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A dimensão metarepresentativa da brincadeira de faz-de-conta

The metarepresentative dimension of pretense

Resumos

A habilidade para metarepresentar de 14 tríades de crianças com média de idade de 5 anos e 2 meses foi investigada nas formas como as crianças iniciam o faz-de-conta e em como as relacionam com os termos mentais que empregam. Cada tríade brincou por 10 minutos numa sala da pré-escola. As verbalizações das crianças foram transcritas e codificadas segundo categorias de termos mentais e de formas de iniciar o faz-de-conta. As formas "planejada" e "entender o faz-de-conta no outro" foram as mais utilizadas pelas crianças, relacionando-se de forma decrescente com as categorias de termos mentais " expressão de desejo", dirigindo a interação", "modulação de asserção", "expressão de estado mental", sendo diferentes para meninos e meninas. Discute-se os resultados, considerando-se o isomorfismo entre a representação subjacente ao emprego dos termos mentais e à brincadeira de faz-de-conta.

desenvolvimento infantil; psicologia da criança; pensamento; pré-escolar


Children's different forms of starting pretend play and their relation with ways of using mental terms were investigated in 14 triads (M: 5.2 years). Each triad played for 10 minutes in a preschool room and their verbalizations were transcribed and coded according to categories of mental terms and forms of starting pretend play. "Planned" and "understanding pretend in the other" were children's most utilized forms of starting pretense. They related in a decreasing way, and differently for boys and girls, to the categories of mental terms "expression of desire", "guiding interaction", "modulation of assertion", and "expression of mental state". The correspondence between the underlying representation existing in the use of mental terms and in pretense is taken into account when discussing results.

child development; child psychology; thinking; child; preschoall


A dimensão metarepresentativa da brincadeira de faz-de-conta

The metarepresentative dimension of pretense

Tania Mara Sperb; Luciane de Conti

UFRGS

Endereço para correspondência Endereço para correspondência: Curso de Pós-Graduação em Psicologia do Desenvolvimento Universidade Federal do Rio Grande do Sul R. Ramiro Barcelos 2600 sala 116 90035-003 Porto Alegre RS. E-mail: sperbt@vortex.ufrgs.br

RESUMO

A habilidade para metarepresentar de 14 tríades de crianças com média de idade de 5 anos e 2 meses foi investigada nas formas como as crianças iniciam o faz-de-conta e em como as relacionam com os termos mentais que empregam. Cada tríade brincou por 10 minutos numa sala da pré-escola. As verbalizações das crianças foram transcritas e codificadas segundo categorias de termos mentais e de formas de iniciar o faz-de-conta. As formas "planejada" e "entender o faz-de-conta no outro" foram as mais utilizadas pelas crianças, relacionando-se de forma decrescente com as categorias de termos mentais " expressão de desejo", dirigindo a interação", "modulação de asserção", "expressão de estado mental", sendo diferentes para meninos e meninas. Discute-se os resultados, considerando-se o isomorfismo entre a representação subjacente ao emprego dos termos mentais e à brincadeira de faz-de-conta.

Palavras-chave: desenvolvimento infantil, psicologia da criança; pensamento, pré-escolar.

ABSTRACT

Children's different forms of starting pretend play and their relation with ways of using mental terms were investigated in 14 triads (M: 5.2 years). Each triad played for 10 minutes in a preschool room and their verbalizations were transcribed and coded according to categories of mental terms and forms of starting pretend play. "Planned" and "understanding pretend in the other" were children's most utilized forms of starting pretense. They related in a decreasing way, and differently for boys and girls, to the categories of mental terms "expression of desire", "guiding interaction", "modulation of assertion", and "expression of mental state". The correspondence between the underlying representation existing in the use of mental terms and in pretense is taken into account when discussing results.

Key words: child development, child psychology, thinking, child, preschoall.

A importância da brincadeira de faz-de-conta para o desenvolvimento do pensamento tem sido reconhecida pelas teorias do desenvolvimento cognitivo. Por exemplo, Piaget (1945/1978) diz que o brincar está intimamente ligado ao símbolo, uma vez que, através dele, a criança representa ações, pessoas ou objetos. Como o pensamento da criança pequena não é suficientemente preciso e maleável para comunicar idéias, é o símbolo que, ao concretizar e animar tudo, permite que estas idéias sejam comunicadas. Portanto, são os símbolos, presentes na brincadeira de faz-de-conta, que permitem à criança pequena expressar seu pensamento. Para Vygotsky (1933/1984), a brincadeira de faz-de-conta cria uma zona de desenvolvimento proximal porque, ao representar um objeto por outro, a criança passa a se relacionar com o significado atribuido ao objeto e não mais com o objeto em si. A brincadeira de faz-de-conta, portanto, tornaria possível à criança passar da ação com objetos concretos para ações com significados, possibilitando-lhe atingir o pensamento abstrato. Os dois teóricos, Piaget e Vygotsky, concebem a brincadeira de faz-de-conta como uma atividade representativa.

Mais recentemente, tem se argumentado que o faz-de-conta é uma atividade metarepresentativa (Leslie, 1987, 1988, 1994) e os autores a tem discutido como relacionada ao desenvolvimento da teoria da mente de crianças pré-escolares ( Lillard, 1993; Dias, 1994; Harris, 1996). Teoria da mente seria o entendimento que a criança tem sobre as representações mentais dos outros e também a habilidade que tem de representar a representação mental que os outros fazem das situações. Esta habilidade tem sido examinada, predominantemente, através do uso de duas tarefas, a de crença falsa (Wimmer e Perner, 1983) e a da distinção entre aparência e realidade (Flavell, Flavell e Green, 1983). A partir da correlação encontrada entre as respostas dadas por crianças pré-escolares a estas duas tarefas, demonstrou-se que uma mudança ocorre no desenvolvimento das crianças aos 4 anos de idade que lhes possibilita o aparecimento da habilidade que Pylyshin (1978) chamou de metarepresentacional. Metarepresentar é, precisamente, compreender representações como representações. Quando isto acontece, a criança teria uma teoria da mente.

Para Leslie (1988), a habilidade de fazer de conta emerge ao redor dos dois anos como resultado de uma capacidade para a representação mental de objetos e eventos. Para explicar os mecanismos cognitivos subjacentes ao faz-de-conta, Leslie (1987, 1988) examinou as propriedades especiais das representações internas requeridas por esta brincadeira. De acordo com Leslie, a criança à princípio tem apenas representações primárias do mundo: ela vê o mundo diretamente e o representa da maneira que vê. A brincadeira que inicia assim foi chamada, pelo autor, de imediata. No faz-de-conta, no entanto, a representação do mundo é distorcida, portanto, este sistema representacional não seria suficiente para representá-lo. A criança desenvolve, então, um outro tipo de sistema representacional para ser usado na brincadeira de faz-de-conta, ou seja, representações de representações ou metarepresentações. Estas representações secundárias são libertadas de seu significado comum, de maneira que um objeto pode substituir um outro objeto sem que a criança confunda as reais relações semânticas, ou seja, a representação torna-se opaca. Dois tipos de brincadeira de faz-de-conta, mais avançadas, decorrem destas representações secundárias: planejada e lembrada. Em ambas, a representação viria da memória, no entanto, enquanto na primeira a criança teria que procurar no ambiente por um objeto que ancorasse a sua representação, na segunda, nada no ambiente serviria para ancorá-la, uma vez que os personagens já não estariam presentes. Haveria ainda um quarta forma de brincadeira que envolveria entender o faz-de-conta no outro. Nesta forma, a brincadeira iniciaria a partir do entendimento do que o outro está fazendo para "explicar" o seu comportamento.

Conforme Leslie (1987,1988), o faz-de-conta expressa-se segundo três formas fundamentais que emergiriam juntas entre os 18 e 24 meses de idade. Primeiro, há a substituição de objeto, quando o faz-de-conta refere-se a identidades ou tipos. Por exemplo, pode-se fazer de conta que mamãe é papai ou que um objeto, banana, é um outro tipo de objeto, telefone. Segundo, há a atribuição de propriedades imaginárias, quando faz-se de conta que um objeto, evento ou situação possuem propriedades que não possuem. Por exemplo, pode-se fazer de conta que o tempo está ótimo hoje ou que a face da boneca está suja. E, finalmente, há o objeto imaginário, quando alguém faz de conta que um objeto existe quando não há nenhum. Por exemplo, pode-se fazer de conta de que existe conhaque nesta garrafa ou água nesta xícara vazia. O faz-de-conta, então, parece distorcer a referência, a verdade e a existência normais das representações primárias. Para Leslie (1988), a razão para a existência destas três formas fundamentais de faz-de-conta é a sua similaridade com as propriedades semânticas dos relatos de estados mentais. Os termos mentais, como saber, acreditar, pensar, querer, assim como a representação do faz de conta, tornam as proposições opacas, isto é, suspensas da realidade. Portanto, além do faz-de-conta, o emprego dos termos mentais, que também emergem ao redor dos dois anos de idade (Bartsch e Wellman, 1995; Shatz, Wellman e Silber, 1983) é também uma atividade que requereria metarepresentação.Em ambas as atividades, a propriedade da opacidade quebra o compromisso com a referência, com a verdade e com a existência, constituindo-se, desta forma, nos primeiros sinais desta habilidade de entender a própria mente e a dos outros.

Bretherton e Beeghly (1982) afirmam que o emprego de termos mentais pelas crianças pré- escolares indica o início das compreensão dos próprios estados mentais e dos outros. Leslie (1987) observa que o faz-de-conta desenvolve esta mesma capacidade cognitiva. Daí que, para Leslie, este isomorfismo entre faz-de-conta e termos mentais indica que subjacente a estes dois fenômenos cognitivos há uma forma comum de representação interna e, portanto, o uso de faz-de-conta e dos termos mentais indicaria "uma habilidade nascente para entender a cognição" (1988; p.31), isto é, as duas habilidades seriam manifestações primitivas do que tem sido chamado "teoria da mente".

Há controvérsias quanto a esta afirmações, no entanto, e diferentes concepções acerca do papel do faz-de-conta no desenvolvimento do entendimento da mente têm sido oferecidas. Por exemplo, com referência ao faz-de-conta, Lillard (1993) chama atenção para os dois componentes que estão presentes nesta atividade: um metarepresentacional e outro de ação. O primeiro existe porque há necessidade de entender a si mesmo ou a outra pessoa representando um cubo como um doce, e entender esta representação como uma representação. Para entender o componente de ação, por sua vez, é necessário somente saber que alguém está utilizando o cubo como se fosse um doce. Estudos recentes (Lillard, 1993; Woolley e Wellman, 1990) têm mostrado que, antes dos 4 anos, a criança vê o faz-de-conta mais como atividade, ou seja, como um "ação de como se" do que como um estado mental, ou como dizem Harris e Kavanaugh (1993), a criança reconhece uma forma distintiva de ação ao invés de uma atitude mental diferenciada de faz-de-conta. Do mesmo modo com relação aos termos mentais. Apesar de estarem no vocabulário das crianças desde 2 anos e 6 meses de idade (Shatz, Wellman e Silber, 1983), somente aos 4 anos tornam-se predominante e explicitamente psicológicos (Astington, 1993). Segundo Harris (1996), os termos mentais podem ser usados com uma função apenas conversacional e é assim que são usados, na maioria das vezes, antes dos 4 anos.

O que é consenso, portanto, entre os autores, é que a criança seria capaz de entender o faz-de-conta e usar os termos mentais de forma metarepresentacional, a partir dos 4 anos de idade. Estas habilidades surgiriam, portanto, ao mesmo tempo em que a criança resolve com sucesso as tarefas de crença falsa, indicadoras da presença de uma teoria da mente. Tendo em vista esta perspectiva de desenvolvimento, utilizou-se transcrições de episódios de brincadeira imaginária para observar se o domínio da capacidade cognitiva de metarepresentação atribuído a crianças com idade acima de 4 anos evidencia-se na complexidade das formas com que iniciam a brincadeira de faz-de-conta e, adicionalmente, se estas formas relacionam-se com o emprego das várias funções dos termos mentais.

Método

Participantes: Quatorze tríades (7 masculinas e 7 femininas) com idade média de 5 anos e 2 meses, pertencentes a classe média, participaram deste estudo. As crianças faziam parte de um projeto maior sobre a interação social na brincadeira de faz-de-conta, tendo sido selecionadas em pré-escolas públicas e particulares de Porto Alegre.

Material e Instrumentos: a) brinquedos: foram utilizados brinquedos pertencentes à escola, tanto sucata (linha, tecidos, palito, cones, garrafas pláticas, potes, etc.) como brinquedos estruturados (bonecas, animais, panelas, bolas, carros, etc...).

b) sessões de observação: observou-se cada tríade por dez minutos, durante os quais as crianças foram filmadas interagindo livremente com os brinquedos. As crianças foram agrupadas por afinidade. As sessões de observação foram realizadas na sala de aula, quando as demais crianças saiam para outras atividades, colocando-se os objetos sobre a mesa e delimitando-se a área das brincadeiras. A filmagem foi feita por um técnico, com a ajuda de duas cameras, uma móvel e outra fixa. As crianças eram familiarizadas com as cameras e com o técnico antes de se iniciar as sessões.

c) análise dos dados: as imagens das câmeras foram integradas e os diálogos espontâneos das crianças foram transcritos literalmente (anexo anexo ) . Os contextos de brincadeira foram analisados, tanto a partir dos registros dos diálogos quanto da observação dos vídeos. Assinalava-se, nas transcrições, as locuções que continham termos mentais. Após, classificava-se estas locuções, considerando-se o contexto em que ocorriam, de acordo com categorias funcionais (Shatz, Wellman e Silber, 1983; Gelman e Shatz, 1977): expressão de estado mental (refere-se aos pensamentos, memórias ou conhecimento do sujeito que fala, do ouvinte ou de uma terceira pessoa), modulação de asserção (marcam o grau de certeza com o qual o sujeito que fala faz uma afirmação, por exemplo, após ser desafiado ou em resposta a "que é isto?"), dirigindo a interação (focalizam a conversação e são usadas para incentivar a interação), clarificação (pedem esclarecimento sobre a sentença da criança ou de outra pessoa), expressão de desejo (expressam desejo), ação-memória (refere-se a ações ou a omissão de uma ação; são expressões para lembrar uma ação a ser feita pelo ouvinte), expressões idiomáticas (expressões de uso corrente na língua local como, por exemplo, "sabe"). Paralelamente, classificava-se a forma como se iniciava a brincadeira de faz-de-conta na qual estava contida a locução (Leslie, 1987): imediata (ancorado por um equivalente exato-na-percepção original), planejada (não há mais uma correspondência exata com o objeto percebido que o apoia), lembrada (não há necessidade da presença do objeto) e entender o faz-de-conta no outro (responder aos gestos ou entonações dos outros e seguir com o faz-de-conta).

Procedimentos: A filmagem das crianças foi precedida por um período de familiarização de duas semanas, no qual observou-se quais as crianças que, espontaneamente, se escolhiam para brincadeiras auto-iniciadas. O resultado desta observação era, então, comparado às informações dadas pela professora e só aí as tríades eram formadas. As tríades eram, então, convidadas a participar de um momento de brincadeira na própria sala de aula. A experimentadora chamava e explicava às crianças onde a brincadeira deveria acontecer e os limites da atividade. Após a ambientação das crianças, a filmagem era iniciada.

Resultados

A inspeção das transcrições dos diálogos das crianças indicou que 259 termos mentais e 203 episódios de faz-de-conta foram registrados na amostra. Já os tipos de relações entre as categorias de termos mentais e as formas de iniciar o faz-de-conta, somaram 179. A tabela 1 mostra a soma total das frequências correspondentes a formas de iniciar o faz-de-conta utilizadas pelas crianças na amostra total, e da relação entre estas formas e as categorias de termos mentais emitidas pelas crianças. É importante salientar que o número total de termos mentais na amostra envolve também aqueles que aparecem em episódios de não brincadeira, e que pode haver episódios de faz-de-conta nos quais não aparecem termos mentais.

1-categorias de termos mentais: dos 259 termos mentais que foram encontrados nos diálogos das crianças, 13.12% foram utilizados com a função modulação de asserção; 14.22%, com a função dirigindo a interação; 1.54%, clarificação; 61.0%, expressão de desejo; 5.4%, ação-memória; 0.77%, expressão idiomática e; 3.86%, com a função expressão de estado mental. A Fig. 1 ilustra estes resultados. A simples inspeção das percentagens mostra que as locuções verbais com função de expressão de desejo foram significativamente mais empregadas pelas crianças, seguidas por dirigindo a interação e modulação de asserção.


2-formas de iniciar o faz-de-conta: dos 203 episódios indicativos de início de faz-de-conta, 12.31% foram considerados brincadeira imediata; 26.10%, planejada, 14.77%, lembrada e, 46.80%, entender o faz-de-conta no outro. Estes resultados podem ser encontrados na Fig.2. As formas de iniciar o faz-de-conta planejada e entender o faz-de-conta no outro foram as mais empregadas pelas crianças.


3- tipos de relação entre categorias de termos mentais e formas de iniciar o faz-de-conta: um total de 179 situações que relacionavam as funções com que eram empregados os termos mentais às formas de iniciar o faz-de-conta foram registradas. As relações mais importantes foram: expressão de desejo-imediata: 7.82% (meninos 9, meninas 5); expressão de desejo-planejada: 14.52% (meninos 9, meninas 17); expressão de desejo-entender o faz-de-conta no outro: 31.84% (meninos 28, meninas 29); modulação de asserção-planejada: 6.14% (meninos 7, meninas 4); modulação de asserção-lembrada:3.91% (meninos 6, meninas 1); modulação de asserção-entender o faz-de-conta no outro: 3.91% (meninos 3, meninas 4); dirigindo a interação-entender o faz-de-conta no outro: 6.70% (meninos 9, meninas 3); expressão de estado mental-entender o faz-de-conta no outro: 2.23% (meninos 0, meninas 4); ação-memória-entender o faz-de-conta no outro: 3.91 % (meninos 0, meninas 7). A Fig. 3 abaixo, ilustra estes resultados.


Utilizou-se o teste não paramétrico de Mann-Whitney para investigar possíveis diferenças no emprego de termos mentais em cada forma de iniciar o faz-de-conta, por gênero. Não houve diferenças significativas na utilização das categorias de termos mentais por gênero, nas formas de iniciar o faz-de-conta imediata, planejada, lembrada e entender o faz-de-conta no outro.

Ao utilizar-se a Análise de Resíduos Ajustados, verificou-se que na forma de iniciar o faz-de-conta imediata não existe associação entre as categorias de termos mentais e gênero; o mesmo ocorre com as formas de iniciar o faz-de-conta planejada e lembrada. Quanto à forma entender o faz-de-conta no outro, o gênero feminino está associado ao emprego das categorias de termos mentais expressão de estado mental e ação-memória, e o gênero masculino, à dirigindo a interação. Isto significa que as meninas mostraram uma tendência a usar mais as categorias de termos mentais expressão de estado mental e ação-memória nos episódios de faz-de-conta que se inciaram pela forma entender o faz-de-conta no outro. Já o gênero masculino, a categoria de termo mental dirigindo a interação. Estas associações locais foram medidas através da Análise de Resíduos Ajustados ao nível de significância de 5%.

Discussão

Os resultados deste estudo mostram que as crianças, de em média 5 anos e 2 meses, em 87.68% das vezes iniciaram a brincadeira de faz-de-conta utilizando-se da metarepresentação, isto é, empregaram as formas planejada, lembrada ou entender o faz-de-conta no outro. No entanto, em 12.32% das vezes, utilizaram-se da forma imediata que, segundo Leslie (1988), envolve apenas representações primárias. Os resultados também indicam que, apenas em 3.86% das vezes, as crianças utilizaram termos mentais com a função de estado mental. Lillard (1993; 1994) discute algumas razões para estes resultados. Com referência a quando as crianças entenderiam o faz-de-conta como metarepresentação, a autora não acredita que isto possa acontecer plenamente antes dos 6 anos e, mesmo nesta idade, ainda seria difícil. Isto ocorreria porque a crianças antes desta idade conceitualizariam o faz-de-conta como "agir como se". O que motivaria as crianças a mudar a compreensão do faz-de-conta de um entendimento baseado na ação para um como uma representação mental seria a aprendizagem de que os termos mentais têm uma certa sintaxe que também é apresentada pelo termo fazer-de-conta. Oportunamente, as crianças então veriam o fazer-de-conta como um termo mental e não como uma ação. Este insight, segundo a autora, faria as crianças revisarem seus conceitos sobre o fazer-de-conta, incluindo a representação mental. Isto explicaria a dificuldade das crianças para utilizar os termos mentais como expressão de estado mental durante a brincadeira, neste estudo. Isto também, enfim, provaria de que o entendimento do faz-de-conta como atividade metarepresentativa está estreitamente ligado ao entendimento da sintaxe dos verbos mentais.

A relação entre as categorias expressão de estado mental e expressão de desejo com a forma de iniciar a brincadeira de faz-de-conta entender o faz de conta no outro vai, parcialmente, de encontro à argumentação teórica de Leslie (1987) acerca do isomorfismo entre a representação subjacente ao emprego dos termos mentais e da brincadeira de faz-de-conta. A categoria expressão de estado mental, apesar de pouco usada, só o foi quando ocorreram as formas de brincadeira planejada, lembrada e entender o faz-de-conta no outro e, especialmente, nesta última. Todas estas formas envolvem metarepresentação. Já a categoria expressão de desejo foi a mais utilizada na forma imediata, que envolve apenas representação primária, mas também, especialmente, na forma entender o faz-de-conta no outro. Expressão de desejo foi expressa, preferentemente, pelo verbo querer que, dentre todos os verbos, foi o mais utilizado. Bartstch e Wellman (1995), num estudo em que seguiram dez crianças de 2 a 5 anos, encontraram que, dentre 12.000 locuções envolvendo termos mentais, aproximadamente 95% referiam-se ao verbo querer. Conversações que envolviam pensamentos e crenças (estados mentais) começaram a ficar mais frequentes aos 5 anos. Lillard (1993), assim como Astington (1993), entendem que diferentes estados mentais relacionam-se com a realidade de maneiras diversas. Assim, o estado mental desejo tem uma relação com o mundo que emana da mente. Se o conteúdo de meu desejo corresponder com a maneira como as coisas estão no mundo, então meu desejo é satisfeito. Não satisfaria meu desejo, mudando o desejo. O mundo deve mudar. Outros estados mentais como as crenças, são causados por coisas do mundo. Podemos mudar nossas crenças com a finalidade de concordarem com o mundo que está ao nosso redor. Parece que as crianças aprendem mais cedo sobre desejos do que sobre crenças (Harris, 1996), uma vez que a direção mente-mundo parece ser mais fácil de aprender do que a direção mundo-mente. O faz-de-conta, segundo Gopnik e Slaugther (1988), parece não ter uma clara direção, não requerendo uma consideração entre a representação e o mundo. Apesar do faz-de-conta não mudar a realidade como o desejo faz, ele como este, emana geralmente da mente. Eu vejo um caminhão, eu acredito que o caminhão está aí, mas eu não faço de conta até que a minha mente imponha o faz-de-conta, por exemplo, imponha que o caminhão tem um motorista e que ele precisa de gasolina. Parece, portanto, que o desejar e o fazer de conta dividem algumas características cognitivas e, por isto, aparecem conjuntamente e, inclusive antes, no desenvolvimento.

A relação entre semântica, sintaxe e brincadeira de faz-de-conta já foi estudada por Bateson (1972). Ele assinalava que a brincadeira sócio-dramática envolvia mensagens, chamadas metacomunicativas. Estas deviam ser entendidas pelas crianças como indicando o enquadre de faz-de-conta. O conceito de metacomunicação de Bateson é comparável ao de metarepresentação de Leslie (1987). Mello, Fachel e Sperb (1997) mostram que as mensagens metacomunicativas emitidas por meninos e meninas são diferentes, dependendo do tipo de objeto de brincar disponível à criança. Algumas diferenças relacionadas com o gênero, no que se refere à relação entre termos mentais e a brincadeira entender o faz de conta no outro, encontradas neste trabalho, poderiam estar relacionadas com estas variáveis. Por outro lado, estudos sobre a interação de meninos, quando em situação de executar uma tarefa como durante a brincadeira de faz-de-conta, têm mostrado que os meninos são bastante mais dogmáticos e competitivos do que as meninas (Mello e cols., 1997; Daudt, 1995). A associação entre a forma entender o faz-de-conta no outro e a categoria dirigindo a interação, preferentemente por meninos, poderia estar relacionada a esta característica de gênero.

Como conclusão, pode-se dizer que os resultados deste estudo mostram que a brincadeira de faz-de-conta, como também o emprego de termos mentais, constituem-se em atividades nas quais se manifesta a capacidade metarepresentativa da criança pré-escolar. Examinar o faz-de-conta desde o ponto de vista cognitivo, portanto, pode evidenciar a habilidade da criança pequena em entender a própria mente e a dos outros, isto é, de possuir uma teoria da mente.

ANEXO

Excertos de transcrições com codificação:

- Eu sou a mamãe

- Eu sou a mamãe. Já vamo fazê a comida.

- Eu vou telefoná

- Eu ia telefoná pro meu namorado

- Olha aqui

- Porque tu ia sê a mãe

- Um sanduiche bem gostoso

- Bota aqui pra gente comê

- Umas frutas

- Ah! Eu sei (dirigindo a interação), vamo botá em outro prato - entender o faz-de-conta no outro.

- Mãe, corta isso!

- Depois filhinha

- A gente vai tê que pegá todas comidinhas que a gente comê

- Não tem mais

- Será que tu não entende (estado mental) o que é fruta. Isso daqui - entender o faz-de-conta no outro.

- Isso aqui não é fruta, sabe (dirigindo a interação) o que é? - entender o faz-de-conta no outro.

- Alcança a cola, Cassiane, faz-de-conta que é um prédio

- Péra aí

- Ih! Esse prédio vai tá...

- O meu prédio é grande

- O meu também

- Tá quase da mesma altura

- Mas o meu tá maior

- Vamo... com esse papel, vamo colá? Eu quero (expressão de desejo) uma cola. Olha a cola, olha a cola - imediata

- Eu sei (modulação de asserção), é fruta - planejada

- Não, isso é pimentão

- Tu já acabô as frutas, o que é isso, laranja.

- Dá aqui...

- Tá, já chega... diferentes pra gente comê

  • Astington, J.W. (1993). The child's understanding of the mind. Cambridge, MA:Harvard University Press.
  • Bartsch, K. & Wellman, H.M. (1995). Children's talk about the mind. New York: Oxford University Press.
  • Bateson, G. (1972). A theory of play and fantasy. Em G. Bateson (Org.), Steps to na ecology of mind: Collected essays in anthropoly, psychiatry, evolution and pistemology (pp. 177-193). New York: Chandler. (Trabalho original publicado em 1955).
  • Bretherton, I. & Beeghly, M. (1982). Talking about internal states: The acquisition of a explicit theory of mind. Developmental Psychology, 6, 906-921.
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  • Woolley, J.D. & Wellman, H.M. (1990). Young children's understanding of realities, non- realities, and appearances. Child Development, 61, 946-961.

anexo

  • Endereço para correspondência:
    Curso de Pós-Graduação em Psicologia do Desenvolvimento
    Universidade Federal do Rio Grande do Sul
    R. Ramiro Barcelos 2600 sala 116
    90035-003 Porto Alegre RS.
    E-mail:
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      29 Jul 2009
    • Data do Fascículo
      Ago 1998
    Universidade de São Paulo, Faculdade de Filosofia Ciências e Letras de Ribeirão Preto, Programa de Pós-Graduação em Psicologia Av.Bandeirantes 3900 - Monte Alegre, 14040-901 Ribeirão Preto - São Paulo - Brasil, Tel.: (55 16) 3315-3829 - Ribeirão Preto - SP - Brazil
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