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Para além da avaliação da letalidade e da gravidade da doença em pacientes críticos: estamos apenas começando...

EDITORIAL

Para além da avaliação da letalidade e da gravidade da doença em pacientes críticos: estamos apenas começando...

Márcio SoaresI; Élie AzoulayII

IPrograma de Pós-Graduação em Oncologia, Instituto Nacional de Câncer - INCA - Rio de Janeiro (RJ), Brasil; Instituto D'Or de Pesquisa e Ensino - Rio de Janeiro (RJ), Brasil

IIService de Réanimation Médicale, Université Paris-Diderot, Sorbonne Paris-Cité, Faculté de Médecine - Paris, France

Autor correspondente Autor correspondente: Márcio Soares Instituto D'Or de Pesquisa e Ensino Rua Diniz Cordeiro, 30, 3º andar CEP: 22281-100 - Rio de Janeiro (RJ), Brasil E-mail: marciosoaresms@gmail.com

Nas últimas décadas, o cenário dos cuidados intensivos mudou substancialmente. Globalmente, um número cada vez maior de pacientes necessita de internação em unidades de terapia intensiva (UTI). Tal fato se deve a diversos fatores, que incluem um maior acesso da população ao sistema de saúde; os avanços no manejo de diversas doenças, com o consequente aumento na sobrevida desses pacientes; e a disponibilização de tratamentos multimodais agressivos, com potencial de complicações graves, que necessitam de monitoração ou manejo na UTI. Paralelamente, avanços nos cuidados resultaram em melhorias substanciais na sobrevida de pacientes com doenças e complicações críticas variadas.(1,2)

Até o final do século passado, a caracterização dos pacientes críticos era centrada na gravidade da doença aguda, e o desfecho primário para esses pacientes era a letalidade em curto prazo (28 a 30 dias), especialmente na avaliação da eficácia das intervenções.(3) A partir dos anos 2000, ficou evidente que essa avaliação era incompleta e inaproriada, e que os estudos deveriam considerar a letalidade em prazos maiores (necessariamente em, pelo menos, 90 dias e, idealmente, após 6 a 12 meses).(3) Além disso, a avaliação da letalidade per se é também incompleta. Atualmente, a letalidade hospitalar para diagnósticos e complicações agudas prevalentes na terapia intensiva, como sepse e síndrome da angústia respiratória aguda (SARA), situa-se entre 20 e 40%.(2,4) A melhora do prognóstico estende-­se mesmo para subgrupos de pacientes com prognóstico muito ruim há pouco tempo, como pacientes com síndrome da imunodeficiência adquirida (AIDS) ou neoplasias.(5-7) Ao longo dos últimos anos, estudos em diferentes populações e regiões demonstraram que sobreviventes da internação na UTI apresentam complicações e disfunções orgânicas residuais com impacto significativo na capacidade funcional, qualidade vida e recuperação da capacidade laboral.(8-10) Essas complicações, que se seguem à doença crítica e aos cuidados intensivos, são particularmente importantes para pacientes com doenças crônicas graves, como o câncer, AIDS e doenças autoimunes, pois podem implicar na limitação do oferecimento ou continuidade do tratamento mais apropriado.

Por outro lado, a capacidade funcional e a qualidade de vida prévias têm impacto significativo no prognóstico de pacientes críticos e, muitas das vezes, são utilizadas nas discussões sobre a avaliação da propriedade da internação na terapia intensiva.(6,11) Entretanto, informações na literatura, especialmente em pacientes brasileiros, são limitadas. Neste número da Revista Brasileira de Terapia Intensiva, Tereran et al.(12) avaliaram a qualidade de vida prévia em 91 pacientes (24% do total de internações) admitidos nas UTIs de um hospital terciário.(12) Os autores avaliaram apenas pacientes despertos e capazes de participar do estudo nas primeiras 72 horas de internação na UTI. Complicações cardíacas e cuidados no pós-operatório foram as causas de internação em 85% dos pacientes. Utilizando o instrumento de avaliação SF-36, os autores observaram que a qualidade de vida prévia à internação é considerada ruim, principalmente nos domínios físicos. Além, disso os autores demonstraram que, nessa população, a qualidade de vida prévia teve correlação fraca com a gravidade da doença à internação na UTI. Em nossa prática diária como intensivistas, é notória a prevalência de pacientes internados nas UTIs para os quais inferimos que a capacidade funcional e a qualidade prévias sejam reduzidas. Entretanto, esse estudo tem o mérito contribuir para um melhor entendimento dos fatores pré-morbidos no paciente crítico, por quantificar essa informação por meio da utilização de um instrumento validado. Entretanto, algumas considerações devem ser levadas em conta na interpretação de seus resultados. É preciso ter atenção quanto a potenciais viéses de seleção que podem comprometer a generalização dos resultados. Os pacientes internados são de baixa gravidade, como indicado por valores de escores de gravidade, taxas de letalidade e duração da internação reduzidos. A maioria dos pacientes foi internada por complicações cardíacas e em pós-operatório de cirurgias complexas ou de alto risco, apresentando prevalência elevada de comorbidades. Dessa forma, não é possível inferir que esses resultados se apliquem a pacientes sem comorbidades prévias e que tenham sido internados em situação de maior gravidade. Além, disso o presente estudo não avaliou a qualidade de vida após a internação na UTI, o que impede a avaliação do impacto da doença crítica e seu tratamento nesse domínio. Por fim, como somente pacientes que foram internados na UTI foram avaliados, é preciso também levar em consideração viéses relacionados aos critérios de triagem para internação na UTI vigentes na instituição e, eventualmente, relacionados à decisão do próprio paciente em ser internado ou não na UTI. A despeito dessas limitações, estudos como o de Tereran et al.(12) são relevantes, pois podem auxiliar intensivistas a identificar pacientes mais vulneráveis às complicações residuais após a internação na UTI e os fatores passíveis de modificação relacionados à elas. Esses estudos são fundamentais para avaliação do impacto de estratégias de prevenção em pacientes de alto risco para elas e reabilitação daqueles que as desenvolveram.

Conflitos de interesse: Nenhum.

  • 1. Martin GS, Mannino DM, Eaton S, Moss M. The epidemiology of sepsis in the United States from 1979 through 2000. N Engl J Med. 2003;348(16):1546-54.
  • 2. Li G, Malinchoc M, Cartin-Ceba R, Venkata CV, Kor DJ, Peters SG, et al. Eight-year trend of acute respiratory distress syndrome: a population-based study in Olmsted County, Minnesota. Am J Respir Crit Care Med. 2011;183(1):59-66.
  • 3. Marshall JC, Vincent JL, Guyatt G, Angus DC, Abraham E, Bernard G, et al. Outcome measures for clinical research in sepsis: a report of the 2nd Cambridge Colloquium of the International Sepsis Forum. Crit Care Med. 2005;33(8):1708-16.
  • 4. Levy MM, Artigas A, Phillips GS, Rhodes A, Beale R, Osborn T, et al. Outcomes of the Surviving Sepsis Campaign in intensive care units in the USA and Europe: a prospective cohort study. Lancet Infect Dis. 2012;12(12):919-24.
  • 5. Soares M, Caruso P, Silva E, Teles JM, Lobo SM, Friedman G, Dal Pizzol F, Mello PV, Bozza FA, Silva UV, Torelly AP, Knibel MF, Rezende E, Netto JJ, Piras C, Castro A, Ferreira BS, Réa-Neto A, Olmedo PB, Salluh JI; Brazilian Research in Intensive Care Network (BRICNet). Characteristics and outcomes of patients with cancer requiring admission to intensive care units: a prospective multicenter study. Crit Care Med. 2010;38(1):9-15.
  • 6. Azoulay E, Soares M, Darmon M, Benoit D, Pastores S, Afessa B. Intensive care of the cancer patient: recent achievements and remaining challenges. Ann Intensive Care. 2011;1(1):5
  • 7. Japiassú AM, Amâncio RT, Mesquita EC, Medeiros DM, Bernal HB, Nunes EP, et al. Sepsis is a major determinant of outcome in critically ill HIV/AIDS patients. Crit Care. 2010;14(4):R152.
  • 8. Herridge MS, Cheung AM, Tansey CM, Matte-Martyn A, Diaz-Granados N, Al-Saidi F, Cooper AB, Guest CB, Mazer CD, Mehta S, Stewart TE, Barr A, Cook D, Slutsky AS; Canadian Critical Care Trials Group. One-year outcomes in survivors of the acute respiratory distress syndrome. N Engl J Med. 2003;348(8):683-93.
  • 9. Iwashyna TJ, Ely EW, Smith DM, Langa KM. Long-term cognitive impairment and functional disability among survivors of severe sepsis. JAMA. 2010;304(16):1787-94.
  • 10. Oeyen SG, Vandijck DM, Benoit DD, Annemans L, Decruyenaere JM. Quality of life after intensive care: a systematic review of the literature. Crit Care Med. 2010;38(12):2386-400.
  • 11. Guidelines for intensive care unit admission, discharge, and triage. Task Force of the American College of Critical Care Medicine, Society of Critical Care Medicine. Crit Care Med. 1999;27(3):633-8.
  • 12. Tereran NP, Zanei SS, Whitaker IY. Qualidade de vida prévia à internação em unidade de terapia intensive. Rev Bras Ter Intensiva. 2012;24(4):341-6.
  • Autor correspondente:
    Márcio Soares
    Instituto D'Or de Pesquisa e Ensino
    Rua Diniz Cordeiro, 30, 3º andar
    CEP: 22281-100 - Rio de Janeiro (RJ), Brasil
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  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      30 Jan 2013
    • Data do Fascículo
      Dez 2012
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