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“Música Paraense” e Terruá Pará: identidade regional, indústria cultural e psicologia das massas

“Pará Music” and Terruá Pará: regional identity, cultural industry and mass psychology

La «Musique Paraense» et le Terruá Pará: identité régionale, l’industrie culturelle et la psychologie des foules

“Música Paraense” y Terruá Pará: identidad regional, industria cultural y psicología de las masas

Resumo

Desde a consolidação de emissoras de rádio e TV no Pará, a mídia local propaga a ideia de uma “música paraense”, título utilizado com frequência em uma série de eventos recentemente produzidos dentro e fora do estado. Ao contestar essa singularização, a presente pesquisa apresenta uma análise psicossociológica dos mecanismos que operam na inter-relação entre indústria cultural e formação de massas, utilizando como objeto privilegiado de estudo o espetáculo Terruá Pará. Visando tal intento, além do recurso à revisão bibliográfica, realizou-se uma pesquisa documental sobre parte do material impresso produzido para a terceira edição do festival. Em termos conclusivos, defende-se que o Terruá Pará, embora pautado por um discurso pretensamente racional em prol da valorização da música regional, torna-se dialeticamente promotor de irracionalidades expressas na sugestão de modos de subjetivação específicos que, desconsiderando diversidades, acabam por reduzir o seu público consumidor à qualidade de multidão abstrata.

Palavras-chave:
capitalismo; música; narcisismo; identificação

Abstract

Since the consolidation of radio and TV broadcasters in Pará, local media has propagated the idea of a “Pará music,” moniker often used in a series of events produced in and outside the State. By contesting such singularization, this psychosociological analysis unveils the mechanisms that mediate cultural industry and mass formation by analyzing the spectacle Terruá Pará. For this purpose, a bibliographic review was conducted, as well as a documentary research concerning part of the printed material produced for the festival’s third edition. In conclusion, although Terruá Pará appears based on an allegedly rational discourse to value regional music, it dialectically promotes irrationalities expressed in specific modes of subjectivation that, disregarding diversity, reduce its consuming public to the quality of abstract crowd.

Keywords:
capitalism; music; narcissism; identification

Résumé

Depuis la consolidation des stations de radio et télévision à l’état du Pará, les médias locaux ont diffusé l’idée d’une «musique paraense», expression souvent utilisée dans une série d’événements récemment produits dans cet état autant que dehors. En contestant cette singularisation, cette recherche présente une analyse psychosociologique des mécanismes agissant dans l’interrelation entre l’industrie culturelle et la formation des foules, en prenant comme objet principal d’étude le spectacle Terruá Pará. Dans ce but, outre le recours à l’étude bibliographique, on a mené une recherche documentaire sur une partie du matériel imprimé produit pour la troisième édition du festival. En conclusion, on soutient que Terruá Pará, bien que guidé par un discours prétendument rationnel en faveur de la valorisation de la musique régionale, devient dialectiquement promoteur d’irrationalités exprimées par la suggestion de modes de subjectivation spécifiques qui, en ignorant les diversités, finissent par réduire son public consommateur à une foule abstraite.

Mots-clés:
capitalisme; musique; narcissisme; identification

Resumen

Desde la consolidación de las estaciones de radio y televisión en Pará, los medios locales han difundido la “musica paraense”, título de uso frecuente en eventos producidos dentro y fuera del Estado. Al impugnar esta singularización, esta investigación presenta un análisis psicosociológico de los mecanismos que operan en la interrelación entre la industria cultural y la formación de masas, utilizando como objeto privilegiado de estudio el espectáculo Terruá Pará. Además del uso de la revisión bibliográfica, fue llevada a cabo una investigación documental sobre parte del material producido para la tercera edición del festival. En conclusión, se argumenta que Terruá Pará, aunque guiado por un discurso supuestamente racional a favor de la valorización de la música regional, se convierte dialécticamente en promotor de irracionalidades expresadas en la sugerencia de modos específicos de subjetivación que, sin tener en cuenta las diversidades, reducen su público consumidor a la calidad de multitud abstracta.

Palabras-clave:
capitalismo; música; narcisismo; identificación

Se é certo que, desde a consolidação de emissoras de rádio e TV no Pará, a mídia local propaga a ideia de uma “música paraense”, ao longo das duas últimas décadas esse título vem sendo apresentado com mais frequência em uma série de eventos musicais produzidos dentro e fora do estado. Ou seja, a música vem sendo a principal responsável pela divulgação de uma indústria cultural que, entre os seus objetivos, parece visar a propagação de uma identidade regional específica a partir do produto cultural por ela é ofertado: no caso, um “ser paraense”. Exemplo disso pode ser visto na atuação da Cultura - Rede de Comunicação, pertencente à Fundação Paraense de Radiodifusão (Funtelpa), de propriedade do Governo do Estado do Pará, que, no uso de seus aparatos tecnológicos e poder de alcance de informação, tem utilizado a imagem de espetáculos como o Terruá Pará, bem como a construção estético-musical contida nas músicas dos artistas que dele participaram, para sugerir a ideia de uma “identidade paraense uniforme” (Baena & Filho, 2013Baena, T., & Filho, O. (2013). O espetáculo musical Terruá Pará: a música popular massiva convertida em política de estesia. Contemporânea/comunicação e cultura, 11(2), 391-408. doi: https://doi.org/10.9771/contemporanea.v11i2.8146
https://doi.org/10.9771/contemporanea.v1...
; Castro, 2012Castro, F. (2012). Comunicação, identidade e tv pública no Pará. Em Questão, 18(2), 149-167. Recuperado de: https://bit.ly/35dm9Rg
https://bit.ly/35dm9Rg...
; Oliveira 2000Oliveira, A. (2000). Ritmos e cantares. Belém, PA: SECULT.).

De forma a contribuir para uma reflexão crítica acerca do exclusivismo e, com ele, do reducionismo embutidos no “ser paraense” descrito no parágrafo anterior, adotou-se como principal objeto de estudo deste trabalho o acima referido espetáculo Terruá Pará para, a partir dele, propor-se uma análise das motivações, características e eventuais consequências ao mesmo tempo psicossociológicas e mercadológicas da criação e difusão de uma identidade regional tão específica. Nesses termos, entende-se ser necessário melhor compreender os mecanismos que operam na inter-relação entre a noção de indústria cultural e a formação de uma massa específica - no caso aquela composta por consumidores em potencial, construída a partir do ufanismo regionalista embutido no produto “música paraense”. Para nos auxiliar nessa tarefa apoiamo-nos em termos de referenciais teóricos, em elementos tanto da psicanálise freudiana quanto da teoria crítica proposta por Theodor Adorno. Além deles, outros autores e comentadores contemporâneos daqueles serão oportunamente apresentados e discutidos aqui. Antes, porém, passemos a algumas necessárias considerações de ordem metodológica acerca do desenvolvimento deste trabalho.

Acerca da presente pesquisa: características, objetivos, objeto e modus operandi

A pesquisa que deu origem a este artigo se traduz em uma tentativa de relacionar estudos teóricos e pesquisa documental. Quanto aos primeiros, realizamos uma revisão bibliográfica a fim de obter dados e melhor fundamentar a compreensão e discussão dos conceitos de psicologia das massas e indústria cultural tal como definidos por Sigmund Freud e Theodor Adorno, respectivamente. Já no que se refere à utilização da pesquisa documental, façamos nossos os precisos termos de Fonseca (2002Fonseca, J. (2002). Metodologia da pesquisa científica. Fortaleza, CE: UECE., p. 32), para o qual

A pesquisa documental trilha os mesmos caminhos da pesquisa bibliográfica, não sendo fácil por vezes distingui-las. A pesquisa bibliográfica utiliza fontes constituídas por material já elaborado, constituído basicamente por livros e artigos científicos localizados em bibliotecas. A pesquisa documental recorre a fontes mais diversificadas e dispersas, sem tratamento analítico, tais como: tabelas estatísticas, jornais, revistas, relatórios, documentos oficiais, cartas, filmes, fotografias, pinturas, tapeçarias, relatórios de empresas, vídeos de programas de televisão, etc.

Desse modo, nossa pesquisa documental foi realizada a partir de material (CD e DVD) produzido para a terceira edição do Terruá Pará, ocorrido em 2013, de que foram coletados: ficha técnica, texto de apresentação e, ainda, letras das músicas que compuseram o espetáculo. Em seguida passamos à organização e tratamento dos dados obtidos, utilizando para tanto uma análise de conteúdo de natureza eminentemente qualitativa e que buscou seguir o movimento de Adorno (1953/2008Adorno, T. W. (2008). As estrelas descem à terra: a coluna de astrologia do Los Angeles Times: um estudo sobre superstição secundária (P. R. de Oliveira, trad.). São Paulo, SP: Ed. Unesp. (Trabalho original publicado em 1953)) em As estrelas descem à terra, livro que concebe uma psicologia social voltada para a seminal ideia de pseudo racionalidade - ou seja, para informações advindas de um espaço singularmente situado entre a razão e os impulsos inconscientes, sendo a interação de ambas pensada como diretamente atuante nos movimentos de massa modernos.

É, portanto, a partir de tal perspectiva que Adorno (1953/2008Adorno, T. W. (2008). As estrelas descem à terra: a coluna de astrologia do Los Angeles Times: um estudo sobre superstição secundária (P. R. de Oliveira, trad.). São Paulo, SP: Ed. Unesp. (Trabalho original publicado em 1953), 1955/2015Adorno, T. W. (2015). Sobre a relação entre sociologia e psicologia. In T. W. Adorno (Org.), Ensaios sobre psicologia social e psicanálise (V. Freitas, trad., pp. 71-135). São Paulo, SP: Ed. Unesp . (Trabalho original publicado em 1955)) promove uma “psicologia social analiticamente orientada” - isto é, pautada por conhecimentos advindos da psicanálise agora agregados à teoria crítica da sociedade -, a qual seria responsável por uma compreensão mais adequada da cultura em seus determinantes ao mesmo tempo sociológicos, políticos, econômicos e - de maneira importante - pulsionais. Com efeito, sem apregoar uma rígida separação entre noções como as de indivíduo e massa, o autor sustenta que é a compreensão da inter-relação entre ambas que se revela fundamental para a pesquisa social, uma vez que a consideração de uma em detrimento da outra traria consigo um entendimento apenas parcial da totalidade.

Horkheimer e Adorno (1956/1973bHorkheimer, M., & Adorno, T. W. (1973b). Sociologia e investigação social empírica. In M. Horkheimer, & T. W. Adorno (Orgs.), Temas básicos da sociologia (A. Cabral, trad., pp. 120-131). São Paulo, SP: Cultrix . (Trabalho original publicado em 1956)) defendem ainda que na pesquisa social faz-se necessário tanto o conhecimento aprofundado dos resultados obtidos quanto uma reflexão crítica acerca do método utilizado para obtê-los. Nesses termos, orientam que o pesquisador não restrinja o seu olhar a uma investigação que se pretenda exata e objetiva, tal como procedem as chamadas “ciências naturais”. Ou seja, que não se atenha apenas à análise quantitativa dos dados coletados, limitando-se ao superficialismo da “superioridade” da mensuração. Deve, sim, considerar os dados exatos para controlar concepções, e não para gerá-las, levando em conta ainda aspectos subjetivos expressos pelo particular, os quais não seriam apreendidos pela frieza da ciência tradicional.

Temos com isso que, embora o estudioso da vida em sociedade não deva se esquivar da empiria, também não cabe a ele se voltar para metodologias que tomem a análise quantitativa e/ou a apresentação estatística de dados como fins em si mesmas, pois, para Adorno (1969/2001Adorno, T. W. (2001). Teoría de la sociedad e investigación empírica. In T. W. Adorno (Org.), Epistemología y ciencias sociales (V. Gómez, trad., pp. 93-100). Madrid, ES: Ediciones Cátedra. (Trabalho original publicado em 1969)), no que se refere às especificidades da pesquisa social, o conhecimento fecundo também pode e deve ser necessariamente atravessado por uma dimensão qualitativa. E é assim que, conforme mencionamos há pouco, a análise de conteúdo proposta por Adorno (1953/2008Adorno, T. W. (2008). As estrelas descem à terra: a coluna de astrologia do Los Angeles Times: um estudo sobre superstição secundária (P. R. de Oliveira, trad.). São Paulo, SP: Ed. Unesp. (Trabalho original publicado em 1953)), guiada, por sua vez, por conceitos advindos da psicanálise freudiana, leva em consideração a atuação sobre os seus objetos de uma junção entre racionalidade e irracionalidade sucintamente definida nos termos abaixo:

Em vista do entrelaçamento de elementos racionais e irracionais, estamos principalmente interessados nas “mensagens” diretas ou indiretas transmitidas pelo material aos seus consumidores: tais mensagens combinam a irracionalidade (à medida que objetivam uma aceitação cega e pressupõem raiva inconsciente nos consumidores) e racionalidade (à medida que lidam com problemas cotidianos mais ou menos práticos para os quais elas pretendem oferecer a resposta mais útil) (Adorno, 1953/2008Adorno, T. W. (2008). As estrelas descem à terra: a coluna de astrologia do Los Angeles Times: um estudo sobre superstição secundária (P. R. de Oliveira, trad.). São Paulo, SP: Ed. Unesp. (Trabalho original publicado em 1953), pp. 36-37).

Dessa forma, ao tomarmos como referência as orientações de Adorno (1953/2008Adorno, T. W. (2008). As estrelas descem à terra: a coluna de astrologia do Los Angeles Times: um estudo sobre superstição secundária (P. R. de Oliveira, trad.). São Paulo, SP: Ed. Unesp. (Trabalho original publicado em 1953); 1975/2001Adorno, T. W. (2001). Investigación social empírica. In T. W. Adorno (Org.), Epistemología y ciencias sociales (V. Gómez, trad., pp. 101-128). Madrid, ES: Ediciones Cátedra . (Trabalho original publicado em 1975)), procedemos em nossa pesquisa do Terruá Pará de acordo com as seguintes etapas: (1) coleta geral dos textos obtidos no CD/DVD referente à terceira edição do espetáculo; (2) a partir deles, separação de trechos específicos, que foram tomados como objetos de uma análise minuciosa que privilegiou a dialética entre racionalidade e irracionalidade que, de maneira mais ou menos explícita, atravessava o seu conteúdo; e (3) finalmente, apresentação escrita dos resultados obtidos nas duas etapas acima, seguidos de discussão. Uma vez feitas essas considerações de ordem metodológica, passemos agora a alguns comentários de cunho teórico, seguindo sempre de perto a perspectiva originalmente defendida por Horkheimer (1937/1983Horkheimer, M. (1983). Teoria tradicional e teoria crítica. In Z. Loparic, & O. Arantes (Org.), Walter Benjamin, Max Horkheimer, Theodor W. Adorno, Jürgen Habermas: textos escolhidos (E. A. Malagodi, trad., pp. 125-162). São Paulo, SP: Abril Cultural. (Trabalho original publicado em 1937)) acerca de uma necessária complementaridade retroalimentativa entre teoria e práxis potencialmente transformadora, princípio basilar da proposta mais ampla de uma teoria crítica da sociedade.

Alguns comentários de ordem teórica

Primeira parte: Sigmund Freud e a psicologia das massas

Já na abertura de Psicologia das massas e análise do Eu, Freud (1921/2011Freud, S. (2011). Psicologia das massas e análise do Eu. In S. Freud (Org.), Obras completas (P. C. Souza, trad., vol. 15, pp. 13-113). São Paulo, SP: Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1921)) estabelece uma importante diretriz que norteará o restante de seu texto: aquela de que toda psicologia individual é também, em um sentido mais amplo, uma psicologia social. No trabalho em questão, Freud (1921/2011Freud, S. (2011). Psicologia das massas e análise do Eu. In S. Freud (Org.), Obras completas (P. C. Souza, trad., vol. 15, pp. 13-113). São Paulo, SP: Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1921)) compreende que o ser humano constitui-se a partir da relação com o outro, o qual pode ser tomado como objeto, modelo, auxiliar, adversário etc., sendo tal relação intrinsecamente marcada por uma série de importantes vínculos de ordem afetiva - isto é, libidinais - que se fariam presentes na vida em sociedade desde os primeiros momentos de vida de cada um dos seus participantes.

Ou seja, Freud (1921/2011Freud, S. (2011). Psicologia das massas e análise do Eu. In S. Freud (Org.), Obras completas (P. C. Souza, trad., vol. 15, pp. 13-113). São Paulo, SP: Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1921)) recorre à noção psicanalítica de libido para propor a sua própria interpretação acerca do fenômeno das massas, libido essa definida como um componente energético fundamental das relações humanas, diretamente relacionado a tudo que abrange a palavra “amor” em seus múltiplos significados: amor próprio, amor sexual, amor filial ou aos pais, amor a objetos concretos, amor a ideias abstratas, entre outras formas. Assim, se o amor une os diversos componentes de uma coletividade, esta última se constituiria mediante também diversos tipos de ligação afetiva.

Ainda segundo Freud (1921/2011Freud, S. (2011). Psicologia das massas e análise do Eu. In S. Freud (Org.), Obras completas (P. C. Souza, trad., vol. 15, pp. 13-113). São Paulo, SP: Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1921)), as ligações libidinais entre os indivíduos seriam marcadas por toda uma ambivalência de sentimentos cujo espectro iria da amabilidade ao ódio. No caso dos sentimentos hostis, sua presença e direcionamento rumo a entes queridos muitas vezes não seriam percebidos por causa da atuação da repressão. Entretanto, sua ocorrência poderia ser mais bem observada na formação de coletividades maiores. Todavia, no interior das massas tanto a ambivalência de sentimentos entre diferentes indivíduos quanto o amor de cada um por si mesmo atuariam de maneira diferenciada, com as aversões desaparecendo de forma temporária ou mesmo mais duradoura e os sujeitos passando a suportar as especificidades uns dos outros, o que demonstraria que a ligação libidinal a uma ou mais pessoas limitaria o narcisismo1 1 Um importante adendo se faz necessário aqui. Ele diz respeito ao fato de que, embora momentaneamente acompanhemos Freud (1921/2011) em sua ideia de que a pulsão de vida efetivamente atuaria no estabelecimento de relevantes vínculos libidinais entre diferentes sujeitos, contribuindo assim para a formação das massas, de modo algum resulta daí quer seja um desconhecimento, quer seja um desmerecimento do perene confronto de forças que se imprime entre Eros e Tânatos nesse mesmo terreno da constituição - e do esfacelamento - da existência de comunidades, destacando-se aí, é claro, todo o poderio disruptivo da pulsão de morte como perturbadora do laço social. Trata-se de um movimento que, inclusive, aparece subentendido no parágrafo acima quando da sua afirmação da inevitável presença da ambivalência de sentimentos como algo inerente às próprias relações humanas, seja no interior de um grupo ou direcionado àqueles que dele não fazem parte. E mais: trata-se de um movimento que motivou bastante a própria reapropriação crítica do pensamento de Freud concluída por Theodor Adorno, a qual, vale lembrar, a despeito de reconhecer no texto freudiano sobre as massas o mérito de, por exemplo, trazer consigo valiosos vislumbres e insights a respeito da natureza e ascensão do nazifascismo, não hesita em apontar e rechaçar tanto a sua tendência a certo psicologismo exacerbado quanto, ainda, o totalitarismo em potencial que se faz presente na afirmação de que toda psicologia pudesse ser efetivamente tomada como psicologia social, afirmação essa que põe em risco a capacidade emancipatória do indivíduo ao aproximá-lo perigosamente da condição de mero “decalque” do social (verAdorno, 1951/2015). .

Freud (1921/2011Freud, S. (2011). Psicologia das massas e análise do Eu. In S. Freud (Org.), Obras completas (P. C. Souza, trad., vol. 15, pp. 13-113). São Paulo, SP: Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1921)) conclui daí que a formação da massa daria-se a partir de ligações libidinais de nova espécie, com a participação de um mecanismo de ligação afetiva representado pela importante noção psicanalítica de identificação. Esta aparece como a mais primitiva forma de ligação afetiva com um objeto, configurando o Eu à semelhança daquele que é tomado como modelo. Ainda para Freud (1921/2011Freud, S. (2011). Psicologia das massas e análise do Eu. In S. Freud (Org.), Obras completas (P. C. Souza, trad., vol. 15, pp. 13-113). São Paulo, SP: Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1921)), tal movimento ocorreria a partir da identificação primária característica do complexo de Édipo, a qual serviria, por via regressiva, como substituto para uma ligação objetal originalmente libidinosa.

Ainda nos termos de Freud (1921/2011Freud, S. (2011). Psicologia das massas e análise do Eu. In S. Freud (Org.), Obras completas (P. C. Souza, trad., vol. 15, pp. 13-113). São Paulo, SP: Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1921)), é a partir do processo identificatório acima descrito que se estabeleceria a troca e/ou recepção de valores entre os indivíduos. Melhor dizendo, a introjeção do objeto no Eu, que se dividiria em duas partes: uma delas modificada pela entrada em cena do novo objeto, ao passo que a outra se apresentaria como aquela anteriormente moldada ou influenciada por figuras como a dos pais e seus sucedâneos. Esta última militaria contra a primeira por ser possuidora de uma consciência moral adquirida pela via da internalização anterior de determinados valores culturais, frequentemente conflitantes com aqueles advindos de identificações mais recentes. Constituir-se-ia como uma instância separada que, denominada por Freud (1921/2011Freud, S. (2011). Psicologia das massas e análise do Eu. In S. Freud (Org.), Obras completas (P. C. Souza, trad., vol. 15, pp. 13-113). São Paulo, SP: Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1921)) de “ideal do Eu”, seria herdeira do narcisismo primário característico da infância, dirigindo para si o amor desfrutado naquele período. Ela acolheria do meio exigências que seriam então colocadas diante do Eu, que, por seu turno, poderia ou não ser capaz de cumpri-las, encontrando assim maior ou menos contentamento de seus anseios nessa instância diferenciada.

A partir dessas proposições, Freud (1921/2011Freud, S. (2011). Psicologia das massas e análise do Eu. In S. Freud (Org.), Obras completas (P. C. Souza, trad., vol. 15, pp. 13-113). São Paulo, SP: Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1921)) conclui que a massa pode ser lida como uma reunião de sujeitos identificados entre si pela via do encantamento coletivo por um líder e/ou ideia condutora, objeto de amor colocado no lugar do ideal do Eu de cada um deles. Acrescenta ainda que essa disposição rumo ao comportamento de massa - aliada, como vemos, a uma espécie de desejo de submissão a figuras ao mesmo tempo paternas e tiranas - não seria algo novo na história, mas um traço presente desde os primórdios da humanidade, conforme a hipótese da horda primeva outrora descrita em Totem e Tabu (Freud, 1913/2012Freud, S. (2012). Totem e tabu. In S. Freud (Org.), Obras completas (P. C. Souza, trad., vol. 11, pp. 13-244). São Paulo, SP: Companhia das Letras . (Trabalho original publicado em 1913)).

Certamente muito ainda poderia ser dito aqui sobre o ensaio de Freud (1921/2011Freud, S. (2011). Psicologia das massas e análise do Eu. In S. Freud (Org.), Obras completas (P. C. Souza, trad., vol. 15, pp. 13-113). São Paulo, SP: Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1921)), dada a sua riqueza e impressionante atualidade. Porém, considerando o limitado espaço do qual dispomos na escrita de um artigo, avancemos agora rumo a possíveis inter-relações entre as dimensões psicossociológica e mercadológica das massas. Para tanto, contamos com o auxílio do pensamento de Theodor W. Adorno.

Segunda Parte: Theodor Adorno e a psicologia das massas

Adorno repudia a perspectiva de uma completa separação entre os polos do sujeito e da sociedade. Daí a sua proposta de uma psicologia social como saber que não limita seu objeto de estudo a uma mera interação simétrica entre essas duas instâncias. É nesse sentido que, como bem sintetiza Jay (1988Jay, M. (1988). As ideias de Adorno (A. U. Sobral, trad.). São Paulo, SP: Cultrix .), para Adorno uma psicologia social analítica deveria descobrir que forças sociais atuam de forma determinante nos recantos mais íntimos do sujeito, e não apenas destacá-lo do processo social para então analisá-lo2 2 Tendo em vista tal direcionamento, torna-se oportuno acrescentar aqui o quanto, nos termos de Horkheimer e Adorno (1947/1985; 1956/1973a), ainda que o indivíduo costumeiramente se relacione com a pressão social representada por aparatos e produtos como aqueles produzidos e difundidos pela indústria cultural a partir de uma mediação pela técnica - e, com ela, por todo um convite à adaptação a uma universalidade que é sugerida como fato ou destino e que caminha lado a lado com a subserviência ao valor de troca das coisas, valor esse representado por uma arte predefinida, tipificada e, portanto, livre de qualquer “incômoda” tensão ou negatividade que eventualmente a potencializassem como instrumento de emancipação em relação às demandas do mercado -, isso não significa que ele necessariamente deva seguir atado aos ditames dessa falsa mediação. Com efeito, a reação a ela se daria por meio da possibilidade de um refreamento do comportamento adaptativo balizado pelo consumo irrefletido, movimento esse a partir do qual o indivíduo pudesse melhor visualizar a si mesmo na sua relação dialética com o tecido social e, assim, abrir parênteses para o fundamental questionamento tanto de um pensamento identitário quanto, diretamente a ele atrelado, das sérias limitações impostas a uma existência subsumida à totalidade. Em outros termos, trata-se de uma aproximação mais efetiva com a “estranhamente-familiar” dimensão pulsional que também o constitui e que, uma vez reapropriada e redirecionada pela lógica do capital, contribui de maneira nada desprezível para que permaneça à deriva na massa reificada, tarefa para a qual o auxílio de uma psicologia social crítica e analiticamente orientada se revelaria de fundamental importância. .

É, portanto, a partir dessa preocupação que Adorno (1951/2015Adorno, T. W. (2015). Teoria freudiana e o padrão da propaganda fascista. In T. W. Adorno (Org.), Ensaios sobre psicologia social e psicanálise (V. Freitas, trad., pp. 153-189). São Paulo, SP: Ed. Unesp . (Trabalho original publicado em 1951)) e Horkheimer e Adorno (1956/1973aHorkheimer, M., & Adorno, T. W. (1973a). A massa. In M. Horkheimer, & T. W. Adorno (Orgs.), Temas básicos da sociologia (A. Cabral, trad., pp. 78-91). São Paulo, SP: Cultrix. (Trabalho original publicado em 1956)) adotam como objeto de estudo a psicologia das massas, enfatizando o valor da compreensão freudiana de que, no caso das multidões, é a identificação que transforma a libido em vínculo tanto entre o líder e seus seguidores quanto destes últimos entre si mesmos, sendo ela (a identificação) que permite a emergência de um sentimento social pela via da sublimação de impulsos de natureza sexual. Afinal, mediante tal processo os indivíduos se agregariam em unidades maiores e transitariam do egoísmo pra o altruísmo, sendo este um aspecto tomado pelos frankfurtianos como potencialmente positivo das formações de massa.

Horkheimer e Adorno (1956/1973aHorkheimer, M., & Adorno, T. W. (1973a). A massa. In M. Horkheimer, & T. W. Adorno (Orgs.), Temas básicos da sociologia (A. Cabral, trad., pp. 78-91). São Paulo, SP: Cultrix. (Trabalho original publicado em 1956)) defendem ainda que as pessoas não constituem uma massa pela via de números, de quantidades. Isso se daria pela ação de condições sociais específicas que incluiriam: as atitudes do líder ou de uma figura que remeta à imagem paterna, a identificação dos participantes com o líder ou com os símbolos representados por ele e, finalmente, a mútua identificação entre os próprios componentes. No que se refere a este último item, Adorno (1951/2015Adorno, T. W. (2015). Teoria freudiana e o padrão da propaganda fascista. In T. W. Adorno (Org.), Ensaios sobre psicologia social e psicanálise (V. Freitas, trad., pp. 153-189). São Paulo, SP: Ed. Unesp . (Trabalho original publicado em 1951), 1955/2015Adorno, T. W. (2015). Sobre a relação entre sociologia e psicologia. In T. W. Adorno (Org.), Ensaios sobre psicologia social e psicanálise (V. Freitas, trad., pp. 71-135). São Paulo, SP: Ed. Unesp . (Trabalho original publicado em 1955)), mais uma vez alicerçado em Freud (1921/2011Freud, S. (2011). Psicologia das massas e análise do Eu. In S. Freud (Org.), Obras completas (P. C. Souza, trad., vol. 15, pp. 13-113). São Paulo, SP: Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1921)), assinala que no processo de identificação o papel do narcisismo seria essencial, dado que é na idealização de si próprio que o sujeito se vê na figura do líder e/ou de ideias condutoras.

Para encerrarmos esta seção, vale a pena acrescentar que, para Horkheimer e Adorno (1956/1973aHorkheimer, M., & Adorno, T. W. (1973a). A massa. In M. Horkheimer, & T. W. Adorno (Orgs.), Temas básicos da sociologia (A. Cabral, trad., pp. 78-91). São Paulo, SP: Cultrix. (Trabalho original publicado em 1956)), os horrores de hoje em termos do grave rebaixamento do humano em prol do “deus capital” não são exatamente produzidos pelas multidões, ocorrendo mais por meio daqueles que, ao articulá-las e produzi-las, aproveitam-se delas. Tal observação mostra-se importante para uma compreensão mais adequada das nuances presentes na formação de massas na atualidade de sociedades de mercado definidas por forte racionalidade e, ao mesmo tempo, por tentativas de ocultação da sua enorme irracionalidade. Eis o que abordaremos agora de maneira mais específica a partir da noção de indústria cultural3 3 A “indústria cultural” pode ser lida como um ramo da atividade econômica organizada aos moldes dos grandes conglomerados do capitalismo monopolista. Como sintetiza Rüdiger (2004, p. 18), trata-se das “. . . indústrias interessadas na produção em massa de bens culturais. [. . .] Em essência, a expressão não se refere às empresas produtoras nem às técnicas de difusão dos bens culturais; representa, antes de mais nada, um movimento histórico-universal: a transformação da mercadoria em matriz do modo de vida, e, assim, da cultura em mercadoria, conforme ocorrido na baixa modernidade”. .

Psicologia das Massas e Indústria Cultural

Nossas observações anteriores quanto ao valor e às potencialidades da identificação das massas com determinados ideais se aproximam bastante das argumentações de Horkheimer e Adorno (1947/1985Horkheimer, M., & Adorno, T. W. (1985). A indústria cultural: o esclarecimento como mistificação das massas. In M. Horkheimer, & T. W. Adorno (Orgs.), Dialética do Esclarecimento: fragmentos filosóficos (G. de Almeida, trad., pp. 99-138). Rio de Janeiro, RJ: Zahar. (Trabalho original publicado em 1947)) acerca da atuação contemporânea da indústria cultural, que se daria a partir de um grande movimento de idealização e, consequentemente, de identificação generalizada do humano com mercadorias culturais estereotipadas. Para os autores, trata-se, porém, de uma falsa identificação - atrelada, por seu turno, a uma “semiformação” -, uma vez que não é facultada ao sujeito uma reflexão mais aprofundada sobre a ambivalência da sua relação com o produto cultural que lhe é ofertado, já que a indústria cultural o convence apenas dos ganhos do consumo, ocultando-lhe importantes perdas subjetivas diretamente atreladas a um processo de reificação.

Nesse primeiro momento, para Horkheimer e Adorno (1947/1985Horkheimer, M., & Adorno, T. W. (1985). A indústria cultural: o esclarecimento como mistificação das massas. In M. Horkheimer, & T. W. Adorno (Orgs.), Dialética do Esclarecimento: fragmentos filosóficos (G. de Almeida, trad., pp. 99-138). Rio de Janeiro, RJ: Zahar. (Trabalho original publicado em 1947)) a mídia constituiria o meio técnico, o veículo de divulgação da ideologia da indústria cultural responsável pelo processo descrito acima. Contudo, quase dez anos depois, os autores retornariam ao tema para afirmar que os veículos de comunicação de massa não seriam por si só um perigo social e que, além disso, apenas possuí-los não garantiria a dominação das massas. Os veículos de comunicação apenas reproduziriam e ampliariam uma predisposição para a submissão ideológica (Horkheimer & Adorno, 1956/1973aHorkheimer, M., & Adorno, T. W. (1973a). A massa. In M. Horkheimer, & T. W. Adorno (Orgs.), Temas básicos da sociologia (A. Cabral, trad., pp. 78-91). São Paulo, SP: Cultrix. (Trabalho original publicado em 1956))4 4 Outra relevante atualização dessa discussão que merece destaque aparece nas ponderações de Duarte (2011) acerca das características específicas da indústria cultural em sua modalidade mais atual, a qual o autor intitulou “indústria cultural 2.0”. Segundo Duarte (2011), muito embora o conceito - e o objeto ao qual ele diz respeito - siga sendo balizado por importantes elementos apontados por Horkheimer e Adorno (1947/1985; 1956/1973a) no contexto do século XX, qualquer análise que se pretenda mais aprofundada da indústria cultural hoje não poderia jamais menosprezar os novos rumos que, já ao final desse mesmo século, as demandas geopolíticas passaram a ditar para a chamada globalização. Pois, com a “vitória” norte-americana na guerra fria, alastrou-se pelo mundo um capitalismo pautado por inovações de mercado que se estabeleceram por intermédio de uma série de novas tecnologias digitais (capitaneadas pela internet) pelas quais foi possível maior interação, capilarização e aproximação da indústria do entretenimento e dos seus produtos em relação ao grande público. E isso, é claro, não se deu sem contundentes implicações, inclusive - ou sobremaneira - em termos da criação de novas demandas que mantenham em movimento todo um círculo vicioso (e retroalimentativo) de produção e consumo em massa que, conforme apostamos aqui, passou a incluir em suas fileiras a própria ideia de identidades regionais tais como aquela difundida por um espetáculo musical como o Terruá Pará. .

E aqui vale a pena mais uma vez nos remetermos à relação entre narcisismo e atuação das massas anteriormente proposta por Adorno (1951/2015Adorno, T. W. (2015). Teoria freudiana e o padrão da propaganda fascista. In T. W. Adorno (Org.), Ensaios sobre psicologia social e psicanálise (V. Freitas, trad., pp. 153-189). São Paulo, SP: Ed. Unesp . (Trabalho original publicado em 1951); 1955/2015Adorno, T. W. (2015). Sobre a relação entre sociologia e psicologia. In T. W. Adorno (Org.), Ensaios sobre psicologia social e psicanálise (V. Freitas, trad., pp. 71-135). São Paulo, SP: Ed. Unesp . (Trabalho original publicado em 1955)), já que para ele as propagandas da indústria cultural se apresentariam como realizadoras de desejos narcísicos dos seus consumidores, que assimilariam os conteúdos que lhes são apresentados em uma grande encenação teatral marcada pela dissimulação de irracionalidades5 5 Um fundamentado e competente aprofundamento teórico dessa discussão pode ser encontrado no trabalho de Severiano (2001), que, utilizando como referência, dentre outros autores, o pensamento de Adorno (1941), analisa o quanto a ilusão do “livre” consumo do produto cultural - ou melhor, da marca - promove no consumidor a euforia de uma suposta completude narcísica ou onipotência do seu eu ideal infantil pela via de também supostas doses de unicidade e diferenciação. Diante disso, Severiano (2001) enfatiza de forma crítica a intensidade com a qual tal processo aparece atravessado pela idealização de um produto fetichizado e estandardizado por meio do encontro do eu do consumidor com o ideal do eu que o objeto/marca representa, o que resultaria em uma pseudoindividuação. . Com efeito, a disponibilidade em se submeter aos ditames da indústria cultural, com o consumo de produtos estereotipados e/ou a submissão a líderes ou ideias fortes facilitando a integração do Eu em estruturas hierárquicas, revelaria o caráter sadomasoquista do sujeito na massa, o qual imprimiria sofrimentos a si próprio e a outros pela reificação das suas relações sociais e pelo consumo compulsivo, assim como pelos sacrifícios enfrentados na submissão requerida para fazer parte de uma coletividade.

Agora, assim como procedemos ao final da exposição e análise que fizemos das ideias de Freud (1921/2011Freud, S. (2011). Psicologia das massas e análise do Eu. In S. Freud (Org.), Obras completas (P. C. Souza, trad., vol. 15, pp. 13-113). São Paulo, SP: Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1921)) acerca da psicologia das massas, novamente pedimos a compreensão do leitor. Dizemos isto em virtude da consciência que temos de que, dada à simultânea importância e densidade do pensamento de Adorno, muito ainda poderia ser dito tanto sobre a reapropriação da temática das massas feita pelo autor quanto no que se refere às reflexões propostas por ele acerca das inter-relações entre multidão e indústria cultural. Estendermo-nos mais nessa discussão, porém, comprometeria - considerando mais uma vez, é claro, o limitado espaço do qual dispomos em um artigo - algo tomado como de suma importância pela teoria crítica adotada pelo mesmo Adorno: o valor simultaneamente acadêmico e social da mútua interação entre teoria e empiria. No caso, uma apresentação mais detalhada e aprofundada dos dados obtidos por esta pesquisa.

Antes, porém, uma última observação: não temos a pretensão de que a exposição feita a seguir possa ou deva ser tomada de maneira peremptória, sufocando, inclusive, o próprio fenômeno estudado a partir das lentes teóricas por nós utilizadas na sua leitura. Trata-se de ensaios, de proposições que, em seu caráter propositalmente provisório, em vez de buscar expulsar, acolhem as eventuais contradições inerentes a si mesmas para manter em aberto e mesmo incentivar novas trilhas e possibilidades de leitura. Feitas essas ponderações, passemos então a algumas considerações mais específicas sobre os resultados da análise de conteúdo que fizemos acerca do nosso objeto privilegiado de estudos: o espetáculo Terruá Pará.

Resultados

As fontes consultadas (CD e DVD) no decorrer da pesquisa documental que deu origem a este trabalho trazem em si mesmas uma ampla gama de informações. Assim, visando uma melhor compreensão desse material, dividiremos a exposição e análise dos dados obtidos em três partes específicas: ficha técnica do Terruá Pará, texto de apresentação do CD/DVD, e letras das músicas veiculadas pelo espetáculo.

Ficha técnica do espetáculo

O festival Terruá Pará foi criado em 2006, a partir de uma iniciativa do Governo do Pará por meio da Cultura - Rede de Comunicação, pertencente à Fundação Paraense de Radiodifusão (Funtelpa), e da Secretaria de Estado de Comunicação. A partir daí foram realizadas três edições do evento (2006, 2011 e 2013), contando com artistas paraenses de diversos gêneros e incluindo a gravação de CDs e DVDs, tudo isso para servir como portfólio da produção musical local. O espetáculo acabou, então, por projetar tais artistas, que despertaram o interesse da mídia nacional e internacional para a comercialização e divulgação de suas obras (Baena & Filho, 2013Baena, T., & Filho, O. (2013). O espetáculo musical Terruá Pará: a música popular massiva convertida em política de estesia. Contemporânea/comunicação e cultura, 11(2), 391-408. doi: https://doi.org/10.9771/contemporanea.v11i2.8146
https://doi.org/10.9771/contemporanea.v1...
; Castro, 2012Castro, F. (2012). Comunicação, identidade e tv pública no Pará. Em Questão, 18(2), 149-167. Recuperado de: https://bit.ly/35dm9Rg
https://bit.ly/35dm9Rg...
).

No caso do CD/DVD resultante da terceira edição do festival, o texto que os acompanha informa que tal edição foi gravada ao vivo na cidade de São Paulo, no Teatro das Artes, em novembro de 2013. Teve direção executiva de Adelaide Oliveira e Ney Messias Jr., direção geral, criação e roteiro de Carlos Eduardo Miranda, direção musical de Cyz Zamorano e direção de produção de Betty Dopazo (Miranda, 2013Miranda, C.E. (2013). Espetáculo Terrá Pará 3ª edição [Mídia de gravação: CD/DVD]. Belém, PA: Governo do Pará - Secretária de Estado de Comunicação e Cultura Rede de comunicação.).

Texto inicial do CD/DVD

O texto de abertura do CD/DVD da terceira edição do Terruá Pará apresenta este espetáculo como uma das mais importantes “vitrines” da música produzida na Amazônia. Acrescenta ainda que o evento detém como norte o equilíbrio entre “identidade” e “diversidade” por intermédio de uma sonoridade cuja trajetória abarcaria desde as suas origens no “meio da mata” até os bailes de techno e eletro music típicos da “moderna urbe paraense” (Miranda, 2013Miranda, C.E. (2013). Espetáculo Terrá Pará 3ª edição [Mídia de gravação: CD/DVD]. Belém, PA: Governo do Pará - Secretária de Estado de Comunicação e Cultura Rede de comunicação.).

Análise:

Se tomada a partir da lente fornecida pelo referencial de Adorno (1953/2008Adorno, T. W. (2008). As estrelas descem à terra: a coluna de astrologia do Los Angeles Times: um estudo sobre superstição secundária (P. R. de Oliveira, trad.). São Paulo, SP: Ed. Unesp. (Trabalho original publicado em 1953)), a concepção presente no texto supracitado pode ser lida em termos de uma pseudo racionalidade, uma vez que a inter-relação entre os polos da “identidade” e da “diversidade” não é apresentada como potencial fonte de tensão, mas de uma equilibrada ou racional (racionalizada) complementaridade. Dessa maneira, a aparente racionalidade de um “equilíbrio” entre identidade e diversidade parece ocultar a irracionalidade da convergência, promovida pelo Terruá Pará, rumo à uniformidade de uma subjetividade paraense pretensamente uniforme.

Na mesma toada, o texto de abertura do CD/DVD relativo à terceira edição do evento finaliza com a pontuação de que o Terruá Pará é “música paraense”, no singular mesmo. Ou seja, não vincula o nome do festival a algumas músicas locais ou a parte das músicas produzidas no Estado em sua diversidade, mas à própria “música paraense” como uniformidade previamente delimitada, significante este importante, a nosso ver, para uma problematização da ideia mais ampla de uma “subjetividade paraense uniforme” que parece atravessar a proposta do espetáculo como um todo, algo presente também nas letras das músicas por ele selecionadas.

Letras das músicas

A partir da leitura que fizemos, dividimos as letras contidas no CD/DVD Terruá Pará 2013 em três macro temáticas. A primeira delas, composta por dezessete de um total de trinta letras, aparece voltada à “Amazônia, lendas amazônicas, religiosidade e belezas naturais da floresta”; outras seis abordam os “sons das aparelhagens de Belém”, ao passo que as demais sete letras fugiram dessas categorias específicas, constituindo um núcleo à parte. Os estilos musicais predominantes são o carimbó, a lambada, a guitarrada e o eletromelody (também popularmente conhecido como “tecnobrega”).

Análise:

As duas primeiras temáticas gerais delimitadas acima convergem rumo à construção de um modelo, de um ideal do Eu com o qual “o paraense”, agora singularizado, poderia se identificar. Isso pela viabilização de um canal de expressão para anseios de ordem narcísica vinculados à própria ideia de “povo”. Ou, dito de maneira distinta, por um falseamento da sensação de pertencimento a algo grandioso e/já que composto por um grupo maior de pessoas que adotariam o mesmo ideal. Neste mesmo sentido, ao analisarmos de perto as músicas que trataram da temática que batizamos de “Amazônia, lendas amazônicas, religiosidade e belezas naturais da floresta”, parece-nos clara a sua intenção de despertar uma espécie de ufanismo ou sentimento nativista em seus ouvintes, favorecendo assim a arregimentação de uma massa consumidora para as mercadorias ofertadas pelo espetáculo Terruá Pará.

Vale a pena enfatizar que tal movimento apresenta como importante mola propulsora a exaltação de características supostamente exclusivas ou muito específicas da região (o que também inclui a segunda temática proposta aqui, voltada à cultura das aparelhagens de som como símbolo de uma identidade local), características estas que confeririam destaque aos seus portadores, fazendo com que “o homem da floresta mística e de mistérios exóticos” fosse reconhecido e valorizado pelo Brasil e pelo mundo. Com efeito, não nos parece mera casualidade que, ao exibirem no festival uma pequena parte da vasta obra do reconhecido maestro e compositor paraense Waldemar Henrique (1905-1995), os produtores e artistas responsáveis pelo Terruá Pará tenham recortado dela somente - com uma única exceção - canções que comungavam com a aludida temática referente à “Amazônia, lendas amazônicas, religiosidade e belezas naturais da floresta”. Dentre as que foram executadas, destacamos, a título de exemplos do direcionamento há pouco sugerido, os seguintes fragmentos de letras:

Matinta Perera chegou na clareira e logo silvou . . . (Henrique, 1933Henrique, W. (1933). Matinta Perêra. [Gravado por N. Pereira]. In Terruá Pará 3 [Mídia de gravação: CD/DVD]. São Paulo: Terruá Pará. (2013).)

. . . Tajá-Panema chorou no terreiro e a virgem morena fugiu no costeiro/ Foi boto, sinhá . . . (Henrique, 1933Henrique, W. (1933). Foi Boto, Sinhá. [Gravado por M. André, Strobo e J. Soares]. In Terruá Pará 3 [Mídia de gravação: CD/DVD]. São Paulo: Terruá Pará. (2013).)

. . .Lá vem a Cobra Grande [. . .]/ A danada vem rente à beira do rio e o vento grita no meio da mata . . . (Henrique, 1934Henrique, W. (1934). Cobra Grande. [Gravado por N. Reis]. In Terruá Pará 3 [Mídia de gravação: CD/DVD]. São Paulo: Terruá Pará. (2013).)

. . .Tambá-tajá me faz feliz, assim o índio carregou sua macuxi/ Para o roçado, para a guerra, para a morte . . . (Henrique, 1934Henrique, W. (1934). Tamba-Tajá. [Gravado por C. Honda e F. Cordeiro]. In Terruá Pará 3 [Mídia de gravação: CD/DVD]. São Paulo: Terruá Pará. (2013).)

Aqui o uso de termos como “Matinta Perera”, “Tajá-Panema”, “Tambá-Tajá”, “boto”, “cobra grande”, “mata”, “índio”, “macuxi”, todos retirados dos seus contextos originais e então amontoados em um artificialismo como aquele criado pelo Terruá Pará, denota um objetivo específico apontado por Adorno (1941Adorno, T. W. (1941). On popular music. In M. Horkheimer (Org.), Studies in philosophy and social sciences (pp. 17-48). New York, NY: Institute of Social Research.): o de que, visando a sua maior aceitação e consumo, a música popular produzida e/ou difundida pela indústria cultural contenha em si elementos de fácil reconhecimento por parte do ouvinte a ser conquistado, elementos estes que, relativos à sua infância ou história de vida, apresentam aspectos valorativos que viabilizem identificações mais plenas com o produto ofertado, o qual passa então a compor uma visão de mundo, não sendo tomado por quem com ele se identifica diretamente como simples informação, mas como parte constituinte do próprio Eu.

Ao darmos prosseguimento à nossa análise das letras musicais que figuram no CD/DVD Terruá Pará 2013, encontramos nelas vários outros exemplos de um direcionamento rumo à mesma temática, com a junção de palavras criando um imaginário idealizado sobre o ambiente amazônico que acaba por apregoar uma subjetividade de tipo genérico. Conforme os seguintes trechos:

A Amazônia é groove, é grave/ É grávida de som [. . .] Comprimida, gateada por índio swingador . . . (André, 2006André, M. (2006). Amazônia Groove. [Gravado por M. André]. In Terruá Pará 3 [Mídia de gravação: CD/DVD]. São Paulo, SP: Terruá Pará. (2013).)

-

Vem ver, morena, vem ver/ Minha prenda é uma beleza, tesouro da natureza. Realeza do Guamá . . . (Silva & Soares, 2013)

-

. . . Eu nasci lá em Bragança, na beira do rio Caeté,/ Vim de trem pra cidade grande, cidade de Nazaré . . . (Soares, 2003Soares, T. (2003). Já Urrou;. [Gravado por T. Soares]. In Terruá Pará 3 [Mídia de gravação: CD/DVD]. São Paulo: Terruá Pará. (2013).)

-

. . . Guamá, tô indo embora [. . .] E, no cordão de ouro que mãe d’água deu pra mim, [. . .]/ Eu corro pra beira do mar e peço pra Iemanjá . . . (Espíndola & Nascimento, 2013Espíndola, A., & Nascimento, T. (2013). Guamá. [Gravado por A. Espíndola e A. do Bandolim]. In Terruá Pará 3 [Mídia de gravação: CD/DVD]. São Paulo, SP: Terruá Pará . (2013).)

Como é possível notar, novamente a utilização de significantes como “Amazônia”, “índio”, “natureza”, “mãe d’água” e “Iemanjá”, bem como a menção a lugares específicos do estado, como Belém (“Cidade de Nazaré”), “Bragança” (e o rio “Caeté” que corta a cidade) e “Guamá” (rio que cruza várias cidades do nordeste paraense, além de também ser o nome de um famoso bairro de Belém), remetem ao narcisismo de um ouvinte que, encantado pelo nativismo racionalmente disposto nessas letras, pode não considerar o teor de irracionalidade que dialeticamente nelas se faz presente, irracionalidade esta manifesta na sugestão de traços identitários específicos a serem seguidos como condição de filiação a um rótulo. Ou seja, só é “paraense de verdade” quem adota determinadas crenças (religiosas), frequenta determinados bairros ou municípios e/ou adota um modo de vida mais próximo à natureza e, assim, também mais próximo a certa ideia do que seja uma ancestralidade indígena.

Já no que se refere às letras sobre a temática que batizamos de “sons das aparelhagens de Belém”, estas descrevem a dimensão urbana da capital e, dentro dela, a convivência entre determinada cultura da periferia e os valores da classe média/alta que costumeiramente habita bairros mais centrais. Ocorre que, muito embora na prática tal convivência seja marcada por numerosas diferenças, preconceitos, conflitos e mútua exclusão, ela é apresentada aqui sob uma égide potencialmente harmoniosa, no que contribuiria diretamente a capacidade unificadora da “música paraense”, a mesma “música paraense”, aliás, selecionada e apresentada pelo festival Terruá Pará. Exemplos de tal movimento podem ser encontrados nos seguintes trechos:

. . . Tudo começou quando eu conheci o DJ Cremoso [. . .]/ Os meus vizinhos não entendem como posso ser assim/ Com camisa do Iron Maiden atuando no clipe da Gaby [. . .]/ No Ipod cabe Gang do Eletro até o At the drive in/ Aparelhagem de apartamento. Treme . . . (Lemos, Pinheiro, Oliveira & Royale, 2012Lemos, J., Pinheiro, R., Oliveira, A., & Royale, C. (2012). Aparelhagem de Apartamento. [Gravado por Sammilz, J. Lemos e Strobo]. In Terruá Pará 3 [Mídia de gravação: CD]. São Paulo: Terruá Pará. (2013).)

. . . Chegou velocidade pra galera do setor, essa onda desguiada sacode a cidade [. . .] Treme . . . (Love, Maderito & Squash, 2013Love, W., Maderito, & Squash, W. (2013). Velocidade do Eletro. [Gravado por Gangue do Eletro]. In Terruá Pará 3 [Mídia de gravação: CD]. São Paulo: Terruá Pará. (2013).)

-

Alô, meu DJ, [. . .] Nas aparelhagens elas mandam bem./ Te liga nessa onda que chegou em Belém [. . .] Treme, treme, treme, treme o corpo todo . . . (Maderito & Squash, 2013Maderito, & Squash, W. (2013). Piripaque. [Gravado por Gangue do Eletro]. In Terruá Pará 3 [Mídia de gravação: CD]. São Paulo: Terruá Pará. (2013).)

Não deixa de ser interessante que, embora essas letras tenham sido criadas por artistas de diferentes origens do tecido social local, todos eles se apropriam das mesmas palavras com a intenção de sugerir uma unidade ou aproximação entre o contexto da periferia, marcado pela ideia de “setor”, e os bairros mais abastados da cidade, todos agora “tremendo” em uníssono ao som da “onda” que vem das “aparelhagens”. O que, porém, pelo menos à primeira vista, parece um considerável contrassenso, pode ser compreendido de maneira menos polarizada e simplista se, mais uma vez recorrendo à dialética de Adorno (1941Adorno, T. W. (1941). On popular music. In M. Horkheimer (Org.), Studies in philosophy and social sciences (pp. 17-48). New York, NY: Institute of Social Research., 1946/2015, 1951/2015Adorno, T. W. (2015). Teoria freudiana e o padrão da propaganda fascista. In T. W. Adorno (Org.), Ensaios sobre psicologia social e psicanálise (V. Freitas, trad., pp. 153-189). São Paulo, SP: Ed. Unesp . (Trabalho original publicado em 1951)) e Horkheimer e Adorno (1947/1985Horkheimer, M., & Adorno, T. W. (1985). A indústria cultural: o esclarecimento como mistificação das massas. In M. Horkheimer, & T. W. Adorno (Orgs.), Dialética do Esclarecimento: fragmentos filosóficos (G. de Almeida, trad., pp. 99-138). Rio de Janeiro, RJ: Zahar. (Trabalho original publicado em 1947), 1956/1973aHorkheimer, M., & Adorno, T. W. (1973a). A massa. In M. Horkheimer, & T. W. Adorno (Orgs.), Temas básicos da sociologia (A. Cabral, trad., pp. 78-91). São Paulo, SP: Cultrix. (Trabalho original publicado em 1956)), adotarmos aqui a ideia de que, na sociedade de mercado, a unidade em torno de um ideal do Eu, de uma subjetividade uniforme, precisa superar as diferenças como se distintas realidades estivessem se fundindo harmonicamente.

É, portanto, a partir dessa linha argumentativa que, encerrando esta etapa do presente trabalho, defendemos o ponto de vista de que, por intermédio de um discurso pseudo racional veiculado, por exemplo, em letras de músicas que atuam sobre os seus consumidores ao apelarem para aquilo que estes idealizam ser, o espetáculo Terruá Pará acaba atuando como promotor de uma irracionalidade, expressa na sugestão/imposição de um modo de “ser paraense” que reduz drasticamente as suas variadas possibilidades de expressão a basicamente duas (reduzíveis a uma, caso consideremos a junção das características expostas aqui). Mas a irracionalidade à qual nos referimos não se encerra aí. Manifesta-se, em segundo lugar, ainda que de maneira complementar, na promoção, por parte do referido festival, de um desejo de unidade, unificação, aplainamento ou fusionamento que, desconsiderando relevantes diferenças de ordem subjetiva, acaba por reduzir o seu público à qualidade de massa homogênea e genérica que, submetendo-se a uma cartilha imposta de fora, aceita e incorpora uma série de idiossincrasias previamente definidas e institucionalizadas. Diante disso, passemos aos nossos últimos parágrafos.

Considerações finais

Como vimos nas páginas anteriores, Freud (1921/2011Freud, S. (2011). Psicologia das massas e análise do Eu. In S. Freud (Org.), Obras completas (P. C. Souza, trad., vol. 15, pp. 13-113). São Paulo, SP: Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1921)) sustenta que as relações humanas seriam marcadas por vínculos libidinais que, em termos gerais, poderiam ser compreendidos a partir do substantivo “amor”. Na massa, essas ligações se configurariam na identificação com um líder ou ideia condutora, ambos funcionando como catalisadores de um segundo movimento de identificação entre os próprios indivíduos que compõem a multidão. Conforme também apontamos anteriormente, Horkheimer e Adorno (1947/1985Horkheimer, M., & Adorno, T. W. (1985). A indústria cultural: o esclarecimento como mistificação das massas. In M. Horkheimer, & T. W. Adorno (Orgs.), Dialética do Esclarecimento: fragmentos filosóficos (G. de Almeida, trad., pp. 99-138). Rio de Janeiro, RJ: Zahar. (Trabalho original publicado em 1947), 1956/1973aHorkheimer, M., & Adorno, T. W. (1973a). A massa. In M. Horkheimer, & T. W. Adorno (Orgs.), Temas básicos da sociologia (A. Cabral, trad., pp. 78-91). São Paulo, SP: Cultrix. (Trabalho original publicado em 1956)) se apropriam da perspectiva freudiana para, somando-a à filosofia social da teoria crítica, apostarem na tese de que a indústria cultural poderia muito bem ocupar a posição de princípio unificador descrito acima.

Diante disso, Adorno (1946/2015Adorno, T. W. (2015). Antissemitismo e propaganda fascista. In T. W. Adorno (Org.), Ensaios sobre psicologia social e psicanálise (V. Freitas, trad., pp. 137-152). São Paulo, SP: Ed. Unesp . (Trabalho original publicado em 1946), 1951/2015Adorno, T. W. (2015). Teoria freudiana e o padrão da propaganda fascista. In T. W. Adorno (Org.), Ensaios sobre psicologia social e psicanálise (V. Freitas, trad., pp. 153-189). São Paulo, SP: Ed. Unesp . (Trabalho original publicado em 1951), 1967/1986Adorno, T. W. (1986). A indústria cultural. In T. W. Adorno, G. Cohn (Orgs.) & F. Fernandes (Coord.), Sociologia (A. Cohn, trad., pp. 92-99). São Paulo, SP: Ática. (Trabalho original publicado em 1967)) e Horkheimer e Adorno (1947/1985Horkheimer, M., & Adorno, T. W. (1985). A indústria cultural: o esclarecimento como mistificação das massas. In M. Horkheimer, & T. W. Adorno (Orgs.), Dialética do Esclarecimento: fragmentos filosóficos (G. de Almeida, trad., pp. 99-138). Rio de Janeiro, RJ: Zahar. (Trabalho original publicado em 1947), 1956/1973aHorkheimer, M., & Adorno, T. W. (1973a). A massa. In M. Horkheimer, & T. W. Adorno (Orgs.), Temas básicos da sociologia (A. Cabral, trad., pp. 78-91). São Paulo, SP: Cultrix. (Trabalho original publicado em 1956)) avançam em sua argumentação ao assinalarem que, a partir do processo de objetificação do humano favorecido pela racionalidade técnica empregada pela indústria cultural, os indivíduos se identificariam cada vez menos com determinados ideais de Eu por meio de uma reflexão crítica que levasse em conta o contraponto entre idealização e frustração. A tendência então é que permanecessem limitados a modelos estereotipados que possibilitariam apenas uma idealização contínua sem capacidade sublimatória e acentuadamente marcada pela repressão.

E é mediante tal processo que, ainda nos termos de Adorno (1946/2015Adorno, T. W. (2015). Antissemitismo e propaganda fascista. In T. W. Adorno (Org.), Ensaios sobre psicologia social e psicanálise (V. Freitas, trad., pp. 137-152). São Paulo, SP: Ed. Unesp . (Trabalho original publicado em 1946), 1951/2015Adorno, T. W. (2015). Teoria freudiana e o padrão da propaganda fascista. In T. W. Adorno (Org.), Ensaios sobre psicologia social e psicanálise (V. Freitas, trad., pp. 153-189). São Paulo, SP: Ed. Unesp . (Trabalho original publicado em 1951), 1967/1986Adorno, T. W. (1986). A indústria cultural. In T. W. Adorno, G. Cohn (Orgs.) & F. Fernandes (Coord.), Sociologia (A. Cohn, trad., pp. 92-99). São Paulo, SP: Ática. (Trabalho original publicado em 1967)) e Horkheimer e Adorno (1947/1985Horkheimer, M., & Adorno, T. W. (1985). A indústria cultural: o esclarecimento como mistificação das massas. In M. Horkheimer, & T. W. Adorno (Orgs.), Dialética do Esclarecimento: fragmentos filosóficos (G. de Almeida, trad., pp. 99-138). Rio de Janeiro, RJ: Zahar. (Trabalho original publicado em 1947), 1956/1973aHorkheimer, M., & Adorno, T. W. (1973a). A massa. In M. Horkheimer, & T. W. Adorno (Orgs.), Temas básicos da sociologia (A. Cabral, trad., pp. 78-91). São Paulo, SP: Cultrix. (Trabalho original publicado em 1956)) revisitados aqui, a indústria cultural atuaria diretamente na formação de uma massa consumidora mobilizada por uma falsa identificação: aquela pautada na ambivalência da sua relação com o produto que lhe é ofertado. Afinal, embora sua expectativa seja a de ganhos de ordem narcísica na absorção de novidades feitas sob medida para cada um dos seus componentes, o que invariavelmente receberia são mercadorias culturais estereotipadas que, uma vez introjetadas, contribuiriam para a produção de homens genéricos que, absolutamente identificados com a lógica de mercado que os tiraniza, também racionalizariam a sua própria conduta irracional. Novamente entraria em cena aí o papel dos ideais ou, mais precisamente, das idealizações, com o processo de reificação que envolveria a participação em uma massa como a de consumidores possivelmente conduzindo-a à adoção de, ao mesmo tempo, auto definidoras e exclusivistas noções como aquelas de “pureza” e/ou “superioridade”, apartando de si os “impuros” e/ou “inferiores” (leia-se todos os não-consumidores dos produtos culturais por ela valorizados) (Adorno, 1946/2015Adorno, T. W. (2015). Antissemitismo e propaganda fascista. In T. W. Adorno (Org.), Ensaios sobre psicologia social e psicanálise (V. Freitas, trad., pp. 137-152). São Paulo, SP: Ed. Unesp . (Trabalho original publicado em 1946), 1951/2015Adorno, T. W. (2015). Teoria freudiana e o padrão da propaganda fascista. In T. W. Adorno (Org.), Ensaios sobre psicologia social e psicanálise (V. Freitas, trad., pp. 153-189). São Paulo, SP: Ed. Unesp . (Trabalho original publicado em 1951), 1967/1986Adorno, T. W. (1986). A indústria cultural. In T. W. Adorno, G. Cohn (Orgs.) & F. Fernandes (Coord.), Sociologia (A. Cohn, trad., pp. 92-99). São Paulo, SP: Ática. (Trabalho original publicado em 1967); Horkheimer & Adorno, 1947/1985Horkheimer, M., & Adorno, T. W. (1985). A indústria cultural: o esclarecimento como mistificação das massas. In M. Horkheimer, & T. W. Adorno (Orgs.), Dialética do Esclarecimento: fragmentos filosóficos (G. de Almeida, trad., pp. 99-138). Rio de Janeiro, RJ: Zahar. (Trabalho original publicado em 1947), 1956/1973aHorkheimer, M., & Adorno, T. W. (1973a). A massa. In M. Horkheimer, & T. W. Adorno (Orgs.), Temas básicos da sociologia (A. Cabral, trad., pp. 78-91). São Paulo, SP: Cultrix. (Trabalho original publicado em 1956)).

Levando em conta tal perspectiva, nossa análise de conteúdo do texto impresso e contido no CD/DVD do Terruá Pará 2013 apontou que a “identidade paraense” propagada nas músicas por ele selecionadas pode ser compreendida basicamente a partir de duas formas predefinidas, padronizadas e potencialmente segregacionistas. A primeira delas, mais naturalista e “metafísica”, refere-se ao amante da floresta, das lendas e religiões. Já a segunda, mais secular e urbana, remete ao frequentador das festas de aparelhagem. Tal como apresentadas, porém, ambas as temáticas se fusionam de maneira aparentemente livre de conflitos como ideais a serem introjetados pelo público consumidor do festival pela via de um impulso de identificação alimentado por afetos ligados a um sentimento de profundo pertencimento quer seja a uma cultura, quer seja a um espaço geográfico idealizado.

Dessa forma, embora não se trate aqui de apagar ou diminuir o peso das influências locais, tampouco de negar totalmente a veracidade ou a nobreza dos sentimentos expressos nas letras e músicas presentes no Terruá Pará, sugerindo assim que os artistas e/ou produtores que dele fizeram parte sejam necessariamente mesquinhos ou aproveitadores, parece-nos impossível não apontar e discutir alguns potenciais reflexos psicossociológicos de cunho ao mesmo tempo reducionista e sectário que entendemos presentes na concepção e apresentação do festival, reflexos diretamente atrelados, por sua vez, à sua dimensão mercadológica. Assim, recapitulando um pouco as principais ideias apresentadas até o momento, encerramos o presente trabalho com a observação de que, a despeito de efetivamente cumprir uma relevante função social na valorização que faz do artista local, o espetáculo Terruá Pará também pode ser lido de maneira crítica como diretamente responsável pela promoção de uma massa (ou “galera”) que, ao consumir a visão de mundo e, com ela, os produtos culturais (letras, músicas e estética) previamente estabelecidos e selecionados de acordo com as diretrizes e interesses de organizadores e produtores musicais específicos, passa a requerer para si os supostos benefícios de, no mesmo “pacote”, adquirir também a identidade referente ao pertencimento a determinado grupo - no caso, o “ser paraense”.

O problema é que, embora originalmente multifacetada - basta considerarmos, por exemplo, a extensão, a miscigenação e as variadas e distintas influências e realidades socioculturais que compõem o Estado do Pará -, quando analisada mais de perto, a subjetivação construída e difundida pelo Terruá Pará como representativa desse mesmo “ser paraense” revela-se pouco ou nada mais do que uma pasteurização exclusivista e totalizante. E mais: uma pasteurização que, contando com os prestigiosos serviços da modernidade técnica empregada na sua produção, é então revestida e comercializada sob o rótulo de uma, ao mesmo tempo sedutora e enganosa, aura de “harmônica diversidade”.

Nesses termos, a despeito da sua contribuição para o sucesso de um evento que, conforme destacamos há pouco, indubitavelmente apresenta uma importante função social - função esta que, pelo menos em parte, justifica o apoio e investimento conferidos pelo poder público na sua realização -, o que os consumidores do Terruá Pará podem não atentar para é algo que consideramos de grande importância. Trata-se da dialética presente na violência que praticam contra si mesmos no momento em que, no desejo de exaltarem o que consideram ser as suas particularidades locais para o Brasil e para o mundo, inadvertidamente sucumbem à “cartilha do grupo”, a uma “mentalidade de ticket” que, mercadologicamente pré-definida e orientada, exige de cada um dos que a ela se filiam que abdique precisamente do que lhe é (ou deveria ser) mais particular e, assim, mais caro: sua condição de indivíduo minimamente emancipado.

Diante disso, parodiando uma conhecida passagem da obra de Shakespeare, ao alertarmos para o fato de que há mais paraenses (ou pernambucanos, baianos, cariocas, gaúchos, catarinenses . . .) do que sonham os nossos espetáculos regionalistas . . ., alertamos também para a sempre renovada ameaça representada pela reificação, no sentido dos prejuízos que ela traz para o livre exercício do pensamento crítico. Na mesma toada, para os prejuízos que ela também traz para quaisquer movimentos de reconhecimento não somente das singularidades, mas também das diversidades, movimentos esses não necessariamente submissos a uma lógica de mercado. Trata-se aqui de um apelo contra os graves prejuízos representados pela redução do humano ao um, ao número. Por derivação, trata-se aqui de um sonoro apelo à valorização desse mesmo humano em sua preciosa qualidade de singular multiplicidade.

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  • Soares, T. (2003). Já Urrou;. [Gravado por T. Soares]. In Terruá Pará 3 [Mídia de gravação: CD/DVD]. São Paulo: Terruá Pará. (2013).
  • 1
    Um importante adendo se faz necessário aqui. Ele diz respeito ao fato de que, embora momentaneamente acompanhemos Freud (1921/2011Freud, S. (2011). Psicologia das massas e análise do Eu. In S. Freud (Org.), Obras completas (P. C. Souza, trad., vol. 15, pp. 13-113). São Paulo, SP: Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1921)) em sua ideia de que a pulsão de vida efetivamente atuaria no estabelecimento de relevantes vínculos libidinais entre diferentes sujeitos, contribuindo assim para a formação das massas, de modo algum resulta daí quer seja um desconhecimento, quer seja um desmerecimento do perene confronto de forças que se imprime entre Eros e Tânatos nesse mesmo terreno da constituição - e do esfacelamento - da existência de comunidades, destacando-se aí, é claro, todo o poderio disruptivo da pulsão de morte como perturbadora do laço social. Trata-se de um movimento que, inclusive, aparece subentendido no parágrafo acima quando da sua afirmação da inevitável presença da ambivalência de sentimentos como algo inerente às próprias relações humanas, seja no interior de um grupo ou direcionado àqueles que dele não fazem parte. E mais: trata-se de um movimento que motivou bastante a própria reapropriação crítica do pensamento de Freud concluída por Theodor Adorno, a qual, vale lembrar, a despeito de reconhecer no texto freudiano sobre as massas o mérito de, por exemplo, trazer consigo valiosos vislumbres e insights a respeito da natureza e ascensão do nazifascismo, não hesita em apontar e rechaçar tanto a sua tendência a certo psicologismo exacerbado quanto, ainda, o totalitarismo em potencial que se faz presente na afirmação de que toda psicologia pudesse ser efetivamente tomada como psicologia social, afirmação essa que põe em risco a capacidade emancipatória do indivíduo ao aproximá-lo perigosamente da condição de mero “decalque” do social (verAdorno, 1951/2015Adorno, T. W. (2015). Teoria freudiana e o padrão da propaganda fascista. In T. W. Adorno (Org.), Ensaios sobre psicologia social e psicanálise (V. Freitas, trad., pp. 153-189). São Paulo, SP: Ed. Unesp . (Trabalho original publicado em 1951)).
  • 2
    Tendo em vista tal direcionamento, torna-se oportuno acrescentar aqui o quanto, nos termos de Horkheimer e Adorno (1947/1985Horkheimer, M., & Adorno, T. W. (1985). A indústria cultural: o esclarecimento como mistificação das massas. In M. Horkheimer, & T. W. Adorno (Orgs.), Dialética do Esclarecimento: fragmentos filosóficos (G. de Almeida, trad., pp. 99-138). Rio de Janeiro, RJ: Zahar. (Trabalho original publicado em 1947); 1956/1973aHorkheimer, M., & Adorno, T. W. (1973a). A massa. In M. Horkheimer, & T. W. Adorno (Orgs.), Temas básicos da sociologia (A. Cabral, trad., pp. 78-91). São Paulo, SP: Cultrix. (Trabalho original publicado em 1956)), ainda que o indivíduo costumeiramente se relacione com a pressão social representada por aparatos e produtos como aqueles produzidos e difundidos pela indústria cultural a partir de uma mediação pela técnica - e, com ela, por todo um convite à adaptação a uma universalidade que é sugerida como fato ou destino e que caminha lado a lado com a subserviência ao valor de troca das coisas, valor esse representado por uma arte predefinida, tipificada e, portanto, livre de qualquer “incômoda” tensão ou negatividade que eventualmente a potencializassem como instrumento de emancipação em relação às demandas do mercado -, isso não significa que ele necessariamente deva seguir atado aos ditames dessa falsa mediação. Com efeito, a reação a ela se daria por meio da possibilidade de um refreamento do comportamento adaptativo balizado pelo consumo irrefletido, movimento esse a partir do qual o indivíduo pudesse melhor visualizar a si mesmo na sua relação dialética com o tecido social e, assim, abrir parênteses para o fundamental questionamento tanto de um pensamento identitário quanto, diretamente a ele atrelado, das sérias limitações impostas a uma existência subsumida à totalidade. Em outros termos, trata-se de uma aproximação mais efetiva com a “estranhamente-familiar” dimensão pulsional que também o constitui e que, uma vez reapropriada e redirecionada pela lógica do capital, contribui de maneira nada desprezível para que permaneça à deriva na massa reificada, tarefa para a qual o auxílio de uma psicologia social crítica e analiticamente orientada se revelaria de fundamental importância.
  • 3
    A “indústria cultural” pode ser lida como um ramo da atividade econômica organizada aos moldes dos grandes conglomerados do capitalismo monopolista. Como sintetiza Rüdiger (2004Rüdiger, F. (2004). Premissas da crítica à indústria cultural. In Theodor Adorno e a Crítica à Indústria Cultural (pp. 19-62). Porto Alegre, RS: EDPUCRS., p. 18), trata-se das “. . . indústrias interessadas na produção em massa de bens culturais. [. . .] Em essência, a expressão não se refere às empresas produtoras nem às técnicas de difusão dos bens culturais; representa, antes de mais nada, um movimento histórico-universal: a transformação da mercadoria em matriz do modo de vida, e, assim, da cultura em mercadoria, conforme ocorrido na baixa modernidade”.
  • 4
    Outra relevante atualização dessa discussão que merece destaque aparece nas ponderações de Duarte (2011Duarte, R. (2011). Industria Cultural 2.0. Constelaciones - revista de teoria crítica, 3(3), 90-117. Recuperado de: https://bit.ly/3lG5gqV
    https://bit.ly/3lG5gqV...
    ) acerca das características específicas da indústria cultural em sua modalidade mais atual, a qual o autor intitulou “indústria cultural 2.0”. Segundo Duarte (2011Duarte, R. (2011). Industria Cultural 2.0. Constelaciones - revista de teoria crítica, 3(3), 90-117. Recuperado de: https://bit.ly/3lG5gqV
    https://bit.ly/3lG5gqV...
    ), muito embora o conceito - e o objeto ao qual ele diz respeito - siga sendo balizado por importantes elementos apontados por Horkheimer e Adorno (1947/1985Horkheimer, M., & Adorno, T. W. (1985). A indústria cultural: o esclarecimento como mistificação das massas. In M. Horkheimer, & T. W. Adorno (Orgs.), Dialética do Esclarecimento: fragmentos filosóficos (G. de Almeida, trad., pp. 99-138). Rio de Janeiro, RJ: Zahar. (Trabalho original publicado em 1947); 1956/1973aHorkheimer, M., & Adorno, T. W. (1973a). A massa. In M. Horkheimer, & T. W. Adorno (Orgs.), Temas básicos da sociologia (A. Cabral, trad., pp. 78-91). São Paulo, SP: Cultrix. (Trabalho original publicado em 1956)) no contexto do século XX, qualquer análise que se pretenda mais aprofundada da indústria cultural hoje não poderia jamais menosprezar os novos rumos que, já ao final desse mesmo século, as demandas geopolíticas passaram a ditar para a chamada globalização. Pois, com a “vitória” norte-americana na guerra fria, alastrou-se pelo mundo um capitalismo pautado por inovações de mercado que se estabeleceram por intermédio de uma série de novas tecnologias digitais (capitaneadas pela internet) pelas quais foi possível maior interação, capilarização e aproximação da indústria do entretenimento e dos seus produtos em relação ao grande público. E isso, é claro, não se deu sem contundentes implicações, inclusive - ou sobremaneira - em termos da criação de novas demandas que mantenham em movimento todo um círculo vicioso (e retroalimentativo) de produção e consumo em massa que, conforme apostamos aqui, passou a incluir em suas fileiras a própria ideia de identidades regionais tais como aquela difundida por um espetáculo musical como o Terruá Pará.
  • 5
    Um fundamentado e competente aprofundamento teórico dessa discussão pode ser encontrado no trabalho de Severiano (2001Severiano, M. (2001). Narcisismo e publicidade: uma análise psicossocial dos ideais de consumo na contemporaneidade. São Paulo, SP: Annablume.), que, utilizando como referência, dentre outros autores, o pensamento de Adorno (1941Adorno, T. W. (1941). On popular music. In M. Horkheimer (Org.), Studies in philosophy and social sciences (pp. 17-48). New York, NY: Institute of Social Research.), analisa o quanto a ilusão do “livre” consumo do produto cultural - ou melhor, da marca - promove no consumidor a euforia de uma suposta completude narcísica ou onipotência do seu eu ideal infantil pela via de também supostas doses de unicidade e diferenciação. Diante disso, Severiano (2001Severiano, M. (2001). Narcisismo e publicidade: uma análise psicossocial dos ideais de consumo na contemporaneidade. São Paulo, SP: Annablume.) enfatiza de forma crítica a intensidade com a qual tal processo aparece atravessado pela idealização de um produto fetichizado e estandardizado por meio do encontro do eu do consumidor com o ideal do eu que o objeto/marca representa, o que resultaria em uma pseudoindividuação.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    25 Mar 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    05 Maio 2022
  • Aceito
    13 Maio 2023
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