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Ações afirmativas, mulheres e mercados de trabalho

Ações afirmativas, mulheres e mercados de trabalho

Mulher e Trabalho: experiências de ação afirmativa

DELGADO, Dídice, CAPELLIN, Paola & SOARES, Vera (orgs.)

São Paulo: ELAS/Boitempo Editorial, 2000. 144p.

Parte conclusiva de um programa de seminários e publicações mais amplo, de dois anos de duração, esse livro reúne os aportes apresentados por especialistas de diversos países no seminário internacional As mulheres no mundo do trabalho: experiências internacionais de ações afirmativas, realizado no Brasil de 14 a 19 de abril de 1997, organizado pela Fundação Friedrich Ebert-Ildes (FES-Ildes), Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Elisabeth Lobo Assessoria (Elas), e Centro Feminista de Estudos e Assessoria (CFEMEA), com apoio de diversas instituições internacionais e nacionais (sindicais, empresariais, governamentais e não governamentais).

O Seminário teve por objetivo o de "possibilitar o contato do público brasileiro com experiências consolidadas de ação afirmativa que revelassem: (1) a viabilidade da medida como um caminho para a construção da igualdade de oportunidades entre homens e mulheres no trabalho; (2) a participação dos diferentes atores sociais na construção e na implementação das experiências; (3) o arcabouço legal no qual se inserem as ações afirmativas; (4) as dificuldades e os desafios da implementação das propostas em cada realidade" (p. 9).

Martine Voets discorreu sobre a ação afirmativa como parte da política de igualdade de oportunidades desenvolvida pela União Européia; Jacqueline Laufer analisou a experiência francesa na matéria; Etta Olgiati comentou o caso italiano; Kimberley Pate abordou o tema das ações afirmativas nos Estados Unidos; e finalmente Laís Abramo apresentou linhas de reflexão sobre as mudanças nos mercados de trabalho latino-americanos e as condições das mulheres.

O livro é introduzido pelas organizadoras, integrantes da Elas e da UFRJ, com o texto "A mulher no mundo do trabalho: Perspectivas e desafios para construir a igualdade de oportunidades no Brasil". Tributárias de uma publicação anterior do mesmo programa,1 1 Discriminação positiva. Ações Afirmativas: em busca da igualdade. Brasília/São Paulo: CFEMEA/Elas, 1996. as organizadoras do livro começam por definir o conceito de ações afirmativas: "A afirmação do princípio de igualdade de oportunidades entre homens e mulheres e sua aplicação no mundo do trabalho já tem uma história no cenário internacional. São denominadas ações afirmativas essas políticas que têm como meta corrigir antigas e novas discriminações" (p. 11).

As organizadoras contam essa história, cujos primórdios vinculam-se à eliminação de todos os elementos discriminatórios contidos nas legislações, seguidos de um esforço adicional para estimular, através de procedimentos práticos, a efetiva mudança nos comportamentos discriminatórios nos locais de trabalho: "A força moral e coercitiva dos mecanismos punitivos legais muitas vezes não consegue ser propulsora da inovação de comportamentos. Assim, o desenho de metodologias, de planos e de estratégias concretas de políticas de intervenção foi um propósito comum em vários contextos nacionais nos anos 80" (p. 12).

Segundo Cappellin, Delgado e Soares, o desafio pragmático da mundialização da economia, com suas exigências no que diz respeito à adequação das organizações produtivas, foi o cenário que estimulou alguns agentes econômicos a aderirem a esse tipo de estratégia, com o intuito de experimentar uma aliança entre a rentabilidade dos negócios e o êxito de novas estratégias de recursos humanos que promovessem a igualdade de oportunidades. Para as organizadoras da publicação, "[a] leitura das experiências internacionais oferece outro ensinamento: a implementação das ações afirmativas pressupõe uma vontade política socialmente compartilhada de realizar inovações" (p. 14). Nesse sentido, são levantadas as batalhas ganhas desde a sanção da Constituição de 1988 pelos diferentes setores e atores interessados (governamental, parlamentares, movimento de mulheres, sindicatos, organizações empresariais, etc.), como sinais de um processo de mudanças em direção a uma abertura maior para formular políticas de igualdade de oportunidades no Brasil.

A seguir, encontramos o texto de Martine Voets, "A estratégia européia para a ação afirmativa" (p. 21), que possibilita uma compreensão mais ampla dos textos de Laufer ("Igualdade profissional e ações afirmativas") e de Olgiati ("As ações afirmativas na Itália e um olhar sobre a Europa"), referidos às experiências nacionais francesa e italiana, respectivamente. O grande ponto de destaque, considerando esses três textos em conjunto, analisados em contraposição à experiência nos Estados Unidos, é a importância dos processos de integração supra-nacional como motor propulsor da adoção de medidas de ação afirmativa nos diversos países europeus, com grande participação dos estados em sua aplicação nacional.

A história das ações afirmativas na Europa encontra-se pautada pela história dos acordos de integração que, no caso específico das diretrizes para a consecução da igualdade de oportunidades de gênero nos mercados de trabalho, começa em 1957 com o próprio Tratado de Roma (que estabeleceu a Comunidade Econômica Européia): "[o]s artigos desse tratado diziam respeito essencialmente às questões econômicas. As disposições da legislação social européia referiam-se a aspectos muito restritos, tais como a liberdade de movimento das pessoas e a livre concorrência. Foi nesse contexto que nasceu a legislação européia sobre a igualdade de remuneração entre trabalhadores dos sexos feminino e masculino. Assim, as disposições do artigo 119 do tratado foram adotadas com a finalidade de evitar deformações na concorrência entre os países, devido aos baixos salários pagos às mulheres" (Voets, p. 22).

Os anos 70 trouxeram a preocupação com formular, nacionalmente, o arcabouço legal que pudesse gerar maior igualdade de oportunidades nos mercados de trabalho envolvidos na Comunidade. Os anos 80, após a comprovação de que o arcabouço legal era necessário porém não suficiente, trouxeram as primeiras preocupações com a promoção da igualdade e, conseqüentemente, com as medidas de ação afirmativa. Finalmente, o viés dos anos 90 está constituído pela compreensão das condições de trabalho das mulheres no contexto mais amplo da condição das mulheres na sociedade (preocupações com a saúde e a segurança das gestantes, licença parental etc), pela construção de parcerias (mobilização e estabelecimento de acordos mediante negociações de parceiros na vida econômica e social) e pelo mainstreaming ou transversalidade (inclusão da problemática das relações de gênero como principio transversal integrado à formulação e à implementação de todas as políticas e planos de ação).

"Uma década de ativo fomento à ação afirmativa para as mulheres trabalhadoras produziu um considerável conhecimento prático sobre esse assunto, que era relativamente inexplorado até o começo da década de 1980" (Voets, pág. 36). Na última década do século passado, a Comunidade desenvolveu diversas iniciativas com a finalidade de disseminar e debater estes conhecimentos, entre elas, a realização de seminários e conferências, a consolidação e a circulação da informação, o financiamento de projetos de pesquisa, o apoio a projetos inovadores de ação afirmativa, o estabelecimento de redes para a implementação de programas específicos.

O caso francês resulta ilustrativo para compreender a importância do papel do estado na consecução dos objetivos colocados na aplicação de medidas de ação afirmativa, principalmente no que diz respeito à promoção, desde 1983, de três tipos de instrumentos: (1) a introdução do princípio de negociação específica no tocante à igualdade profissional entre homens e mulheres nas negociações coletivas; (2) a obrigação das empresas com mais de cinqüenta empregados, de elaborar um relatório anual das condições de emprego de mulheres e homens; (3) a negociação de planos de igualdade, com previsão de auxílio financeiro por parte do estado aos planos exemplares.

A partir de 1987, esse conjunto de instrumentos foi complementado por outros dois instrumentos de promoção da igualdade profissional: o contrato para empregos mistos e os acordos interprofissionais.

"Esse contrato para empregos mistos permitiria que empresas com até seiscentos empregados recebessem subsídios do Estado para financiar 50% dos custos de formação e 30% do salário durante a formação de uma mulher contratada ou promovida para um emprego usualmente exercido por homens em 80% dos casos. Enquanto a negociação coletiva relativa à igualdade profissional prevista pela lei de 1983 dizia respeito antes de tudo à empresa, os acordos interprofissionais sobre a igualdade profissional foram assinados em 1989, preconizando a incorporação de objetivos de igualdade profissional nas negociações entre setores sobre as novas tecnologias ou sobre a duração no trabalho" (Laufer, p. 45).

Já o caso italiano especifica as estratégias institucionais dirigidas à adoção de programas de ação afirmativa de caráter voluntário, ilustrando esta análise através de uma grande empresa, a Italtel (a maior empresa italiana de telecomunicações). A experiência pioneira da Italtel aconteceu num ciclo caracterizado por importantes transformações em sua estrutura técnico-organizativa e obedeceu a uma combinação de diversos fatores: o compromisso pessoal da administradora com as políticas de igualdade, o salto tecnológico da empresa, suas conseqüências negativas sobre o pessoal — especialmente sobre as mulheres — e o compromisso de um grupo de sindicalistas de Milão com as diretrizes européias sobre igualdade de oportunidades no trabalho.

A seguir, Olgiatti comenta o resultado da análise horizontal de 18 experiências de ação afirmativa em empresas, apresentadas no Fórum Europeu sobre as Ações Afirmativas (primeira atividade anual de um grupo de especialistas constituído pela Comissão Européia para os Direitos da Mulher em 1994):

"Em primeiro lugar, essa análise confirma que os programas de ação afirmativa podem constituir um ponto de encontro real entre as necessidades de empresas eficientes e competitivas e as aspirações profissionais e as necessidades das pessoas. A análise também forneceu indicações significativas sobre as variáveis que influenciam positivamente a implementação de ações afirmativas nas empresas" (Olgiatti, p. 75).

As variáveis consideradas foram: fatores exógenos (como as mudanças no mercado, as dinâmicas do mercado de trabalho e o quadro institucional), fatores endógenos (como a inovação tecnológica, as estratégias organizativas, as parcerias sociais e a adesão da alta direção da empresa com as políticas de igualdade), instrumentos (modalidades de implantação e procedimentos, opções organizativas, entre outros aspectos) e conteúdos das ações afirmativas (voltadas para a introdução de mudanças culturais, que visam à superação da segregação vertical e da horizontal para a conciliação entre vida profissional e vida familiar, para garantir o pleno respeito à dignidade humana, entre outros conteúdos possíveis).

Por trás da experiência dos Estados Unidos aparece outro tipo de integração almejada: a integração à sociedade daqueles que lá são denominados "as minorias" (mulheres, negros, "latinos", índios, asiáticos, entre outros). A análise do caso norte-americano traz à tona não só uma outra origem, mas também outros componentes possíveis na adoção de medidas de ação afirmativa: a força da sociedade civil e o papel do litígio e do acordo judicial.

Muito especialmente envolvidos com a questão racial,

"[o]s programas de ação afirmativa para mulheres foram igualmente limitados nas decisões da Suprema Corte. Na ação da 'Universidade para Mulheres do Mississipi contra Hogan' (1982), a escola de enfermagem para mulheres foi processada por um homem que não foi admitido num programa de graduação sob o argumento de que a instituição violara a Cláusula de Proteção à Igualdade da 14a Emenda da Constituição dos Estados Unidos. A Suprema Corte extinguiu a política da universidade de admitir apenas mulheres na escola de enfermagem, julgando que uma classificação por gênero somente seria válida se houvesse uma prova de que aquela política pretendia compensar mulheres por discriminação sofrida na enfermagem, em oposição a uma discriminação mais generalizada enfrentada na escola ou no emprego" (Pate, p. 91).

Após comentar brevemente os mitos e as realidades sobre as ações afirmativas e suas conseqüências, Pate analisa os efeitos produzidos pelos ataques às ações afirmativas durante o governo Clinton, principalmente a Proposição 209, "iniciativa popular anti-ação afirmativa" que os eleitores da Califórnia votaram em 1996. A mobilização da sociedade civil é ressaltada como via para proteger e ampliar as conquistas obtidas em prol da igualdade de oportunidades e pelo fim da discriminação e do preconceito.

A contribuição de Abramo tem características completamente diferentes. Após retratar as condições das mulheres trabalhadoras na América Latina entre 1970 e 1990, com base na análise dos dados produzidos pelo Projeto de Pesquisa Regional da Flacso,2 2 VALDES, Teresa, e GOMARIZ, Enrique. Mujeres latinoamericanas en cifras. Tomo comparativo. Santiago de Chile: Flacso/Instituto de la Mujer de España, 1995. a autora se propõe a analisar algumas experiências atuais de inserção feminina nos mercados de trabalho. Com um enfoque analítico e crítico, fundamentado numa diversidade de pesquisas, Abramo desmonta algumas das crenças em torno dos supostos benefícios que trazem às mulheres trabalhadoras os processos de globalização, de flexibilização, de reestruturação produtiva, e de inovação tecnológica (principalmente no que diz respeito ao estabelecimento das cadeias produtivas).

A autora também desafia alguns dos mitos sobre as cadeias produtivas na América Latina, destacando sua real verticalização, sua assimetria de poder e de competitividade, e chamando a atenção para o fato de que a integração supra-nacional poderia trazer aspectos positivos e negativos. É importante permanecer atento a essas duas possibilidades, na hora de elaborar e implementar políticas públicas tendentes à superação da discriminação de gênero na área de trabalho e renda. Nesse sentido, Abramo afirma:

"Os processos de integração regional enfatizam a importância de introduzir essa perspectiva tanto na análise dos tecidos produtivos como na discussão das políticas públicas, em especial aquelas relacionadas aos processos de fomento produtivo, desenvolvimento econômico local e geração de emprego. Se é certo que entender esse tipo de articulação produtiva é cada vez mais importante para caracterizar a configuração real dos tecidos produtivos, também é certo que as cadeias (ou os clusters de empresas) não se limitam necessariamente a apenas um país (Gereffy, 1993). É muito provável que os processos de integração regional, como é o caso do Mercosul, estimulem (ou definam) os encadeamentos ao longo do territórios que abarquem mais de um ou vários países. Esse fenômeno pode apresentar aspectos positivos e negativos para o emprego em geral e o trabalho feminino em particular, dependendo das condições nas quais se desenvolva" (Abramo, p. 124).

A seriedade e a multiplicidade dos aportes contidos na publicação merecem uma leitura detalhada, meditada, que com certeza constituirá um estimulante motor de ricas e superadoras proposições no campo das políticas públicas de trabalho e renda com preocupações de gênero e justiça social.

Os artigos que compõem essa coletânea refletem sistematicamente avanços e retrocessos, êxitos e fracassos na procura da igualdade profissional entre homens e mulheres: quais os limites a serem respeitados para que uma ação afirmativa não contradiga o princípio da igualdade formal entre os indivíduos? Como mobilizar os diferentes setores socioeconômicos com o intuito de construir consensos em torno da necessidade e da positividade das ações afirmativas? Como evitar os aspectos negativos da reestruturação produtiva e o ajuste estrutural no sentido de impedir que a discriminação baseada nas concepções de gênero assuma nova cara e continue marcando a vida das mulheres?

A leitura do livro em seu conjunto permite recuperar alguns dos dilemas colocados aos formuladores e gestores de políticas públicas de trabalho e renda preocupados com os aspectos da diversidade da população economicamente ativa, e principalmente com a discriminação baseada no sistema de sexo/gênero. Alguns gestores optam por apresentar esse tipo de políticas aos empresários como um derivado do princípio de eficiência, e portanto como baseadas na competitividade. Com esse enfoque, atender a problemática da discriminação das mulheres no trabalho significaria agir a favor do desenvolvimento econômico (crescimento e competitividade), do aumento da produtividade (produção de bens e serviços), da melhoria da imagem da empresa na sociedade (atingindo a circulação de bens e serviços) e da utilização adequada da multiplicidade e da variedade de recursos humanos disponíveis numa dada sociedade. No entanto, esse enfoque desatende o outro lado da moeda, igualmente importante, que é o compromisso social do empresariado, no que diz respeito à atenção da cidadania e do princípio de eqüidade. Essa ótica, em contrapartida, privilegia o desenvolvimento social (isto é, o crescimento econômico com redistribuição da renda), os direitos humanos e as liberdades fundamentais, a justiça e a harmonia social e a igualdade de oportunidades e opções.3 3 Ver CUELLAR, Javier P. de et alli. Nuestra diversidad creativa. Informe de la Comisión Mundial de Cultura y Desarrollo. México: Unesco, 1997.

O livro ainda estimula a refletir sobre alguns pontos importantes para o desenvolvimento de políticas sociais mais justas:

· É preciso olhar a temporalidade da problemática de gênero (processos);

· É preciso analisar a problemática em cada região, setor de atividade, grupos de mulheres etc (público específico);

· É preciso considerar diversos tipos de razões para negociar com diversos atores (objetivos);

· Não há nem poderia haver uma única solução ou política pública para todas as mulheres.

Finalmente, podemos afirmar que esse livro constitui um subsídio fundamental para todos aqueles interessados na formulação, na gestão e na avaliação de políticas públicas na área de trabalho e geração de renda (governo, empresários, trabalhadores, movimentos de mulheres, ongs, legisladores, organismos intergovernamentais, entre outros), bem como a pesquisadores comprometidos com a temática das relações de gênero no mundo do trabalho.

SILVIA CRISTINA YANNOULAS

  • 1
    Discriminação positiva. Ações Afirmativas: em busca da igualdade. Brasília/São Paulo: CFEMEA/Elas, 1996.
  • 2
    VALDES, Teresa, e GOMARIZ, Enrique.
    Mujeres latinoamericanas en cifras. Tomo comparativo. Santiago de Chile: Flacso/Instituto de la Mujer de España, 1995.
  • 3
    Ver CUELLAR, Javier P. de et alli.
    Nuestra diversidad creativa. Informe de la Comisión Mundial de Cultura y Desarrollo. México: Unesco, 1997.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      19 Ago 2002
    • Data do Fascículo
      2001
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