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Educação Física e sexualidade: desafios educacionais

WENETZ, Ileana; SCHWENGBER, Maria Simone Vione; DORNELLES, Priscila Gomes. . Educação física e sexualidade: desafios educacionais . Ijuí: Editora UNIJUÍ, 2017

A obra Educação Física e Sexualidade: desafios educacionais, organizada por Ileana Wenetz, Maria Simone Schwengber e Priscila DornellesWENETZ, Ileana; SCHWENGBER, Maria Simone Vione; DORNELLES, Priscila Gomes. Educação Física e Gênero: desafios educacionais. Ijuí: Unijuí, 2013., integra a coleção Educação Física da Editora Unijuí. Publicado em 2017, o volume dá continuidade ao projeto editorial iniciado com o livro Educação Física e Gênero: desafios educacionais (2013) também das mesmas autoras, pela mesma editora. Com prefácio de Fernando Seffner, problematiza as relações entre Educação Física e Sexualidade, a partir da abordagem pós-estruturalista, à luz da teoria queer. Questiona como a Educação Física dialoga (ou não) com movimentos sociais que tensionam a ordem compulsória sexo-gênero-desejo e uma heterossexualidade compulsória.

No momento histórico no qual “gênero”, “sexualidade”, “diversidade”, entre outros termos, têm sido silenciados nos documentos nacionais - como o Plano Nacional de Educação - e no qual movimentos conservadores, pautados em discursos religiosos, tentam constituir uma “Ideologia de Gênero” e uma “Escola sem Partido”, que retiram da instituição educacional a sua função política, social e pedagógica, esta obra constitui-se num avanço nos Estudos de Gênero na Educação Física, ao incluir um tema com demanda crescente: a sexualidade e seus desdobramentos na escola.

O livro se organiza em seis capítulos, que abordam questões epistemológicas sobre a produção teórica dos Estudos sobre Sexualidade na Educação Física; a transgeneridade e seu impacto no esporte; os corpos que “escapam”, representados pelas performatividades das atletas do levantamento de peso; as masculinidades queer, performatizadas no voleibol; a Educação Física escolar e o dispositivo heteronormativo e hostil sobres homossexuais, e a teoria queer, suas categorias-chave e a naturalização do dimorfismo sexual nas identidades trans.

No capítulo “Caminhos teóricos e políticos do trato com a sexualidade na Educação Física: uma análise inicial das produções na área (2001-2015)”, Ileana Wenetz, Maria Schwengber e Priscila Dornelles criticam ações de movimentos conservadores que contestam a abordagem da temática de gênero e sexualidade na escola por se constituir uma “Ideologia de Gênero”. Ressaltam que a pressão política desses grupos impactou a redação do Plano Nacional de Educação, cujos termos “Gênero”, “igualdade de gênero”, “diversidade sexual” e “sexualidade” foram suprimidos. Como a Educação Física se posiciona sobre isso? Quais suas contribuições? Como problematizar questões de Gênero e Sexualidade para que docentes possam abordá-las em sua prática pedagógica? Para responder a essas questões, as autoras efetuaram um levantamento bibliográfico de estudos sobre Educação Física e Sexualidade entre 2001-2015, em periódicos da área com Qualis entre A1 e B11 1 Revista Movimento, Revista Brasileira de Ciências do Esporte (RBCE), Revista Motriz, Revista da UEM e a Revista Brasileira de Educação Física e Esportes. , e em trabalhos do Congresso Brasileiro de Ciências do Esporte, utilizando descritores2 2 Sexualidade, orientação sexual, identidade sexual, educação sexual, heterossexualidade. . Os dados foram analisados à luz das ideias de Judith Butler, Paul Preciado, Michel Foucault e Guacira Louro acerca da sexualidade.

Foram identificados 38 artigos nos periódicos e 20 trabalhos apresentados no congresso pesquisado. Dentre os artigos, muitos ainda apresentam confusões conceituais entre gênero e sexualidade ou o entendimento da sexualidade como sinônimo de sexo, indicando dificuldades para circunscrever a categoria sexualidade nas pesquisas. A análise dos trabalhos do congresso conclui que a maioria não centrou suas discussões na categoria sexualidade, definindo sexualidade com base no sexo, operando com binarismos sexo-gênero, sem tensionar a linearidade entre sexo-gênero-sexualidade. Apenas dois estudos definem sexualidade questionando o pensamento binário e heteronormativo de naturalização da heterossexualidade. As pesquisas se relacionam com Estudos de Gênero, Culturais, Feministas e Queer, tendo a escola como locus principal. O texto indica o avanço quantitativo de estudos, quando comparados às últimas décadas. Entretanto, a maioria ainda apresenta dificuldades conceituais e epistemológicas no trato com a categoria “sexualidade”, pela força da matriz de pensamento da Biologia na área de Educação Física.

No segundo capítulo, “Esporte e transgeneridade: corpos, gêneros e sexualidades plurais”, Luiza dos Anjos e Silvana Goellner abordam o esporte como prática social sexuada, generificada e generificadora. Ressaltam as tensões causadas por atletas trans3 3 No entendimento das autoras, o termo trans é sinônimo de transgênero, um conceito guarda-chuva, que designa um grupo diverso - transexuais, travestis, crossdressers, drag queens, drag kings, multigêneros, de gênero queer, agêneros - que não se identifica expectativas sociais sobre seus comportamentos determinadas pelo sexo biológico com o qual nasceram. em função da ininteligibilidade de seus corpos no esporte, assinalando que a visibilidade nos Jogos Olímpicos é ferramenta para tematizar a diversidade na Educação Física escolar. Pessoas trans tensionam o sistema sexo-gênero-desejo e a heterossexualidade compulsória, desarmonizando a ordem binária, ocupando o espaço da ambiguidade, fronteira ou do “entre-lugares”. Reconhecidas como desviantes e “abjetos”, são excluídas de espaços sociais como o esporte, que controla a normalidade, a aparência e a sexualidade dos corpos. Mudanças nas políticas do COI sobre a inserção de atletas trans, sinalizam que a aparência dos corpos não é mais o motivo para sua exclusão, mas os níveis de testosterona. Para exemplificar a polêmica, resgatam exemplos como Renée Richards, tenista transexual; e Fallon Fox, atleta transexual das Mixed Martial Arts, que transformam representações sobre feminilidades e masculinidades, conferindo visibilidade aos seus corpos e demandando novas ações de instituições esportivas para que sejam incluídas no esporte.

As autoras enumeram documentos que colaboram com a construção de uma escola inclusiva, que acolha a diversidade: Programa Brasil Sem Homofobia (2004) e o Projeto Escola Sem Homofobia; Plano Nacional de Promoção da Cidadania e Direitos Humanos LGBT (2009); Conselho Nacional de Combate à Discriminação LGBT (2010); e Sistema Nacional de Enfrentamento à Violência contra LGBT e Promoção de Direitos (2013). Entretanto, a supressão dos termos “igualdade de gênero” e de “orientação sexual” na redação do texto do Plano Nacional de Educação (2014), sob o argumento de promover uma “Ideologia de Gênero” que atacaria a instituição familiar tradicional, configura-se num retrocesso. Essa discussão promove a formação de sujeitos que transformem positivamente a sociedade, respeitando a diversidade, uma vez que a escola e a Educação Física têm sido espaços hostis para sujeitos trans, que sofrem violência física, psicológica e sexual, pela inadequação de seus corpos às práticas generificadas e generificadoras, abandonam a escola.

No capítulo seguinte, “Corpos que Escapam: performatividades de gêneros, sexualidades e abjeção no levantamento de peso”, João Soares e Ludmila Mourão investigam as experiências de gênero, sexualidade e abjeção dos corpos de atletas do levantamento de peso, uma modalidade de reserva masculina que tem invisibilizado as experiências das mulheres. Pautado nos estudos de gênero e sexualidade pós-estruturalistas e queer, com vertentes butleriana e foucaultiana, o texto utiliza conceitos como “normalização”, “performatividade” e “abjeção”, para problematizar a normalização das feminilidades via discurso e instituições regulatórias dos corpos de mulheres. A pesquisa foi desenvolvida num Centro de Treinamento da Universidade Federal de Viçosa, com observação sistemática dos treinamentos e a entrevista com oito atletas com idades entre 14 e 20 anos, afrodescendentes, residentes em bairros populares, matriculadas na Rede Pública de Ensino, e que possuíam entre um e cinco anos de prática em competições regionais, estaduais e nacionais.

Os resultados indicam que essas mulheres tensionam a normalização da feminilidade hegemônica. A escolha da modalidade é conflituosa nos espaços onde transitam, como a família, que vigia e condiciona sua participação à manutenção da feminilidade. A materialidade dos corpos no levantamento de peso ancorada na performance, posiciona esses mesmos corpos num dos polos do binarismo de gênero: o masculino, em função do aumento do volume e da força muscular. Tal cruzamento da fronteira “binária” dos gêneros põe em suspeição sua identidade de gênero e sexual, ao romperem com a ordem compulsória sexo-gênero-desejo. Seus corpos despertam fascínio e atração, mas também intimidam e causam repulsa, por serem dissidentes e abjetos. Nesse contexto, as mulheres do levantamento de peso se apropriam do processo de abjeção, transformando-o em mecanismo de resistência às normas de gênero e feminilidades circulantes no espaço do treinamento e demais espaços sociais.

Em ‘Afeminada! Afeminada!’ - queerizando as masculinidades no contexto do veleibol”, Leandro de Brito investiga a performatização da masculinidade queer, não normativa, entre atletas da categoria sub-21 do voleibol, que se identificam como gays ou bissexuais. Através da etnografia, com observação participante e entrevistas informais, o autor problematiza a heterossexualidade compulsória, o binarismo de gênero e a crítica ao sistema sexo-gênero-desejo. O autor faz referência à influência das teorias feministas, pós-estruturalistas e psicanalíticas, além de intelectuais como Jaques Derrida e sua ideia sobre a “desconstrução”, aplicada no questionamento do binarismo de gênero e hierarquização entre heterossexualidade e homossexualidade; assim como Judith Butler e Eve Sedgwick e sua noção de “performatividade queer”, que constitui e regula o sexo, o gênero e a sexualidade a partir de padrões normativos repetitivos.

Os dados do estudo permitem afirmar que a performatização queer dos atletas promove um deslocamento de sentido na noção de masculinidade normativa, desestabilizando o caráter fixo e estável desejado ao sistema sexo-gênero-desejo. O discurso de sujeitos no campo de pesquisa, representados pela arbitragem, espectador/a e técnico/a, demonstra a naturalização da presença de atletas gays e bissexuais no voleibol, uma modalidade que, segundo a pesquisa, tem absorvido feminilidades e masculinidades alternativas de torcedores/as e praticantes. A masculinidade normativa, circulante no contexto de modalidades praticadas por homens, reconfigura-se na arena do voleibol no universo pesquisado, contestando a heteronormatividade. O estudo constata que no campo esportivo, o voleibol tem protagonizado o questionamento da normalização da masculinidade hegemônica.

O quinto capítulo, intitulado “‘Fica no gol para pegar as bolas’: Educação Física escolar e o dispositivo da (homo)sexualidade”, de Vagner do Prado, problematiza as aulas de Educação Física e sua relação com corpo, gênero e homossexualidade, a partir dos pressupostos da teoria queer. Apresenta reflexões históricas sobre sua origem, etimologia, base pós-estruturalista e intelectuais expoentes. Com base nas reflexões de Michel Foucault sobre os corpos como sendo construções discursivas e a sexualidade construída a partir de discursos institucionalizados; e de Judith Butler, sobre a contestação da lógica entre sexo, o gênero e a sexualidade, o texto ressalta como os efeitos discursivos e os dispositivos reguladores dos gêneros e sexualidades operam na produção de uma heterossexualidade compulsória e manutenção da heteronormatividade, gerando a abjeção de corpos ininteligíveis.

O ensaio sublinha que a prática pedagógica fabrica sujeitos a partir de uma visão binária - macho/fêmea, homem/mulher, heterossexual/homossexual -, especificamente a Educação Física, por ser um componente curricular com escassez de proposições sobre gênero e sexualidade enquanto categorias que constituem os corpos. Isso se dá, sobretudo, pela invisibilidade da temática na formação inicial de professores/as, assim como a inexpressiva produção acadêmica da área. Nesse contexto, corpos que transgridem a ordem sexo-gênero-sexualidade são excluídos ou se autoexcluem, por receio da estigmatização, discriminação, sexismo e homofobia, sobretudo os homossexuais, que tensionam a normalização ao sinalizarem a existência de masculinidades não hegemônicas. A intervenção docente é fulcral na problematização e conscientização discente sobre a diversidade e construção da hierarquia de gênero, garantindo princípios legais e diretrizes educativas que combatem a discriminação, a violência e a homofobia na escola.

No último capítulo, “La gesta queer del cuerpo que no es uno - aportes conceptuales más allá del dimorfismo sexual”, Ariel Martínez aborda aspectos conceituais da Teoria Queer, sua origem na década de 1990 e as ideias de intelectuais, com destaque para Judith Butler. O texto traz apontamentos sobre as categorias “identidade” e “corpo”, questionando a constituição de uma realidade de gênero ancorada na anatomia dos corpos e no binarismo com base na morfologia, subsidiando a matriz de inteligibilidade heterossexual e mantendo uma ordem social natural. Também resgata o conceito de “identificação” e contestação da lógica binária e linear do sexo-gênero-desejo, assim como faz alusão à “performatividade”, sinalizando que as identidades se instauram cotidianamente a partir de performances.

Em seguida, são apresentados dados de pesquisa de campo qualitativa sobre autopercepção de sujeitos não adequados ao seu gênero, acerca de suas identidades de gênero e seus corpos. A análise de conteúdo das entrevistas em profundidade com onze informantes adultos, gerou as categorias “autodenominação”, “identidade” e “corpo”. O estudo conclui que apesar de os sujeitos não expressarem o gênero socialmente esperado a partir da anatomia de seus corpos, se autopercebem a partir de corpos dimorficamente naturalizados, base de um sistema binário, que busca a manutenção da coerência da ordem sexo-gênero, o que pode ser identificado pela tendência a assumirem as categorias normativas e binárias circulantes: homem, mulher, masculino, feminino, remetendo-se ao dimorfismo sexual para conferirem inteligibilidade a seus corpos e significarem suas experiências.

Avaliamos que a obra Educação Física e Sexualidade: desafios educacionais, organizada por Priscila Dornelles, Ileana Wenetz e Maria Simone Schwengber, configura-se como uma relevante contribuição aos Estudos de Gênero na Educação Física brasileira. Ao se debruçarem sobre uma temática que ainda permanecia à sombra no contexto da produção acadêmica da área (Agripino Alves LUZ JÚNIOR, 2003LUZ JÚNIOR, Agripino Alves. Educação Física e Gênero: olhares em cena. São Luis: Imprensa Universitária UFMA/CORSUP, 2003.; Fabiano Pries DEVIDE et al, 2011DEVIDE, Fabiano Pries et al. “Estudos de gênero na Educação Física Brasileira”. Motriz, Rio Claro, v. 17, n. 1, p. 93-103, 2011.), a partir de uma abordagem pós-estruturalista, as organizadoras trazem à tona uma temática historicamente invisibilizada, o que tem contribuído para fomentar um quadro de exclusão e violência no âmbito das práticas corporais, sejam aquelas vivenciadas na Educação Física escolar ou no âmbito do esporte de alto rendimento.

Referências

  • DEVIDE, Fabiano Pries et al. “Estudos de gênero na Educação Física Brasileira”. Motriz, Rio Claro, v. 17, n. 1, p. 93-103, 2011.
  • WENETZ, Ileana; SCHWENGBER, Maria Simone Vione; DORNELLES, Priscila Gomes. Educação Física e Gênero: desafios educacionais Ijuí: Unijuí, 2013.
  • LUZ JÚNIOR, Agripino Alves. Educação Física e Gênero: olhares em cena São Luis: Imprensa Universitária UFMA/CORSUP, 2003.
  • 1
    Revista Movimento, Revista Brasileira de Ciências do Esporte (RBCE), Revista Motriz, Revista da UEM e a Revista Brasileira de Educação Física e Esportes.
  • 2
    Sexualidade, orientação sexual, identidade sexual, educação sexual, heterossexualidade.
  • 3
    No entendimento das autoras, o termo trans é sinônimo de transgênero, um conceito guarda-chuva, que designa um grupo diverso - transexuais, travestis, crossdressers, drag queens, drag kings, multigêneros, de gênero queer, agêneros - que não se identifica expectativas sociais sobre seus comportamentos determinadas pelo sexo biológico com o qual nasceram.
  • Fabiano Pries Devide (fabianodevide@uol.com.br) é Doutor em Educação Física e Cultura com ênfase em Estudos de Gênero na Educação Física e no Esporte. Professor Adjunto IV do Instituto de Educação Física da Universidade Federal Fluminense (IEF-UFF/RJ). Líder do Grupo de Pesquisa Relações de Gênero na Educação Física (CNPq) e autor das obras “Estudos de Gênero na Educação Física e no Esporte”, “História das Mulheres na Natação Brasileira no século XX: das adequações às resistências sociais” e “Gênero e Mulheres no Esporte: História das Mulheres nos Jogos Olímpicos Modernos”.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    06 Set 2018
  • Data do Fascículo
    2018

Histórico

  • Recebido
    20 Dez 2017
  • Aceito
    19 Mar 2018
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