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Potencialidades dos casos de ensino na formação de professoras iniciantes 1 1 Editor responsável: Ana Lúcia Guedes Pinto https://orcid.org/0000-0002-0857-8187 2 2 Normalização, preparação e revisão textual: Mariana Munhoz (Tikinet) revisao@tikinet.com.br

Potencial de los casos de enseñanza en la formación de profesoras principiantes

Resumo

Este estudo investiga as potencialidades dos casos de ensino como dispositivo reflexivo no processo de desenvolvimento profissional de professoras alfabetizadoras iniciantes. A pesquisa tem natureza qualitativa com delineamento de pesquisa-intervenção. Participaram seis professoras alfabetizadoras iniciantes e a coleta dos dados ocorreu em três momentos: um grupo de discussão inicial, cinco encontros formativos e um grupo de discussão final. Os casos de ensino mostraram ser um dispositivo formativo com significativo potencial no desenvolvimento das docentes, pois proporcionaram às participantes, dentre outros aspectos, um movimento de reflexão sobre a prática e a estruturação de novos conhecimentos profissionais.

Palavras-clave
casos de ensino; desenvolvimento profissional; formação docente; professor iniciante

Resumen

Este estudio investiga el potencial de los casos de enseñanza como dispositivo de reflexión en el proceso de desarrollo profesional de profesoras principiantes de alfabetización. La investigación es de naturaleza cualitativa con un diseño de investigación-intervención. Participaron seis profesoras principiantes de alfabetización y la recogida de datos se produjo en tres momentos: un grupo de discusión inicial, cinco reuniones formativas y un grupo de discusión final. Los casos de enseñanza resultaron ser un dispositivo formativo con un potencial significativo en el desarrollo de las profesoras, ya que les proporcionaron a las participantes, entre otros aspectos, un movimiento de reflexión acerca de la práctica y la estructuración de nuevos conocimientos profesionales.

Palavras-chave
casos de enseñanza; desarrollo profesional; formación del profesorado; profesor principiante

Abstract

This study investigates the potential of teaching cases as a reflection tool in the process of professional development of beginning literacy teachers. The research has a qualitative nature with a research-intervention design. A total of six beginning literacy teachers took part in the study, and data collection occurred in three moments: an initial discussion group, five training meetings, and a final discussion group. The teaching cases proved to be a training tool with significant potential for the teachers’ improvement, since they provided a reflection movement on the practice and structuring of new professional knowledge to the participants, among other aspects.

Keywords
teaching cases; professional development; teacher training; beginning teacher

Introdução

Os primeiros anos de atuação docente são permeados por momentos de inseguranças e tensões decorrentes do início profissional e das dúvidas sobre como desenvolver práticas de ensino que promovam o aprendizado dos alunos. Esse período decisivo na carreira é frequentemente vivenciado pelos professores de maneira solitária, sem apoio ou condições institucionais que favoreçam a superação dos desafios e a integração ao novo ambiente de trabalho (Marcelo; Vaillant, 2017Marcelo, C.; Vaillant, D. (2017). Políticas y Programas de Inducción en la Docencia en Latinoamérica. Cadernos de Pesquisa, 47(166), 1224-1249, 2017.).

Em seus estudos acerca do processo de inserção profissional, Marcelo (2009)Marcelo, C. (2009). A identidade docente: constantes e desafios. Formação docente, 1(1), 109-131. retrata os desafios enfrentados nesse período em virtude da falta de subsídios destinados aos professores iniciantes, bem como chama a atenção para o fato de que, com certa frequência, são atribuídas a eles turmas consideradas mais difíceis, como, por exemplo, classes de alfabetização, que necessitam de um conhecimento teórico e prático específico acerca dos processos de aquisição de leitura e escrita.

Nessa fase de inserção profissional, a maioria dos docentes sente as diferenças entre a experiência prática obtida na formação inicial e as reais condições nas quais o ensino é oferecido em sala de aula. Vaillant e Marcelo (2012)Vaillant, D., & Marcelo, C. (2012). Ensinando a ensinar: as quatro etapas de uma aprendizagem. Editora UTFPR. explicam que, apesar de os problemas que afligem os professores em início de carreira serem semelhantes aos de professores experientes – como alunos desmotivados, indisciplina, ausência de orientação pedagógica, dentre outros –, os professores iniciantes estão em desvantagem emocional e profissional em relação aos mais experientes. Os autores argumentam que “os professores principiantes experimentam os problemas com maiores doses de incertezas e estresse, devido ao fato de que eles têm menores referências e mecanismos para enfrentar essas situações” (Vaillant; Marcelo, 2012Vaillant, D., & Marcelo, C. (2012). Ensinando a ensinar: as quatro etapas de uma aprendizagem. Editora UTFPR., p. 123).

Assim, promover situações em que os professores possam refletir sobre as práticas, encontrando novas possibilidades acerca das experiências vivenciadas durante a ação docente, é uma alternativa para o processo de construção de novos conhecimentos, minimizando o sofrimento diante da insegurança para responder às exigências profissionais e às responsabilidades assumidas e favorecendo o desenvolvimento profissional docente.

No campo da formação de professores há uma ampla literatura que discute propostas para promover a aprendizagem da docência e muitas delas fazem referência a dispositivos formativos mobilizados na formação inicial e continuada de professores que tomam a prática como objeto de análise por meio de narrativas como, por exemplo, portfólio, memorial, diários e casos de ensino. Há também dispositivos que empregam recursos audiovisuais e de observação das práticas, porém seu uso ainda é incipiente na formação docente no país.

Em recente estudo, Tartuce, Davis e Almeida (2021, p. 9)Tartuce, G. L., Davis, C. L. F., & Almeida, P. C. A. (2021). Dispositivos formativos nas licenciaturas: análise de experiências brasileiras à luz da literatura Francófona. Educação em Revista, 37, 1-21. analisam os dispositivos formativos empregados por professores que atuam nas licenciaturas fundamentando-se na literatura francófona. As autoras recorrem a Boudjaoui e Leclercq (2014, p. 10)Boudjaoui, M.; Leclercq, G. Revisiter le concept de dispositif pour comprendre l’alternance en formation. Éducation et francophonie, v. 42, n. 1, p. 22–41, 2014. para explicar que dispositivo de formação “é um conceito teórico que designa arranjos ideais, funcionais e de atuação que, em conjunto, formam um sistema que envolve objetivos pedagógicos, contextos, atores, ações e relações, bem como materiais necessários para os alcançar” (Tartuce; Davis; Almeida, 2021Tartuce, G. L., Davis, C. L. F., & Almeida, P. C. A. (2021). Dispositivos formativos nas licenciaturas: análise de experiências brasileiras à luz da literatura Francófona. Educação em Revista, 37, 1-21., p. 5). E como há nos dispositivos de formação um aspecto virtual, uma vez que não se sabe ainda se ele será efetivo, e um aspecto material, que são as ações e os recursos empregados para chegar aos fins pretendidos, é só depois de implementado que o dispositivo formativo ganha concretude, o que lhe possibilita ser objeto de estudo e também de reflexão (Tartuce; Davis; Almeida, 2021Tartuce, G. L., Davis, C. L. F., & Almeida, P. C. A. (2021). Dispositivos formativos nas licenciaturas: análise de experiências brasileiras à luz da literatura Francófona. Educação em Revista, 37, 1-21.).

É nessa perspectiva que este estudo utiliza o conceito de dispositivos de formação, entendendo que seu uso na formação docente tem valor formativo e investigativo. Neste artigo, os casos de ensino foram utilizados com o objetivo de discutir as potencialidades de seu uso como dispositivo reflexivo no processo de desenvolvimento profissional de professoras alfabetizadoras iniciantes. Os casos instigam o processo reflexivo, fomentam a análise crítica de práticas em conformidade com teorias e conceitos pessoais e promovem a construção e reelaboração dos conhecimentos profissionais (Nono; Mizukami, 2002Nono, M. A., & Mizukami, M. G. N. (2002). Casos de ensino e processos de aprendizagem profissional docente. Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos, 83(203/204/205), 72-84.).

Para tanto, foi delineada uma pesquisa-intervenção, realizada com seis professoras alfabetizadoras iniciantes (com até cinco anos de atuação docente) que atuam em uma rede municipal de ensino no interior paulista; a pesquisa se deu por meio da reflexão de casos de ensino com base nas necessidades formativas reveladas pelas docentes.

O artigo está estruturado do seguinte modo: primeiramente são apresentadas contribuições teóricas acerca da importância do processo reflexivo para a articulação entre a teoria e prática e, consequentemente, para o aprendizado da docência, bem como as potencialidades dos casos de ensino como dispositivo formativo. Em seguida, está descrita a pesquisa, elucidando como ocorreu o percurso metodológico e o uso dos casos de ensino no processo formativo. São apresentadas as análises dos dados, evidenciando as implicações sobre a prática ocasionadas pelo movimento reflexivo com os casos de ensino. Por fim, as considerações finais reiteram os principais apontamentos deste estudo.

Processo reflexivo na formação docente

A temática do professor reflexivo tem sido abordada na literatura relacionada à formação de professores no Brasil especialmente a partir dos anos 1990, em estudos que apontam o papel da reflexão sobre a prática como elemento essencial para o desenvolvimento profissional docente (Libâneo, 2002Libâneo, J. C. (2002). Reflexividade e formação de professores: outra oscilação do pensamento pedagógico brasileiro? In: S. G. Pimenta, & E. Ghedin (Orgs.), Professor reflexivo no Brasil: gênese e crítica de um conceito (pp. 53-79). Cortez.).

Entre os autores que defendem a ideia de uma postura reflexiva na prática profissional dos professores, destacam-se os trabalhos de Schön (1992)Schön, D. (1992). Formar professores como profissionais reflexivos. In A. Nóvoa (Org.), Os professores e a sua formação (pp. 77-92). Dom Quixote., Zeichner (1992)Zeichner, K. (1992). Novos caminhos para o practicum: uma perspectiva para os anos 90. In: A. Nóvoa (Orgs.), Os professores e a sua formação (pp. 115-138). Dom Quixote., Cochran-Smith e Lytle (1999)Cochran-Smith, M., & Lytle, S. (1999). Relationships of knowledge and practice: teacher learning in communities. Review of Research in Education, 24, 249-305, 1999., que trazem elementos para discussão dessa temática.

Nos estudos pioneiros de Schön (1992) a respeito da epistemologia da prática, o autor retrata a reflexão sobre as práticas em consonância com o desenvolvimento dos conhecimentos profissionais por meio da análise e problematização das situações decorrentes da ação docente, buscando soluções e novas possibilidades. O autor retrata três dimensões da reflexão na prática: a primeira se refere ao conhecimento na ação, processo que ocorre no momento da atuação e se relaciona ao fazer docente e aos conhecimentos diretamente acionados durante a prática desenvolvida, ou seja, quais os objetivos de determinada situação, quem são os alunos e como desenvolver a prática. A segunda dimensão é a reflexão na ação, por meio da análise da situação prática e a busca pelas melhores estratégias e ações no decorrer da situação, mas que pode ocorrer também após a situação, sem envolver um aprofundamento crítico e analítico do momento. A terceira dimensão é a reflexão sobre a reflexão-na-ação, que sucede a situação ocorrida, assim o docente tem a possibilidade de refletir sobre os acontecimentos, analisando possibilidades e dificuldades do momento. Segundo o autor, procedimentos de registro e descrição das práticas observadas com vistas a uma posterior análise aprofundada dos comportamentos, a tomada de consciência das intenções e estratégias envolvidas são favoráveis ao desenvolvimento de um practicum reflexivo (Schön, 1992Schön, D. (1992). Formar professores como profissionais reflexivos. In A. Nóvoa (Org.), Os professores e a sua formação (pp. 77-92). Dom Quixote.).

Em uma perspectiva mais crítica, Zeichner (1992Zeichner, K. (1992). Novos caminhos para o practicum: uma perspectiva para os anos 90. In: A. Nóvoa (Orgs.), Os professores e a sua formação (pp. 115-138). Dom Quixote.; 2008)Zeichner, K. (2008). Uma análise crítica sobre a “reflexão” como conceito estruturante na formação docente. Educação e Sociedade, 29(103), 535-554. observa que a prática reflexiva tornou-se um “slogan” nas discussões sobre formação docente. O autor chama a atenção para o viés individualista de muitos estudos sobre o professor como profissional reflexivo, ao focar nas questões do ensino e da sala de aula, desconsiderando as condições sociais da educação e o contexto do trabalho docente. Nesse sentido, Zeichner (1992Zeichner, K. (1992). Novos caminhos para o practicum: uma perspectiva para os anos 90. In: A. Nóvoa (Orgs.), Os professores e a sua formação (pp. 115-138). Dom Quixote.; 2008)Zeichner, K. (2008). Uma análise crítica sobre a “reflexão” como conceito estruturante na formação docente. Educação e Sociedade, 29(103), 535-554. destaca a importância de que a reflexão não ocorra apenas no âmbito individual e explica que ao refletir coletivamente o professor analisa não somente a própria prática, mas diversas ações e teorias, em um processo de crítica reflexiva tanto coletiva quanto individual. Dessa forma, os professores têm mais oportunidades de compreender as questões da prática em uma dimensão ampla, debatendo, discutindo, criticando e relacionando as práticas às condições que afetam o trabalho docente em sala de aula.

Aprofundando a discussão acerca da reflexão das práticas, Cochran-Smith e Lytle (1999)Cochran-Smith, M., & Lytle, S. (1999). Relationships of knowledge and practice: teacher learning in communities. Review of Research in Education, 24, 249-305, 1999. destacam três concepções sobre o movimento de reflexão das práticas no processo de aprendizagem docente. Na concepção do conhecimento para a prática, compreende-se que os docentes elaboram e mobilizam a base de conhecimentos profissionais tencionando o desenvolvimento da prática por meio do aprofundamento nas teorias e concepções que fundamentam os saberes formais. A concepção do conhecimento na prática envolve um processo de análise e reflexão da ação realizada na prática dos professores, percebendo o conhecimento profissional dentro da ação, em um movimento de parceria nos processos reflexivos entre profissionais experientes e iniciantes, tendo em vista auxiliar os docentes iniciantes no processo de aprendizado profissional. Já a terceira concepção do conhecimento da prática visa a prática na qualidade de fonte de construção de conhecimento, por meio de investigação, reflexão e análise crítica das situações, e de uma visão ampla das práticas, num movimento que envolve todos os profissionais, desde os iniciantes até os experientes, em um espaço de diálogo e reflexão colaborativo entre os participantes, tencionando o processo de construção e reelaboração dos conhecimentos, como também a elaboração de novas perspectivas sobre o sistema educacional.

Dessa forma, as autoras Cochran-Smith e Lytle (2002)Cochran-Smith, M., & Lytle, S. (2002). Teacher Learning Communities. In J. Guthrie (Eds.), Encyclopedia of Education. Macmillan. defendem a criação de comunidades de aprendizagem visando a reflexão coletiva das práticas, para que ocorram transformações na comunidade escolar e nos processos de aprendizagem, visto que todos os participantes podem ter participação nas análises, reflexões, e, assim, promover o processo de construção de conhecimentos durante a atuação profissional dos docentes.

Apesar de algumas diferenças na abordagem, esses estudos têm em comum a valorização do papel da experiência e de propostas formativas que favoreçam a reflexão sobre a prática, própria ou de outros professores, em processos de formação docente. Mostram ainda a relevância da dimensão colaborativa no processo reflexivo e da constituição de comunidades de investigação que coloquem os professores como agentes e coconstrutores de conhecimento.

Em conformidade com o processo de reflexão sobre as práticas na formação docente, Gatti et al. (2019, p. 186)Gatti, B. A.; Barretto, E. S. S.; André, M. E. D. A.; Almeida, P. C. A. (2019). Professores do Brasil: novos cenários de formação. Unesco., trazem elementos para a discussão da temática – situando-a no “quadro de redefinição do papel e da prática do professor, em que se reconhece o espaço profissional como locus de produção de conhecimento, e o educador, como sujeito histórico capaz de produzir novos conhecimentos” – e apresentam alguns consensos na literatura subjacentes à aprendizagem da docência, que vem influenciando os programas e práticas de formação inicial e continuada. Esses consensos, segundo as autoras, “evidenciam redefinição do papel e da prática de professores e seus formadores e propiciam a construção de alternativas metodológicas” (Gatti et al., 2019Gatti, B. A.; Barretto, E. S. S.; André, M. E. D. A.; Almeida, P. C. A. (2019). Professores do Brasil: novos cenários de formação. Unesco., p. 186).

Um dos consensos diz respeito à “reflexão na articulação teoria e prática” (Gatti et al., 2019Gatti, B. A.; Barretto, E. S. S.; André, M. E. D. A.; Almeida, P. C. A. (2019). Professores do Brasil: novos cenários de formação. Unesco., p. 187). As autoras explicam que tem sido recorrentemente explicitado na literatura que “as práticas formativas devem proporcionar vivências que retratem, tanto quanto possível, a complexidade de ensinar com a intenção de desencadear a integração entre a atividade teórica e a atividade prática”. É nessa perspectiva que formadores têm recorrido aos dispositivos de formação como “casos de ensino, diários reflexivos, portfólio, observação de sala de aula, dentre outros, que tomam a prática como objeto de análise”. As autoras explicam que eles são “considerados processos criadores de investigação, explicação, interpretação e intervenção na realidade” com o potencial de promover situações para que os “professores testem seus conhecimentos teóricos, exigindo que, em alguns momentos, seus princípios sejam explicitados e revistos e que diferentes saberes sejam mobilizados para que haja uma profunda compreensão da complexidade da atividade docente” (Gatti et al., 2019Gatti, B. A.; Barretto, E. S. S.; André, M. E. D. A.; Almeida, P. C. A. (2019). Professores do Brasil: novos cenários de formação. Unesco., p. 187).

As autoras enfatizam, ainda, que “mesmo considerando que há diferenças na literatura disponível em relação ao conceito de reflexão, é consenso que a teoria desempenha um papel essencial em sua relação dialética com a prática e que há níveis e processos diferentes de reflexão” (Gatti et al., 2019Gatti, B. A.; Barretto, E. S. S.; André, M. E. D. A.; Almeida, P. C. A. (2019). Professores do Brasil: novos cenários de formação. Unesco., p. 187).

As contribuições dos diferentes autores apontam para a necessidade de uma formação que tenha como objetivo formar profissionais que constantemente reflitam sobre os conhecimentos e ações da prática profissional, promovendo situações de aprendizado que sejam eficazes às necessidades de cada aluno – não somente a replicação de técnicas desenvolvidas para determinadas situações, mas apoiadas na análise teoricamente fundamentada das ações, do contexto, dos conhecimentos e das especificidades dos alunos.

Processo formativo com casos de ensino

As narrativas de situações decorrentes da prática de professores têm sido utilizadas com maior frequência como dispositivo formativo, contribuindo para o desenvolvimento profissional e pessoal. Essas iniciativas de formação possibilitam a análise coletiva e auxiliam no fortalecimento das relações entre os profissionais, diminuindo o individualismo decorrente de práticas isoladas em seus contextos (Gatti et al., 2019Gatti, B. A.; Barretto, E. S. S.; André, M. E. D. A.; Almeida, P. C. A. (2019). Professores do Brasil: novos cenários de formação. Unesco.).

As narrativas, como dispositivo formativo, podem ocorrer em diferentes formatos de registro: portfólios, autobiografias, memoriais, casos de ensino, entre outras formas de produção escrita das experiências decorrentes da prática. Apresentam tanto a descrição da situação destacada quanto os sentimentos negativos e positivos do momento (Oliveira, 2011Oliveira, R. M. M. A. (2011). Narrativas: contribuições para a formação de professores, para as práticas pedagógicas e para a pesquisa em educação. Revista Educação Pública, 20(43), 289-305.).

Cabe ressaltar também a possibilidade de diferentes representações, pois cada grupo de professores durante a análise empregará os próprios conhecimentos, concepções, teorias pessoais, gerando novas perspectivas de acordo com as experiências de cada docente e as discussões do grupo, pois nesse momento recuperam situações vivenciadas no contexto social, nas práticas profissionais e até mesmo na qualidade de alunos. Desse modo, Oliveira (2011, p. 292)Oliveira, R. M. M. A. (2011). Narrativas: contribuições para a formação de professores, para as práticas pedagógicas e para a pesquisa em educação. Revista Educação Pública, 20(43), 289-305. reitera a potencialidade do processo formativo com o uso de narrativas: “é inegável o papel autoformador desses instrumentos pelo fato dos professores produzirem conhecimento e compartilhar o conhecimento produzido por outros grupos”.

Nessa perspectiva, os casos de ensino são narrativas que descrevem detalhadamente uma situação ocorrida em um contexto real, por meio do relato de algum momento dilemático, passível de análises e reflexões acerca de possibilidades de intervenção e diferentes ações (Nono; Mizukami, 2002Nono, M. A., & Mizukami, M. G. N. (2002). Casos de ensino e processos de aprendizagem profissional docente. Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos, 83(203/204/205), 72-84.).

Entre as possibilidades formativas dos casos de ensino, as autoras Nono e Mizukami (2002)Nono, M. A., & Mizukami, M. G. N. (2002). Casos de ensino e processos de aprendizagem profissional docente. Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos, 83(203/204/205), 72-84., com base nos estudos de Merseth (1996 apud Nono; Mizukami, 2002Nono, M. A., & Mizukami, M. G. N. (2002). Casos de ensino e processos de aprendizagem profissional docente. Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos, 83(203/204/205), 72-84.), destacam suas contribuições no processo de análise, reflexão e resolução de problemas decorrentes da prática profissional; no movimento de refletir acerca das melhores decisões; e, por fim, promover o exercício da reflexão sobre as práticas e o processo de desenvolvimento profissional. Ainda a respeito das potencialidades, Merseth (2018)Merseth, K. K. (org.). (2018). Desafios reais do cotidiano escolar brasileiro: 22 dilemas vividos por diretores, coordenadores e professores em escolas de todo o Brasil. Instituto Península; Moderna. afirma que possibilitam a análise de uma situação identificando quais os impedimentos, percalços, dificuldades e possíveis encaminhamentos, num ambiente em que os participantes podem experimentar novas possibilidades, sem a preocupação de que suas ideias não funcionem. Mizukami (2010)Mizukami, M. G. N. (2010). Formadores de professores, conhecimentos da docência e casos de ensino. In M. G. N. Mizukami, & A. M. M. R. Reali (Orgs.), Formação de professores: práticas pedagógicas e escola. Ufscar., com base nos estudos de Shulman (1986 apud Mizukami, 2010Mizukami, M. G. N. (2010). Formadores de professores, conhecimentos da docência e casos de ensino. In M. G. N. Mizukami, & A. M. M. R. Reali (Orgs.), Formação de professores: práticas pedagógicas e escola. Ufscar.), elucida que a formação com casos de ensino contribui para o desenvolvimento e a organização do processo reflexivo. Embora os dilemas enfrentados pelos docentes sejam imprevisíveis, os processos direcionados para a reflexão auxiliam no direcionamento e raciocínio em diversas situações.

Nono e Mizukami (2002)Nono, M. A., & Mizukami, M. G. N. (2002). Casos de ensino e processos de aprendizagem profissional docente. Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos, 83(203/204/205), 72-84. ressaltam que os casos de ensino não são modelos a serem imitados, mas instrumentos de construção de conhecimentos profissionais, pois o docente mobiliza os conhecimentos que possui em um ambiente de discussão e construção coletiva acerca das situações dilemáticas dos casos, por meio da reflexão crítica, aprofundada e planejada. Citando estudos de Wilson, Shulman e Richert (1987 apud Nono; Mizukami, 2002Nono, M. A., & Mizukami, M. G. N. (2002). Casos de ensino e processos de aprendizagem profissional docente. Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos, 83(203/204/205), 72-84., p. 73) as autoras entendem que os estudos de casos apresentam potencial para desenvolver o processo de raciocínio pedagógico ao promover a análise de aspectos do ato de ensinar que envolvem “compreensão, transformação, instrução, avaliação, reflexão e nova compreensão”.

Destacam ainda que o processo reflexivo desencadeado na discussão dos casos permite a identificação de lacunas nos cursos de formação inicial e de temas de interesse de professores em formação. Possibilita ainda o exame e o questionamento de concepções e crenças sobre o ensino e sua reconstrução, para estabelecer práticas mais adequadas a um ensino de qualidade. O uso de casos de ensino como dispositivo formativo mostra-se, assim, promissor em processos de formação docente de professores iniciantes.

Metodologia

Este estudo teve como abordagem a pesquisa qualitativa com delineamento da pesquisa-intervenção, desenvolvida por meio de uma proposta formativa com casos de ensino como dispositivo reflexivo das práticas de alfabetização. Nessa perspectiva, os participantes e o pesquisador se envolvem no desenvolvimento da pesquisa em uma relação de transformação colaborativa, em que os processos determinam os próximos movimentos por meio do desenvolvimento do grupo de participantes; portanto, todos os envolvidos agem ativamente na construção dos conhecimentos (Rocha; Aguiar, 2003Rocha, M. L.; Aguiar, K. F. (2003). Pesquisa-intervenção e a produção de novas análises. Psicologia: Ciência e Profissão, 23(4), 64-73.).

Assim, a presente pesquisa ocorreu em três momentos: um grupo de discussão inicial a fim de elencar as necessidades formativas de professoras alfabetizadoras iniciantes para a elaboração de cinco encontros formativos que ocorreram em um segundo momento e, por fim, um grupo de discussão final para identificar, na percepção das professoras, as potencialidades dos casos de ensino como dispositivo de formação.

As participantes foram, a princípio, sete professoras alfabetizadoras iniciantes que atuam com turmas de 1º e 2º ano do Ensino Fundamental de uma rede municipal no estado de São Paulo, com até cinco anos de atuação na docência em cargo efetivo e contratual. Posteriormente, uma participante retirou-se do processo, mantendo-se seis participantes até o final da coleta dos dados.

Este estudo foi submetido ao Comitê de Ética da instituição sede da pesquisa e, depois de aprovado, foi enviada uma carta convite aos professores alfabetizadores iniciantes com o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido para o aceite em participar da pesquisa. Inicialmente, as participantes responderam a um questionário on-line para fins de caracterização, ocasião em que elencaram previamente os principais desafios encontrados na docência. Em seguida, foi realizado um grupo de discussão inicial com o intuito de identificar as principais necessidades formativas das participantes, para assim iniciar o planejamento dos encontros formativos e escolha dos casos de ensino.

O processo de planejamento teve início com a busca por casos de ensino que incorporassem aspectos da prática profissional, possibilitando reflexões sobre as inseguranças das participantes. Foram utilizados quatro casos de ensino: (i) o primeiro retrata as agruras e desafios provenientes do próprio processo de inserção profissional e está disponível em um livro de Telma Weisz (2018)Weisz, T. (2018). O diálogo entre o ensino e a aprendizagem. Ática., autora que é referência nos estudos sobre alfabetização; (ii) o segundo, utilizado em dois encontros, também disponível no livro de Telma Weisz, foi escrito por uma professora que estudou com a autora e tem como temática o agrupamento produtivo e a organização pedagógica; (iii) as hipóteses de escrita foram o tema do terceiro caso, extraído do blog e da revista Avisa lá, edição de setembro de 2004 (Gubiani, 2004Gubiani, R. L. (2004, 7 setembro). Muitas revelações na história de cada escrita. Avisa lá, 7 set. 2004. https://avisala.org.br/index.php/assunto/conhecendo-a-crianca/muitas-revelacoes-na-historia-de-cada-escrita/.
https://avisala.org.br/index.php/assunto...
), que disponibilizou relatos de experiências docentes; (iv) por fim, o quarto caso de ensino tratou sobre o contexto de pandemia e foi elaborado por uma das autoras deste artigo, que também é professora alfabetizadora.

Previamente os casos eram enviados para a leitura e uma análise preliminar pelas docentes. No início de cada encontro formativo explicava-se como ocorreria o encontro, os objetivos e etapas previstas. Inicialmente havia um momento de leitura ou um vídeo introdutório com o intuito de criar um espaço de interação entre as docentes. Logo após, realizava-se a leitura do caso, seguida de duas a, no máximo, três questões norteadoras para promover a discussão. Nesse momento, as docentes eram incentivadas a compartilhar suas análises livremente, debatendo e questionando durante as reflexões. Tencionando abordar alguns assuntos específicos referentes às necessidades formativas elencadas anteriormente, em cada questão foi utilizado o apoio de um checklist dos principais tópicos para a reflexão. Ao final dos apontamentos, era realizada uma síntese das ideias emergentes das análises. E, no momento final do encontro, as participantes eram convidadas a avaliar o processo formativo anonimamente, para que possíveis ajustem pudessem ser realizados, buscando a qualidade dos encontros subsequentes.

Os grupos de discussão e os encontros formativos ocorreram de modo remoto por meio da plataforma de comunicação Google Meet, tendo em vista o distanciamento social imposto pela pandemia de covid-19, momento em que ocorreu o momento da coleta de dados. Ambos foram realizados fora do horário de trabalho das participantes, em dias e horários acordados com todas.

A análise dos dados fundamenta-se na análise de prosa, conforme proposto por André (1983)André, M. E. D. A. (1983). Texto, contexto e significados: algumas questões na análise de dados qualitativos. Cadernos de Pesquisa, 45, 66-71.. Segundo a autora, a análise deve ser orientada por questões amplas que nos ajudem a interrogar os dados, mantendo “o foco de atenção no todo sem perder de vista a multiplicidade de sentidos que podem estar implícitos no material” (André, 1983André, M. E. D. A. (1983). Texto, contexto e significados: algumas questões na análise de dados qualitativos. Cadernos de Pesquisa, 45, 66-71., p. 70). Ela ressalta ainda que é necessária uma constante reflexão sobre nosso próprio processo de análise, levando em conta o contexto dos dados e o quadro teórico que fundamenta sua compreensão. Assim, os aspectos apresentados na sequência emergiram nesse movimento reflexivo de leitura da realidade pesquisada, na busca de compreensão do fenômeno investigado em suas múltiplas dimensões.

Potencialidades dos casos para a formação docente

O processo formativo com os casos de ensino evidenciou, sobretudo, a reflexão sobre as práticas profissionais como fonte de formação docente em conformidade com as necessidades das professoras alfabetizadoras iniciantes. O conjunto dos dados ofereceu elementos para a compreensão do percurso formativo das participantes, mas o grupo de discussão realizado ao final dos encontros, quando as professoras retomam essa trajetória e refletem sobre ela, constituiu um momento privilegiado para a compreensão desse percurso. A análise das potencialidades dos casos para a formação de professores ressaltou o desenvolvimento de processos reflexivos sobre a prática em diversos âmbitos da atuação docente. Dessa forma, entre outros aspectos, destacam-se na perspectiva das participantes: (i) reflexão individual e coletiva; (ii) análise, resolução de problemas e tomadas de decisões; (iii) desenvolvimento de postura investigativa; (iv) percepção da relação entre a teoria e a prática; (v) aprendizagem docente.

Os casos de ensino, como instrumento reflexivo, possibilitaram às participantes não só analisarem situações vivenciadas por outras pessoas, mas, sobretudo, relacionarem-nas à própria concepção acerca das vivências e das práticas desenvolvidas. Durante os encontros em que as professoras iniciantes analisaram diferentes narrativas sobre situações relacionadas às necessidades formativas manifestadas anteriormente pelo grupo, as participantes perceberam a relação existente entre os dilemas enfrentados nos casos e as próprias experiências, buscando novas possibilidades e analisando as perspectivas emergentes das discussões, visto que estavam em um grupo de pessoas com dificuldades, angústias e objetivos de desenvolvimento semelhantes. Esse processo provocou a reflexão sobre a prática tanto no âmbito individual quanto no coletivo.

A reflexão sobre a própria prática ocorreu em diferentes momentos durante os encontros formativos, foi unânime entre as professoras, por exemplo, a reflexão mobilizadas a partir do caso escrito por Telma Weisz sobre seu processo de inserção profissional, em que retrata o ingresso na carreira e os desafios enfrentados durante os primeiros anos de profissão, inclusive um afastamento decorrente das experiências vivenciadas. Embora o contexto social e as condições de trabalho fossem diferentes da realidade atual das participantes, relatam o impacto da leitura, pois perceberam a relação entre a narrativa acerca dos medos e inseguranças da autora e as próprias experiências como professoras iniciantes, e encontraram identificações com as situações e com os sentimentos relatados.

Para mim marcou também o primeiro, que foi o “Batismo de Fogo”, porque eu me identifiquei bastante com toda a situação. Então, para mim, eu acho que esses dois foram os pontos mais altos.

(Tatiana3 3 Para preservar o anonimato foram denominados nomes fictícios para cada participante. )

Eu também, acho que o “Batismo de Fogo” foi bem assim... o estudo do caso, de ouvir o que aconteceu, como foi, como era, como ela chegou em sala de aula. A gente se identifica muito, porque antes já era difícil, não mudou, continua difícil, continuam jogando a gente na sala sem saber o que fazer na aula (risada). E a gente vai descobrindo junto com as crianças, junto com outras professoras. Mas se a gente parar para pensar no “Batismo de Fogo” pra agora, o que mudou? Não acho que tenha mudado nada, continua muito difícil pra gente que está entrando agora.

(Ruth)

Eu estava passando pela memória aqui os casos. É realmente! Para mim o mais marcante também é o “Batismo de Fogo”, que foi o primeiro, mas os outros também foram completando e trazendo boas discussões, gostei bastante do agrupamento. [...] Acho que perceber que as outras pessoas passam por isso e que pode ser superado, com atenção, com pesquisa, com um trabalho, que pode ser superado.

(Lygia)

O processo de refletir sobre o potencial dos casos para a análise das práticas e das concepções pessoais possibilitou a compreensão dos próprios processos e a identificação das necessidades formativas, antecipando possíveis enfrentamentos e buscando novas perspectivas. Notem-se duas falas que retratam como as participantes compreenderam o uso de casos de ensino na formação:

Então, eu acho que o caso de ensino, eu na verdade que eu nem conhecia isso. O caso de ensino é muito interessante como eu falei, a Telma Weisz falando do “batismo” dela, quando que a gente ia imaginar que uma pessoa que a gente vê, tão inteligente, que conhece tanto de educação, também passou por dificuldade. Você olha assim: não, não vou desistir! A gente consegue, com esforço, com estudo, com pesquisa, com troca, a gente consegue! Então, o estudo do caso é importante, a gente conhecer, eu fui conhecer aqui com vocês, porque eu nunca tinha lido, na faculdade eu não lembro de ter lido isso. Então eu recomendo sim. A gente ter, ver a informação, quando as nossas Orientadoras Pedagógicas podem passar isso pra gente, fazer um estudo dos casos com a gente.

(Ruth)

Eu falei que a gente sempre tem uma coisa pra ensinar, mesmo que a gente não saiba e tem uma coisa pra aprender também. Acho que a gente aprendeu bastante com os casos de ensino, então recomendaria também ver como outras pessoas já passaram por situações que eram desafiadoras. Ainda tem de situação que a gente ainda vai enfrentar, e a gente está sempre aprendendo uma com a outra, trocar essas informações é bastante rico.

(Lygia)

Observa-se que Ruth salienta a necessidade de haver momentos direcionados para a reflexão, principalmente com os casos de ensino, destacando que são pouco difundidos na formação docente. As participantes reiteram o potencial formativo dos casos de ensino, corroborando o estudo de Mizukami (2010)Mizukami, M. G. N. (2010). Formadores de professores, conhecimentos da docência e casos de ensino. In M. G. N. Mizukami, & A. M. M. R. Reali (Orgs.), Formação de professores: práticas pedagógicas e escola. Ufscar., que explicita a importância de os casos envolverem uma situação que demande análise, reflexão, contenha significado para o grupo e traga soluções elaboradas de diversas formas, sejam simples ou complexas. Como bem ressalta Merseth (2018, p. 15)Merseth, K. K. (org.). (2018). Desafios reais do cotidiano escolar brasileiro: 22 dilemas vividos por diretores, coordenadores e professores em escolas de todo o Brasil. Instituto Península; Moderna., “aprender com o método de casos pode ser uma forma extremamente poderosa e agradável de adquirir novos conhecimentos e crescer como profissional”.

Esse processo reflexivo com os casos de ensino também se deu entre pares, ou seja, a reflexão também foi coletiva. Inicialmente, um dos principais desafios elencados pelas docentes era o sentimento de isolamento da inserção profissional. Entretanto, durante os encontros sentiram-se compreendidas e acolhidas em suas necessidades e dificuldades. Apontam que o ambiente direcionado para a reflexão coletiva contribuiu para que se sentissem seguras, pois havia o apoio de outras docentes com dificuldades e angústias similares.

Foi o momento de a gente poder extravasar, poder pôr para fora o que a gente pensa e num grupo em que a gente percebe que nós não estamos sozinhas.

(Eva)

Então isso também foi muito importante com os casos de ensino, ver que a gente tinha ali um apoio das colegas que estavam aprendendo e que estava todo mundo no mesmo barco, de procurar e querer mais e querer sempre fazer o melhor.

(Lygia)

A fala de Eva elucida a importância de haver momentos formativos planejados em que os professores possam debater acerca de suas dúvidas, dificuldades, práticas desenvolvidas, em um espaço de troca e construção colaborativa. Lygia declara, ainda, que a análise dos relatos de outras pessoas com dificuldades semelhantes potencializa a consciência da necessidade de construção dos conhecimentos individuais. O movimento exposto por Lygia acerca da percepção das singularidades individuais evidenciadas no processo reflexivo coletivo é aprofundado por Zeichner (2008)Zeichner, K. (2008). Uma análise crítica sobre a “reflexão” como conceito estruturante na formação docente. Educação e Sociedade, 29(103), 535-554. ao discutir a relação entre o desenvolvimento profissional e as situações coletivas de reflexão. Para o autor, são nesses momentos que o docente retoma suas teorias e concepções pessoais, com base nas discussões e análises, percebendo, inclusive, suas limitações e dificuldades por meio de um processo de autoavaliação que favorece novas análises e debates coletivos. Corroborando esta perspectiva de construção coletiva, Merseth (2018, p. 15)Merseth, K. K. (org.). (2018). Desafios reais do cotidiano escolar brasileiro: 22 dilemas vividos por diretores, coordenadores e professores em escolas de todo o Brasil. Instituto Península; Moderna. enfatiza “o respeito por diferentes pontos de vista, ideias e interpretações e a capacidade de ouvir, que é tão importante quanto falar”.

As situações de interação proporcionadas pela análise dos casos que traziam situações vivenciadas na prática docente pelas professoras alfabetizadoras iniciantes provocaram uma rica reflexão entre pares. As participantes não só reconheceram e valorizaram esse movimento, como também relataram, com pesar, que durante a atuação profissional na rede de ensino não existem momentos destinados à reflexão sobre as práticas. Ficou claro na avaliação dos encontros formativos que processos reflexivos coletivos exigem objetivos claros e planejamento, não só para engajar os professores na análise do caso, mas também para mobilizar a participação de todos na busca por estratégias variadas para a resolução das situações, de modo que cada participante seja ouvido e possa contribuir para as discussões. Nessa perspectiva, não existe somente um caminho, mas a construção e reflexão das possibilidades existentes, uma vez que os casos não são modelos a serem replicados, mas situações a serem analisadas criticamente.

É importante destacar que se mostrou relevante, para as participantes, organizar os encontros e selecionar os casos de acordo com as necessidades formativas das participantes. Como bem ressalta Zeichner (1992)Zeichner, K. (1992). Novos caminhos para o practicum: uma perspectiva para os anos 90. In: A. Nóvoa (Orgs.), Os professores e a sua formação (pp. 115-138). Dom Quixote., é basilar que as formações caminhem ao encontro das reais necessidades formativas dos profissionais e sejam elaborados momentos que fomentem o processo reflexivo crítico. Foi o que ocorreu nos encontros formativos: as reflexões foram direcionadas para as principais demandas reflexivas das participantes, em um espaço de apoio mútuo, em que ouviam, discordavam e questionavam umas às outras sem haver julgamentos ou impedimentos, mas sim a busca por novas perspectivas sobre os casos e as situações elencadas.

O segundo aspecto evidenciado nos encontros formativos são os processos de análise, resolução de problemas e tomadas de decisões. Nesse movimento, as participantes reavaliavam as práticas desenvolvidas em consonância com os aspectos e práticas conduzidas nos casos de ensino.

Observou-se que a reflexão propiciou um aprofundamento das concepções de alfabetização. Muito embora os conceitos sejam conhecidos, existe a necessidade de um domínio sobre os princípios que envolvem esse processo. Os relatos das professoras Clarice e Ana Maria elucidam essa questão:

quando nós fizemos as análises da escrita, as hipóteses de escrita. Para mim aquele, acho que foi o melhor, sabe. Foi o ponto alto, porque eu estava com muito medo. [...] Era indiferente quantos eu tinha: pré-silábicos, alfabéticos, silábicos sem correspondência ou com correspondência, não faria diferença. Mas o levar as hipóteses, a gente fazer a discussão e ver que dentro de uma hipótese tinha outras várias, para mim foi muito bom, foi o melhor.

(Clarice)

A gente coloca uma hipótese, você olha de novo, você olha a outra. [...] Ver essa... não é insegurança, mas às vezes, divergência de pensamento nosso mesmo, de uma mesma hipótese, eu achei muito legal porque todo mundo tem essa dúvida, todo mundo sempre empaca em um e às vezes as pessoas enxergam duas hipóteses diferentes numa mesma escrita. Tudo bem que você tem que acertar ali, mas as pessoas às vezes veem coisas diferentes.

(Ana Maria)

Observa-se que as docentes abordam a insegurança em diagnosticar as hipóteses de escrita somente com as próprias experiências. Esse movimento, porém, ocorreu com maior clareza sobre as especificidades dos aspectos referentes ao processo de alfabetização, e trouxe mais segurança acerca das práticas e tomadas de decisões, quando as docentes tiveram a oportunidade de levar as dúvidas para a análise coletiva e, a partir de um esforço colaborativo, concluíram sobre quais seriam as hipóteses de escrita, as características predominantes e os saberes dos alunos. As falas corroboram a ideia de Weisz (2018, p. 47)Weisz, T. (2018). O diálogo entre o ensino e a aprendizagem. Ática. sobre o desenvolvimento dos conhecimentos dos alunos tendo em vista o processo de alfabetização: “o professor que pretende qualificar-se melhor para lidar com a aprendizagem dos alunos precisa estudar e desenvolver uma postura investigativa”.

O processo de análise das práticas contribui para a percepção das melhores estratégias, possíveis dificuldades e para uma ampla visão sobre a situação, gerando uma gama de possibilidades de intervenção. Conforme conclui Schön (1992)Schön, D. (1992). Formar professores como profissionais reflexivos. In A. Nóvoa (Org.), Os professores e a sua formação (pp. 77-92). Dom Quixote. sobre a reflexão-na-ação, durante a reflexão crítica das experiências o docente busca a análise aprofundada sobre os aspectos da prática. Mesmo que essa prática seja constante em seu fazer profissional, as situações de discussão e reelaboração coletiva possibilitam ao professor enxergar novas alternativas e possíveis caminhos.

Embora a discussão fosse direcionada para as dificuldades em identificar com clareza as hipóteses de escrita, as docentes também discutiram como reconhecer o que os alunos sabem e o que fazem para que avancem em seus conhecimentos. Nesse processo, perceberam as similaridades entre o caso e a própria prática encontrando, assim, possibilidades na ação docente.

O terceiro aspecto se refere ao processo de desenvolvimento de postura investigativa, que diz respeito ao interesse pela busca de novos conhecimentos provocada pelos encontros formativos. A fala de Ruth a esse respeito é elucidativa:

Hoje, se a gente não tem conhecimento, a gente busca conhecimento. A gente tem por onde correr, diferente do que era antigamente. Eles não tinham, era aquela coisa, o aluno tem que aprender isso, até estava falando lá, que se o aluno não aprendeu, a culpa era do aluno. Hoje já não é visto mais assim, a gente dá um jeito. [...] Então, assim, eu acho que foi isso que eu peguei desse encontro: de que nós não somos mais os professores cegos, não é pra ser. A gente tem que buscar informação, se a gente não sabe... pesquisar, estudar, para melhorar.

(Ruth)

Observa-se que Ruth evidencia a mudança de postura dos profissionais, pois relaciona os processos formativos atuais com os anteriores, em razão de não existir uma prática eficiente e única, mas processos a serem refletidos tendo em vista o aprendizado dos alunos. Logo, não se declara como “cega”, que adota práticas sem sentido junto aos alunos somente pela reprodução de teorias e métodos sem aprofundamento, tampouco desconsidera o conhecimento do contexto em que atua, mas procura conhecer os alunos, individualmente e em grupo, assim como as particularidades sociais e culturais da comunidade em que eles estão inseridos.

Promover situações que levem o professor a reconhecer os eventos novos e agir com eficácia no contexto em que atua é um processo que envolve estruturas de conhecimento que são construídas pela reflexão. Cochran-Smith e Lytle (2002)Cochran-Smith, M., & Lytle, S. (2002). Teacher Learning Communities. In J. Guthrie (Eds.), Encyclopedia of Education. Macmillan. discutem sobre o conhecimento da prática por meio da análise crítica das experiências para que os conhecimentos sejam reelaborados e reconstruídos pelos professores, há especial destaque ao desenvolvimento da postura investigativa dos docentes. Para as autoras, o processo de reflexão em um espaço direcionado para esse fim, com situações planejadas e sistematizadas, tem potencial formativo, pois auxilia o docente a olhar para questões da prática a partir de diferentes perspectivas, inclusive as dos alunos.

Durante a leitura dos casos as docentes sentiam-se representadas pelas narrativas descritas, em alguns momentos encontrando outras possibilidades de ação em situações que já foram vivenciadas, e até mesmo percebendo como poderiam agir em determinadas situações. A fala da professora Ana Maria elucida essa questão:

Mas a troca em cima dos casos que foram falados e depois a troca porque às vezes você não imagina uma determinada atitude em relação alguma coisa que está acontecendo. Você escuta do outro estudo, um caso que você fala: “nossa, nem imaginei ir por esse caminho!” Então eu acho que quanto mais caso a gente estuda, quanto mais casos a gente vê como foi aqui, vai te dando mais clareza, vai te dando mais opções, mais caminhos para seguir, coisas que a gente às vezes nem fala, nem passa pela nossa cabeça e para uma outra pessoa [...] E às vezes está tão claro, tão na cara e a gente não pensa, não enxerga, aí tem que ter isso tudo, essa troca, para as vezes dá um insight na cabeça da gente.

(Ana Maria)

Ouvir a descrição dos casos e as possibilidades debatidas pelo grupo, possibilitou novas alternativas acerca das situações, construindo um repertório de reflexões e construções colaborativas. O relato das participantes vai ao encontro dos estudos de Merseth (2018)Merseth, K. K. (org.). (2018). Desafios reais do cotidiano escolar brasileiro: 22 dilemas vividos por diretores, coordenadores e professores em escolas de todo o Brasil. Instituto Península; Moderna. a respeito da possibilidade de testar novas ideias, pois conforme Ana Maria expõe, os estudos com os casos ampliaram as opções e percepções das participantes, pois trazem narrativas dilemáticas que podem ser resolvidas de diversas maneiras.

O desenvolvimento da postura investigativa e dos processos reflexivos envolve o entendimento das relações sociais, principalmente das limitações e injustiças que envolvem os contextos.

Eu sofri bastante com isso no meu início e com o que eu pudesse ajudar, é igual a Tatiana falou, a gente sempre tem uma coisinha para contribuir. Então o que que eu puder ajudar, porque a gente só vai ter mudança, se a mudança começar na gente. Olha só para você ver que legal, algumas pessoas que eu ajudei, hoje já ajudam outras pessoas. É uma mudança que tem que partir da gente.

(Eva)

O relato de Eva retrata a consciência sobre as lacunas existentes no processo de inserção profissional, proporcionando ao docente iniciante o isolamento em um ambiente novo, com pessoas desconhecidas e muitos dilemas sobre a profissão. Os movimentos elencados pelas participantes envolvem a busca por conhecimentos para subsidiarem a prática profissional. Zeichner (2008)Zeichner, K. (2008). Uma análise crítica sobre a “reflexão” como conceito estruturante na formação docente. Educação e Sociedade, 29(103), 535-554. afirma que, embora o processo reflexivo desenvolva habilidades e conhecimentos sobre a ação profissional, é preciso fomentar a justiça social, através da percepção dos docentes sobre os movimentos sociais que impactam na profissão. Essa análise atenta propicia a construção de uma sociedade mais justa. Zeichner (2008, p. 546)Zeichner, K. (2008). Uma análise crítica sobre a “reflexão” como conceito estruturante na formação docente. Educação e Sociedade, 29(103), 535-554. destaca: “precisamos nos certificar que os professores sabem como tomar decisões, no dia-a-dia, que não limitem as chances de vida de seus alunos; que eles tomem decisões com uma consciência maior das possíveis consequências políticas que as diferentes escolhas podem ter”.

O quarto aspecto envolve o processo de percepção da relação entre a teoria e a prática. Embora as participantes não tivessem clareza sobre a teoria presente nos processos vivenciados na prática, durante os encontros retomavam conceitos de estudos sobre a alfabetização em questões como as hipóteses de escrita, os agrupamentos produtivos, intervenções, entre outras situações. Nessas situações recorriam aos autores e estudos para afirmar suas reflexões, bem como compreender os apontamentos decorrentes das discussões gerando novas análises de diferentes concepções e teorias educacionais.

Ademais, o processo de reflexão trouxe o reconhecimento dos próprios saberes diante das discussões. No decorrer das análises, o movimento de reavaliação das próprias práticas e dos conhecimentos construídos ao longo dos encontros, trouxe clareza a respeito de outras experiências que poderiam contribuir para o aprendizado coletivo.

Por meio do processo reflexivo com os casos de ensino, da análise das situações, buscando novas possibilidades e perspectivas, as docentes reconheceram a importância de registrar as experiências e práticas, tendo em vista o próprio processo de desenvolvimento profissional.

É, eu sempre escrevo, tenho mania de ir participando das coisas e escrevendo, porque para mim parece que eu assimilo mais quando eu faço, tanto relatório de aluno ou vou analisar as minhas atividades, como que foi no final da aula. [...] Mas fazia as coisas novas também do meu jeito, porque eu tenho um jeito bem particular de fazer as coisas, como todo mundo tem. Você vai trazendo essas experiências, eu acho que quando a gente escreve a gente melhora bastante.

(Clarice)

[...] Se tivesse esse registro acho que, é logico que cada aluno é diferente um do outro, mas você pode se deparar com um caso parecido e de repente se você registrou aquele caso, você pode olhar ali e de repente achar a solução ou um caminho para não errar. Ou é igual um filme que você também vai assistindo e se você assiste mais de uma vez, você tem outra percepção. Então você pode ler aquele caso de novo e ter uma outra percepção e falar: “nossa, deveria ter feito de outro jeito ou hoje eu faria de outro jeito”. Porque a gente vai mudando, as ideias vão fluindo e eu acho que anotar o caso, sim é muito importante.

(Tatiana)

As participantes compreendem que o registro das práticas é importante para que possa ser retomado em momentos posteriores tendo em vista o aprimoramento das práticas pedagógicas. Como bem ressalta Gómez (1992, p. 104)Gómez, A. P. (1992). O pensamento prático do professor: a formação do professor como profissional reflexivo. In: Nóvoa, A. (Org.) Os professores e a sua formação. Portugal: Dom Quixote., “no contato com a situação prática, não só se adquirem e constroem novas teorias, esquemas e conceitos, como se aprende o próprio processo dialético da aprendizagem”.

E, por fim, o quinto e último aspecto analisado é o processo de aprendizagem docente, referindo-se ao movimento de construção de conhecimentos profissionais proporcionado pelas discussões das experiências dos casos e da relação entre os apontamentos das participantes, em um espaço de reflexão crítica, construção coletiva e contribuições colaborativas.

Nesse sentido, o processo investigativo ocorrido nos encontros formativos com os casos de ensino enquanto dispositivo reflexivo colaborou para a autoavaliação, a análise das próprias práticas e o desenvolvimento de novos comportamentos, atitudes, ideias e um movimento de desconstrução e construção de saberes. Notem-se o que dizem as professoras:

Então, eu tentei tirar bastante proveito das experiências das colegas e dos casos também, várias coisas que eu não fazia, eu estou tentando fazer, aquele caderninho de acompanhamento, porque eu acho necessário a gente ter para acompanhar o rendimento do aluno. Para a gente poder ver. Porque a nossa cabeça é falha, a gente esquece, se for deixar para depois. Então eu acho que é isso, a gente cresce bastante com o aprendizado, com as experiências dos outros.

(Eva)

Acho que muitas vezes, quando a gente ouve a experiência de outras pessoas, lê a experiência de outras pessoas, a gente se reavalia enquanto professora, ou até mesmo pessoa. E quando a gente faz estudo do caso, a gente muitas vezes vê uma coincidência, uma semelhança nos nossos alunos também, e às vezes com uma mudança de atitude nossa. Ouvir um caso e ver que aquela professora agiu daquela forma, às vezes você tem uma atitude parecida com a que a professora teve, talvez ajude com seu aluno é melhor, mais efetiva.

(Clarice)

Nos apontamentos de Eva e Clarice acerca das contribuições do movimento reflexivo é perceptível uma mudança de atitudes e a valorização do próprio desenvolvimento profissional, tendo em vista o aprendizado dos alunos.

Assim, o processo reflexivo e investigativo com os casos de ensino deve subsidiar uma reflexão profunda acerca das próprias práticas conforme Clarice elucida sobre a transposição entre as reflexões e a análise da trajetória profissional, bem como fornece novas análises e discussões tendo em vista a possibilidade de reformular teorias e construir novos conhecimentos.

Shulman (2014)Shulman, L. (2014). Conhecimento e ensino: fundamentos para a nova reforma. Cadernos Cenpec, 4(2), 196-229. apresenta o processo de raciocínio pedagógico, que são movimentos articulados, ativados e construídos durante a ação docente, sendo eles: compreensão, transformação, instrução, avaliação, reflexão e novas compreensões. Esse movimento fica evidente durante os apontamentos das participantes, pois realizavam o movimento de transposição e avaliação dos conhecimentos construídos durante as reflexões, reelaborando as práticas e desenvolvendo novas concepções a partir das análises dos pares.

Para tanto, os docentes necessitam compreender que o conhecimento não está posto e acabado, a base de conhecimentos se altera e modifica constantemente, isso ocorre pela reflexão sobre o próprio ensino, as experiências e práticas de outros profissionais, a sistematização e registro dos processos. Shulman (2014, p. 212)Shulman, L. (2014). Conhecimento e ensino: fundamentos para a nova reforma. Cadernos Cenpec, 4(2), 196-229., em seu estudo sobre a base de conhecimento dos docentes referindo-se aos saberes da prática reitera que, embora os conhecimentos dos professores sejam vastos, em decorrência da insuficiência de momentos destinados para a propagação, divulgação e reelaboração coletiva, muitas possibilidades de inovação são perdidas, e afirma: “os educadores simplesmente sabem muita coisa que nunca sequer tentaram articular”. Portanto, existe a necessidade de mobilizar espaços e momentos direcionados para a formação reflexiva dos docentes para a reflexão sobre as práticas, para que haja o movimento relatado por Clarice pela busca de alternativas eficazes ao aprendizado dos alunos.

Durante o processo reflexivo, as dificuldades e percalços encontrados pelas participantes eram debatidos e analisados, bem como as situações dilemáticas abordadas nos casos de ensino. Consequentemente, desenvolveu-se o sentimento de maior segurança nas professoras alfabetizadoras iniciantes, considerando os desafios presentes na inserção profissional latentes durante os discursos.

Então, para mim foi muito gratificante de verdade, porque eu entrei tipo sabendo 10% e acabam os encontros e eu estou sabendo 60%, sei que vou ter que aprender muita coisa ainda, vai vir coisa nova, tecnologia nova e muita coisa nova. Mas o fato de saber que, por exemplo, sempre vai ter gente sempre entrando, tem o que compartilhar, e com quem compartilhar, eu acho muito bom. Nós não somos uma folha em branco, a gente sempre traz alguma coisa ou como profissional ou como pessoa. Eu acho que essa atitude de compartilhar os medos, os acertos, os erros. Foi muito bom para mim.

(Clarice)

Você vai vendo o caso, por exemplo, igual o caso do “Batismo de Fogo”, você que o que ela passou em sala de aula a gente também passa, e que ela conseguiu superar. A gente também consegue superar, com pesquisa, com estudo. Eu também concordo com as meninas, acho que essa é a maior contribuição mesmo, você vê que você também é capaz, você pode também estar sempre crescendo, sempre aprendendo.

(Tatiana)

Para trazer mais segurança para gente, no que a gente está fazendo também, ver o que as outras pessoas passam, que a gente vai trocando, aprende com o outro, e a gente vai seguindo mais seguro em fazer, em praticar, colocar as nossas ações a favor dos alunos.

(Lygia)

As professoras evidenciam a percepção da necessidade de desenvolvimento profissional e a importância de existirem momentos planejados com um encaminhamento específico para o processo reflexivo direcionado para o aprendizado docente em vista das reais necessidades formativas.

Corroborando com a perspectiva aprofundada pelas docentes a respeito da consciência sobre a necessidade de desenvolvimento e evolução constantes, Shulman (2014, p. 201)Shulman, L. (2014). Conhecimento e ensino: fundamentos para a nova reforma. Cadernos Cenpec, 4(2), 196-229. ressalta a respeito dos docentes em início profissional: “sua evolução, de estudantes a professores, de aprendizes a professores iniciantes, expõe e ilumina os complexos corpos de conhecimento e habilidades necessários para funcionar eficazmente como professor”.

Em suma, o movimento de compreensão das dificuldades, necessidades formativas e do próprio processo de desenvolvimento profissional vivenciado pelas participantes durante as reflexões, bem como a percepção dos conhecimentos construídos ao longo dos encontros, reflete no processo de aprendizagem docente. Esse movimento relaciona-se ao processo de conhecimento da prática aprofundado nos estudos de Cochran-Smith e Lytle (1999)Cochran-Smith, M., & Lytle, S. (1999). Relationships of knowledge and practice: teacher learning in communities. Review of Research in Education, 24, 249-305, 1999., por meio da reflexão crítica e a análise das práticas, em busca do desenvolvimento de novos conhecimentos, da reelaboração dos saberes e da concepção de novas teorias realizados nas reflexões e investigações coletivas com casos de ensino como dispositivos reflexivos no processo de desenvolvimento profissional.

Considerações finais

Os resultados desta pesquisa corroboram o que apontam diversos estudos, que ressaltam as possibilidades dos casos de ensino como dispositivo reflexivo das práticas e processos de aprendizagem docente.

A perspectiva das professoras sobre o percurso formativo vivenciado por elas revela que os casos de ensino na formação docente contribuíram para o processo de reflexão sobre as próprias práticas e teorias pessoais, por meio de momentos de interação entre as participantes em um ambiente de apoio mútuo, sendo possível explanar dúvidas, ideias, sugestões e debatê-las com o grupo de modo crítico buscando novas perspectivas.

Embora nos limites de um estudo que envolveu um pequeno número de encontros, com professoras que se dispuseram voluntariamente a participar de um processo formativo mesmo sem as condições de trabalho adequadas para tanto, os dados indicam que o movimento de análise coletiva proporcionou a formação de um grupo reflexivo, favorecendo a ocorrência de processos de reflexão cada vez mais aprofundados, visto que o grupo estava imerso nos mesmos objetivos.

A reflexão coletiva em torno de casos que traziam situações dilemáticas acerca das práticas profissionais das docentes suscitou a busca por novas possibilidades, caminhos e perspectivas discutidas pelo grupo, para que, assim, as práticas fossem repensadas e as teorias, reelaboradas, tencionando a construção de novos conhecimentos profissionais e mudanças no sistema educacional.

Para tanto, faz-se necessário que ocorram momentos direcionados para a formação docente, com planejamento sistematizado visando o processo reflexivo em seu sentido mais amplo, que ultrapassem as questões da sala de aula e contribuam para o desenvolvimento de profissionais não apenas detentores de conhecimentos e práticas que promovam o aprendizado dos alunos, mas capazes de compreender o sentido de suas práticas para a construção de uma sociedade mais justa.

Nessa perspectiva, a reflexão engloba o pensar coletivamente, observando o contexto social e cultural por meio da análise colaborativa das práticas, tendo em vista o desenvolvimento profissional docente que se dá pela compreensão entre a teoria subjacente à prática e a criação e reelaboração de concepções teóricas.

Em conclusão, os casos de ensino mostraram ser um dispositivo formativo com significativo potencial no desenvolvimento das docentes, pois proporcionaram às participantes, dentre outros aspectos, um movimento de reflexão sobre a prática e a estruturação de novos conhecimentos profissionais.

  • 2
    Normalização, preparação e revisão textual: Mariana Munhoz (Tikinet) revisao@tikinet.com.br
  • 3
    Para preservar o anonimato foram denominados nomes fictícios para cada participante.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    09 Out 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    07 Mar 2022
  • Aceito
    23 Set 2022
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