Acessibilidade / Reportar erro

Casamento no Cárcere: Agenciamentos Identitários e Conjugais em uma Galeria LGBT1 1 Artigo derivado da dissertação de mestrado da primeira autora sob a orientação do terceiro autor, defendida no Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Apoio: Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES).

Matrimonio en la Cárcel: Agenciamentos Identitários y Conyugales en una Galería LGBT

Resumo:

O presente artigo discute a concepção de casamento em uma galeria direcionada a homossexuais, bissexuais, travestis e mulheres transexuais e seus companheiros em um presídio masculino. Casamento é um dos termos êmicos chave para a análise dos campos aqui compreendidos como políticos, tanto identitários como de conjugalidade. Utilizou-se a Teoria Fundamentada como dimensão metodológica, de modo a possibilitar compreensões situadas acerca das formas estratégicas de agenciamento no território carcerário engendrado por pessoas em detenção. Foram realizadas oito entrevistas de caráter narrativo com pessoas da galeria. Os resultados apontam que os processos políticos se associam às experiências de violência, afeto e resistência, configurando um espaço de negociação cujos sentidos se tensionam cotidianamente.

Palavras-chave:
sexualidade; gênero; mulher trans; homossexualidade; disciplina na prisão

Resumen:

En este artículo se analiza la concepción del matrimonio en una galería para los homosexuales, bisexuales, travestis y mujeres transexuales y sus compañeros en una prisión masculina brasileña. Matrimonio es un término émico clave para los campos de análisis aquí entendidos como políticos, tanto en término de identidad como de conyugalidad. Se utilizó la Teoría Fundamentada como dimensión metodológica con el fin de permitir entendimientos acerca de las formas estratégicas de agencia en el territorio de la prisión engendradas por las personas detenidas. Se realizaron ocho entrevistas de carácter narrativo con personas en la Galería. Los resultados muestran los procesos políticos están asociados con experiencias de violencia, afecto y resistencia, el establecimiento de un espacio de cambios cuyos sentidos están cotidianamente em tensión.

Palabras clave:
sexualidad; género; mujeres trans; homosexualidad; disciplina en la prisión

Abstract:

This article discusses the conception of marriage in a wing for homosexuals, bisexuals, transvestites and transsexual women and their companions in a Brazilian male prison. Marriage is an emic term for the analysis of the field here understood as politic, both identitary and conjugality-related. Grounded Theory was used as a methodological dimension, in order to make it possible to gain understandings about the strategic forms of agency in the prison territory engendered by persons imprisoned in this wing. Eight interviews of narrative character were carried out with people from the wing. The results indicate that this political process is associated with the experiences of violence, affection and resistance, forming a space for negotiation, whose meanings are strained daily.

Keywords:
sexuality; gender; trans women; homosexuality; prison discipline

A população prisional no Brasil é uma das que mais cresce no mundo, envolvendo um complexo panorama relacionado a questões raciais, etárias, de gênero e poder aquisitivo (Freixo, 2016Freixo, M. (2016). Desintegração do sistema prisional, segurança pública e exclusão social. Ciência & Saúde Coletiva, 21(7), 2171-2178. doi:10.1590/1413-81232015217.11752016
https://doi.org/10.1590/1413-81232015217...
). Os dispositivos sociais que procuram manter ordens disciplinares, como o sistema prisional, se engendram em mecanismos perversos e seletivos em relações às quais são os sujeitos preferencialmente capturáveis. Estas relações figuram interconectadas a marcadores sociais, a exemplo da discrepância em termos etários (55,07% da população carcerária tem de 18 a 29 anos), raciais (61,67% de pretos e pardos), de escolaridade (75,08% tem até o Ensino Fundamental completo) e gênero (94,2% de homens encarcerados) (Ministério da Justiça, 2014Ministério da Justiça. Departamento Penitenciário Nacional. (2014). Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias: INFOPEN. Brasília, DF: Ministério da Justiça. Recuperado de http://www.justica.gov.br/noticias/mj-divulgara-novo-relatorio-do-infopen-nesta-terca-feira/relatorio-depen-versao-web.pdf
http://www.justica.gov.br/noticias/mj-di...
). A atual situação da população privada de liberdade compõe o que se pode chamar de certo “vácuo legislativo” (Soares Filho & Bueno, 2016Soares Filho, M. M., & Bueno, P. M. M. G. (2016). Demografia, vulnerabilidades e direito à saúde da população prisional brasileira. Ciência & Saúde Coletiva, 21(7), 1999-2010. doi:10.1590/1413-81232015217.24102015
https://doi.org/10.1590/1413-81232015217...
, p. 2000), quadro tecido na não garantia de direitos básicos, a despeito de estes serem declarados constitucionalmente. Violação de direitos, superpopulação e ausência de individualização das penas são fatores reconhecidos no sistema penal brasileiro, aspectos que demandam leituras contextuais para além dos caminhos abertos por autores como Foucault (2014Foucault, M. (2014). Microfísica do poder (R. Machado, Trad., 28a ed.). Rio de Janeiro, RJ: Graal.), que se dedicou a compreensão dos sistemas de vigilância, controle e esquadrinhamento dos corpos encarcerados.

O panorama nacional adquire traços outros quando atentamos ao cissexismo, ou seja, processo “resultante do binarismo ou dimorfismo sexual, que se fundamenta na crença estereotipada de que características biológicas relacionadas a sexo são correspondentes a características psicossociais relacionadas a gênero” (Jesus, 2012Jesus, J. G. (2012). Orientações sobre a população transgênero: Conceitos e termos. Brasília, DF: Autor., p. 28), que constitui o sistema prisional, seja em suas dimensões legais como na materialidade das prisões. Alguns estudos, acompanhando formas de ativismo já em articulação, têm apontado para como estas dimensões discursivas de heteronormatividade e cisnormatividade (dimensões normativas baseadas no pressuposto de “coerência”, tanto heterossexual quanto das relações gênero-corpo) atualizam violências e se coadunam às formas de normatização no sistema penal (Ferreira, 2014Ferreira, G. G. (2014). Travesti e prisões: A experiência social e a materialidade do sexo e do gênero sob o lusco-fusco de cárcere (Dissertação de Mestrado). Recuperado de http://repositorio.pucrs.br/dspace/bitstream/10923/5660/1/000454061-Texto%2bCompleto-0.pdf
http://repositorio.pucrs.br/dspace/bitst...
).

Se as histórias de intenso sofrimento causado pelo preconceito e discriminação contra pessoas em função de sexualidade e identificações de gênero fazem atentar para os meandros de violência, no sistema prisional essas formas de assimetria adquirem outras atualizações (Seffner & Passos, 2016Seffner, F., & Passos, A. G. S. (2016). Uma galeria para travestis, gays e seus maridos: Forças discursivas na geração de um acontecimento prisional. Sexualidad, Salud y Sociedad, (23), 140-161. doi:10.1590/1984-6487.sess.2016.23.06.a
https://doi.org/10.1590/1984-6487.sess.2...
). Trata-se de uma das faces da seletividade do sistema prisional que, como parte do dispositivo de criminalização, silencia atravessadores como gênero e sexualidade. Isto se mostra sob a forma de uma essencialização da criminalidade - como a associação da vida de travestis e mulheres trans enquanto sujeitos do delito (Aguinsky, Ferreira, & Rodrigues, 2013Aguinsky, B. G., Ferreira, G. G., & Rodrigues, M. C. (2013). Travestis e segurança pública: As performances de gênero como experiências com o sistema e a política de segurança no Rio Grande do Sul. Textos & Contextos (Porto Alegre), 12(1), 47-54. Recuperado de http://revistaseletronicas.pucrs.br/fass/ojs/index.php/fass/article/view/14443/9649
http://revistaseletronicas.pucrs.br/fass...
), ou da não consideração sobre a pobreza e fragilidade no acesso a bens e serviços para a população transrelacionadas à vivência dissidente de gênero e sexualidade (Pelúcio, 2006Pelúcio, L. (2006). Três casamentos e algumas reflexões: Notas sobre conjugalidade envolvendo travestis que se prostituem. Revista Estudos Feministas, 14(2), 522-534. doi: 10.1590/S0104-026X2006000200012
https://doi.org/10.1590/S0104-026X200600...
). Compreende-se, portanto, um sistema complexo de relações circunscritas por diversos marcadores sociais que permitem compreender tanto vulnerabilizações como campos de criação que sepromovem nas fissuras das normas.

Considerando o panorama de tais dinâmicas discursivas do complexo sistema de controle e violência prisional brasileiro, cabe analisar como elas se materializam na vivência de certos coletivos. Na esteira dessa discussão, vemos que o Presídio Central de Porto Alegre (PCPA) em sido um alvo importante no panorama da discussão carcerária no Brasil. A partir da criação do relatório de 2009, que denominou o PCPA o pior do país, pela Comissão Parlamentar de Inquérito do Sistema Carcerário, notaram-se diversos efeitos sociais, tanto no que se refere a aspectos midiáticos quanto político-partidários no governo do estado (Seffner & Passos, 2016Seffner, F., & Passos, A. G. S. (2016). Uma galeria para travestis, gays e seus maridos: Forças discursivas na geração de um acontecimento prisional. Sexualidad, Salud y Sociedad, (23), 140-161. doi:10.1590/1984-6487.sess.2016.23.06.a
https://doi.org/10.1590/1984-6487.sess.2...
). Nesta conjuntura, certa visibilidade das pessoas travestis no PCPA se tornou possível. Como efeito das exposições midiáticas e da necessidade de mudanças da figura administrativa do presídio, diversos movimentos internos ao PCPA tornaram-se alvo de mecanismos fiscalizadores, em especial da ONG Igualdade (Organização Não Governamental fundada em 1999, apresenta importante representatividade política junto aos movimentos sociais LGBTT). Este processo, que envolve o que Seffner e Passos (2016Seffner, F., & Passos, A. G. S. (2016). Uma galeria para travestis, gays e seus maridos: Forças discursivas na geração de um acontecimento prisional. Sexualidad, Salud y Sociedad, (23), 140-161. doi:10.1590/1984-6487.sess.2016.23.06.a
https://doi.org/10.1590/1984-6487.sess.2...
) compreendem como um fenômeno social de “acoplamento travesti-vítima” - ou seja, o engendramento discursivo de produção da identidade travesti enquanto invariavelmente relacionada à posição de vítima, influenciando no processo de (re)humanização desse sujeito - se caracteriza na Galeria 3ª do H como uma forma de resposta normativa por parte do presídio. A partir desse campo de tensionamentos, inaugura-se a Galeria 3ª do H, direcionada para a população de travestis, mulheres trans, gays e “maridos”. Esse acontecimento foi possibilitado pela parceria estabelecida entre o Presídio Central de Porto Alegre, a Secretaria de Estado da Justiça e dos Direitos Humanos, a Superintendência dos Serviços Penitenciários e a Associação de Travestis e Transexuais do Rio Grande do Sul.

Tendo em vista a função de manutenção da vida dos apenados por parte do Estado, se opera a criação da Galeria dentro da lógica de fracionamento qualitativo das pessoas privadas de liberdade. No Presídio Central, a subdivisão por facções, quadrilhas, famílias e outras organizações diz da forma de distribuição em grupos nos respectivos prédios e áreas. Operando por essa estratégia de separação - que atualiza tanto a proteção pela afirmação de certas identidades quanto o disciplinamento destas no sistema do Presídio - a Galeria 3ª do H (ou Galeria LGBT, como foi recentemente rebatizada) é circunscrita dentro do crivo das identidades que se localizariam fora do marco cisgênero e heterossexual.

As vivências na Galeria podem ser tratadas como um processo específico, ainda que não individualizado em razão de marcadores de gênero, sexualidade, classe, raça e estética (Ferreira, 2014Ferreira, G. G. (2014). Travesti e prisões: A experiência social e a materialidade do sexo e do gênero sob o lusco-fusco de cárcere (Dissertação de Mestrado). Recuperado de http://repositorio.pucrs.br/dspace/bitstream/10923/5660/1/000454061-Texto%2bCompleto-0.pdf
http://repositorio.pucrs.br/dspace/bitst...
), cuja dinâmica tem se mostrado muito vinculada a relações do campo das conjugalidades. Atualmente, são acolhidos homens que se relacionam com pessoas travestis dentro ou fora do sistema prisional e homens homossexuais. No caso dos companheiros das travestis, há relatos de que eles devem declarar uma relação estável perante a equipe de segurança da Polícia Militar para que obtenham o direito de serem alocados ou transferidos para a Galeria 3ª do H. Diante deste panorama, este estudo propõe-se a analisar os aspectos vinculados à prática do “casamento”, valorizando a dimensão êmica desse termo, nos campos afetivos e sexuais - que se (re)desenham no cotidiano prisional. Termo êmico, ou “interno”, é um conceito proveniente da Antropologia. Tomam-se noções provenientes do campo de pesquisa como forma de elencar entendimentos desenvolvidos em determinado marco cultural.

Este fenômeno se dá tendo em vista que as identificações sexuais e de gênero são sócio-históricas, instáveis e nutridas por um investimento produtivo dos sujeitos em relações de poder (Scott, 1986Scott, J. W. (1986). Gender: A useful category of historical analysis. American Historical Review, 91(5), 1053-1075. doi: 10.2307/1864376
https://doi.org/10.2307/1864376...
), que possibilita formas de resistência e ressignificação das relações conjugais no tecido social (Pocahy, 2016Pocahy, F. (2016). Gênero, sexualidade e envelhecimento: Micropolíticas de subjetivação e educação. Em Aberto, 29(95), 145-158. doi: 10.24109/2176-6673.emaberto.29i95.2742
https://doi.org/10.24109/2176-6673.emabe...
) e, particularmente, em contextos prisionais (Bassani, 2011Bassani, F. (2011). Amor bandido: Cartografias da mulher no universo social masculino. Dilemas: Revista de Estudos de Conflitos e Controle Social, 4(2), 261-280. Recuperado de https://revistas.ufrj.br/index.php/dilemas/article/view/7225
https://revistas.ufrj.br/index.php/dilem...
; Ferreira, 2014Ferreira, G. G. (2014). Travesti e prisões: A experiência social e a materialidade do sexo e do gênero sob o lusco-fusco de cárcere (Dissertação de Mestrado). Recuperado de http://repositorio.pucrs.br/dspace/bitstream/10923/5660/1/000454061-Texto%2bCompleto-0.pdf
http://repositorio.pucrs.br/dspace/bitst...
; Seffner & Müller, 2012Seffner, F., & Müller, M. I. (2012). Quem ama sofre, quem sofre luta, quem luta vence: Da conjugalidade entre travestis e seus maridos. Sociedade e Cultura, 15(2), 285-295. doi:10.5216/sec.v15i2.22397
https://doi.org/10.5216/sec.v15i2.22397...
). Casamento trata-se de um termo êmico com um uso particularizado na Galeria (e no Presídio Central) que sinaliza e move campos, aqui compreendidos como das políticas identitárias e de conjugalidade. Pensar como políticos certos usos e alcances das identificações sexuais e de gênero possibilita dar ênfase a suas fissuras, que parecem conduzir a ação à potência.

Para tanto, tomamos a perspectiva de Rancière (2014Rancière, J. (2014). Nas margens do político. Lisboa, Portugal: Kkym.), para quem a política reside nessa relação específica, neste tomar parte, cujos sentidos e condições de possibilidade são questionados pelas tensões da vida cotidiana dos sujeitos. É no desencontro - dissenso - que se produzem os signos necessários para o próprio reconhecimento do alter como ser político. O dissenso não é a confrontação dos interesses ou das opiniões. Seria, para Rancière (2014Rancière, J. (2014). Nas margens do político. Lisboa, Portugal: Kkym., p. 148), “a manifestação de uma distância, de um desfasamento do sensível a si mesmo”. É essa manifestação política que visibiliza o que não tinha razão de ser visto, é publicizar o mundo privado - transformar a pessoa em sujeito operador de um dispositivo particular de subjetivação do litígio, da tensão através da qual a política existe. Portanto, o presente artigo discute a concepção de casamento em uma galeria direcionada a homossexuais, bissexuais, travestis e mulheres transexuais e seus companheiros em um presídio masculino

Método

Considerando o objetivo desta pesquisa, foi elencada uma perspectiva metodológica que possibilitasse análises focadas nos processos cotidianos da Galeria. Utilizamos a Teoria Fundamentada para sintetizar a experiência de investigação, em combinação com entrevistas narrativas e estratégias etnográficas (pela via da construção de diários de campo). Essas perspectivas, num marco teórico-conceitual crítico, possibilitaram valorizar analiticamente os atravessamentos discursivos na produção das práticas sobre os ritos de conjugalidade.

Participantes

Os critérios de inclusão de participantes foram que estivessem detidos(as) na Galeria 3ª do H, do PCPA, identificadas como da comunidade LGBTT e que declarassem estar em uma relação conjugal. Ainda que a galeria contemple apenas homens gays e bissexuais, travestis e mulheres transexuais, o uso do termo “Galeria LGBT” passou a ser usado por seus moradores e moradoras e pela comunidade prisional maior recentemente. Do universo de 32 pessoas detidas naquele momento, foram convidadas as 10 que mantinham relações conjugais. Destas, 8 participaram, sendo que 6 foram indicadas pela liderança local (chamada de “Plantão” no léxico do Presídio) e duas insistiram em participar. Todas estavam em regime fechado.

Instrumentos

Além da construção de diários de campo de todo o processo de incursão em pesquisa - elaborados, concomitantemente, por dois dos pesquisadores - foram realizadas oito entrevistas individuais, seguindo a perspectiva narrativa. Segundo Jovchelovitch e Bauer (2002Jovchelovitch, S., & Bauer, M. W. (2002). Entrevista narrativa. In M. W. Bauer & G. Gaskell (Eds.), Pesquisa qualitativa com texto, imagem e som: Um manual prático (P. A. Guareschi, Trad., pp. 90-113). Petrópolis, RJ: Vozes.), a entrevista narrativa é uma forma de entrevista em profundidade que exige influência mínima na fala do ou da participante. Planejar a questão gerativa que vai dar vazão à fala é um dos processos fundamentais (Jovchelovitch & Bauer, 2002Jovchelovitch, S., & Bauer, M. W. (2002). Entrevista narrativa. In M. W. Bauer & G. Gaskell (Eds.), Pesquisa qualitativa com texto, imagem e som: Um manual prático (P. A. Guareschi, Trad., pp. 90-113). Petrópolis, RJ: Vozes.). Nesta pesquisa, a questão formulada, sujeita a uma aproximação aos termos locais, foi: Como se dão seus relacionamentos na Galeria 3ª do H? Não se estabeleceu um tempo específico de entrevista, como indicado em literatura especializada (Jovchelovitch & Bauer, 2002Jovchelovitch, S., & Bauer, M. W. (2002). Entrevista narrativa. In M. W. Bauer & G. Gaskell (Eds.), Pesquisa qualitativa com texto, imagem e som: Um manual prático (P. A. Guareschi, Trad., pp. 90-113). Petrópolis, RJ: Vozes.), entretanto, tiveram duração média de 50 minutos.

Procedimentos

Coleta de dados. As entrevistas foram realizadas pela primeira autora, que já desenvolvia atividades de extensão universitária no local da pesquisa. O local de realização das entrevistas foi uma sala destinada pela gestão do Presídio Central, com condições ambientais e de sigilo apropriadas. Foram gravadas em áudio e transcritas posteriormente, indicando os(as) interlocutores(as) por meio de nomes fictícios.

Análise dos dados. Utilizou-se uma abordagem inspirada na Teoria Fundamentada (Charmaz, 2009Charmaz, K. (2009). A construção da teoria fundamentada. Porto Alegre, RS: Artmed.). Segundo Charmaz (2009Charmaz, K. (2009). A construção da teoria fundamentada. Porto Alegre, RS: Artmed.) esta permite a construção de teorias localizadas, focadas em três passos. Primeiramente se realiza a Descrição na qual aspectos cotidianos são ordenados a fim de sistematizar sensações, imagens, cenas e acontecimentos. Posteriormente, os elementos são agrupados em Ordenamentos Conceituais, ou seja, uma organização destes de acordo com suas características. O terceiro momento é o da Teorização no qual a(o) pesquisadora(o) busca sistematizar as ideias e elaborar uma teoria de determinada realidade. A característica principal da Teoria Fundamentada - ou seja, ter o campo analítico focado na experiência de campo - foi seguida neste estudo, tendo em vista que o acompanhamento de atividades na Galeria 3ª do H possibilitou a compreensão de que as relações conjugais se mostravam um eixo importante da vivência neste espaço prisional. Para todo esse processo, foi utilizado o software Atlas.ti, versão 7.0.

Considerações Éticas

A Participação foi voluntária e atendeu aos preceitos éticos postulados pela Resolução 466/2012 da CONEP, após aprovação pelas instâncias formais da casa prisional, do Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos da Universidade (CAAE - 54729816.6.000.5336) e da liderança local da Galeria. É importante atentar que os pesquisadores já tinham contato com a Galeria por atividades de cunho psicossocial realizadas anteriormente, de modo que possíveis constrangimentos foram minimizados.

Resultados

Caracterização

A Galeria foi implementada através de articulações e intervenções políticas de movimentos sociais, sob a representatividade de uma ONG que, historicamente, se dedica à luta pela garantia de direitos à população de travestis por meio uma lógica de equidade política e assistencial. Entretanto, no período desta pesquisa, observou-se uma alteração na configuração da Galeria. Esta antes era conhecida como “Galeria das Travestis” e passou a ser reconhecida como Galeria “LGBT”. Essa discussão transcende os significados de cada letra que compõe a sigla e passa a representar como um espaço que contempla institucionalmente uma diversidade identitária, ou seja, de pessoas Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e mulheres Transexuais.

A mesma ação que fortaleceu a empreitada da criação deste espaço, sob a liderança da ONG, deu lugar a formas outras de resistência. Esses tensionamentos puderam ser escutados em muitas falas na Galeria. Conforme foi expressado pela pessoa Plantão, referindo-se a momentos anteriores: “a outra vinha e só dava auxílio para os travestis e os como eu eles não davam auxílio nenhum”. Ainda que não se trate de estabelecer uma hierarquia de melhor ou pior direcionamento de gestão da Galeria, o que não concerne a um estudo desta ordem, a maneira como são enunciadas estas questões no cotidiano da 3ª do H possibilitam problematizar o “lugar das Travestis”. Enquanto havia a ONG mediando ações e combinações junto à Galeria, as travestis ocupavam um lugar de liderança, sendo a posição de “Plantão” ocupada necessariamente por uma travesti. Posteriormente, com o afastamento das atividades da ONG, e sob a justificativa de que dessa forma havia um movimento excludente, a figura Plantão foi tomando outras formas. O jogo de forças que se operava nessa temática pôde ser percebido em diversos momentos, e é sintetizado na seguinte fala de Alex:

A Galeria era considerada das travestis, tanto que na supervisão tu chegava: ‘Tu vais pra galeriadas travestis’. Se tu eras gay, tu já era um 10 degraus a menos que os outros. Eu também passei por isso, eu me sentia meio obrigado a usar roupas femininas, a usar maquiagem para ser um pouco mais respeitado.

Dentre as 32 pessoas que viviam na Galeria no período de pesquisa, foram realizadas oito entrevistas individuais - num cenário em que já figurava uma composição “LGBT”, e não mais na centralidade das travestis. O processo de convite deu-se mediado pela pessoa responsável pelo plantão, que escolheu, inicialmente, quem iria participar da atividade. Portanto, as seis primeiras entrevistas, incluindo com a própria pessoa responsável pelo plantão, foram com pessoas que se autodeclararam do gênero masculino. Destes seis participantes, dois afirmaram se considerar “bicha” (Alisson: 40 anos, gênero masculino, 3 anos de reclusão, 1 ano e meio de relacionamento, parceiro reside na 3H; Alex: 30 anos, gênero masculino, 2 anos de reclusão, 1 ano e meio de relacionamento, parceiro reside na 3H), enquanto que os outros quatro participantes se declararam “maridos” (Noah: 33 anos, gênero masculino, 3 anos de reclusão, 8 meses de relacionamento, parceiro externo; Anael: 29 anos, gênero masculino, “Marido”, Solteiro, 8 anos de reclusão; Ariel: 19 anos, gênero masculino, 2 anos de reclusão, 1 mês de relacionamento, parceiro reside na 3H; Olive: 33 anos, gênero masculino, 1 ano e 9 meses de reclusão,1 mês de relacionamento, parceiro reside na 3H). Para as duas últimas entrevistas (Cecil: idade não informada, gênero feminino; Dagmar: 23 anos, gênero feminino, 6 meses de reclusão, 6 meses de relacionamento, parceiro na 3H). Foi necessário realizar uma intervenção, sob a forma de uma conversa com a Plantão, de modo que as travestis pudessem participar do estudo. Nesse caso, após acordo, foram encaminhados três nomes de travestis para a assessoria operacional da Policia Militar, indicando quais seriam chamadas para as entrevistas. Uma das travestis desistiu de participar.

O Casamento

Casamento é um termo êmico no contexto da Galeria 3ª do H, que permite elaborar compreensões sobre o que se conceituou, neste estudo, como um campo político identitário e de conjugação. Não se trata de conceber que estas dimensões sociais estejam separadas nas dinâmicas cotidianas, mas sim de proporcionar uma possibilidade analítica de como o rito do casamento e a manutenção de formas de conjugalidade permitem traçar caminhos entre estratégias e afetos vividos no espaço. Considerando a síntese elaborada, fundamentada nas narrativas e observações, temos um esquema que permite delinear os principais aspectos relacionados a estes eixos (identitários e conjugais) (Figura 1).

Figura 1:
Síntese fundamentada nas entrevistas.

O casamento nessa galeria do PCPA se mostrou intrinsecamente articulado com processos de legitimação dos relacionamentos possíveis e existentes no espaço. Nas narrativas sobre estes relacionamentos figuravam termos êmicos, que colocavam em evidência uma dinâmica identitária nas configurações de casais. O uso dos termos marido e bicha, por exemplo, indicam esse funcionamento, já que foram narrados com sentido de posições posicionamentos distintos ainda que complementares na formação dos casais. A categoria identitária “travesti” esteve presente na narrativa de todo o contexto prisional, não apenas na Galeria, e foi associada à identidade de gênero feminina marcada no corpo através do uso de códigos representativos do campo feminino, como, por exemplo, vestuários, maquiagens, cabelos longos e unhas pintadas. Já o termo homossexual foi usado na Galeria como possibilidade de atingir uma amplitude maior ao abranger todas as outras categorias, exceto a dos maridos, homens que se autodenominavam heterossexuais. Anael indica em entrevista:

Na Galeria, tem gay que anda como homenzinho, tem a bicha que se veste como mulher e a travesti que é siliconada.

P: E a tua ex-companheira é travesti?

Anael: Era uma bicha. Era bicha...

P: E tu te considera o quê? Posso te perguntar isso?

Anael: Homem! Homem. Ah, eu sou!

P: Então tu não tá em nenhuma dessas três categorias que tu citaste? Anael: Não, eu sou só o ativo.

P: Ah, tá. Entendi.

Anael: No caso, homossexual, né. Mas eu sou homem. Sou só ativo, no caso. Atrás não entra nada.

O trânsito entre as identificações de gênero se misturam com práticas sexuais, a partir de modelos de códigos concedidos culturalmente às masculinidades e feminilidade. Essas dimensões não são desconectadas, se atravessam discursivamente marcando uma série de processos identificatórios que envolvem associações entre gênero e práticas calcadas, muitas vezes, sob marcos sociais normativos. Anael elucida uma diferenciação dos tipos de relacionamentos, fazendo comparações com outras experiências dentro e fora do presídio, bem como se refere às dimensões homo e heterossexuais. Além disso, em sua história de “casamento” no presídio, Anael narrou não só o sofrimento pela separação como a distinção operada nos meandros de gênero e sexualidade:

P: Como que ficou depois que ela saiu em liberdade?

Anael: É diferente, pois nós tivemos um relacionamento forte, na real, um com o outro. Me envolver lá dentro com outro não é a mesma coisa. É só um passatempo. Com eu e ela já era bem diferente. E diz que o amor de dois homens é mais forte do que de um homem com uma mulher.

Em outra narrativa, o participante Noah relatou seu envolvimento com uma pessoa que foi alocada na “3ª do H” após se conhecerem, portanto, teria vindo de outra galeria dentro do PCPA. Ao se referir à heterossexualidade de seu ex-companheiro, Noah seguiu refletindo sobre uma lógica de pertencimento ao espaço marcado pela identidade homossexual: “quando a pessoa vai para nossa Galeria e se envolve com um de nós, mas só que, quando a pessoa já está na Galeria, ela já é do grupo homossexual”.

A legitimação do casamento, em primeira instância, se mostra sob o crivo do rito, forma de publicização da união e do poder de controle institucional desse nas vidas e corpos das pessoas na Galeria. Foi possível compreender nas narrativas que, no que se refere a esta cena pública, o rito de união dos casais sofreu alterações no tempo. Desde que se deu o início da construção da 3ª do H, em 2012, houve modificações, relacionadas às demandas da pessoa Plantão do espaço. Conforme foi descrito por Noah, que experienciou duas gestões distintas, anteriormente o evento se caracterizava de maneira mais formal.

Todo mundo no corredor, você saía lá do portão de entrada, até o final da Galeria, e dava um beijo para selar o compromisso. Já que não tinha alianças, era selado com um beijo. A partir daquele momento, se eu visse algum gay ou alguma travesti dando em cima dele, eu podia reclamar para o Plantão, porque a partir daquele momento ele estava casado e aquelas pessoas sabiam que estava casado.

Atualmente, os relacionamentos considerados estáveis na Galeria seguem sendo anunciados como casamento e a união é selada a partir de um comunicado ao Plantão da Galeria. A pessoa responsável pelo plantão autoriza e legitima a união do casal, divulgando o casamento aos demais integrantes do espaço e, então, é definido em qual cela o casal irá morar: “Eu chamo todo mundo no corredor e aviso: fulano está casado com fulano agora, não quero ninguém conversando com ele, que agora ele é casado, pro marido não ficar com outros...” (Alisson). O objetivo desse rito, segundo participantes da pesquisa, é manter a organização na Galeria e a fidelidade nos relacionamentos e exercer o controle da vida sexual, visto que não é aceito pessoas casadas se relacionarem sexualmente com outras pessoas que não sejam seus(suas) companheiros(as).

Esse procedimento, controlado pela pessoa Plantão e justificado pela mesma por ter se tornado líder naquele espaço: “aí pensaram em me fazer o segundo auxiliar da Galeria, porque eu era . . . muito sério, reservado, casado direito, direito em termos de caráter, em termos de dignidade, esses negócios, né, nunca fui promíscuo também na minha vida” (Alisson). Neste contexto, o sistema de regras, ainda que imposto pela pessoa que está no plantão, deve ser cumprido por todos e todas integrantes da Galeria. Entretanto, esse espaço não se dá sem conflito. A norma dita que em briga de casais não deve haver interferência de outras pessoas, exceto a pessoa que estiver responsável pelo plantão na Galeria: “Se é briga de casal, não pode se meter. Não mesmo. Só quem pode se meter é o Plantão. Mas na dela (Plantão) ninguém pode se meter. Bah!” (Anael).

Algumas das normas que ditam a convivência na Galeria são registradas de forma explícita em uma lista exposta em uma de suas paredes. Além destas, há outras normativas que circulam como combinações orais. Segundo relatos das pessoas que participaram deste estudo, as normas que não são descritas na lista, em geral, são justamente as que se referem aos relacionamentos afetivos e/ou sexuais que não estão sob o crivo do casamento. Quando se questionou o motivo pelo qual não constavam de forma clara essas regras na lista à pessoa Plantão, a resposta foi: para “não expor as pessoas da Galeria” (Alisson).

Um exemplo citado pelo participante Plantão (Alisson) mostra que, se duas pessoas solteiras desejarem ter relações sexuais, elas devem solicitar autorização. Se autorizado, o que envolve um controle da quantidade e variabilidade de relações por pessoa, a permissão para dormir na mesma cela pode ser válida por no máximo três noites. Caso a dupla deseje seguir se relacionando, deve ser anunciado um casamento pela via da pessoa Plantão. O termo “congelar” faz parte de uma linguagem interna do PCPA. A polícia anuncia “congelar” os corredores para interromper trânsito de detentos quando é identificada alguma situação de risco, por exemplo, brigas nos corredores, encontro de facções rivais, entre outras situações. Na 3ª do H o termo foi atribuído a outras situações, como a proibição do acesso de pessoas que não residem nas celas ou para identificar pessoas que estão impedidas de se relacionar, por ordem da “Plantão”. Essas normas foram explicadas na entrevista com Alisson:

P: E tu foi criando estratégias, essa de congelar cela foi uma ideia tua?

Alisson: Foi.

P: Para controlar quem?

Alisson: A promiscuidade, quando a gente descia para o pátio, chegaram a socar quatro dentro de uma jega (cama) pra ter relação os quatro.

P: Ao mesmo tempo?

Alisson: Ao mesmo tempo que a gente estava no pátio, um fica cuidando na porta, um é pago para ficar cuidando na porta, era assim antes, um cuidava para os outros fazer a sem-vergonhice, antes era assim!

Da mesma forma, existe uma combinação sobre as separações dos casais. Assim, quando há rompimentos de relação conjugal, a pessoa do plantão é comunicada e, então, uma das duas pessoas é realocada em outra cela. Além disso, no caso de casais que permaneceram casados por um tempo mais longo, quando se separam, as duas pessoas são congeladas na Galeria, ou seja, são proibidas de se relacionar sexualmente com outra pessoa por um período de um mês, mesmo que esse tempo raramente se cumpra.

Os motivos para a constituição do casamento, a despeito de certa linearidade das regras de conduta observadas e narradas, são múltiplos. Entre os que figuraram nas entrevistas estavam: tentativas de suprir carência, troca de afetos, possibilidade de proteção e apoio no espaço prisional, além de concessão para práticas sexuais cotidianas. Noah afirma que essa conjuntura se articula com uma atualização dos valores de cuidado e proteção vinculados à sua concepção de família, atravessada por referências relacionadas ao campo da sexualidade: “Naquele espaço onde eu estou as pessoas dormem juntas, um cuida do outro, um prepara comida para o outro, coisas que é muito difícil de construir na cadeia. Isso lembra um pouquinho família”.

De outra forma, o casamento pode se estruturar como uma estratégia de apoio e segurança dentro do presídio. Estas negociações podem se estabelecer na “triagem”, conforme relata Alex:

. . . esse rapaz que me falou que tinha a Galeria dos Putos, e daí ele perguntou se era eu ficar com ele, ele viu, eu acho, que eu estava com medo do presídio. Era a primeira vez que eu ia entrar numa galeria, eu já imaginava que eu ia sofrer todo o tipo de agressão, todo tipo de violência, eu acho que ele percebeu. Ele usou isso meio que uma forma de me induzir a ter uma relação com ele, ele disse: “Olha, se tu chegar lá casado, ninguém vai implicar contigo”.

O termo êmico “Galeria dos Putos” era especialmente utilizado no contexto do Presídio Central para tecer afirmações pejorativas sobre a 3ª do H. A utilização dessa expressão põe em pauta os conteúdos cissexistas e heternormativos que figuravam no local, atualizando dimensões discursivas que circunscreviam formas de violência em termos de gênero e sexualidade. O fragmento acima, que comporta essa expressão, indica o uso da estratégia de casamento como fator de proteção dentro do espaço prisional. Entretanto, é relatada uma situação de coerção em que um detento ofereceria a possibilidade de ‘casamento’ em troca da garantia de segurança para a pessoa que estava ingressando pela primeira vez no sistema prisional. Esse excerto nos provoca a pensar na direção da negociação em que as políticas de conjugalidades podem ser experienciadas nesse contexto, não excluindo os aspectos de produção de afetos e violências que se engendram.

Discussão

A prisão, historicamente, se constituiu sob a égide do controle, da reclusão e do higienismo social (Foucault, 2014Foucault, M. (2014). Microfísica do poder (R. Machado, Trad., 28a ed.). Rio de Janeiro, RJ: Graal.). Desde suas origens, tem sido um lugar que coaduna, em seu funcionamento, discursos de degenerescência e periculosidade, articulando a disciplinarização dos corpos como recurso normativo destes sistemas (Foucault, 2014Foucault, M. (2014). Microfísica do poder (R. Machado, Trad., 28a ed.). Rio de Janeiro, RJ: Graal.). Para a compreensão dos efeitos desses sistemas, Foucault (2014Foucault, M. (2014). Microfísica do poder (R. Machado, Trad., 28a ed.). Rio de Janeiro, RJ: Graal.) indica como campo analítico o que denomina tecnologias de poder, o que possibilita compreender formas de controle pela via do esquadrinhamento e da vigilância. Estas análises e operadores conceituais podem ser relacionados ao que se observa e escuta das vivências na prisão e, no que concerne à Galeria 3ª do H, pois permitem elencar alguns aspectos instituintes deste território prisional e suas formas de exercício de poder, como a disposição arquitetônica, a divisão das Galerias no Presídio Central, condutas de vigilância e verticalização das formas de poder.

Ainda que, no Brasil, legalmente, a normativa acerca das organizações prisionais atente ao objetivo de tornar determinado apenado(a) apto ao “convívio social”, diversos fatores do contexto penal brasileiro demonstram a inadequação da materialidade dos presídios com relação a estas prerrogativas. Entretanto, a Galeria 3ª do H, como acontecimento prisional (Seffner & Passos, 2016Seffner, F., & Passos, A. G. S. (2016). Uma galeria para travestis, gays e seus maridos: Forças discursivas na geração de um acontecimento prisional. Sexualidad, Salud y Sociedad, (23), 140-161. doi:10.1590/1984-6487.sess.2016.23.06.a
https://doi.org/10.1590/1984-6487.sess.2...
), denota particularidades. A criação da Galeria compõe-se numa dinâmica de segregação, controle e formas de liberdade, exemplificadas na possibilidade de agenciamento por parte das pessoas travestis no contexto prisional. Diante de um complexo discursivo que atualiza na prisão associações da vivência travesti à periculosidade, delinquência, roubo, marginalidade e violência, o espaço da Galeria desponta promovendo movimentações.

Ainda que exista a possibilidade de fissuras das normas do sistema prisional, a disposição da Galeria na arquitetura do Presídio não faz esquecer o controle e disciplina. Fundada no mesmo prédio onde são alocadas pessoas que cometeram crimes de cunho sexual, a 3ª do H parece nascer sob a consequência material das lógicas de degenerescência e controle da sexualidade. A fiscalização e esquadrinhamento dos corpos, minunciosamente aplicados na prisão, demandam economias dos espaços e distribuições das populações. Certa lógica de eficiência e controle de espaço não parece se dar desvinculada, portanto, da produção discursiva acerca da sexualidade. Estes mecanismos, como indicam Seffner e Passos (2016Seffner, F., & Passos, A. G. S. (2016). Uma galeria para travestis, gays e seus maridos: Forças discursivas na geração de um acontecimento prisional. Sexualidad, Salud y Sociedad, (23), 140-161. doi:10.1590/1984-6487.sess.2016.23.06.a
https://doi.org/10.1590/1984-6487.sess.2...
), se dão também pela segmentarização da população carcerária, de modo que a constituição de grupos menores, com supostas demandas comuns, se faz útil à organização. Esta forma de estratégia, que constitui aspectos do marcador territorial na vivência prisional, atende tanto a princípios disciplinares como de gestão de risco interno (Seffner & Passos, 2016Seffner, F., & Passos, A. G. S. (2016). Uma galeria para travestis, gays e seus maridos: Forças discursivas na geração de um acontecimento prisional. Sexualidad, Salud y Sociedad, (23), 140-161. doi:10.1590/1984-6487.sess.2016.23.06.a
https://doi.org/10.1590/1984-6487.sess.2...
).

Essa arquitetura dos poderes, que se manifesta na divisão dos espaços, se materializa também na posição ocupada pela pessoa Plantão e na divisão das atribuições de liderança dentro da Galeria. A modificação do contexto de privilégio das pessoas travestis para um descentramento LGBT diz da dificuldade de ter como interlocutoras nessa pesquisa as travestis. Entretanto, esse contexto não se dá de forma unilateral ou monológica, é presente a atualização de um discurso no qual as pessoas travestis são consideradas “não próprias” para o protagonismo - mesmo o de ser interlocutora da presente pesquisa. Essas formas de compreensão, que estão intimamente relacionadas às estratégias sociais que constituem certas vidas mais ou menos dignas, circunscrevem possibilidades dentro desse complexo sistema e transversalizam experiências distintas. No panorama da Galeria, se dão condições de possibilidade particulares na manutenção da Galeria das Travestis, Galeria LGBT, 3ª do H ou Galeria dos Putos, como foi nomeado esse espaço em diferentes momentos da pesquisa. Das dimensões entendidas como aspectos importantes de discussão neste espaço político-identitário, o casamento emerge como um eixo analítico potente.

O casamento tem sido uma prática cultural historicamente marcada por negociações econômicas, políticas e afetivas, sofrendo modificações desde sua emergência como registro histórico até a atualidade. A família, construção acoplada ao ideário de casamento - como entendido no Ocidente eurocentrado -, é uma força institucional que engendra regulações e concessões no que diz respeito a gênero e sexualidade. Através do casamento articulam-se normas que concebem como legítimas determinadas práticas, em especial as que têm por prerrogativa a função reprodutiva do sexo e a manutenção do seio familiar (Therborn, 2006Therborn, G. (2006). Sexo e poder: A família no mundo 1900-2000 (E. D. Bilac, Trad.). São Paulo, SP: Contexto.). Neste contexto, o ideal de casal romântico é fundado na ideia de escolha recíproca e com base em sentimento de afeto mútuo, caracteriza-se pelo progressivo conhecimento dos parceiros (em oposição a outros modelos mais pragmáticos do passado, por exemplo, onde estratégias de gestão do patrimônio ou do poder poderiam ser o motivador) (Peixoto & Heilborn, 2016Peixoto, M. M., & Heilborn, M. L. (2016). Mulheres que amam demais: Conjugalidades e narrativas de experiência de sofrimento. Revista Estudos Feministas, 24(1), 45-61. doi: 10.1590/1805-9584-2016v24n1p45
https://doi.org/10.1590/1805-9584-2016v2...
). No elenco de “outros/outras significativos/significativas”, o casal se torna o privilegiado, em torno do qual as demais relações são reconfiguradas (Peixoto & Heilborn, 2016Peixoto, M. M., & Heilborn, M. L. (2016). Mulheres que amam demais: Conjugalidades e narrativas de experiência de sofrimento. Revista Estudos Feministas, 24(1), 45-61. doi: 10.1590/1805-9584-2016v24n1p45
https://doi.org/10.1590/1805-9584-2016v2...
).

Esse ideal social de conjugalidade produz um padrão hegemônico de felicidade “a dois” atrelado às regras de interações sociais idealizadas pela sociedade - que normaliza a parceria (o par) estável. Mas, quando a discussão sobre casamento e conjugalidade passa a ser entendida como um campo político (micro, mas não apenas), as performatividades tencionam os jogos discursivos na produção da diferença, como define Silva (2007Silva, T. T. (2007). A produção social da identidade e da diferença. In T. T. Silva (Org.), Identidade e diferença (7a ed., pp. 73-102). Petrópolis, RJ: Vozes .). Afinal, assumir-se “marido de”, ou como gay, bicha, travesti (usando as significações identitárias usadas nesta pesquisa) pode ser tanto resistência, como forma de refletir o assujeitamento nos regimes discursivos da homonormatividade. É importante ilustrar essas significações identitárias para problematizar como as práticas permitem a articulação do gênero e da sexualidade na construção das identidades marcadas e veiculadas nos contextos de sociabilidade (Pocahy, 2016Pocahy, F. (2016). Gênero, sexualidade e envelhecimento: Micropolíticas de subjetivação e educação. Em Aberto, 29(95), 145-158. doi: 10.24109/2176-6673.emaberto.29i95.2742
https://doi.org/10.24109/2176-6673.emabe...
), como pode ser compreendida a prisão.

Práticas como as uniões conjugais, bem como rituais de casamento visando à legitimação no contexto prisional, já foram descritos em outros estudos (Bassani, 2011Bassani, F. (2011). Amor bandido: Cartografias da mulher no universo social masculino. Dilemas: Revista de Estudos de Conflitos e Controle Social, 4(2), 261-280. Recuperado de https://revistas.ufrj.br/index.php/dilemas/article/view/7225
https://revistas.ufrj.br/index.php/dilem...
). Além disto, se reitera na literatura a possibilidade de constituição de relações estáveis, pelas travestis e seus companheiros, quando ambos estão detidos no sistema carcerário ou, ainda, garantindo visita íntima no caso de apenas uma pessoa do casal estar detida (Ferreira, 2014Ferreira, G. G. (2014). Travesti e prisões: A experiência social e a materialidade do sexo e do gênero sob o lusco-fusco de cárcere (Dissertação de Mestrado). Recuperado de http://repositorio.pucrs.br/dspace/bitstream/10923/5660/1/000454061-Texto%2bCompleto-0.pdf
http://repositorio.pucrs.br/dspace/bitst...
). As normas do casamento na 3ª do H colaboram, segundo interlocutoras(es), para manutenção do espaço, controlando possíveis atos de violência - em grande parte causa do sem função das conflitivas de relacionamentos. Segundo a equipe operacional da Brigada (Polícia) Militar, muitas vezes houve queixas em razão das ladaias (brigas, discussões, na linguagem local), aspectos que foram reiterados nas entrevistas na Galeria, em que foram relatadas brigas envolvendo agressões violentas. Entretanto, as formas de violência associadas aos casamentos não figuram somente internas aos relacionamentos. Enquanto que as brigas entre casais se vinculam muito a discursos românticos e de fidelidade, fora do contexto da Galeria, ser identificado como um(uma) morador(a) pode representar um risco importante e gerar conflitos de outra ordem. Enquanto que pessoas identificadas como LGBT podem sofrer agressões fora do espaço da Galeria, os maridos, que não se identificam como participantes desse contexto identitário, também estão sujeitos a represálias.

Internamente, na Galeria, a constituição de atribuições de conduta a respeito das formas de manutenção dos relacionamentos, por exemplo, indica dinâmicas desse campo. A fidelidade durante o casamento, um aspecto reiterado de forma escrita e oral na Galeria 3ª do H, se circunscreve dentro de uma lógica de boa conduta conjugal, assim como o término das parcerias. Quando acontece o término de um casamento, como indicado anteriormente nos resultados, existe um período estabelecido pela pessoa Plantão de abstinência de sexo. Cabe atentar, entretanto, que, a despeito do aspecto moral que circunscreve essa prática, a dificuldade decorrente do término - sob o escrutínio plantonista - serve também para desestimular a intensa troca de parcerias (o que remete à manutenção da ordem prisional).

Tendo como perspectiva as noções de gênero e sexualidade como processos transitivos e provisórios dentro do que se compreende como campo identitário (Louro, 2008Louro, G. L. (2008). Gênero e sexualidade: Pedagogias contemporâneas. Pro-Posições, 19(2), 17-23. doi:10.1590/S0103-73072008000200003
https://doi.org/10.1590/S0103-7307200800...
), pode-se considerar que as dimensões relacionais que se operam na Galeria também se circunscrevem numa pedagogia de sexualidade e gênero (Louro, 2008Louro, G. L. (2008). Gênero e sexualidade: Pedagogias contemporâneas. Pro-Posições, 19(2), 17-23. doi:10.1590/S0103-73072008000200003
https://doi.org/10.1590/S0103-7307200800...
). Não há maneiras únicas, portanto, de se reconhecer heterossexual/homossexual, cisgênero/transgênero, masculino/feminino, assim como é complexo o jogo de identificações estratégicas no contexto da Galeria. Reconhecer-se ou ser reconhecida como travesti, em determinado contexto histórico da 3ª do H, foi um marcador importante que se fazia articulado às demandas políticas e, portanto, às possibilidades de exercício de poder no local. Da mesma forma, os maridos ocupam um lugar em que essa noção da diferença e negociação engendra diversas pedagogias - de se fazer presente e inteligível naquele espaço - em especial, inteligível pela via da conjugalidade.

Atualizam-se, nas narrativas, símbolos essencialistas de feminilidade e masculinidade reiterados nas formas de relação conjugal. No que se refere aos maridos, não são incomuns referências às práticas sexuais (numa dinâmica de passividade e atividade) como forma de produzir masculinidades. Pelúcio (2006Pelúcio, L. (2006). Três casamentos e algumas reflexões: Notas sobre conjugalidade envolvendo travestis que se prostituem. Revista Estudos Feministas, 14(2), 522-534. doi: 10.1590/S0104-026X2006000200012
https://doi.org/10.1590/S0104-026X200600...
) reitera essa construção social, afirmando que as relações entre travestis e seus companheiros também podem se orientar por perspectivas essencialistas, manifestadas na atribuição de papéis referenciadas em padrões tradicionais de “masculino” e “feminino”. Benedetti (2005Benedetti, M. R. (2005). Toda feita: O corpo e o gênero das travestis. Rio de Janeiro, RJ: Gramond.) atenta que, por parte das travestis com as quais pesquisou, casar com um marido que apresentasse características reconhecidas socialmente como masculinas era desejável. De outra forma, Seffner e Müller (2012Seffner, F., & Müller, M. I. (2012). Quem ama sofre, quem sofre luta, quem luta vence: Da conjugalidade entre travestis e seus maridos. Sociedade e Cultura, 15(2), 285-295. doi:10.5216/sec.v15i2.22397
https://doi.org/10.5216/sec.v15i2.22397...
), em pesquisa sobre conjugalidades, identificaram um investimento das pessoas travestis na afirmação da heterossexualidade de seus companheiros. É muito evidenciada, na literatura, a reprodução de um padrão heteronormativo nas relações entre travestis e seus maridos. Entretanto, figuram outras referências de conjugação na Galeria que também fazem atentar para padrões normativos. Assim como apontam algumas referências na área (Costa & Nardi, 2015Costa, A. B., & Nardi, H. C. (2015). O casamento homoafetivo e a política da sexualidade: Implicações do afeto como justificativa das uniões de pessoas do mesmo sexo. Revista Estudos Feministas, 23(1), 137-150. doi: 10.1590/0104-026X2015v23n1p/137
https://doi.org/10.1590/0104-026X2015v23...
; Miskolci, 2007Miskolci, R. (2007). Pânicos morais e controle social: Reflexões sobre o casamento gay. Cadernos Pagu, (28), 101-128. doi: 10.1590/S0104-83332007000100006
https://doi.org/10.1590/S0104-8333200700...
; Pelúcio, 2006Pelúcio, L. (2006). Três casamentos e algumas reflexões: Notas sobre conjugalidade envolvendo travestis que se prostituem. Revista Estudos Feministas, 14(2), 522-534. doi: 10.1590/S0104-026X2006000200012
https://doi.org/10.1590/S0104-026X200600...
), o ideário romântico - ou de casamento Moderno - opera reiterando e ressignificando possiblidades conjugais entre pessoas gays e trans, de modo que vemos essas dimensões normativas articulando práticas e identificações de gênero e sexualidade.

A despeito da atualização destas normativas, nesta pesquisa, o contexto de exercício das atribuições de gênero e sexualidade se mostrou dialógico e plural, de modo que a organização dos afazeres domésticos na cela - comumente compartilhada -, e o exercício de protagonismo na relação - que pode se manifestar nas brigas em que a travesti destoa do ideal tradicional de feminilidade -, se fazem exemplos que diferem das leituras lineares. As categorias identitárias, por um lado, materializam-se vinculadas às relações possíveis na Galeria, acopladas as trajetórias de vida - como no caso das pessoas que performatizam aspectos de sexualidade e gênero não normativas. De outra forma, estas também possibilitam outras estratégias de desejo e posicionamentos dentro do Presídio. As relações afetivas e/ou sexuais, ao mesmo tempo em que promovem formas de agenciamento, estão relacionadas às lógicas de controle e segurança e se dão tendo a noção de casamento como um nódulo importante nas relações.

No que concerne às travestis, por exemplo, os cuidados estéticos como aproximação com ideais tradicionais de feminilidade constituem esse campo identitário de forma plural. No cotidiano da Galeria, a estética é um importante marcador social. Estudos já apontaram para esta relação, indicando a importância de formas de investimento corporal (Benedetti, 2005Benedetti, M. R. (2005). Toda feita: O corpo e o gênero das travestis. Rio de Janeiro, RJ: Gramond.; Ferreira, 2014Ferreira, G. G. (2014). Travesti e prisões: A experiência social e a materialidade do sexo e do gênero sob o lusco-fusco de cárcere (Dissertação de Mestrado). Recuperado de http://repositorio.pucrs.br/dspace/bitstream/10923/5660/1/000454061-Texto%2bCompleto-0.pdf
http://repositorio.pucrs.br/dspace/bitst...
). Aspectos como a materialização de características associadas ao feminino - pele depilada, maquiagem, vestuário - se mostram em determinados momentos de gestão na Galeria como uma importante ponte de acesso a posições privilegiadas, assim como forma de esquiva de situações de violência, quando as expectativas identitárias não comportam a performance de gênero e sexualidade. Esse aspecto é indicado na falade Alex: “eu me sentia meio obrigado a usar roupas femininas, a usar maquiagem, pra ser um pouco mais respeitado”. Ainda que o espaço tenha podido oferecer um campo de exercício de poder para uma população vulnerabilizada como é a das travestis no sistema prisional, essa modificação não se dá sem gerar efeitos outros.

O cenário de violência anterior à prisão constitui, concomitantemente, um fator de possível represália e investimento no casamento. Não é incomum o casamento surgir como possibilidade, aos maridos, de fuga de conflitos com facções em outras Galerias. Esta forma de constituição de si como marido, a despeito dos diversos motivos destes laços, não se dá sem atravessamentos de violência - condizentes com os discursos acerca das conjugalidades, que atravessam a prisão. Entretanto, para além das estratégias de fuga dos maridos em relação às facções, essas políticas de conjugalidade se fazem em negociações também afetivas.

Em muitos momentos o casamento, planejado antes da entrada na Galeria pela via dos encontros na triagem, nos corredores e janelas do Presídio, ou internamente no grupo da 3ª do H, respondem a um contexto de insegurança e solidão. Além disso, as situações de coerção em que se oferece a possibilidade de ‘casamento’ em troca da garantia de segurança provocam a pensar na direção da negociação em que as políticas de conjugalidades podem ser experienciadas. O suprimento das carências, as possibilidades de proteção e apoio, além de práticas sexuais cotidianas, se articulam com uma atualização dos valores de cuidado e proteção. Do igual modo, os congelamentos, que podem ser tomados por lutos, reiteram o mesmo campo de exercício performativo das conjugalidades fora do sistema prisional. Neste contexto desponta a função que o “casamento” toma -possibilidade de resistência a forças que, cotidianamente, não se totalizam nas redes de poder.

O cárcere fomenta possibilidades particulares de configurações de conjugalidade que só existem nesse lugar-tempo, produzidos por redes de cuidado, amparo e gerando laços sociais. Mesmo que operando diversas estratégias disciplinatórias, de controle e assujeitamento, o espaço da Galeria possibilitou um campo de dissenso político, tanto das relações (hiper)identitárias, como das condições de possibilidade de expressão e vivência de relações afetivo-sexuais. Essas vivências são “outras”, ou seja, nem totalmente atreladas às normas (sejam elas as externas ou suas caricaturas no cárcere), nem totalmente subversivas. Cria-se um campo dialógico que potencializa, mas não determina, viver desejos inscritos (mas proscritos, pelo campo identitário) nos ideais chancelados pela sociedade, de uma forma que coaduna novas e velhas interdições, mas mantém aberta a possibilidade de reinvenção. A conjugalidade e o casamento não se dão livremente ou totalmente controlados. Possibilitam formas de resistência externas à Galeria, no sentido de que promovem laços afetivos diante de histórias de vida e de uma organização prisional permeadas violências vinculadas a discursos machistas, sexistas, hétero e cisnormativos, e resistências internas à Galeria 3ª do H, já que possibilitam uma força outra diante da verticalidade das figuras institucionais.

Esta pesquisa se apresentou inscrita num crivo conceitual e metodológico crítico. Essa particularidade faz atentar para certas características do estudo não vistas como, somente, limitações - já que o marco teórico-crítico faz tê-las como objetos de análise. Esse ponto é percebido quando da dificuldade de entrevistar travestis e mulheres trans o que, analiticamente, nos indicou um campo de forças estratégico de manutenção da nova liderança no local (sob, por exemplo, a forma do Plantão e a alteração do nome da Galeria) e de atualização de assimetrias baseadas em discursos normativos. É importante notar que essas modificações não se dão deslocadas dos meandros institucionais do Presídio, uma articulação entre direção e detentos (as) que, mesmo não sendo objeto de estudo nessa investigação, nos indica um campo interessante de análise futura.

Referências

  • Aguinsky, B. G., Ferreira, G. G., & Rodrigues, M. C. (2013). Travestis e segurança pública: As performances de gênero como experiências com o sistema e a política de segurança no Rio Grande do Sul. Textos & Contextos (Porto Alegre), 12(1), 47-54. Recuperado de http://revistaseletronicas.pucrs.br/fass/ojs/index.php/fass/article/view/14443/9649
    » http://revistaseletronicas.pucrs.br/fass/ojs/index.php/fass/article/view/14443/9649
  • Bassani, F. (2011). Amor bandido: Cartografias da mulher no universo social masculino. Dilemas: Revista de Estudos de Conflitos e Controle Social, 4(2), 261-280. Recuperado de https://revistas.ufrj.br/index.php/dilemas/article/view/7225
    » https://revistas.ufrj.br/index.php/dilemas/article/view/7225
  • Benedetti, M. R. (2005). Toda feita: O corpo e o gênero das travestis Rio de Janeiro, RJ: Gramond.
  • Charmaz, K. (2009). A construção da teoria fundamentada Porto Alegre, RS: Artmed.
  • Costa, A. B., & Nardi, H. C. (2015). O casamento homoafetivo e a política da sexualidade: Implicações do afeto como justificativa das uniões de pessoas do mesmo sexo. Revista Estudos Feministas, 23(1), 137-150. doi: 10.1590/0104-026X2015v23n1p/137
    » https://doi.org/10.1590/0104-026X2015v23n1p/137
  • Ferreira, G. G. (2014). Travesti e prisões: A experiência social e a materialidade do sexo e do gênero sob o lusco-fusco de cárcere (Dissertação de Mestrado). Recuperado de http://repositorio.pucrs.br/dspace/bitstream/10923/5660/1/000454061-Texto%2bCompleto-0.pdf
    » http://repositorio.pucrs.br/dspace/bitstream/10923/5660/1/000454061-Texto%2bCompleto-0.pdf
  • Foucault, M. (2014). Microfísica do poder (R. Machado, Trad., 28a ed.). Rio de Janeiro, RJ: Graal.
  • Freixo, M. (2016). Desintegração do sistema prisional, segurança pública e exclusão social. Ciência & Saúde Coletiva, 21(7), 2171-2178. doi:10.1590/1413-81232015217.11752016
    » https://doi.org/10.1590/1413-81232015217.11752016
  • Jesus, J. G. (2012). Orientações sobre a população transgênero: Conceitos e termos Brasília, DF: Autor.
  • Jovchelovitch, S., & Bauer, M. W. (2002). Entrevista narrativa. In M. W. Bauer & G. Gaskell (Eds.), Pesquisa qualitativa com texto, imagem e som: Um manual prático (P. A. Guareschi, Trad., pp. 90-113). Petrópolis, RJ: Vozes.
  • Louro, G. L. (2008). Gênero e sexualidade: Pedagogias contemporâneas. Pro-Posições, 19(2), 17-23. doi:10.1590/S0103-73072008000200003
    » https://doi.org/10.1590/S0103-73072008000200003
  • Ministério da Justiça. Departamento Penitenciário Nacional. (2014). Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias: INFOPEN Brasília, DF: Ministério da Justiça. Recuperado de http://www.justica.gov.br/noticias/mj-divulgara-novo-relatorio-do-infopen-nesta-terca-feira/relatorio-depen-versao-web.pdf
    » http://www.justica.gov.br/noticias/mj-divulgara-novo-relatorio-do-infopen-nesta-terca-feira/relatorio-depen-versao-web.pdf
  • Miskolci, R. (2007). Pânicos morais e controle social: Reflexões sobre o casamento gay. Cadernos Pagu, (28), 101-128. doi: 10.1590/S0104-83332007000100006
    » https://doi.org/10.1590/S0104-83332007000100006
  • Peixoto, M. M., & Heilborn, M. L. (2016). Mulheres que amam demais: Conjugalidades e narrativas de experiência de sofrimento. Revista Estudos Feministas, 24(1), 45-61. doi: 10.1590/1805-9584-2016v24n1p45
    » https://doi.org/10.1590/1805-9584-2016v24n1p45
  • Pelúcio, L. (2006). Três casamentos e algumas reflexões: Notas sobre conjugalidade envolvendo travestis que se prostituem. Revista Estudos Feministas, 14(2), 522-534. doi: 10.1590/S0104-026X2006000200012
    » https://doi.org/10.1590/S0104-026X2006000200012
  • Pocahy, F. (2016). Gênero, sexualidade e envelhecimento: Micropolíticas de subjetivação e educação. Em Aberto, 29(95), 145-158. doi: 10.24109/2176-6673.emaberto.29i95.2742
    » https://doi.org/10.24109/2176-6673.emaberto.29i95.2742
  • Rancière, J. (2014). Nas margens do político Lisboa, Portugal: Kkym.
  • Seffner, F., & Müller, M. I. (2012). Quem ama sofre, quem sofre luta, quem luta vence: Da conjugalidade entre travestis e seus maridos. Sociedade e Cultura, 15(2), 285-295. doi:10.5216/sec.v15i2.22397
    » https://doi.org/10.5216/sec.v15i2.22397
  • Seffner, F., & Passos, A. G. S. (2016). Uma galeria para travestis, gays e seus maridos: Forças discursivas na geração de um acontecimento prisional. Sexualidad, Salud y Sociedad, (23), 140-161. doi:10.1590/1984-6487.sess.2016.23.06.a
    » https://doi.org/10.1590/1984-6487.sess.2016.23.06.a
  • Silva, T. T. (2007). A produção social da identidade e da diferença. In T. T. Silva (Org.), Identidade e diferença (7a ed., pp. 73-102). Petrópolis, RJ: Vozes .
  • Soares Filho, M. M., & Bueno, P. M. M. G. (2016). Demografia, vulnerabilidades e direito à saúde da população prisional brasileira. Ciência & Saúde Coletiva, 21(7), 1999-2010. doi:10.1590/1413-81232015217.24102015
    » https://doi.org/10.1590/1413-81232015217.24102015
  • Scott, J. W. (1986). Gender: A useful category of historical analysis. American Historical Review, 91(5), 1053-1075. doi: 10.2307/1864376
    » https://doi.org/10.2307/1864376
  • Therborn, G. (2006). Sexo e poder: A família no mundo 1900-2000 (E. D. Bilac, Trad.). São Paulo, SP: Contexto.
  • 1
    Artigo derivado da dissertação de mestrado da primeira autora sob a orientação do terceiro autor, defendida no Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Apoio: Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES).
  • 5
    Como citar este artigo: Baptista-Silva, G., Hamann, C. & Pizzinato, A. (2017). Marriage in prison: Identity and marital agencies in a LGBT wing. Paidéia (Ribeirão Preto), 27(Suppl. 1), 376-385. doi:10.1590/1982-432727s1201702

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Dez 2017

Histórico

  • Recebido
    23 Mar 2017
  • Revisado
    15 Set 2017
  • Aceito
    18 Out 2017
Universidade de São Paulo, Faculdade de Filosofia Ciências e Letras de Ribeirão Preto, Programa de Pós-Graduação em Psicologia Av.Bandeirantes 3900 - Monte Alegre, 14040-901 Ribeirão Preto - São Paulo - Brasil, Tel.: (55 16) 3315-3829 - Ribeirão Preto - SP - Brazil
E-mail: paideia@usp.br