Acessibilidade / Reportar erro

Práticas de cuidado e trabalho docente

Práticas de cuidado e trabalho docente

No coração da sala de aula: gênero e trabalho docente nas séries iniciais

CARVALHO, Marília Pinto de.

São Paulo: Xamã/ Fapesp, 1999. 247 p.

Há algo de diferente no ensino das séries iniciais do ensino fundamental, em comparação com outros níveis de ensino? O fato de ser um local de trabalho com grande maioria de mulheres desempenhando a função docente confere alguma peculiaridade a este ambiente? O que significa ser mulher professora, principalmente quando essa prática se realiza nas primeiras séries do ensino fundamental? E como decifrar esse fazer diário, dissolvido nas rotinas escolares e muitas vezes sufocado pelos controles, pelos preconceitos e por pequenas disputas de poder? Essas são algumas das questões que orientam o estudo de Marília de Carvalho, elaborado originalmente como tese de doutorado, defendida na Faculdade de Educação da USP em 1998 e transformada em livro no ano seguinte.

A partir de um longo contato com algumas professoras e um professor das séries iniciais de uma escola pública da cidade de São Paulo, realizando entrevistas e observações, a autora contribui para um melhor entendimento das funções docentes, das relações professor/aluno e das relações de gênero dentro e fora da escola. A reflexão acerca do cuidado é um dos aspectos mais marcantes dessa pesquisa, conceito de inúmeras significações, que é aqui detalhado tanto em relação a estas várias conotações teóricas quanto em relação a seus múltiplos significados nas práticas dos professores.

O livro começa com um mapeamento de várias concepções ligadas ao gênero, deixando bastante claros os pressupostos teóricos adotados pela autora ao longo de sua investigação. A idéia de maternação, proposta por Nancy Chodorow, o desenvolvimento moral e a ética do cuidado trabalhados por Carol Gilligan, as elaborações muitas vezes identificadas como feminismo da diferença, defendidas por várias autoras e, finalmente, concepções de autores como Joan Scott e Robert Connell são alvo de análises críticas e também fonte de colaborações para o arcabouço teórico construído ao longo da pesquisa.

Em seguida, o conceito de cuidado é analisado mais aprofundadamente, também sob o ponto de vista de vários autores, atuantes em diferentes áreas do conhecimento. A autora faz uma reconstrução desse conceito, considerando-o como uma construção social. Tenta afastar conotações de cunho universalista e a-histórico, negando serem as atitudes de cuidado referentes unicamente às mulheres, ou mesmo exclusivas de certos grupos sociais. Para isso, foi elaborada uma contextualização tanto para a origem histórica das práticas de cuidado, quanto para outros elementos que devem ser considerados nas análises das práticas escolares: a questão social, a de gênero e mesmo a relação entre adultos e crianças.

Uma especificidade do estudo é a iniciativa de compor a teoria e a empiria. Embora a autora trate alguns aspectos teóricos de maneira mais aprofundada no início do livro, como uma opção para a exposição de pressupostos e concepções que fundamentaram sua investigação, observa-se que a construção de idéias ocorre de maneira concomitante entre a esfera teórica e a empírica. Dessa forma, o trabalho não tem como característica somente a discussão incansável sobre a teoria e, do mesmo modo, não traz apenas dados empíricos dispersos. Há um equilíbrio entre essas duas esferas, e a leitura torna-se com isso bastante agradável e interessante.

Quanto ao referencial empírico, de abordagem etnográfica, pode-se verificar a explicitação e as justificativas dos procedimentos metodológicos escolhidos pela autora, bem como as dificuldades e os sentimentos que perpassaram o período de estudo. As relações entre a pesquisadora e as pessoas envolvidas no trabalho escolar também se encontram presentes no texto, bem como as modificações ocorridas nessas relações em função de um maior tempo de convivência.

Tem-se então a oportunidade de entrar em contato com os relatos sobre a atividade profissional de quatro professoras e um professor, relatos que conseguem delinear muito bem seus perfis individuais, seus posicionamentos e suas práticas pedagógicas. Além disso, dada a enorme dificuldade de se obter depoimentos pessoais, o que requer a construção de uma relação de confiança entre a pesquisadora e os depoentes, pode-se dizer que a autora teve sucesso em sua aproximação a certos acontecimentos da vida pessoal e profissional de cada um, facilitando assim o entendimento de determinadas situações e da atuação dos participantes.

Em todos esses relatos de trabalho pedagógico estão presentes as práticas de cuidado, na concepção adotada pelo estudo, e é interessante verificar como a autora apresenta os diferentes graus de significado e de importância dessas práticas na docência de cada um dos professores envolvidos na pesquisa. Torna-se bastante clara também a vinculação dessas práticas de cuidado com a natureza relacional da atividade docente, analisada no livro sob o aspecto da significativa afetividade observada entre, de um lado, o professor e as professoras mencionadas e, de outro, seus alunos, verificada em suas várias formas de expressão.

O conceito de cuidado aparece então como parte daquilo que é considerado pelos sujeitos um bom trabalho pedagógico e que pode ser observado, de forma geral, tanto no desempenho das professoras quanto no do professor participante, eliminando a idéia de que tal categoria faria parte apenas do conjunto de características femininas.

Considerando que o conceito de profissionalismo costuma estar associado muito mais à masculinidade, uma vez que se espera dos indivíduos técnicas e domínio de um determinado campo do saber, verificou-se que para as professoras investigadas, este conceito parecia definir-se a partir do envolvimento pessoal, da realização e do prazer obtido no trabalho. Mesmo assim, as dimensões intelectuais eram sempre consideradas e mostravam que todos os sujeitos envolvidos se preocupavam também com ensinar, transmitir conteúdos, formas de raciocínio e técnicas, especialmente porque era de conhecimento geral que a desvalorização da carreira do magistério muitas vezes surge ao se levar em conta apenas o lado do envolvimento pessoal.

Por outro lado, por se associar muitas vezes o cuidado infantil à femininidade, constatou-se que o professor (homem) investigado apresentava maiores dificuldades com relação a sua prática docente. Porém, ao mesmo tempo, tinha maior liberdade para se distanciar desse conceito, o que, no caso das mulheres, ocasionava uma certa culpa.

Segundo a autora, essas práticas de cuidado, embora marcantes no trabalho docente com crianças, integram-no de forma contraditória e sem lhe conferir legitimidade profissional, passando geralmente despercebidas em muitas pesquisas acadêmicas, porque não possuem estatuto teórico e dificilmente se constituem em objeto de estudo. No entanto, ficou patente ao longo dessa investigação a necessidade de se continuar estudando tais práticas, já que elas podem estar estreitamente vinculadas ao trabalho pedagógico das professoras e professores das séries iniciais do ensino fundamental.

Ao longo de toda a elaboração teórica e empírica apresentada no livro, nota-se a discussão de questões importantes que acabam fragilizando algumas polaridades presentes no discurso pedagógico de muitos professores e mesmo em certas produções acadêmicas, polaridades que associam certos atributos como a afetividade, intensas relações interpessoais, o comportamento maternal e o cuidado à femininidade e, por outro lado, a racionalidade, as relações pessoais mais distantes, a disciplina e a competência profissional à masculinidade.

Além disso, abordando mais especificamente a freqüente associação realizada entre o cuidado, o comportamento maternal e a femininidade, em oposição a padrões de atuação masculinos, que não apresentariam tais características, as práticas de cuidado verificadas parecem ser próprias do ensino primário, não correspondendo, portanto, a uma transposição direta de práticas domésticas para o ambiente escolar. Marília de Carvalho afirma ter ocorrido, então, ao longo do tempo, uma construção social de pressupostos comuns a um ideal de mãe e de professora primária, realizado tanto na escola quanto fora dela. Tais práticas de cuidado estariam associadas à feminilidade e à maternidade, o que remete a uma concepção de infância, a um conceito de cuidado infantil e a normas sobre a adequação das mulheres a essas tarefas. Esse modelo ideal de professor seria produzido, transmitido e reproduzido no interior da própria escola, como parte de uma cultura escolar partilhada pelos que ali trabalham. Uma dimensão do conceito de feminização aqui apresentada é referente à escola e ao ensino primários, independentemente do sexo do profissional docente.

Pode-se dizer que as reflexões e análises contidas nesse trabalho condensam, com grande harmonia, um longo caminho de inquietações teóricas e uma perspicaz prática de pesquisa. Além disso, suas contribuições não se esgotam apenas na compreensão do fazer docente à luz das relações de gênero e do universo relacional que caracteriza essa profissão. O estudo apresenta também um quadro rico e cuidadoso da cultura escolar e dos aspectos menos visíveis das rotinas e afazeres em que professores e professoras, por caminhos diversos e muitas vezes contraditórios, procuram tornar-se sujeitos de sua própria prática. Por tudo isso, o trabalho de Marília de Carvalho deve figurar como referência básica não só para os estudos sobre a educação fundamental, como também para todos aqueles que se interessam por uma reflexão mais aprofundada sobre as relações de gênero.

LUCIANA MARIA VIVIANI

DAIANE ANTUNES VIEIRA

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    19 Ago 2002
  • Data do Fascículo
    2001
Centro de Filosofia e Ciências Humanas e Centro de Comunicação e Expressão da Universidade Federal de Santa Catarina Campus Universitário - Trindade, 88040-970 Florianópolis SC - Brasil, Tel. (55 48) 3331-8211, Fax: (55 48) 3331-9751 - Florianópolis - SC - Brazil
E-mail: ref@cfh.ufsc.br