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Transformações nas relações de gênero

Transformações nas relações de gênero

Os Novos Desejos: Das academias de musculação às agências de encontros

GOLDENBERG, Mirian (org.).

Rio de Janeiro: Record, 2000. 192p.

Os Novos Desejos, coletânea organizada pela antropóloga Mirian Goldenberg, reúne seis artigos que têm como proposta discutir as transformações nas relações de gênero, tomando como palco o dia a dia da cidade do Rio do Janeiro. O livro revela diferenças significativas nas formas pelas quais homens e mulheres vivem seus cotidianos, analisando valores e concepções que orientam práticas e visões de mundo dos universos sociais observados.

As questões que emergem dos estudos apresentados são relevantes para um entendimento mais abrangente da cultura brasileira, contribuindo, pela observação das diferenças de estilos de vida, para ampliar a discussão referente ao campo da antropologia urbana.

Além de dois artigos de sua própria autoria, Mirian Goldenberg trouxe a público quatro trabalhos de alunos do Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Todos se destacam pelas qualidades inerentes às investigações de Goldenberg e a seus ensinamentos como professora de Metodologia Científica: a leitura do significado das relações sociais, o entendimento de valores e representações, a descrição das práticas em sua diversidade, o desenho de sistemas classificatórios, a captação do ponto de vista dos atores sociais nas redes da cultura.

São expressivos os problemas abordados, cuja atualidade e relevância se confirmam em distintas instâncias sociais. Parte das problemáticas científicas de prestígio, já legitimadas dentro da academia como objeto de estudo, as questões de gênero não mais preocupam exclusivamente o universo de militantes e feministas. Em torno das relações entre homens e mulheres existe um grande espaço de debate na mídia, e a diversidade dessas manifestações é indicadora de sua importância social.

A produção científica sobre gênero teve e tem grande impacto na desconstrução de estereótipos ligados a uma suposta essência ou natureza feminina. Situar a questão na especificidade do social, como a produção científica vem realizando, significa "desnaturalizar" os fenômenos, ou seja, mostrar que fatores como atitudes, comportamentos, gostos, relações entre homens e mulheres são fenômenos histórica e socialmente construídos e nada têm de naturais, pois pertencem ao campo da cultura e dos sistemas de relações.

O livro organizado por Mirian Goldenberg é parte desse debate e dessa história de investigações e, por isso mesmo, conduz o leitor a uma visão mais complexa e multifacetada da realidade. Vale frisar que parte das perguntas que conduzem os pesquisadores ao campo são universais e desde sempre fizeram parte do jogo e das inquietações teóricas ou existenciais. O que querem os homens e as mulheres? Quais as diferenças e semelhanças entre os desejos e as experiências de homens e mulheres? O que é ser mulher ? O que é ser homem?

Essas e outras perguntas direcionam o olhar do pesquisador para as tensões da convivência entre "novos" e tradicionais modelos de masculinidade e femininidade, causas das fricções e dos constrangimentos vivenciados na atualidade.

Discutindo as transformações de papéis entre homens e mulheres, os autores, através de descobertas e aproximações sucessivas, foram focalizando tanto as mudanças de valores quanto a permanência de outros que persistem, ambos igualmente atuais.

Dividindo o livro em duas partes, a autora discute, na primeira delas, a "(des) construção" do masculino, reservando a segunda parte aos papéis femininos, tanto no espaço público quanto no mundo privado. Depois de décadas de estudos preferencialmente dedicados às mulheres, observamos hoje um interesse intenso sobre "o homem em crise". São matérias escritas em jornais e revistas que foram tomadas como empiria para a construção do objeto de pesquisa.

A pesquisadora circula igualmente bem tanto nas artes da observação participante quanto nas técnicas de pesquisa quantitativa. Advoga, inclusive, a importância de integrar na análise os dois métodos, tendo em vista maior compreensão dos fenômenos sociais, a partir dos cruzamentos de dados construídos pelo pesquisador. Essa é uma discussão atual sobre a qual, em outro momento (em A Arte de Pesquisar), foi do interesse da autora refletir.

No artigo "Um macho em crise", a pesquisadora analisa matérias de jornais e revistas de grande circulação, trazendo para sua análise dados da pesquisa que vem realizando desde 1998, que abrange aproximadamente 1300 homens e mulheres.

Concluindo o artigo, a autora esclarece que a década de 90 privilegia a reflexão sobre o homem, da mesma forma que em 60 e 70, esse privilégio pertenceu à mulher. A reflexão apresentada por Mirian Goldenberg gira em torno de uma temática que, segundo a pesquisadora, não pertence apenas ao contexto acadêmico, mas ocupa obsessivamente a mídia. A pesquisadora toma esses assuntos, recorrentes na mídia, imprimindo um outro tratamento, distante das análises apressadas. Por outro lado, é interessante registrar que a antropóloga é com muita freqüência convidada a debater esses assuntos, tanto na imprensa escrita quanto na televisa, para um grande número de pessoas fora das fronteiras acadêmicas. Merece destaque, portanto, o fato de que suas contribuições extrapolam os muros da universidade: assim, suas interpretações sobre a sexualidade, a conjugalidade e gênero são socializadas no contexto dos meios de comunicação de massa. Nesse sentido seu trabalho de pesquisa adquire uma dimensão sociocultural mais ampla, ao atingir um grande número de "leitores" que se apropriam de seus trabalhos.

Como serão interpretados seus argumentos e suas teses através das práticas leitoras desse público mais amplo, por definição heterogêneo, com suas competências diferenciais e específicas? Essa interrogação me leva a pensar em questões ligadas à teoria da leitura e problemas que eu mesma enfrento em minhas pesquisas atuais sobre a formação do leitor. Sem querer aprofundar, sinto, entretanto, que se coloca um problema interessante na linha da investigação sobre práticas leitoras. Roger Chartier diz que "não existe nenhum texto fora do suporte que o dá a ler, que não há compreensão de um escrito, qualquer que seja, que não dependa das formas através das quais ele chega ao seu leitor".

Uma das inúmeras perguntas que me ocorre poderia iniciar uma outra pesquisa. Como circula na sociedade a produção científica legitimada no interior da academia? Quais seus efeitos sobre as relações sociais?

Voltando ao primeiro texto de Mirian Goldenberg, quais os pontos emergentes? Como a chamada "crise da masculinidade" é percebida? Trata-se de crise ou de outra forma de viver os papéis masculinos? Outras possibilidades de exercício da paternidade e de direitos a serem conquistados pelos homens?

Mesmo sendo considerados casos restritos, é ampla a discussão sobre homens que lutam pela guarda de filhos e que cuidam deles sozinhos. A figura distante, violenta e não participativa de pai dá lugar à dimensão do afeto demonstrado, ao companheirismo, ao uso do tempo em função da dedicação maior aos filhos, mesmo que em detrimento de maior dedicação ao sucesso profissional e financeiro.

Esses valores não só aparecem através de exemplos citados na mídia como também são estimulados tendo em vista formas mais prazerosas de paternidade participativa. Como diz Mirian Goldenberg, entre outras constatações referentes às novas possibilidades de "ser homem" abrem-se alternativas de comportamentos mais descontraídos, como o uso de cosméticos, as operações rejuvenecedoras, os adereços. A modelagem do corpo é um caminho também aberto ao sexo masculino.

As alternativas postas são vividas por vezes com um certo pânico. As contradições e os valores conflitantes são interpretados por Mirian Goldenberg através da metáfora do "desmapeamento", utilizada por Sérvulo Figueira para indicar a coexistência de códigos contraditórios no sujeito, gerados no processo de modernização da sociedade. O moderno e o arcaico convivendo em níveis dissociados.

A antropóloga nega a versão de crise para os efeitos de mudança em curso. De fato não se pode mais pensar na hegemonia do típico machão, pois existem hoje muitas vias para o exercício da masculinidade. Nesse quadro, fica reiterada a hipótese de identidade de gênero como construção histórica e social.

Com o instigante título "De Amélias à operárias", a antropóloga apresenta um ensaio que visa a discutir os conflitos de mulheres economicamente ativas, tanto no mercado de trabalho quanto nas relações de conjugalidade. Pontos relevantes como o crescimento proporcional das mulheres economicamente ativas, a "feminização" da pobreza e a chefia familiar são analisados nesse texto em que Mirian Goldenberg comenta com agudeza as queixas tanto de homens quanto de mulheres sobre os efeitos perversos das transformações do papel da mulher.

Os conflitos entre os sexos são vistos como intensificados com a chamada libertação feminina. De um lado as mulheres reclamam da falta de homens e de outro os homens sentem-se pressionados pelas crescentes exigências femininas. A autora leva ao leitor outras idéias para a discussão das lutas entre os gêneros. No lugar das categorias tão caras às feministas, como a igualdade e os direitos da mulher, ela propõe o "respeito à diferença e ao espaço do outro, negociação diária, diálogo permanente, troca, crescimento mútuo". Essas são modalidades dos que reinventam a parceria amorosa, nos segmentos médios, a partir do cotidiano e não necessariamente tendo em vista a reprodução de grandes modelos sociais.

Os demais artigos incluídos no livro foram selecionados pela relevância de suas contribuições para a discussão de gênero. Marcelo Silva Ramos pergunta-se sobre "o que mudou e o que permaneceu em relação aos papéis de gênero", montando sua reflexão tendo em vista matérias veiculadas na mídia escrita. Ao comentar a suposta crise de identidade masculina, enfatiza a importância de associá-la às idéias de multiplicidade, plasticidade e flexibilidade de gênero. Cesar Sabino visa a compreender as representações sociais e práticas de freqüentadores de academias de musculação, apostando que tais práticas de construção do corpo são reprodutoras das desigualdades de gênero. Sua etnografia é feita em academias da zona norte da cidade do Rio de Janeiro, ressaltando aspectos das técnicas corporais utilizadas para a intervenção no corpo humano tendo em vista a produção de determinados padrões de estética, segundo um esquema classificatório que permite um olhar para o ethos masculino preponderante nas academias de musculação.

Erika Souza Vieira pesquisa as agências de encontros, cujos clientes buscam formas alternativas de busca de parceiros. Como funcionam essas agências? Quais os motivos que levam homens e mulheres a desistir das maneiras mais conhecidas de escolha de parceiros? Quais as operações sociais em jogo? Quem são os clientes e quais as suas expectativas? Seu trabalho não só produz conhecimento sobre o fenômeno em pauta como também contribui para as discussões relativas aos padrões de conjugalidade e para as reflexões sobre os estudos demográficos no Brasil, revelando outras faces da solidão feminina.

Renata de Melo Rosa tem como objetivo investigar o imaginário de gênero, trabalhando a questão do "parceiro desejável". Com essa indagação ela investigou doze mulheres, negras e brancas, moradoras da zona norte e oeste do Rio de Janeiro. Uma peculiaridade era comum a todas: desenvolverem relacionamentos afetivos com estrangeiros loiros e de olhos azuis. Símbolo de ascensão social, tal escolha passa por diferenças internas à constituição do casal analisado, considerando, entre outros aspectos, as questões "racial", de gênero e de identidade nacional.

A qualidade das pesquisas apresentadas, a escrita acadêmica e ágil, a consistência das análises, a atualidade dos temas e a contribuição que o livro organizado por Mirian Goldenberg representa para os estudos de gênero faz de Novos Desejos leitura obrigatória para os pesquisadores da área e para todos aqueles curiosos sobre temáticas da atualidade da cultura brasileira.

TANIA DAUSTER

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    19 Ago 2002
  • Data do Fascículo
    2001
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