835.
  • 36
    De passagem pela região, Martius e Spix (1938MARTIUS, Carl F. P. von; SPIX, J. B. von. Através da Bahia. Excertos da obra Reise in Brasilien. São Paulo: Companhia. Editora Nacional, 1938. Disponível em: Disponível em: http://www.brasiliana.com.br/obras/atraves-a-bahia-excertos-da-obra-reise-in-brasilien . Acesso em: 2 de agosto de 2018.
    http://www.brasiliana.com.br/obras/atrav...
    : 70) ainda avaliaram que “os portugueses aí estabelecidos pertencem às classes baixas: são marinheiros, carregadores e lavradores aborrecidos do trabalho, que, se considerando iguais aos privilegiados, não podem elevar a moralidade, nem a indústria dessa população decaída”.
  • 37
    Apeb. Seção Colonial e Provincial. Judiciário, Juízes de Jequiriçá, anos de 1829 a 1877, maço 2.446. Correspondência enviada pelo juiz municipal de Jequiriçá, Antonio Dias de Castro, para o presidente da província da Bahia, Thomas Xavier Garcia de Almeida. Jequiriçá, 17 de maio de 1838.
  • 38
    Idem.
  • 39
    Segundo o regulamento 120, de 31 de janeiro de 1842: “Art. 216 Para exercer o cargo de promotor serão com preferência escolhidos bacharéis Formados, e quando os não haja idôneos para os lugares, serão nomeados indivíduos que tenham as qualidades requeridas pela Lei de 3 de Dezembro de 1841 para ser Jurado, a necessária inteligência, instrução, e bom procedimento, preferindo-se aqueles que nos desempenhos dos deveres de outros cargos públicos já tiverem dado provas de que possuem essas qualidades. Art. 217 - Os promotores serão nomeados pelo Imperador no Município da Corte, e pelos Presidentes nas províncias, por tempo indefinido; e servirão enquanto convier a sua conservação ao Serviço público, sendo, no caso contrário, indistintamente demitidos pelo Imperador, ou pelos Presidentes das Províncias nas mesmas províncias. Art. 218 - Na falta, ou impedimento dos promotores, os juízes de Direito nomearão quem interinamente os substitua, e no primeiro caso (o de falta) participarão a vaga aos Presidentes das Províncias, com informação circunstanciada acerca das pessoas que julgarem dignas de ser nomeadas, ficando porém inteiramente livre aos mesmos Presidentes a escolha d’outras, quando as julgarem mais idôneas.” Ministério Publico Federal. Procuradoria da República em Pernambuco. Regulamento n. 120, de 31 de janeiro de 1842. Disponível em http://www.prpe. mpf.gov.br /internet /Legislacao/Criminal/Regulamentos/REGULAMENTON.-120-DE-31-DE-JANEIRO-DE-1842. Acesso em 16 de julho de 2015.
  • 40
    Apeb. Seção Colonial e Provincial. Judiciário, Juízes de Jequiriçá, maço 2.446, anos de 1829 a 1877. Correspondência enviada por Manoel Nunes da Silva ao presidente da província da Bahia em 10 de outubro de 1839.
  • 41
    Idem.
  • 42
    Idem.
  • 43
    Idem.
  • 44
    Ibidem. Seção Colonial Provincial. Juízes de Valença, maço 2.419. Auto do exame que procedeu o juiz de paz do distrito, Antônio José Bernardes, da freguesia de Boipeba, por ofício que lhe dirigiu o doutor juiz de Direito da Comarca de Valença, João Antônio de Vasconcelos. Boipeba, 10 de setembro de 1837.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    25 Abr 2019
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2019

Histórico

  • Recebido
    24 Set 2018
  • Aceito
    12 Fev 2019
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